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D.H. Lawrence A MAÇÃ DE CÉZANNE… E EU
D.H. Lawrence A MAÇÃ DE CÉZANNE… E EU com as pinturas de
D.H. Lawrence tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
O grande esforço de Cézanne foi empurrar para longe a maçã e deixá-la viver a sua própria vida
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D.H. Lawrence e Frieda Lawrence
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D.H. Lawrence
A MAÇÃ DE CÉZANNE… …E EU tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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Em 1815, um soldado de Wellington encontrou uma criança abandonada entre os mortos da batalha de Waterloo, com a nacionalidade obscura dos que não sabem falar. Chorava apenas, incapaz de contar uma história para as suas lágrimas. O jovem inglês sentiu-se imediatamente pai. Abraçou aquele menino de inocência já marcada pela morte, e levou-o para Inglaterra. Fê-lo perante a lei seu filho e deu-lhe o seu próprio sobrenome, que era Lawrence. Muito mais tarde, um dos seus netos foi autor de poemas, romances, ensaios, contos que a literatura inglesa se viu obrigada a não ignorar. Fê-lo com admiradores e detractores; sentindo-se provocada na sua mentalidade vitoriana pelas diferenças que encontrava nesses textos e lhe pareciam dignas do ornamento de um escândalo. O escritor veio a morrer tuberculoso em Vence, no dia 2 de Março de 1930; e hoje, com o David Herbert do seu nome reduzido a iniciais, conhecemo-lo por D.H. Lawrence. Um dos seus textos autobiográficos admite muito ao de leve este avô sem mais ninguém atrás dele, resgatado por braços de soldado aos mortos de um campo de batalha: Sinto-me superior à maior parte dos homens que tenho encontrado. Não pelo nascimento, porque nunca existiu ninguém atrás do meu avô. Não pelo dinheiro, porque o não tenho. Não pela educação, porque é escassa. E não pela beleza, é certo, nem pela força muscular. Então porquê? Por mim próprio. Quando me desafiam sinto-
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-me superior, naturalmente superior à maior parte dos homens. Mas apenas quando me desafiam. D.H. Lawrence teve na sua vida momentos que o incitaram a mostrar-se com esta «superioridade»; mais significativos os da exibição provocatória do seu casamento com uma alemã nos perturbados dias da Inglaterra a guerrear a Alemanha na Primeira Guerra Mundial, e da sua expulsão da Cornualha por suspeita de espionagem; aquele outro em que admitiu amores lésbicos no romance The Rainbow; aquele em que uma explícita sexualidade pânica, levada a pormenores nunca lidos na literatura britânica central, mandou para autos-da-fé muitos exemplares de Lady Chatterley’s Lover; aquele em que os inocentes poemas de Pansies foram considerados uma filigrana de obscenidades; aquele em que um propósito de ofender a decência dos londrinos foi associado à exposição pública de telas e aguarelas suas. Estes acidentes colaram-lhe ao percurso de homem público qualquer coisa a que poderá chamar-se fama, uma fama bastarda soprada pela provocação e pelo escândalo, duvidosa nos impulsos que a construíam. No entanto, o seu texto «Myself revealed» publicado a pedido e com intuitos autobiográficos, passa completamente ao lado desta «superioridade» que a moral britânica não conseguiu, apesar dos seus esforços, vencer. Lawrence descreve-se céptico quanto a êxitos, derrotado nos afectos que nenhuma classe social consegue dar-lhe, perdido entre homens mas entregue ao mundo com amor: Perguntam-me: «Foi muito difícil singrar e ter êxito?» Se acaso me for possível dizer que singrei e possível dizer que tive êxito, terei de admitir que não foi. Nunca morri de fome num sótão nem esperei angustiado o correio com a resposta de um editor de livros ou revistas, nem me debati com suores e sangue
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para conceber grandes obras, nem acordei um dia a achar que era célebre. Eu era um rapaz pobre. Vi-me obrigado a lutar em circunstâncias de garra feroz e sujeitar-me às bordoadas da sorte, antes de me tornar escritor de bem parcos proventos e muito discutível reputação. Mas difícil não foi. Tudo aconteceu naturalmente e sem me obrigar a gemer. […] Nasci entre os da classe operária, e entre eles me educaram. Tive um pai mineiro, e apenas mineiro, sem nada que o enaltecesse. Nem respeitável era, se eu chegar ao ponto de me lembrar das suas frequentes bebedeiras, de que nunca se aproximava de uma igreja e em geral se mostrava no poço da mina um tanto rude para com os seus superiores imediatos. Nunca teve bom ambiente nas galerias, poderá afirmar-se, e era um arruaceiro que dizia constantemente coisas aborrecidas e disparatadas sobre os homens que acima dele trabalhavam no comando da mina. A todos ofendia, e quase de propósito; que apoio podia então esperar? Mas resmungava, ainda assim, quando o não tinha. Acho que a minha mãe era melhor do que ele. Tinha vindo da cidade e fazia parte, sem dúvida, da pequena burguesia. Falava sem sotaque um «inglês do rei», e nunca conseguiu reproduzir uma frase do dialecto do meu pai; aquele que nós, crianças, também falávamos fora de casa. […] Era a mulher de um operário, e apenas isso, com a pequena gorra preta já puída, um rosto perspicaz, franco e «diferente». Ainda assim tão respeitada quanto o meu pai o não era. Por natureza viva, sensível, e talvez mesmo superior. Embora no mais baixo da escala, no que há de mais baixo na classe operária, entre uma multidão de pobres mulheres de mineiros.
