Amadeo de Souza-Cardoso, XX Dessins

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Catarina Alfaro

D O C U M E N TA XX DESSINS

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AMADEO DE SOUZA-CARDOSO

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AMADEO DE SOUZA-CARDOSO 1887-1918

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D O C U M E N TA

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Esta edição fac-similada do álbum XX Dessins, de Amadeo de Souza-Cardoso (1912), é publicada por ocasião da exposição «Amadeo de Souza-Cardoso 1887-1918» organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Réunion des Musées Nationaux – Grand Palais, em Paris, de 20 de abril a 18 de julho de 2016 Édition en fac-similé de l’album XX Dessins, par Amadeo de Souza-Cardoso (1912), publié à l’occasion de l’exposition « Amadeo de Souza-Cardoso 1887-1918 » organisée par la Fondation Calouste Gulbenkian et la Réunion des Musées Nationaux – Grand Palais, à Paris, du 20 avril au 18 juillet 2016

texto | texte © Catarina Alfaro A autora não escreve segundo o acordo ortográfico de 1990 © Fundação Calouste Gulbenkian, 2016 Avenida de Berna, 45-A, 1067-001 Lisboa [ ISBN 978-989-8807-22-9 ] © Sistema Solar CRL (Documenta) Rua Passos Manuel, 67 B, 1150-258 Lisboa [ ISBN 978-989-8834-17-1 ]


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XX DESSINS projecto editorial ou construção de uma identidade artística? Anexos XX Dessins: desenhos originais Cronologia Bibliografia

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XX DESSINS projet éditorial ou construction d’une identité artistique ? Annexes Chronologie Bibliographie

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XX DESSINS p ro jecto e d i tori a l ou con s t ru ç ã o de um a i d e n t i d a d e a rt í s t i c a ?

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Introdução O singular percurso artístico de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) e a sua participação activa na legitimação das vanguardas internacionais da sua época faz da sua produção artística, nacional e internacionalmente, um «caso de estudo» particularmente fértil e actual. Essa participação traçou-se naturalmente e à medida que apresentava as suas obras nos mais importantes acontecimentos artísticos que marcaram o Modernismo europeu, como o Salon des Indépendants (1911, 1912) e o X Salon d’Automne (1912), em Paris. Mas será talvez mais assinalável a sua presença, fora dos limites da geografia da sua cidade de eleição, num dos mais marcantes acontecimentos da vida artística americana do século XX, a International Exhibition of Modern Art, mais conhecida como Armory Show, em 1913, e a participação no 1.º Salão de Outono de Berlim, Erster Deutscher Herbstsalon, na galeria Der Sturm, em 1914. Vivendo entre Manhufe e Paris, entre 1906 e 1914, cidade que neste período reuniu a grande maioria dos artistas e movimentos de ruptura que definitivamente estabeleceram novas premissas para a arte ocidental, durante estes anos, Amadeo contactou com os mais importantes agentes destas alterações, tendo estabelecido com muitos deles relações artísticas sólidas e profundas, como Amedeo Modigliani, Constantin Brancusi, Otto Freundlich, Sónia Delaunay-Terk e Robert Delaunay. O curto período temporal de actividade de Amadeo de Souza-Cardoso, que se estende aproximadamente por catorze anos, resultou na produção de um número de obras considerável (cerca de 550), em que o artista experimentou várias técnicas e reflectiu sobre os paradigmas iconográficos e estéticos da sua época. O álbum XX Dessins, uma edição de Amadeo, vai corresponder à necessidade de promover a divulgação internacional da sua obra (gráfica), ultrapassando as previsíveis fronteiras de Portugal e França e deverá, por esta razão, ser entendida como uma premeditada estratégia de afirmação autoral, recebida criticamente com uma generalizada admiração pela originalidade e pela eficácia dos seus múltiplos referentes culturais. O álbum surge passados quase seis anos da partida do artista, de Lisboa, para Paris com o vago intuito de aí se formar arquitecto. Amadeo põe à prova o seu destino a cumprir1 participando, pela primeira vez, com seis obras, numa exposição de âmbito internacional, que ficará conhecida como a primeira grande exposição cubista, o XXVII Salon des Indépendants, que decorreu entre 21 de Abril e 13 de Junho de 1911. No mês de Março, integra outra exposição determinante no contexto das vanguardas artísticas do século XX, o XXVIII Salon des Indépendants (Quai d’Orsay). Aqui estarão

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«Os meus destinos só estão bem comigo. Ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado». Carta de Amadeo à mãe, Emília Cardoso, escrita no dia em que o artista completa 19 anos e parte para Paris. Espólio da família.

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Amadeo de Souza-Cardoso, Cavaliers, 1911. Óleo sobre tela. Assinada e datada «AMADEO S CARDOZO/1911». Localização desconhecida. Amadeo de Souza-Cardoso, La Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Gustave Flaubert [Paris]: 1912. Fólio: 51. Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. N.º Inv.: DP1822 José de Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul. Lisboa [s.n.], 1917. Edição gráfica a cargo de Amadeo de Souza-Cardoso.

