Ilda David, Do Negro a Luz, Desenhos

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Ilda David Do negro a luz desenho 1986-2016

edição

Nuno Faria

d o c u m e n ta fundação carmona e costa


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lista de obras list of works 4

Sem título, 2013, guache sobre papel, 29,5 x 20,8 cm 5 Sem título, 2013, guache sobre papel, 29,5 x 20,8 cm 6 Sem título, 2013, guache sobre papel, 21 x 14,7 cm 7 Sem título, 2013, guache sobre papel, 21 x 14,7 cm 8 Sem título, 2008, tinta-da-china sobre papel, 23,8 x 18 cm 9 Sem título, 2008, tinta-da-china sobre papel, 23,8 x 18 cm 10-11 Cartagineses, Sabatino Moscati, Encuentro Ediciones, 1983 12 Sem título, 1985, guache sobre papel, 30,2 x 21,3 cm 13 Sem título, 2012, guache e tinta-da-china sobre papel, 28,3 x 21 cm 14 Sem título, 2012, guache e tinta-da-china sobre papel, 28,3 x 21 cm 15 Sem título, 2012, guache e tinta-da-china sobre papel, 28,3 x 21 cm 17 Sem título, 2012, guache e tinta-da-china sobre papel, 28,3 x 21 cm 18 Sem título, 1990, guache sobre papel, 21 x 14,8 cm 19 Sem título, 1990, guache sobre papel, 17,2 x 10,2 cm 20-21 Caderno de desenho, guache e tinta-da-china sobre papel 22-23 Arte iberico, M. Tarradell, Ediciones Poligrafa, 1968 24 Sem título, 1990, guache sobre papel, 16,3 x 12,4 cm 25 Sem título, 1990, guache sobre papel, 16,3 x 12,4 cm 26 Sem título, 1992, guache sobre papel, 20 x 12,5 cm 27 Sem título, 1992, guache sobre papel, 20 x 12,5 cm 28 Sem título, 1994, guache e grafite sobre papel, 21 x 14,5 cm

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Sem título, 2002, guache sobre papel, 21 x 14,5 cm 30-31 Arte iberico, M. Tarradell, Ediciones Poligrafa, 1968 32 Sem título, 2006, acrílico sobre papel vegetal, 29,3 x 20,8 cm 33 Sem título, 2006, guache sobre papel, 29,5 x 20,8 cm 34-35 12 desenhos, sem título, não datados, tinta de escrever sobre papel, 9 x 9 cm 36 Sem título, 2012, guache e tinta-da-china sobre papel, 20,8 x 14,7 cm 37 Sem título, 2012, guache e tinta-da-china sobre papel, 16,8 x 12 cm 38-39 Arte iberico, M. Tarradell, Ediciones Poligrafa, 1968 40 Sem título, 1991, guache sobre papel, 21 x 14,7 cm 41 Sem título, 2012, tinta-da-china e lápis sobre papel, 20,8 x 14,6 cm 43 Sem título, 1991, acrílico sobre papel, 25 x 17,5 cm 44-45 Arte iberico, M. Tarradell, Ediciones Poligrafa, 1968 46-59 Caderno de desenho, guache e tinta-da-china sobre papel 60 Sem título, 2007, tinta de escrever e guache sobre papel, 18 x 12,5 cm 61 Sem título, 2007, tinta de escrever e guache sobre papel, 18 x 12,5 cm 62 Sem título, 2007, tinta de escrever e guache sobre papel, 18 x 12,5 cm 63 Sem título, 2007, tinta de escrever e guache sobre papel, 18 x 12,5 cm 64 Sem título, 2007, tinta de escrever e guache sobre papel, 18 x 12,5 cm 65 Sem título, 2007, tinta de escrever e guache sobre papel, 18 x 12,5 cm