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introdução a estas pinturas
O facto de tão poucos ingleses se distinguirem como pintores não é justificado por estarem desprovidos, como nação, de um genuíno sentido da arte visual; embora seja possível, vendo o que produzem e a actual desordem da paisagem inglesa, concluir que o não têm e nos deixarmos por aí ficar. Mas não é culpa do Deus que os criou. Foram feitos com as sensibilidades estéticas que existem em qualquer outro homem. O defeito está na atitude inglesa perante a vida. Os Ingleses, e a fazer-lhes companhia os Americanos, estão paralisados pelo medo. O que entrava e distorce a existência anglo-saxónica é esta paralisia do medo. Este medo todo-poderoso entrava a vida, distorce a visão e estrangula o impulso. E, valha-me Deus, medo de quê? O que deixa a actual matéria-prima anglo-saxónica tão petrificada de medo? Temos de dar-lhe uma resposta antes de conseguir compreender o fracasso inglês nas artes visuais; porque elas são no seu conjunto um fracasso. Trata-se de um velho medo que parece colar-se, desde a época do Renascimento, à alma inglesa. Não pôde haver nada mais encantador e destemido do que Chaucer. Já Shakespeare foi doentio por ter medo, medo das consequências. É este o estranho fenómeno do Renascimento inglês; o terror místico das consequências, as consequências de actuar. No final do século XVI a Itália também teve esta reacção e mostrou um medo idêntico. Menos profundo, porém, menos todo-poderoso.
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Aretino não foi mais do que um timorato; só teve um arrojo idêntico ao de qualquer outro romancista do Renascimento, embora tenha sido um dos melhores 1. O que surgiu no final do século XVI a deitar a sua garra forte à consciência nórdica foi um terror, quase um horror, perante a vida sexual. E isso aconteceu com os isabelinos, por muito grandiosos que os achemos. A verdadeira «desordem mortal» de Hamlet é toda ela sexual, o horror do jovem ao incesto da sua mãe; segundo me parece um selvagem e inominável terror ao sexo que ele, de uma forma nunca antes vista, transporta consigo. Édipo e Hamlet são a tal respeito muito diferentes. Em Édipo não há nenhuma desordem por ter horror ao próprio sexo; o drama grego nunca nos mostra nada deste género. Na tragédia grega, quando o horror está presente é contra o destino, o homem preso nas armadilhas do destino. Mas o horror no Renascimento, em especial na Inglaterra, é sexual. Orestes é seguido de perto pelo destino e levado à loucura pelas Euménides; mas Hamlet é subjugado pela horrível repulsa à relação física com a sua mãe, e fá-lo recuar com uma repulsa semelhante por Ofélia e de forma quase igual pelo seu pai, apesar de ele ser apenas um fantasma. Horroriza-o a menor sugestão a relações físicas, como se fossem uma indizível mácula. Tudo isto, não haja dúvida, resulta de a consciência «espiritual-mental» se ter desenvolvido em detrimento da consciência instintiva-intuitiva. O homem chega a sentir horror ao seu próprio corpo, sobretudo no que respeita às suas implicações sexuais; e com todas as suas forças começa a suprimir a cons1 Lawrence usa no seu texto a palavra novelista (romancista), mas Aretino escreveu apenas diálogos e peças de teatro. (N. do T.)