O artigo é publicado a 8 de Junho de 1912, com o título «Bouche, Segonzac, Moureau, Cardoso», os quatro artistas que participam numa exposição organizada pela própria revista, e que teve lugar na sua sede, no n.º 68 da Rue Mazarine, também em Junho de 1912. É significativa a escolha do pintor português para integrar a exposição, sendo descrito como um «ilustre convidado de Paris», no primeiro artigo deste periódico dedicado às exposições. Documento transcrito e traduzido para português em Anexo 1. 3 Khan, Gustave, «L’Art. Le Salon des Indépendants», Mercure de France, n.º 355, 1 de Abril, 1912, pp. 634-643: «Cardoso dispôs, sob um céu Oriental de fantasia, onde esvoaça uma ave delicada, formas muito decorativas de cavaleiros mouros, e os cavalos são concebidos no modo paradoxal que convém à tapeçaria: é uma agradável decoração». 4 «Les Indépendants», Le Monde Illustré (20 de Março de 1912), pp. 202-203. A obra foi reproduzida no suplemento de Literatura & Arte, A Capital, 18 de Dezembro de 1968, num artigo intitulado «Sousa Cardoso 1887-1918 – Um homem e uma obra que estão vivos e à espera», da autoria de Ernesto de Sousa. Actualmente desconhece-se a localização desta obra. 2

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também presentes, entre outros, Archipenko, Brancusi, Robert Delaunay, Duchamp, Gleizes, Juan Gris, La Fresnaye, Marie Laurencin, Le Fauconnier, Léger, Lhote, Metzinger, Mondrian, Rivera. Todavia, o primeiro eco do reconhecimento artístico de Amadeo em Paris não veio, como seria expectável, através das críticas às determinantes exposições que integrou, mas sim na sequência da sua participação na primeira mostra colectiva, organizada em 1912, pela revista La Vie 2. Está ainda por identificar o que aí exibiu, sendo inequívoco que o artigo se refere a pinturas e não a desenhos, mas a descrição do conjunto de obras apresentadas pelo único artista não francófono em exposição antecipa, de algum modo, a recepção crítica que os XX Dessins terão em Paris, ainda durante este ano, mas também em 1913. O artigo de Marius e Ary Leblond, os dois fundadores da revista bimensal La Vie, aponta para a singularidade da obra de Amadeo de Souza-Cardoso, aqui transmitida essencialmente a partir do seu «exotismo», das suas características invulgares, que provêm da multirreferencialidade decorativa, própria da ressonância das civilizações perdidas evocadas na sua pintura. Estes valores de estranheza projectam-se para além da análise das obras de Amadeo que é, ele próprio, descrito como um «ilustre convidado de Paris», produto atípico e, por isso, exótico desta efabulação de alteridade que o conceito de cultura moderna – influenciada pela arte antiga, oriental ou africana – encerrava no defluir do séc. XX. No mesmo sentido, e reforçando o empenhamento de Amadeo em construir um território de referências único a partir da apropriação de elementos visuais provenientes de culturas distantes, Gustave Khan já havia elogiado a participação de Amadeo no XXVIII Salon des Indépendants3 com a apresentação de três obras, Les poissons d’or, La panthère, e Cavaliers, das quais se conhece apenas esta última através de fotografia reproduzida num periódico francês da época4.

XX Dessins: Projecto editorial ou construção de uma identidade artística? O projecto editorial XX Dessins, iniciado por Amadeo desde a Primavera de 1912 e publicado a 31 de Agosto desse ano, reúne 20 impressões tipográficas que resultam de 20 desenhos origi-


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Amadeo de Souza-Cardoso, álbum XX Dessins, 1912. Nota de encomenda do álbum XX Dessins [s.d.].

nais do artista, realizados entre 1911 e 19125. Esta edição de autor é uma experiência isolada, sem antecedentes nem precedentes, diferenciada de todas aquelas em que o artista usa o formato livro para apresentar a sua obra. O manuscrito ilustrado de La Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Gustave Flaubert é um livro de artista minuciosamente executado entre Julho e Agosto, enquanto passa férias na Bretanha, no mesmo ano de publicação dos XX Dessins, e que deve ter sido concluído já em Paris. Descrito por si como um «exemplar único-original»6 e realizado num registo intimista, é também num círculo muito restrito, ou mesmo familiar, que La Légende irá ser apreciado. O potencial interpretativo oferecido em cada uma das suas páginas é ampliado pela premeditada relação entre o texto e a imagem, que testemunha um processo de realização muito particular, à imagem de uma iluminura medieval7. Em 1915 Amadeo irá incluir-se num contexto colectivo de trabalho, que tem como centro aglutinador o casal Delaunay recentemente chegado a Portugal, para participar na concepção de outros álbuns artísticos. Este grupo propunha a realização de uma série de exposições itinerantes e álbuns artísticos, muitos deles executados a pochoir8 e integrando, por vezes, poesia. O projecto artístico, designado La Corporation Nouvelle, reunia artistas e poetas de várias proveniências, como José de Almada Negreiros, José Pacheco, Eduardo Viana, Vladimir Baranoff-Rossiné (pintor russo que vivia em Paris) e Samuel Halpert; a eles se juntarão mais tarde os poetas Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars. Para além dos álbuns que acompanhavam as Expositions mouvantes, Amadeo projectava realizar com Sonia Delaunay um livro, seguindo provavelmente o modelo de La Prose du Transsibérien, o primeiro poema visual simultâneo, obra única e inovadora, concebida em 1913 por Blaise Cendrars e a artista ucraniana9. Outros projectos editoriais, como K4 O Quadrado Azul, Litoral e Mima-Fatáxa Sinfonia Cosmopolita e Apologia do Triangulo Feminino juntarão, de novo, Amadeo e Almada Negreiros, no ano de 1917, sendo Amadeo o responsável pelo tratamento gráfico destes poemas de Almada.

