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A Lenda de São Julião o Hospitaleiro de Flaubert The Legend of Saint Julian the Hospitaller by Flaubert
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Maria Filomena Molder
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D O C U M E N TA
AMADEO DE SOUZA-CARDOSO A Lenda de São Julião o Hospitaleiro
AMADEO DE SOUZA-CARDOSO
AMADEO DE SOUZA-CARDOSO A Lenda de São Julião o Hospitaleiro de Flaubert
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Ama deo de Souza-Car doso
A LENDA DE SÃO JULIÃO O H O S PI TA L E I RO de
Fla u bert
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D O C U M E N TA
2.ª edição | 2nd edition texto | text
Maria Filomena Molder
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Este livro foi publicado por ocasião da exposição «Amadeo de Souza Cardoso 1887-1918» organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Réunion dês Musées Nationaux – Grand Palais, em Paris, de 20 de Abril a 18 de Julho de 2016. La Légende de Saint Julien l’Hospitalier é um manuscrito ilustrado de Amadeo de Souza-Cardoso, a partir do texto de Gustave Flaubert, pertencente à coleção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. This book was published on the occasion of the exhibition “Amadeo de Souza Cardoso 1887-1918” organized by the Calouste Gulbenkian Foundation and the Réunion des Musées Nationaux – Grand Palais, in Paris, 20 April to 18 July 2016. The Legend of Saint Julian the Hospitaller is a manuscript of Gustave Flaubert’s story illustrated by Amadeo de Souza-Cardoso, belonging to the collection of the Calouste Gulbenkian Foundation Modern Art Centre.
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A Lenda de São Ju lião o Hos pi ta leiro de Fla u bert e Ama deo de Souza-Car doso Maria Filomena Molder
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The Legend of Saint Ju lian the Hos pi ta ller by Fla u bert and Ama deo de Souza-Car doso Maria Filomena Molder
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A Lenda de São Julião o Hospitaleiro de Fla u bert e Ama deo de Souza-Car doso
Maria Filomena Molder
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Agradecimentos
Este texto não teria sido escrito sem a ajuda preciosa do grupo de investigação do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão da Fundação Calouste Gulbenkian, constituído em vista da elaboração do Catálogo Raisonné de Amadeo de Souza-Cardoso e da exposição Amadeo de Souza-Cardoso — Diálogo de Vanguardas. Essa ajuda não se limitou aos aspectos informativos e documentais, mas elevou-se ao campo da discussão estética e às descobertas relativas à vida, obra e contexto da obra de Amadeo, consequências férteis que o desenvolvimento daquela investigação providenciou. Gostaria de nomear Catarina Alfaro e, sobretudo, Maria Helena de Freitas.
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A B E RT U R A
Em Abril de 1877, Gustave Flaubert publicou um pequeno volume intitulado Trois Contes, em rigor, a sua última obra acabada. O segundo conto chama-se «La Légende de Saint Julien l’Hospitalier». Os outros são «Un coeur simple» e «Hérodias». A ordem dos contos não é cronológica no que se refere à sua redacção. «La Légende» foi o primeiro a ser escrito numa celeridade inabitual, entre Setembro de 1875 e Fevereiro de 1876. É provável que isso se deva à familiaridade longuíssima e intensa que ele teve com a história do santo. Primeiro, sob a forma dos vitrais do século XIII da catedral de Rouen que ele conhece desde a infância, e depois pela leitura de todas as versões hagiográficas disponíveis, em particular La Légende dorée de Jacques de Voragine, bem como de estudos históricos relativos à Idade Média, à caça, aos animais e às armas, à guerra, às lendas e aos elementos maravilhosos e mágicos. Na verdade, Saint Julien acompanha toda a vida de Flaubert que, repetidas vezes desde 1856, se decide a escrever sobre ele, aumentando de cada vez a riqueza do seu tesouro documental, cujas origens remontam a 1835, quando ele visita, ainda adolescente, a igreja de Nossa Senhora de Caudebec, acompanhado pelo seu professor de desenho, E.H. Langlois, e com a ajuda do qual compara os vitrais das vidas de S.to Eustáquio e S.to Humberto com os de S. Julião em Rouen. Lembre-se o episódio na Madame Bovary em que Emma e Léon marcam encontro na catedral de Rouen e, pressionados pelo bedel, fazem uma visita obrigada, na qual só os vitrais, representando a vida do santo e da sua mulher (que em todas as versões hagiográficas é elevada também a santa, o que Flaubert erradicou da sua narrativa), não são mostrados et pour cause… Na versão primitiva da Bovary, o episódio tem, aliás, um peso ainda mais significativo. Mas a causa próxima do Saint Julien foi a leitura da obra Essai historique et descriptif sur la peinture en verre, publicada em Rouen em 1832, da autoria precisamente do seu antigo mestre, E.H. Langlois. No final do conto — «Esta é a história
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de São Julião Hospitaleiro, mais ou menos como é contada num vitral de igreja, na minha terra» —, Flaubert convida o leitor a um programa de investigação hermenêutica. A cópia e a ilustração de Amadeo respondem-lhe com um desafio equivalente.