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ciência instintiva-intuitiva que é tão radical, tão física e tão sexual. A poesia cavaleiresca, poesia do amor, já surge desprovida de corpo. John Donne, depois da exacerbada e excitante repulsa-atracção da sua primeira poesia passa a ser um divino. «Bebe-me apenas com os teus olhos», canta o cavaleiro, uma expressão de impensável existência na poesia de Chaucer. «Eu não poderia tão bem amar-te se assim te não honrasse, minha querida», canta o cavaleiro apaixonado. Em Chaucer, «amar» e «honrar» teriam sido mais ou menos a mesma coisa. Mas na consciência humana tinha começado a dar-se com os isabelinos a grande ruptura; a consciência mental tinha uma aversão violenta ao físico, o instintivo-intuitivo, e punha-os à distância. Embora os dramaturgos da Restauração se vangloriem mais ou menos com a sujidade, no seu conjunto o sexo é uma ocupação suja. Fielding tenta sem êxito defender o Velho Adão. Richardson, com a pureza dos tecidos de algodão e excitações de roupa interior varre tudo à sua frente. Swift enlouquece com o sexo e a sua excremencial repulsa. Sterne lança com humor à sua volta uma pequena porção destes mesmos excrementos. E em Burns a consciência física morre depois de entoar um último canto. Wordsworth, Keats, Shelley, as Brontë já são, todos eles, poetas-cadáveres. O corpo principal, instintivo-intuitivo, está morto e é adorado na morte — sendo tudo isto muito insalubre. Mesmo Swinburne e Oscar Wilde tentam provocar uma renovação que parte da zona mental. As «coxas brancas» de Swinburne são puramente mentais. Na Inglaterra — com a América a acompanhá-la — o ser físico não era nessa altura coberto apenas por folhas de parra ou suprimido em público, como sucedeu na Itália e na maior parte do continente. Na Inglaterra excitou um terror e um estranho
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horror. E eu acho que esta supermorbidez surgiu com o grande choque da sífilis e da tomada de consciência sobre as consequências desta doença. Qualquer que seja a origem da sífilis ou da pox 1, no final do século XV elas eram muitíssimo recentes na Inglaterra. Mas no final do século XVI já faziam óbvias devastações, e o choque que provocavam penetrou nas consciências preocupadas e imaginativas. As famílias reais da Inglaterra e da Escócia eram sifilíticas. Eduardo e Isabel nasceram com as consequências hereditárias da doença. Por causa dela, Eduardo VI morreu ainda rapaz. Maria I morreu sem filhos e com uma enorme depressão. Isabel não tinha sobrancelhas, os seus dentes apodreceram, e é provável que se tenha sentido de algum modo uma pobre criatura e totalmente inadequada ao casamento. Foi este o sinistro horror que esteve atrás da glória da rainha Bess. Assim se extinguiram os Tudor, e foi possível que outro desafortunado sifilítico de nascença tenha chegado ao trono na pessoa de Jaime I. Ao que parece, Maria rainha da Escócia não teve mais sorte do que os Tudor. Darnley era todo pox, seja embora provável que ela tenha começado por nada saber a tal respeito. Quando o seu filho Jaime, mais tarde Jaime I da Inglaterra, foi baptizado, o arcebispo de Santo André estava tão apodrecido com pox que Maria sentiu um terrível medo, não fosse o velho eclesiástico pegá-la ao infante. Não havia razão, no entanto, para ficar perturbada porque o desditoso infante já tinha vindo ao mundo com ela, herdada do idiota que dava pelo nome de Darnley. E por causa disto Jaime I da Inglaterra babava-se, A língua inglesa, de tendência monossilábica, designa popularmente a sífilis com a palavra pox. Houve em português o termo avariose, hoje bastante esquecido. Nesta tradução a palavra pox será mantida nas frases em que surge no texto do original. (N. do T.) 1
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arrastava os pés, era o pior idiota da Cristandade; e os Stuart, debilitados na sua linhagem pela doença, passaram à história. Se as famílias reais da Inglaterra e da Escócia estavam neste estado, podemos fazer uma ideia de como estavam as casas nobres e as nobrezas de ambos os países, entregues à sua vida livre e a prazeres promíscuos. Ao fazer comércio com o Oriente e a América, a Inglaterra tinha aberto inconscientemente as portas à doença. A aristocracia inglesa viajava e tinha no amor curiosos gostos. A pox penetrou no sangue da nação, e em particular no das classes altas por terem mais hipóteses de ser infectadas. E depois do sangue penetrou nas consciências, atingindo a imaginação vital. É possível que os efeitos da sífilis e a tomada de consciência das suas consequências também tivessem dado, precisamente neste período, uma forte pancada na psique espanhola. E é também possível que a sociedade italiana, pouco viajada no seu conjunto, sem ligações com a América e com uma bastante contida privacidade, sofresse menos com a doença. Seria oportuno alguém fazer um estudo aprofundado sobre os efeitos que a pox, na época dos nossos isabelinos, teve nas mentes, nas emoções e na imaginação das várias nações da Europa. É curioso o aparente efeito que provocou nos isabelinos e nos talentos da Restauração. Parece que faziam dela, de um modo mais geral, uma brincadeira. «Que a sífilis te caia em cima!» era uma praga trivial e quase uma piada. E tão vulgar! A palavra pox andava em todas as mentes e todas as bocas. Estava entre as que infestavam o discurso isabelino. Era encarada de uma forma muito viril, com uma grande quantidade de fanfarronadas à Falstaff, tratada como uma enorme brincadeira! Pox! O quê, ele tem pox? Ah, ah! Que sorte o destino lhe reserva!