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66-67 11 desenhos, sem título, não datados, tinta-da-china e guache sobre papel, 9 x 9 cm 69 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 70 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 71 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 72 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 73 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 74 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 75 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 76 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 20,8 x 14,8 cm 77 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 21,5 x 15,3 cm 78 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 21,5 x 15,3 cm 79 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 21,5 x 15,3 cm 80 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 21,5 x 15,3 cm 81 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 21,5 x 15,3 cm 82 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 21,5 x 15,3 cm 83 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 15,3 x 21,5 cm 84 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 15,3 x 21,5 cm

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Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 15,3 x 21,5 cm 86 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 15,3 x 21,5 cm 87 Sem título, 2005, tinta de escrever sobre papel, 15 x 20,8 cm 88 Sem título, 2005, tinta-da-china e guache sobre papel, 15 x 20,8 cm 90-91 9 desenhos, sem título, não datados, tinta-da-china e guache sobre papel, 9 x 9 cm 92 Sem título, 1993, tinta de escrever sobre papel, 21 x 15 cm 93 Sem título, 1993, tinta de escrever sobre papel, 21 x 15 cm 94-95 Cartagineses, Sabatino Moscati, Encuentro Ediciones, 1983 97 Sem título, não datado, grafite sobre papel, 14,7 x 9,7 cm 98 Sem título, não datado, grafite sobre papel, 14,7 x 9,7 cm 99 Sem título, não datado, grafite sobre papel, 14,7 x 9,7 cm 100-101 Caderno de desenho, grafite sobre papel 102 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 14,8 x 21 cm Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 14,8 x 21 cm 103 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 14,8 x 21 cm Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 14,8 x 21 cm 104 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 14,8 x 21 cm Sem título, 1997, lápis sobre papel, 14,8 x 21 cm 105 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 14,8 x 21 cm Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 14,8 x 21 cm 106 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 21 x 14,7 cm

107 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 21 x 14,7 cm 108 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 21 x 14,7 cm 109 Sem título, 1997, esferográfica sobre papel, 21 x 14,7 cm 110 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64 x 49,5 cm 111 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64 x 50 cm 113 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64 x 50 cm 114 Sem título, 2012, guache sobre papel, 21 x 14,7 cm 115 Sem título, 2012, guache sobre papel, 21 x 14,7 cm 117 Sem título, 2012, guache sobre papel, 21 x 14,7 cm 118 Sem título, 1990, guache sobre papel, 17,5 x 11,5 cm 119 Sem título, 1990, guache sobre papel, 19,5 x 12,5 cm 120 Sem título, 1991, guache sobre papel, 14,8 x 11,5 cm 121 Sem título, 1990, guache sobre papel, 17,5 x 11,8 cm 122 Sem título, 1990, guache sobre papel, 17,5 x 11,8 cm 123 Sem título, 1990, guache sobre papel, 19,4 x 12,3 cm 124-125 12 desenhos, sem título, não datados, esferográfica, tinta de escrever e guache sobre papel, 9 x 9 cm 127 Homenagem a Monet I, 1989, guache sobre papel, 29,5 x 20,9 cm 128 Sem título, 1990, guache sobre papel, 19,4 x 12,3 cm 129 Sem título, 1990, guache sobre papel, 22,2 x 14,5 cm 130 Homenagem a Joseph Beuys, 1989, guache sobre papel, 24,8 x 17 cm 131 Sem título, 1986, guache sobre papel, 24,5 x 15 cm 132 Sem título, 1986, guache sobre papel, 25 x 15 cm 133 Sem título, 1989, guache sobre papel, 17 x 11,2 cm