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Citamos o seu início, marcado por uma lucidez que faz justiça a Amadeo e dá conta do fechamento de quase um país à sua simples existência: «O Século noticiou há tempo que um livro de Flaubert “La Légende de Saint Julien l’Hospitalier”, com desenhos originais de Amadeu de Sousa-Cardoso, se encontrava à venda n’uma livraria parisiense. Creio que para muitos portugueses será desconhecido até o nome d’esse prestigioso moço artista que parecia destinado à glória de um Goya, e que a morte roubou tão cedo […] a sua vida foi no entanto mais que uma promessa.» O título da notícia de O Século, «Um livro de Flaubert ilustrado por um nosso compatriota», parece confirmar a suspeita de Manuel Bentes relativa ao desconhecimento até do nome do «prestigioso moço artista», tendo sido corrigido o título por ele mesmo escolhido: «Flaubert ilustrado por Amadeu Cardoso».
Amadeo de Souza-Cardoso copiou a pincel e ilustrou La Légende de Saint Julien l’Hospitalier, na versão original, durante a sua estadia na Bretanha no Verão de 1912 (muito provavelmente concluído em Paris), ano de uma fertilidade imensa para o pintor. Trata-se de um «exemplar único-original», o que Amadeo faz questão de sublinhar na última página de um pequeno álbum, 12 Reproductions, publicado por ocasião das suas exposições de 1916 no Porto e em Lisboa, onde a obra figura, ao lado do anúncio dos últimos exemplares disponíveis dos XX Dessins. É, por isso, difícil de aceitar que estivesse à venda numa livraria em Paris em 1914 (tanto mais que Amadeo só deixa Paris precisamente no Verão do mesmo ano), segundo informação procedendo do Espólio Amadeo de Souza-Cardoso da Colecção da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Temos ainda, já mais perto de nós, um texto manuscrito — não datado — do seu amigo, o pintor Manuel Bentes, alertando para o facto de uma obra tão extraordinária estar à venda em Paris, por 5000 francos, na Livraria Gaillandre, 21 Quai des Malaquais, correndo o risco de ficar para sempre em paradeiro incerto. Tudo leva a crer que a notícia publicada no jornal O Século de 23 de Julho de 1932 tenha tido como base esse texto1. Por outro lado, no «Inventário de objectos de Amadeo de Souza-Cardoso» da Fundação Calouste Gulbenkian está indicado que La Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Amadeo foi doada ao Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão por Lúcia de Souza-Cardoso. Terá ela comprado a obra em Paris ou terá sido uma outra pessoa a comprá-la e a oferecê-la a Lúcia? Até agora, não houve maneira de desvendar estas incógnitas. Um belo enigma para os historiadores.
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I. Com a nossa expulsão, o Paraíso foi poupado ao aniquilamento Kafka
Há duas formas de o caçador ser vencido, o caçador que se transforma na caça, aquele que nunca mais pode regressar, perdido nos grandes bosques, e o caçador que não chega à metamorfose, o caçador maldito. No caçador maldito não há propriamente metamorfose, pois a simbiose em que ele entra com as forças predadoras da natureza está privada de qualquer vestígio de familiaridade. Trata-se de uma forma de impotência engendrada pela surdez à voz que se solta do fundo da vida: nauseado que está por tudo quanto nasce, pelo nascimento, por tudo quanto existe para além dele, o caçador maldito não permite nenhuma espécie de comunhão. Muito diferente é a situação do caçador perdido, a ameaça que o persegue forma-se no seu próprio anseio de fusão íntima com o animal perseguido. Entre os Gregos, o deus Dionísio foi a expressão suprema deste anseio de fusão. São muitas as histórias de encantar em que o jovem caçador experimenta essa vertigem e muitas vezes sucumbe a ela. Há uma versão dessa história em que os jovens caçadores conhecem a transmutação mais temida e desejada da arte venatória. A Cantata Profana de Béla Bartók é a sua apresentação sublime. No Ajax enfurecido de Sófocles (obra que muito impressionou, e de modo constante, Flaubert), o suicídio do herói não tem origem apenas na vergonha que o assola por não ter morto, como era seu fundo desejo e honra, aqueles que o haviam humilhado, confundindo os rebanhos e as manadas com os seus próprios opositores, mas, e sobretudo, no ter dado morte a tantos animais sem que a sua imolação servisse a algum deus ou providenciasse alimento a algum homem. Este último horror abraça o outro e é mais vasto do que ele. Nem sombra desta percepção no Saint Julien de Flaubert, no qual se observa uma náusea irritada, um asco rancoroso por tudo quanto se move espontaneamente, pelo fumo da respiração, pelo sono reparador, pela doçura e pela súplica, pelos gritos de dor e aflição, pelos esgares de terror puro. Em rigor, os animais não são propriamente perseguidos, mas apanhados no momento em que, entorpecidos pelo sono e pelo frio, concentrados na procura de alimento ou no repouso, estão à mercê sem qualquer possibilidade de lutar, de se defender e de atacar, cegos e surdos. Por outro lado, na noite de Verão que desagua no duplo parricídio,
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A fim de lembrar que a cópia de Amadeo se fez a partir da língua original, mantém-se sempre o nome do personagem de Flaubert, Julien ou Saint Julien, excepto quando se cita a tradução portuguesa ou um texto de referência.