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Nas pinturas de D.H. Lawrence não se reconhecia, como a leitura das palavras deixadas naquele álbum poderia fazer crer, a vontade de revelar uma directa influência da maçãneidade de Cézanne. Se era visível o esforço de conceder ao instinto e à intuição um ascendente sobre a consciência mental, bem mais ali estava o apaixonado pela arte etrusca das páginas de Etruscan Places, com aquela forte presença dos órgãos sexuais e o tom ocre das personagens, ou mesmo com o que ele lá tinha feito notar: A subtileza da pintura etrusca […] que consiste no contorno extraordinariamente sugestivo das figuras. Elas não são o que chamamos «desenhadas». São uma espécie de traço móvel que faz o corpo misturar-se de repente com a atmosfera. Em 1964, no seu texto «Lawrence as a Painter» Herbert Read lembrou o que perdura destes dois anos de «orgia» pictória: «Um destes artistas extremos que procuram obter uma correspondência directa entre os sentimentos e a sua representação, negligenciando os mais sofisticados valores da proporção e da harmonia.» Acrescente-se a este olhar sobre a forma o que lá existe de permanente desafio às atitudes repressivas perante a sexualidade, a contraposição de uma atitude pagã aos estrangulamentos que lhe são feitos pela moral do cristianismo. Um pedido de intervenção do editor Grant Richards (o que tinha recusado A Portrait of the Artist as a Young Man, de James Joyce) levou a polícia de Bow Street a actuar; Richards citava títulos de quinze quadros expostos e explicava: «Este artista-escritor
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talvez tenha ficado farto da facilidade com que se mostra subtilmente escandaloso nos seus escritos, e tenha decidido ir a direito mostrando-se com repugnante franqueza nas suas pinturas.» Incitada por uma tão rude declaração de repúdio, a polícia londrina dirigiu-se com missão programada à Galeria Warren; teve porém a gentileza de só intervir depois de o príncipe Aga Khan acabar de visitar a exposição. Há do momento seguinte um relato do proprietário da galeria: — Reconhece-se com responsabilidades nesta exposição? — perguntou-lhe o inspector Philip Trotter. — Eu e a minha mulher somos os seus responsáveis. É uma exposição nossa; alugámos este local e vivemos no último andar deste mesmo prédio. — Estou aqui mandado pelo prefeito da polícia para o informar de que deve cancelar esta exposição; sob pena, em caso de recusa, de serem tomadas medidas contra si. — Por que motivo? — Por estarem expostas umas quantas pinturas de carácter obsceno. Eram quinze, as pinturas da lista de Grant Richards, e uma delas — inspirada pelo bem conhecido conto de Boccacio com uma história de freiras de convento levadas a excitantes experiências depois de surpreenderem o seu jardineiro a dormir a sesta completamente nu (reproduzida na pág. 120) — ficou, no que foi uma impetuosa recolha de telas, danificada. «Não faço isto para me divertir», explicou o inspector Gordon Hester, «mas por um forte sentido do dever e das responsabilidades». Menos cordato se mostrou o magistrado Frederick Meade durante o processo judicial: «Gostaria de poder destruir estas telas como se destroem animais selvagens.»