Actualmente estão localizados 15 dos 20 desenhos originais concebidos para este álbum e 11 estão integrados na colecção do Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian. 6 12 Reproductions. Porto: edição de autor [1916]. 7 Maria Filomena Molder é autora de dois ensaios sobre esta obra, recomendando-se a sua leitura para o aprofundamento deste livro de artista. Molder, Maria Filomena, «La Légende de Saint Julien l’Hospitalier e Amadeo de Souza-Cardoso». La légende de Saint Julien l’Hospitalier. Edição fac-similada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 2006. 8 Ou stencil. 9 Alfaro, Catarina. Amadeo de Souza-Cardoso: Fotobiografia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, pp. 220-225. 5

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Amadeo de Souza-Cardoso, La Forêt merveilleuse, 1912. Desenho N.º 2 para o álbum XX Dessins. Tinta-da-china e guache sobre papel, 33,7 x 26,4 cm. Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. [Desenho original que acompanhava o 2.º álbum numerado, impresso em papel imperial do Japão.] N.º Inv.: DP397.

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Que aliás foram reutilizadas para as duas reedições fac-similadas dos XX Dessins pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 1958 e 1987, ambas esgotadas, sendo actualmente consideradas uma raridade bibliográfica.

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Com características mais próximas dos XX Dessins, exclusivamente dependentes da sua finalidade – a divulgação da sua obra a partir de um livro impresso –, Amadeo realiza, em 1916, uma outra edição de autor, intitulada Amadeo de Souza Cardoso 12 Reproductions. Este catálogo de apresentação do artista que antecede as suas duas primeiras exposições individuais, no Porto e em Lisboa, integra uma selecção das suas obras sem qualquer critério orientador de ordem cronológica ou que distinga e separe as técnicas utilizadas (pintura, aguarela e desenho). Nesta publicação faz-se também uma referência ao «Album de Dessins», quase esgotado, e anuncia-se ainda a presença de Amadeo em exposições e galerias de Munique, Paris, Berlim, Londres, Colónia, Hamburgo, Nova Iorque e Chicago. O álbum XX Dessins define-se fisicamente por 20 desenhos impressos e colocados numa embalagem cuidada, sendo acompanhados por um prefácio da autoria do jornalista e poeta francês Jérôme Doucet (1855-1957). A publicação apresenta-se ao público com uma tiragem qualitativamente diversificada, composta por 30 luxuosos exemplares sobre papel imperial do Japão, sendo os três primeiros acompanhados de desenhos originais; 100 exemplares (subscritos) sobre o mesmo papel e ainda 400 exemplares sobre papel simili-japon. Os 530 exemplares foram impressos pela Société Générale d’Impression, 21, rue Ganneron, em Montmartre. Subsistem, até hoje, na Fundação Calouste Gulbenkian, a quase totalidade das matrizes originais que foram usadas para a impressão dos desenhos10. Não terá sido Amadeo a intervir directamente na passagem do desenho original para as chapas de zinco. Neste processo de impressão a zincografia o desenho original é transferido para o zinco através de um processo fotográfico; o zinco é coberto por uma camada fotossensível e endurece nos locais onde recebe luz resistindo, deste modo, à mordedura do ácido; a passagem da tinta para o papel faz-se através destes elementos em relevo nivelados, que transferem ao suporte a tinta que, manual ou mecanicamente, se espalha pela superfície dos componentes que dão forma ao desenho. A técnica de construção das próprias matrizes, em que, por vezes, os zincos se encaixam numa espécie de puzzle sobre uma superfície de madeira de carvalho francês (?), denota também a presença de uma mão profissional que não seria certamente a de Amadeo. É inquestionável que os vinte desenhos terão sido concebidos e seleccionados especificamente para a sua inclusão no álbum impresso, o que lhe confere, deste modo, o estatuto de uma obra conceptual e formalmente unitária. No entanto, é inútil, ou mesmo artificial, procurar um sentido temático comum nesta edição. Este sentido compilador, presente no álbum, não se fundamenta, assim, na construção de uma unidade temática que, do mesmo modo, também não se evidencia em cada um dos desenhos, individualmente considerados, e que integram a publicação. A multiplicidade referencial alastra-se e domina, por vezes, cada um deles, atingindo contornos inesperados, como acontece, por exemplo, no desenho La Forêt merveilleuse. O desenho número 2 dos XX Dessins encerra uma paródia caricatural ao «primitivismo» e à sua figura principal, o «primitivo moderno», o artista autodidacta Henri Rousseau (1844-1910) que encontrava na pintura um meio de auto-expressão distanciado das convenções visuais académicas e cujas fontes de inspiração são, à semelhança dos XX Dessins, um enigma ainda por decifrar. Numa alusão directa a um dos temas mais recorrentes e fecundos da pintura deste artista francês – a representação de florestas luxuriantes e imaginárias, ambientes exóticos plenos de humor e de estranheza –, Amadeo apropria-se desse universo pictórico intrincado. Mas a cena é representada com uma extrema comicidade. Um macaco espreita por entre a vegetação frondosa, um elefante e dois cavalos irrompem de dentro dela, um tigre metamorfoseado de salamandra eleva-se do chão para atacar o artista em desequilíbrio, sugerindo a obra de Rousseau Nègre attaqué par un jaguar (c. 1910).