nessa noite sem fim em que o firmamento se reflecte inteiro por entre as múltiplas folhas das árvores, cercando o caçador impotente, os animais vencem sem recorrer a nenhuma das suas armas: as garras não rasgam, os dentes não mordem, o veneno não atinge. A simetria faz valer as suas prerrogativas. «O que é uma criança? Uma criança, o texto parece sugeri-lo, é em primeiro lugar um sonho: o sonho conjugado dos seus dois pais […] a resposta, ironicamente esboçada pelo silêncio do narrador, refere-se ao que as palavras não podem articular, mas só os acontecimentos: uma criança é precisamente a encarnação da contradição entre os seus dois pais». Nestas palavras de Shoshana Felman mostra-se uma compreensão perspicaz da relação entre Julien e o seu pai e a sua mãe. Lembremos o início sóbrio, sumptuosamente conciso e misterioso de A lenda de S. Julião Hospitaleiro: «O pai e a mãe de Julião moravam num castelo, no meio dos bosques, na encosta de uma colina.» O que salta à vista é que Flaubert não diga «os pais». E, no entanto, a resolução encontrada para a pergunta: «o que é uma criança?» parece não chegar — há um desvio incomensurável, uma anomalia, que não coincide com a contradição, que a excede e que, portanto, ela não justifica inteiramente. Além disso, Felman sublinha excelentemente a passagem em que Flaubert nos permite surpreender o carácter sobrenatural do engendramento de Julien2: «Depois de muitas aventuras, [o senhor] desposara uma donzela de alta linhagem. A mulher era muito branca, um tanto altiva e grave […] Tanto rogou a Deus que lhe nasceu um filho.» Amadeo aponta para esse carácter sobrenatural da maneira mais expressiva, escutando na prosa da Légende aquilo que em poesia se chama rima interna (e de que temos exemplos vertiginosos de beleza e simplicidade nas cartas juvenis de Rimbaud): a meio de um parágrafo sobrevém a cintilação de um tesouro guardado entre as linhas. Para Saint Julien, infante, a relação maternal, o sono reparador, o repouso tranquilo, são as matrizes que fazem despoletar o seu braço mortífero, ele abomina, irrita-o, a vida nas suas formas mansas, a continuidade do seu fluxo, quer interrompê-lo. A distracção da vida vivendo: o ratinho que saltita, inadvertido que está para o olhar da criança, o pombo que regurgita de sono, o galo, o veado, a gazela, o gamo. Se aceitarmos a máxima de Marina Tsvétaïeva, «Não julgues ninguém pela sua juventude», e a aplicarmos a Saint Julien, surge de improviso uma evidência monstruosa: ele nunca deixou a juventude e é provável que tenha mesmo nascido adolescente. Tudo nele é desmedida desde o início: os dentes nascem-lhe sem qualquer sinal de dor ou mesmo mal-estar; menino ainda, ouvimos-lhe os gritos irreprimíveis que antecipam o seu próprio obscuro prazer venatório, ao ouvir as narrativas de troféus
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de caça aos cavaleiros, amigos de seu pai. Aqui a infância é um puro amealhar para a juventude, fúria profunda & dor & avidez de destruição3 são efectivamente as forças anímicas que dormem no infante Julien. Aos sete anos a mãe ensina-o a cantar, mas nunca ninguém perceberá as consequências. Por conseguinte, a passagem da infância à mocidade faz-se nele por afundamento metódico na repetição do golpe e do lançamento certeiros, que se elevam a uma espécie de mecânica do êxtase a que foi arrancado o elemento íntimo, quer dizer, é um estar fora de si sem qualquer vestígio de afinidade. Trata-se de ser apanhado pelos seus próprios movimentos e pelos movimentos que provoca até que todo o movimento cesse, fascinado, enfeitiçado. O furor de Julien também se aplica a formas animais mais cruéis, os lobos, ou menos domesticáveis, os bodes selvagens. Porém, isto não é uma variante da visão goethiana da natureza como «força que devora a força». Julien quer vencer por excesso, quer ser mais bode do que o bode, mais lobo do que os lobos, quer ultrapassar a condição de sobrevivente, ser uma força pura sem objectivos, ser um falcão, imperturbável, obsessivo, ascético: elevar-se no azul, descer vertiginosamente, apanhar e dilacerar a presa, entregá-la ao nada e regressar à manopla do seu senhor. São esses os «pensamentos profundos» que o fazem perder-se, insensível aos doces transportes da mãe, não olhando para trás quando o bom monge o chama, ansioso por fazê-lo regressar a um lugar que seja comum.
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«Quem quer que ouça com compreensão uma criança a gritar, saberá que dormem nela forças anímicas, terríveis forças diferentes daquelas que habitualmente aceitamos. Fúria profunda & dor & avidez de destruição.» Wittgenstein, Vermischte Bemerkungen, 1929.