134 Sem título, 1987, guache sobre papel, 25 x 17,5 cm 135 Sem título, 1987, guache sobre papel, 17,5 x 12,7 cm 136 Sem título, 1987, guache sobre papel, 25 x 17,4 cm 137 Sem título, 1987, guache sobre papel, 25 x 17,4 cm 138 Sem título, 1987, guache sobre papel, 25 x 17,4 cm 139 Sem título, 1987, guache sobre papel, 25 x 17,5 cm 140 Sem título, 1987, guache sobre papel, 23,6 x 14,5 cm 141 Sem título, 1987, guache sobre papel, 18 x 19,5 cm 142 Sem título, 1987, guache sobre papel, 25,1 x 17,5 cm 143 Sem título, 1987, guache sobre papel, 24,8 x 17,5 cm 144-145 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 70 x 100 cm 146-147 Sem título, 2013, técnica mista sobre papel, 70,4 x 100 cm 148-149 Sem título, 2013, técnica mista sobre papel, 70,4 x 100 cm 150-151 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel, 70,4 x 100 cm 152-153 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel, 70 x 100 cm 154-155 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel, 70 x 100 cm 156-157 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel, 70 x 100 cm 158-159 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel, 70 x 100 cm 160-161 Sem título, 2006, técnica mista sobre papel, 56,2 x 76 cm 162-163 Sem título, 2006, técnica mista sobre papel, 70,4 x 100 cm 164-165 Sem título, 2006, técnica mista sobre papel, 56,2 x 76 cm 167 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64,5 x 50 cm

168 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64,5 x 49,5 cm 169 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64,3 x 49,5 cm 170 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64,3 x 50 cm 171 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64,5 x 50 cm 172 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64 x 50 cm 173 Sem título, 2014, técnica mista sobre papel, 64 x 50 cm 175-181 Caderno de desenho, técnica mista sobre papel 182-183 Cartagineses, Sabatino Moscati, Encuentro Ediciones, 1983 184 Cópias da noite 5, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 185 Cópias da noite 10, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 186 Cópias da noite 3, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 187 Cópias da noite 11, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 188 Cópias da noite 16, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 189 Cópias da noite 19, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 190 Cópias da noite 12, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 191 Cópias da noite 20, 1991, técnica mista sobre papel, 100 x 70 cm 192-193 Arte iberico, M. Tarradell, Ediciones Poligrafa, 1968 194 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel vegetal, 58,8 x 41,4 cm 195 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel vegetal, 58,8 x 41 cm

196 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel vegetal, 52 x 41,5 cm 197 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel vegetal, 58,8 x 41 cm 199 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel vegetal, 29,7 x 21 cm 200 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel vegetal, 29,7 x 21 cm 201 Sem título, 2015, técnica mista sobre papel vegetal, 29,7 x 21 cm 202-203 12 desenhos, sem título, não datados, tinta de escrever sobre papel, 9 x 9 cm 204-205 Sem título, 2016, bordado com linhas de algodão sobre lã (pormenor) 206-207 Sem título, 2016, bordado com linhas de seda sobre seda (pormenor)

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COPLAS FEITAS SOBRE UM ÊXTASE DE ELEVADA CONTEMPLAÇÃO

Penetrei onde não soube e fiquei não o sabendo, toda a ciência transcendendo. 1 Não soube então onde entrava; porém, quando ali me vi, sem saber onde parava, grandes coisas entendi; não direi o que senti, que fiquei não o sabendo, toda a ciência transcendendo. 2 De paz e de piedade era a ciência perfeita, em profunda soledade entendida, via recta; era coisa tão secreta, balbuciei nada dizendo, toda a ciência transcendendo. 3 Estava tão embebido, tão absorto e alheado, que ficou o meu sentido de todo o sentir privado; e o espírito dotado de um entender não entendendo, toda a ciência transcendendo. 4 Quanto mais alto se eleva, tanto menos se entendia, que é nuvem cheia de treva que a noite inteira alumia; por isso quem a sabia

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fica sempre não sabendo, toda a ciência transcendendo. 5 Quem lá chega de verdade de si mesmo desfalece; vai parecer-lhe falsidade o que antes certo parece; sua ciência tanto cresce que se fica não sabendo, toda a ciência transcendendo. 6 Este saber não sabendo é de tão alto poder, que até sábios discorrendo jamais o podem vencer; não alcança o seu saber não entender entendendo, toda a ciência transcendendo. 7 E é de tão alta excelência este supremo saber, que não há arte nem ciência que o possam acometer; quem se conseguir vencer com um saber não sabendo irá sempre transcendendo. 8 E se vós quereis ouvir, consiste esta suma ciência num elevado sentir do que é a divina essência; obra é da sua clemência fazer ficar não entendendo, toda a ciência transcendendo. S. João da Cruz, Poesias Completas Tradução de José Bento