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É de referir o contexto celebratório em que a obra de Henri Rousseau, le Douanier, é apresentada naquela que ficará conhecida como a primeira grande exposição cubista11, o XXVII Salon des Indépendants de 1911, e na qual Amadeo apresenta seis obras. Numa exposição retrospectiva, que ocupava a sala 42, o artista francês que falecera no ano anterior e que era admirado por Apollinaire e também pelos mais destacados representantes do «estilo moderno», como Picasso e Robert Delaunay, é, desta forma, homenageado. Amadeo anota na sua agenda as obras aí vistas e que mais o tocaram: Musicien; Singes, joyeux farceurs; Jeux de singes; Cavalier attaqué par tigre; Le Rêve (de yadwiga); Combat tigre-buflle; Vaches en pâturage; Poète et sa muse (retrato de Apollinaire e Marie Laurencin). O imaginário exótico e decorativista de Rousseau, cujas obras foram comparadas – tal como serão os XX Dessins – com miniaturas persas e tapeçarias da Flandres, surpreendeu o artista português que terá adquirido também o livro de Wilhelm Uhde, Henri Rousseau et les primitifs modernes, editado durante esse ano. Amadeo partilha também com Henri Rousseau o sentido de apropriação das múltiplas fontes Henri Rousseau, Nègre attaqué par un jaguar, c. 1910 (pormenor). Kunstmuseum visuais, transpondo-as para um universo absolutamente novo e distanciado das suas origens, para Basel, Basileia. as reconfigurar num universo compósito mas unificado. O conceito de «primitivismo» associa-se paradoxalmente, nestes anos de 1900, à ideia de modernidade, e Amadeo absorveu-o e integrou-o admiravelmente na sua obra. O «primitivismo» é a parte do todo que agrega e estrutura os aspectos matriciais da sua produção artística e que propicia o 11 Althuser, Bruce – The Avant-garde in exhibition: New Art in the 20th Century. Nova Iorque: encontro com o «que só lhe pertence e a ninguém mais»12, do mesmo modo que lhe serve para afirHarry N. abrams, 1994. mar a sua obra em negação com qualquer compromisso com o cubismo, o futurismo e o orfismo. 12 «[…] Inteligente me parece aquele que, quanto mais intensamente gosta de uma obra de Arte, Encontramos, no discurso de Amadeo, várias manifestações exaltadas e reveladoras da immais fortemente se afasta de a imitar. Cada artista, portância da «pintura primitiva» e de como esta o despertou, sobretudo após a sua visita à Exque o é, tem em si qualquer coisa de inconfundível. Que só lhe pertence e a ninguém mais. Nós os noposição Universal de Bruxelas (23 de Abril a 7 de Novembro de 1910) – e, no seu âmbito, à vos, procuramos dentro de nós essa qualquer coisa Exposition Retrospective: Exposition d’Art Ancien – Les Arts au XVII Siècle –, para uma consciênque, se de verdade existe, ela aparecerá […]. Carcia crítica dos movimentos artísticos do seu tempo, levando-o a rejeitar a pretensão da imitação ta de Amadeo ao tio Francisco [1910]. Pamplona, Fernando de – Chave da Pintura de Amadeo. da realidade13. As ideias estéticas de Amadeo através das suas car«Passo os meus dias com alguns pintores primitivos que são os meus ídolos. A eles devo parte da tas inéditas. Lisboa: Guimarães & Companhia, grande evolução que tem atravessado o meu espírito. Converso com eles manhãs inteiras e eles me dizem 13 Editores 1983, p. 63. Carta de Amadeo de Souza Cardoso para Frangrandes coisas que eu escuto sedento. Essas grandes almas antigas absorvem hoje a maior admiração da cisco Cardoso, sem data [1910] domingo 6, publicada por Pamplona, Fernando de (sem data minha alma. Ao lado deles os grandes cérebros da renascença são apenas pigmeus. A renascença é um [1910?] Domingo 6) – op. cit., pp. 56 e 57. 14 necrológio da idade pagã e os góticos são a alma intensa de uma religião elevada» . 14 Ibidem. As implicações de ordem estética suscitadas pelo primitivismo não lhe eram estranhas e a sua 15 Destacam-se dois artigos de referência publicados em contexto anglo-saxónico. Clutton-Brock, reflexão anda a par da produção teórica da época acerca do tema. De um modo geral, estes ensaios A. – «The “Primitive” Tendency in Modern Art». sobre o primitivismo incitavam à procura da forma significante e sublimada, despida de qualidaThe Burlington Magazine for Connoisseurs. Vol. XIX (Abril-Setembro de 1911), pp. 226-228. des descritivas da realidade, sendo estas consideradas, em boa verdade, manifestações de uma cerBell, Clive – «Post-Impressionism and Aesthe15 ta arrogância técnica . Este campo de pesquisa eleito por Amadeo contribui para a sua tics». The Burlington Magazine for connoisseurs. Vol. XXII (Out. 1912-Mar. 1913), pp. 226-230. determinação em criar um vocabulário e uma retórica plásticos pessoais, e esse desígnio é fre«A arte primitiva […] é também livre de qualidaquentemente manifestado quando o artista se refere à evolução do seu trabalho, já em 1913: «[…] des descritivas. Na arte primitiva, não encontraNada tem que ver a minha maneira de sentir e compreender com futuristas ou cubistas e se alguma coimos qualquer representação exacta; apenas forma significativa» (p. 228). «Os primitivos concensa tem é a justificação do contrário. […] O futurismo é um truque charlatão sem sensibilidade nem cétram as suas energias na única coisa necessária – a rebro, camelote do cubismo; o cubismo uma caligrafia mental e literária. A arte tal como a sinto é um criação de forma. Criaram assim as mais preciosas produto emotivo da natureza. A natureza fonte de vida, de sensibilidade, de côr, de profundidade, de 16 peças de arte que possuímos» (p. 228). In Carta de Amadeo a Francisco Cardoso, Paris, acção mental, de poder emotivo, etc»16. Ao definir o seu sentimento artístico como «um produto 5 de Agosto de 1913. Pamplona, Fernando de – op. cit., p. 64. emotivo da natureza», aproxima-se também das teorias defendidas pelos expressionistas alemães,