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O eco destes acontecimentos chegavam a Itália e preocupavam Lawrence, afectivamente ligado às suas pinturas e a temer que um veredicto obrigasse à sua destruição. Penso que é um erro pôr o caso em tribunal, disse numa carta ao casal Warren. Provar que as minhas telas não são obscenas? Não são, mas que prova disso poderemos dar? Se insistirem em fazê-lo, bem mais perderemos do que vamos ganhar, mesmo que o caso se prolongue durante anos. Não, não, quero que o compromisso [retirar as obras censuradas, devolvê-las ao autor e exigir dele a promessa de nunca mais as exibir na Inglaterra] seja aceite. Não quero as minhas telas queimadas, sejam quais forem as circunstâncias e o motivo pelo qual isso aconteça. A lei, claro está, deve ser modificada — é evidente. Mas para fazer essa prova por que havemos de permitir que se queimem as minhas telas? São para mim qualquer coisa sagrada. Este incidente também o levou a escrever: A Inglaterra mete-me nojo; e a deixar expresso em três poemas («Thirteen Thousand People» — um número que evoca os visitantes da sua exposição — «Innocent England» e «Give me a Sponge») o seu ultraje. D.H. Lawrence ainda viveria oito meses, os últimos na França e numa moradia que encontrou disponível em Vence, nos Alpes Marítimos da Côte-d’Azur. A sua tuberculose progredia com todos os sinais de uma vitória. Mas no momento final iludiu-o: «Estou agora a sentir-me melhor», disse no instante em que morreu, eram 22,15 horas e 2 de Março de 1930. A imagem deste Lawrence de últimos dias, com quarenta quilos de peso e uma expressão de cristo torturado, ficou no busto feito pelas mãos do americano Jo Davidson que o visitou e deixou em escultura com barba crescida e faces cavadas, como pôde vê-lo nesse quarto dia antes de ele morrer.
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Aldous Huxley, quando prefaciou uma selecção das suas cartas deteve-se no que parecia haver nele de invencível: «A vitalidade é atraída pela beleza, e havia em Lawrence uma fonte de vitalidade continuamente a correr. Não deixava de jorrar, e de tempos a tempos fazia-o até explodir em jactos de espuma com irisações brilhantes — e isto bastante depois do momento em que ele já deveria, de acordo com todas as regras da medicina, estar morto. Nos seus últimos dois anos era como uma chama que continuasse miraculosamente a arder, embora já não tivesse combustível que lhe justificasse a existência. Apesar de alarmes a todo o momento repetidos, estávamos tão habituados a ver a sua chama continuar acesa, a alimentar-se de si própria na lâmpada quebrada e vazia, que chegaríamos quase a acreditar num milagre indefinidamente prolongado. Mas isto não era possível. Voltei; depois de alguns anos de separação fui a Vence no princípio da Primavera de 1930, e o milagre chegava ao fim; a chama tinha-se feito carvão e apagava-se. Dias mais tarde sopraram-na.» Lawrence sonhou-se em verso, pouco tempo antes deste sopro, como um Noé solitário e de arca privativa, a vogar na longa viagem até ao esquecimento — até à feliz aurora desse esquecimento. Palavras de susto e fascinação, aquelas a que ele chamou:
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Agora é o Outono, tempo de caírem os frutos e da grande viagem até ao esquecimento. As maçãs caem como grandes gotas de orvalho para se magoarem e fazerem de si mesmas a evasão. É tempo de partirmos e dizer-nos adeus, de encontrar uma saída deste nós que também cai.
Diz-me, já construíste a tua nave da morte? Ah, deves fazê-lo porque precisarás dela. Terás perto de ti o severo gelo quando for vasta, quase atroadora, a queda das maçãs na terra endurecida. No ar terás a morte como um cheiro a cinza! Oh, já não o sentes? A alma assustada acabará por contrair-se no corpo magoado, estremecer com o frio que lhe penetra os poros.
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Mas poderá um homem libertar-se da vida a punhal nu? Com adagas, punhais e balas o homem pode magoar-se ou abrir o caminho que lhe solta a vida; mas será isto libertar-se, diz-me lá tu, libertar-se da vida? Não, não, tenho a certeza! Como pode haver no crime, no nosso próprio crime, a libertação da vida?
Falemos pois da nossa conhecida quietude, aquela que podemos conhecer, a bela e profunda quietude de um forte e apaziguado coração! Mas poderemos libertar assim a nossa vida?
Constrói a tua nave da morte porque terás de fazer a maior das viagens ao esquecimento. E morrer da morte, da longa e dolorosa morte que separa do eu novo um velho eu. Já caíram magoados, maldosamente magoados os nossos corpos, já ressumam, saídas da cruel ferida as nossas almas.