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Folha de uma agenda de Amadeo com apontamentos sobre a exposição de retrospectiva de Henri Rousseau [s.d.]. Espólio Amadeo de Sousa Cardoso, FCG – Biblioteca de Arte: ASC 36/05

«O atelier de Amadeo, que era de nós quem vivia num maior desafogo, tornou-se o nosso centro de reuniões. Aí íamos todas as noites, o Manuel Bentes, Ferraz, o arquitecto Colin, Emmerico Nunes e eu. Mais raramente Eduardo Vianna. Estávamos preocupados em imprimir a estas reuniões um certo nível intelectual e artístico, e cada semana tínhamos um assunto original para discutir. Amadeo disserta sobre “A simplificação decorativa dos hieróglifos e a sua influência na arte moderna”, em 1908». Valdemar, António – «A agitação e boémia de Paris onde começaram os artistas portugueses que firmaram os caminhos da modernidade: o pintor Domingos Rebelo sobrevivente dessa geração de Amadeo de Souza-Cardoso, Modigliani, Emmerico Nunes e outros precursores». O Século. N.º 31792 (20 de Outubro de 1970), pp. 11-12. 18 Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, 86P26. 19 Op. cit., ed. fac-similada, p. 27. 20 Vide Alfaro, Catarina – Amadeo de Souza-Cardoso: Fotobiografia: Catálogo raisonné. Vol. I. Lisboa: Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian; Assírio & Alvim, 2007 (p. 140). 21 Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, n.º inv.: DP391; DP386; DP388, DP390; DP379; DP383; DP391; DP392; DP387; DP385; DP389; DP1821. 17

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e em particular dos que se alinhavam com o movimento Blaue Reiter e reclamavam uma uniformidade das fontes de inspiração artísticas que deveriam recuar à Europa medieval, às tradições populares, promovendo assim uma revitalização messiânica da arte, como contraproposta à complexidade do mundo moderno. A reflexão estética sobre o «Primitivismo» chega a ser desenvolvida por Amadeo, em 1908, num ambiente de tertúlia, junto dos seus compatriotas, discursando acerca d’«A simplificação decorativa dos hieróglifos e a sua influência na arte moderna»17. É, por isso, possível que neste mesmo contexto exploratório da temática do primitivo-moderno tenha sido executado um desenho de Souza-Cardoso, actualmente integrado na colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. A imagem remete-nos para a representação do primitivo próxima das descrições de raiz antropológica medieval, em que o homem surge indiferenciado da natureza, sendo esta medida pela ausência de distância entre o homem e o seu meio natural, estando ele organicamente integrado nela. O interesse de Amadeo pelos artistas «primitivos» leva-o a listar num bloco de notas, que chegou até nós, uma série de livros editados pela Gowans & Gray, Ltd.: The Masterpieces of De Hooch and Vermeer, The Masterpieces of Benozzo Gozzoli, The Masterpieces of Carpaccio and Giorgione, The Masterpieces of Giotto, The Masterpieces of the Florentine Painters, vol. 14. Apenas um dos livros desta colecção, com reproduções de obras de reconhecidos artistas japoneses representados na colecção do British Museum, em Londres, não recenseado no bloco mas adquirido por Amadeo em 1908, se encontra no espólio deixado pelo artista: Drawings from the Old Masters. Second Séries. London: Gowans & Gray Ltd, 1907. É evidente a apropriação, por parte do artista, de uma das obras reproduzidas neste livro, de Fujiwara Takanobu (século XII), e a sua metamorfose no Clown, Cavalo, Salamandra, de 1911, anulando a figura do cavaleiro, que reaparecerá na pintura de 1914, D. Quixote18. O sentido de apropriação é uma característica estrutural da identidade artística firmada por Amadeo, presente do princípio ao fim da sua obra. Citando Maria Filomena Molder, a propósito da sua análise da La Légende de Saint Julien l’Hospitalier, «Temos por certo que o artista rouba a quem pode e quando lhe convém, que toma para si o que pertence a outro, o que por esse mesmo gesto se altera irreparavelmente. E não há nenhuma condição, regra ou princípio que o legitimem a não ser uma decisão injustificável. O ecletismo de Amadeo não é uma solução de historiador»19. Mas a personalidade de Amadeo é também regida por um instinto compilador – o mesmo que está na base do coleccionismo – e que chega, por vezes, à perseguição iconográfica. Como Susan Sontag observa na sua obra O Amante do Vulcão, a propósito de um famoso coleccionador inglês do séc. XVIII, Sir William Hamilton, «[…] Os coleccionadores são inveterados redactores de listas e todas as pessoas que desfrutam com a elaboração de listas são já coleccionadores reais ou potenciais. Coleccionar é uma espécie de desejo insaciável, um donjuanismo dos objectos em que cada novo achado desperta uma nova tumescência mental e gera o prazer acrescido de fazer contas, enumerar […]. A lista é em si mesma uma colecção, uma colecção sublimada. Não é necessário, de facto, possuir as coisas. Saber é ter […]. A confecção destas listas é uma expressão do desejo: o desejo de saber, de ver ordenado, fixado na memória». (Sontag, 2000: 276-277). Este prazer de enumerar, de listar em papel, é manifesto em Amadeo e são várias as listas de obras, de objectos, livros, que destaca nas suas agendas20. Com verdadeiro rigor visual descritivo e carácter manifestamente coleccionista evidencia-se um conjunto de desenhos dos brasões que recolhe e copia durante as suas viagens, ou destinos artísticos, à Bretanha21. A perseguição de imagens, e a necessidade de as reunir junto de si, é várias vezes sentida e transmitida a Lucie Pecetto, a sua futura esposa, quando está


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Amadeo de Souza-Cardoso, Sem título, 1911. Tinta-da-china e tinta estilográfica sobre papel. Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. N.º Inv.: 92DP1588 Fujiwara Takanobu (século XII), obra reproduzida de Drawings from the Old Masters. Londres: Gowans & Gray Ltd, 1907. Amadeo de Souza-Cardoso, Clown/Cavalo/Salamandra, 1911. Guache sobre papel. Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. N.º Inv.: 7DP345

temporariamente de regresso a Manhufe, o que acontece várias vezes durante a sua estada em Paris. Recorde-se um episódio referido na epistolografia do casal sobre a reprodução de uma procissão de um pintor primitivo exposta num museu de Paris (possivelmente no Louvre): «Quanto à fotografia do tal primitivo – a procissão não quero, acho muito caro. Compra-me o outro, o retrato desse senhor com barrete de dois bicos»22. Este mesmo princípio compilador está vertido nos XX Dessins. Nesta obra compósita, o artista apropria-se de referentes visuais de várias origens, anteriormente coligidos, que funcionam como uma espécie de nexo de causalidade formal e estilístico do álbum e que nitidamente emergem do contexto artístico que ele reconhece e integra. Fá-lo deliberadamente, por necessidade de cumprir o programa das vanguardas do séc. XX e, simultaneamente, de questioná-lo para, assim, afirmar o seu posicionamento autoral. O fio condutor da obra parece, então, traçar-se no seu espaço de reflexão sobre os paradigmas iconográficos e estéticos da arte do seu tempo e, sobretudo, da pintura europeia – em particular a moderna –, em que o campo referencial do «primitivismo», largamente divulgado pela produção teórica da época, é actualizado com uma marca pessoal evidente e que lhe serve como elemento mediatizador da sua obra. É entre a experimentação constante, sobre os contornos da arte do seu tempo, e a procura de uma linguagem singular, que Amadeo encontra nos XX Dessins uma solução formal de uma só obra e que abrange, simultaneamente, as múltiplas possibilidades de expressão artística contemporânea e a sua materialização gráfica. O vasto universo das referências literárias e artísticas da época e a análise atenta do discurso e da documentação deixados pelo artista constituem, neste aspecto, elementos reveladores. Alguns dos títulos que Amadeo atribui aos vinte desenhos são testemunhos dessa consciência plástica do seu tempo, para além de funcionarem como mais um elemento de enunciação da pluralidade temática do álbum. É, neste sentido, assinalável a coincidência de temas e títulos de alguns dos XX Dessins, como L’Amazone noire (n.º 4) e Sur la terrasse (n.º 7) com os de obras de outros artistas, respectivamente Wassily Kandinsky23 e Matisse24. Mas a proximidade das duas obras, de Amadeo e de

Carta de Amadeo a Lucie. Espinho [1910]. Espólio ASC-BA: ASC 12/03. Noutras cartas, que também se encontram no Espólio Amadeo de Souza-Cardoso, na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, Amadeo dá instruções ainda relativamente a este assunto: «Sabes que não quero que compres a fotografia do primitivo de dez francos, acho muito caro». Carta de Amadeo a Lucie Espinho [1910]. Espólio ASC-BA: ASC 12/02. 23 Existe uma obra atribuída a Wassily Kandinsky, pintura sobre vidro, A Riding Amazon, 1911, no State Art Museum of Azerbaijan. 24 A obra de Henri Matisse Sur la terrasse, um óleo sobre tela, do State Pushkin Museum of Fine Arts, Moscovo, está datada de 1912/1913 e a de Amadeo de 1912. 22

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XX DESSINS: DESENHOS ORIGINAIS

Tête d’étude, c. 1911-1912 (Reprodução do desenho n.º 1 para o álbum XX Dessins) Assinado «A./S./C.» (letras alinhadas na vertical) em baixo à esquerda Emblema com perfis de falcões em baixo à direita Colecção desconhecida (desenho original) Comentários Desconhece-se a localização actual do desenho original (tinta-da-china /papel), razão pela qual se reproduz a sua impressão (imagem reproduzida a partir de XX Dessins par Amadeo de Sousa-Cardoso. 2.ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, 1983). Este desenho original acompanhava o 1.º álbum numerado, impresso em papel imperial do Japão. Apesar de existir no Espólio Amadeo de Sousa Cardoso da Biblioteca de Arte um caderno de Amadeo com elementos relativos à distribuição dos álbuns («Notes sur L’Album / le 3 decembre 1912», Espólio ASC-BA: ASC 36/04) não é possível recuperar a listagem dos destinatários dos primeiros três álbuns numerados que incluíam, cada um, um desenho original.

La forêt merveilleuse, 1912 (Desenho n.º 2 para o álbum XX Dessins) Tinta-da-china e guache sobre papel 33,7 × 26,4 cm Assinado e datado «A.F.S.C./1912» no canto inferior direito Emblema com perfis de falcões por cima da assinatura e data, no canto inferior direito Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa N.º Inv.: DP397 Proveniência: Doação de Lucie de Sousa Cardoso Comentários Este desenho original acompanhava o 2.º álbum numerado, impresso em papel imperial do Japão.

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Mauresques, 1912 (Desenho n.º 3 para o álbum XX Dessins) Tinta-da-china e guache sobre papel 31 x 22,5 cm Assinado e datado «A./ S./C./1912» no canto inferior direito Emblema com perfis de falcões sobreposto em cima de um elemento gráfico no quadrante inferior esquerdo. Colecção particular, Porto Comentários Este desenho original acompanhava o 3.º álbum numerado, impresso em papel imperial do Japão. Friedrich Teja Bach considera que a escultura Princess X, de Brancusi, foi possivelmente inspirada neste desenho.