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Já o escuro mar sem fim, do fim, escorre pelas fendas das nossas feridas, já temos em cima de nós o dilúvio. Ah, constrói a tua nave da morte, a tua pequena arca, e faz-lhe uma reserva de alimentos, bolos e vinho para o escuro voo que desce até ao esquecimento.
Peça a peça vai morrendo o corpo, e a alma tímida vê o seu chão furtar-se enquanto o dilúvio negro vai subindo. Morremos, morremos, todos morremos e ninguém sabe deter a morte-dilúvio que entre nós sobe e se eleva pouco depois no mundo, no mundo que temos à volta. Morremos, morremos, peça a peça os corpos morrem abandonados pela nossa força, e à chuva escura, acima do dilúvio a alma nua encolhe-se, encolhe-se nos últimos ramos da árvore da vida.
Morremos, morremos, e agora só podemos aceitar a morte, e construir a nave da morte para levar a alma na mais longa das viagens. Pequena nave com remos e alimento, pequenos pratos e todos os aprestos, preparada e pronta para a alma que parte.
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Lança agora ao mar a pequena nave, agora que o corpo morre e a vida se afasta, lança-a, a alma frágil na frágil nave de coragem, a arca da fé com a sua provisão de víveres e tachos e mudas de roupa, acima da extensão escura do dilúvio acima das águas do fim acima do mar da morte onde vogamos ainda, às cegas por não termos rumo, sem nenhum porto. Não há porto em nenhum lado aonde possamos chegar, só a mais profunda escuridão que ainda mais escura se faz, mais negra sobre o dilúvio sem som nem marulhos, treva a confundir-se com a treva para o alto e para o baixo e em todo o lado a total escuridão, sem nunca mais termos um rumo. E a pequena nave ali está; mas desaparece. Não a vemos porque não existe nada para ser visto. Desaparece! Desaparece! E no entanto nalgum lado está. Em nenhum lado ela está!
E tudo desaparece. Desaparece o corpo completamente submerso, desaparece por inteiro. É tão densa a treva ao alto como a treva em baixo, e entre elas a pequena nave desaparece, desaparece.
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É o fim, é o esquecimento. Mas no entanto um fio separa-se na treva fora da eternidade, um fio horizontal que solta um fumo leve e sobe na sombra, difuso. Será ilusão? Ou o difuso fumo sobe mais um pouco? Ah, espera, espera, porque temos ali a alvorada, a cruel alvorada de um regresso à vida já sem esquecimento. Espera, espera, a pequena nave deriva sob a cinza mortalmente parda de um dilúvio-alvorada. Espera, espera!, oh alma lívida e gélida, porque há uma torrente de amarelo e, por estranho que pareça, uma torrente rosada. Uma torrente rosada, e tudo volta ao princípio.
Decresce o dilúvio, e o estranho e belo corpo emerge como uma concha gasta. Hesitante e confusa, a pequena nave regressa ao porto na torrente rosada e sai dela a alma débil, para um novo regresso a casa sentindo o coração em paz.
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Baloiça o renovado coração com uma paz que se alarga até ao esquecimento. Ah, constrói a tua nave da morte, ah, deves fazê-lo! Porque precisarás dela. Porque tens à tua espera a viagem de esquecimento. A.F.
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PINTURAS A ÓLEO 1. Contadini 2. Violação das Sabinas 3. Regresso ao Paraíso 4. Família numa varanda 5. Grande plano (beijo) 6. Esboço de dança 7. Salgueiros vermelhos 8. Conto de Boccacio 9. Uma santa família 10. Ressurreição 11. Combate com a amazona 12. Ninfas e faunos 13. Descoberta de Moisés 14. Acidente numa mina 15. Mar do Norte 16. Les pissenlits AGUARELAS 17. A mangueira 18. Renovação dos homens 19. Ao pé da mó 20. Alvorada de Verão 21. Dança do fogo 22. Canto de cisnes 23. O lagarto 24. Rejeitar a maçã 25. Bailado 26. Leda 27. Primavera
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índice
A MAÇÃ DE CÉZANNE…
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Introdução a estas pinturas . . . . . . . . . . . . . . . . 25 …E EU
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 A nave da morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 Pinturas de D.H. Lawrence . . . . . . . . . . . . . . . . 109
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D.H. Lawrence A MAÇÃ DE CÉZANNE… E EU
D.H. Lawrence A MAÇÃ DE CÉZANNE… E EU com as pinturas de
D.H. Lawrence tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
O grande esforço de Cézanne foi empurrar para longe a maçã e deixá-la viver a sua própria vida
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