L’ A m a z o n e n o i r e , c . 1 9 1 1 - 1 9 1 2 (Reprodução do desenho n.º 4 para o álbum XX Dessins) Assinado «- ASC -» em baixo à direita Emblema com perfis de falcões em baixo à esquerda Colecção desconhecida (desenho original) Comentários Desconhece-se a localização actual do desenho original (tinta-da-china sobre papel), razão pela qual se reproduz a sua impressão (imagem reproduzida a partir de XX Dessins par Amadeo de Sousa-Cardoso. 2.ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, 1983). Existe uma obra atribuída a Wassily Kandinsky, pintura sobre vidro, A Riding Amazon, 1911, no State Art Museum of Azerbaijan, muito aproximável a esta obra de Amadeo de Souza-Cardoso.

Mère et enfant, c. 1911-1912 (Desenho n.º 5 para o álbum XX Dessins) Tinta-da-china sobre papel 32,6 × 25,7 cm Assinado «Amadeo de Souza Cardoso» na margem inferior à direita Emblema com perfis de falcões em baixo à direita Colecção particular

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L’ at h l è t e , c . 1 9 1 1 - 1 9 1 2 (Desenho n.º 6 para o álbum XX Dessins) Tinta-da-china e guache sobre papel 32,5 × 25 cm Emblema com perfis de falcões no canto inferior direito Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa N.º Inv.: 92DP1550 Proveniência: Obra doada pela família Thepaut (herdeiros de Lucie de Souza Cardoso)

Sur la terrasse, c. 1911-1912 (Desenho n.º 7 para o álbum XX Dessins) Tinta-da-china e guache sobre papel 31 × 22,5 cm Assinatura, local e data «Amadeo/de/Sousa/Cardoso/1912/Paris/1912» na margem direita em baixo Emblema com perfis de falcões junto à margem inferior à esquerda Colecção particular

Étude du nu, 1912 (Desenho n.º 8 para o álbum XX Dessins) Tinta-da-china e guache sobre papel 32,5 × 25 cm Assinado e datado «A./S./C./1912» na margem direita em baixo Emblema com perfis de falcões em baixo à esquerda Colecção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa N.º Inv.: 77DP401 Proveniência: Doação de Lucie de Souza Cardoso

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XX DESSINS p ro jet é d i tori a l ou con s t ru c t i on d’ un e i d e n t i t é a rt i s t i qu e ?

Catarina Alfaro


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Introduction Le parcours singulier d’Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) et sa participation active à la légitimation des avant-gardes internationales de l’époque nous permettent de considérer sa production artistique comme un « cas d’étude » particulièrement riche et contemporain, aussi bien au niveau national qu’international. Cette participation s’est naturellement tracée au fur et à mesure qu’il exposait ses œuvres dans les plus importantes manifestations artistiques qui ont marqué le modernisme européen, comme le Salon des Indépendants (1911 et 1912) et le Xe Salon d’Automne (1912), à Paris. Au demeurant, sa présence sera sans doute plus remarquable loin des limites géographiques de sa ville d’élection, d’une part dans l’un des événements les plus illustres de la vie artistique américaine du XXe siècle, l’International Exhibition of Modern Art, plus connue comme Armory Show, en 1913, et d’autre part à l’occasion du 1er Salon d’automne de Berlin, Erster Deutscher Herbstsalon, à la galerie Der Sturm, en 1914. Entre 1906 et 1914, il vivait tantôt à Manhufe, tantôt à Paris, la ville lumière qui accueillait à cette époque la grande majorité des artistes et des mouvements de rupture qui établirent définitivement de nouvelles prémisses pour l’art occidental. Ces années durant, Amadeo a côtoyé les acteurs les plus importants de ces bouleversements, il a même tissé des liens artistiques solides et profonds avec Amedeo Modigliani, Constantin Brancusi, Otto Freundlich, Sonia Delaunay-Terk et Robert Delaunay. La courte période d’activité d’Amadeo de Souza-Cardoso, qui s’étend plus ou moins sur quatorze ans, a abouti à la production d’un nombre considérable d’œuvres (environ 550), dans lesquelles l’artiste a expérimenté différentes techniques et réfléchi sur les paradigmes iconographiques et esthétiques de son époque. L’album XX Dessins, une édition d’Amadeo, correspondra à la nécessité de promouvoir son œuvre (graphique), à l’échelle internationale, dépassant les frontières prévisibles du Portugal et de la France. C’est pourquoi il faudra comprendre ce projet comme une stratégie préméditée d’affirmation de sa qualité d’auteur, accueillie par l’ensemble de la critique avec admiration en raison de l’originalité et de la puissance de ses multiples références culturelles. L’album surgit presque six ans après qu’il a quitté Lisbonne, partant pour Paris avec la vague intention de devenir architecte. Amadeo met à l’épreuve le destin qu’il se doit d’accomplir1 en participant pour la première fois, avec six œuvres, à un événement de dimension internationale, qui restera connu comme la première grande exposition cubiste, qui s’est déroulée entre le 21 avril et

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« Mon destin ne va bien qu’à moi. J’en suis tantôt triomphant tantôt accablé. ». Lettre d’Amadeo à sa mère, Emília Cardoso, écrite le jour des 19 ans de l’artiste lorsqu’il part pour Paris. Fonds de la famille.

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L’article est publié le 8 juin 1912, sous le titre « Bouche, Segonzac, Moureau, Cardoso », les quatre artistes qui participèrent à une exposition organisée par la revue, au nº 68 de la rue Mazarine, la même année. Le choix du peintre portugais, décrit comme un « illustre invité de Paris » dans le premier article de cette revue dédiée aux expositions, est révélateur. Document transcrit à l’Annexe I. 3 Khan, Gustave, « L’Art. Le Salon des Indépendants », Mercure de France, n° 355, 1 avril, 1912, pp. 634-643: « M. Cardoso a jeté, sous un ciel d’Orient de fantaisie, où vient voleter un oiseau précieux, des formes très décoratives de cavaliers maures, et les chevaux sont conçus dans ce mode paradoxal qui convient à la tapisserie : c’est une agréable décoration ». 4 « Les Indépendants ». Le Monde Illustré (20 mars 1912, pp. 202-203. L’œuvre a été reproduite dans le supplément « Littérature & Art » du journal A Capital, le 18 décembre 1968, dans un article intitulé « Sousa Cardoso 1887-1918 – Um homem e uma obra que estão vivos e à espera » [Sousa Cardoso 1887-1918 – Un homme et une œuvre qui sont en vie et dans l’attente] et signé Ernesto de Sousa. On ignore actuellement la localisation de cette œuvre. 5 Nous connaissons aujourd’hui la localisation de quinze des vingt dessins originaux conçus pour cet album. La collection du Centre d’art moderne de la Fondation Calouste Gulbenkian en accueille onze d’entre eux. 6 12 Reproductions. Porto, édition d’auteur [1916]. 7 Maria Filomena Molder est l’auteure de deux essais consacrés à cette œuvre, leur lecture est particulièrement recommandée si l’on souhaite en savoir davantage sur ce livre d’artiste. Molder, Maria Filomena – « La Légende de Saint Julien l’Hospitalier e Amadeo de Souza-Cardoso ». La légende de Saint Julien l’hospitalier. Édition en fac-similé. Lisbonne: Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 2006. 2

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le 13 juin 1911, le XXVIIe Salon des Indépendants. En mars, il intègre une autre exposition essentielle dans le contexte des avant-gardes artistiques du XXe siècle, le XXVIIIe Salon des Indépendants (Quai d’Orsay). Il y rejoint, entre autres, Archipenko, Brancusi, Robert Delaunay, Duchamp, Gleizes, Juan Gris, La Fresnaye, Marie Laurencin, Le Fauconnier, Léger, Lhote, Metzinger, Mondrian, Rivera. Malgré cela, le premier écho de reconnaissance artistique d’Amadeo demeure inexplicablement absent des critiques portant sur les expositions fondamentales auxquelles l’artiste portugais a pourtant participé, pour enfin apparaître suite à sa présence remarquée à la première manifestation collective organisée en 1912 par la revue La Vie2. Il reste encore à identifier les œuvres qu’il y a montrées. L’article mentionne sans équivoque des peintures et non des dessins. Cependant, la description de l’ensemble des œuvres présentées par l’unique artiste non francophone de l’exposition laisse entrevoir, d’une certaine façon, la réception critique des XX Dessins à Paris, cette même année, mais aussi en 1913. L’article de Marius et Ary Leblond, les deux fondateurs de la revue bimensuelle La Vie, mentionne la singularité de l’œuvre d’Amadeo de Souza-Cardoso, essentiellement représentée ici à travers son « exotisme », ses caractéristiques peu communes, issues de la multiréférentialité décorative, propre à la résonance des civilisations perdues qu’il évoque dans sa peinture. Cette étrangeté va au-delà de l’analyse des œuvres d’Amadeo. Lui-même est décrit comme un « illustre invité de Paris », produit atypique et, de ce fait, produit exotique de l’affabulation de l’altérité que le concept de culture moderne – sous l’influence de l’art ancien, de l’art oriental ou de l’art africain – renfermait tandis que s’écoulait le XXe siècle. Dans cette même idée, et soulignant l’effort d’Amadeo pour construire un territoire de références unique à partir de l’appropriation d’éléments visuels provenant de cultures lointaines, Gustave Khan avait déjà fait applaudi la participation d’Amadeo au XXVIIIe Salon des Indépendants3 avec trois œuvres : Les poissons d’or, La panthère et Cavaliers, dont on ne connaît que la dernière, grâce à la photographie publiée dans un périodique français de l’époque4.

XX Dessins: Projet éditorial ou construction d’une identité artistique ? Le projet éditorial XX Dessins, qu’Amadeo entame au printemps 1912 et publie le 31 août, réunit 20 impressions typographiques de 20 dessins originaux de l’artiste, réalisés entre 1911 et 19125. Cette édition d’auteur est une expérience isolée, sans antécédents ni précédents, qui diffère de tous les autres cas où l’artiste utilise le format livre pour présenter son œuvre. Le manuscrit illustré de La Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Gustave Flaubert est un livre que l’artiste a minutieusement exécuté, entre juillet et août, pendant des vacances en Bretagne. Publié la même année que XX Dessins, Amadeo achève sans doute à Paris ce qu’il décrit comme un « exemplaire unique-original »6. Il y adopte un registre intimiste, parfaitement adapté au cercle très restreint, voire même familier, qui appréciera La Légende. Le potentiel interprétatif qu’offre chaque page du livre est augmenté par un lien réfléchi entre le texte et l’image, témoin d’un processus de réalisation très singulier, à l’image d’une enluminure médiévale7. En 1915, en vue de prendre part à la conception d’autres albums artistiques, Amadeo rejoint un contexte de travail collectif, dont le couple Delaunay, installé depuis peu au Portugal, constitue


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