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Existimos em relação com todos os pontos do universo, tal como com o futuro e com o passado. É só da direcção e da duração da nossa atenção observadora que depende a questão de sabermos que relação preferimos cultivar, que relação será para nós a mais importante e a mais activa. […] O mais inacessível é o mais compreensível, o mais próximo, o mais indispensável. […] Todo o visível adere ao invisível, tudo o que pode entender-se ao que não se pode entender, todo o sensível ao insensível. Talvez tudo o que pode pensar-se ao que não se pode pensar. Novalis, Fragmentos Tradução de Mário Cesariny

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A luz entrou na caverna. Io! Io! A luz baixou caverna adentro. Esplendor sobre esplendor! Com o forcado entrei nestas colinas: Que a relva cresça do meu corpo. Que eu ouça as raízes em coro, O ar é fresco em minha folha Os galhos em forquilha movem-se com vento. E Zephyrus mais leve sobre o galho, Apeliota mais leve sobre o ramo da amendoeira? Por este portão entro na colina. Tomba, Adônis tomba. Depois o fruto. As breves luzes impelidas na maré, a garra do mar impeliu-as lá pra fora, Quatro insígnias para cada flor A garra do mar leva as lâmpadas pra fora. Pensa na tua lavra Quando as sete estrelas baixam para o repouso Quarenta dias para seu repouso, pela orla do mar E em vales que serpeiam para o mar Kai Moi¯raiV ;Adonin KAI MOIRAI’ ADONIN Quando o galho da amendoeira lança à frente sua flama, Quando os rebentos novos são levados ao altar Tu Diw,na( Kai Moi¯rai TU DIONA, KAI MOIRAI Kai Moi¯raiV ;Adonin KAI MOIRAI’ ADONIN que tem o dom da cura que tem o domínio das feras. Ezra Pound, Os Cantos Tradução de José Lino Grünewald

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Já vim à minha horta, irmã minha, ó esposa, colhi minha mirra com minha especiaria, comi meu favo com meu mel, bebi meu vinho com meu leite: comei amigos, bebei, ó amados, e embebedai-vos. Eu estava dormindo, mas meu coração vigiava: a voz de meu amado era, que estava batendo: abre-me irmã minha, amiga minha, pomba minha, perfeita minha, porque minha cabeça está cheia de orvalho, minhas gadelhas das gotas da noite. Já despi meus vestidos, como os tornarei a vestir? Já lavei meus pés, como os tornarei a sujar? Meu amado meteu sua mão pelo buraco da porta, e minhas entranhas rugiram por amor dele. Eu me levantei para abrir a meu amado: e minhas mãos destilavam mirra, e meus dedos gotejavam de mirra sobre as aldrabas da fechadura. Eu abri a meu amado, mas já meu amado se desviara, e passara: minha alma se saía à causa de seu falar; o busquei, e não o achei; o chamei, e não me respondeu. Acharam-me os guardas, que rondavam pela cidade, espancaram-me, feriram-me: tiraram-me o meu véu os guardas dos muros. Esconjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que se achardes a meu amado, lhe digais, que de amor estou enferma. Que é teu amado mais do que o outro amado, ó tu a mais formosa entre as mulheres? Que é teu amado mais, do que o outro amado, que tanto nos esconjuraste? Meu amado é branco e vermelho ele traz a bandeira entre dez mil. Sua cabeça é do mais fino e maciço ouro: suas gadelhas crespas, pretas como o corvo. Seus olhos como os das pombas junto às correntes das águas; lavados em leite, encastoados como em anéis. Suas faces como um canteiro de especiaria, como caixas aromáticas, que gotejam mirra destilante. Suas mãos como anéis de ouro encastoados de turquesas: seu ventre como alvo marfim, coberto de safiras. Suas pernas como colunas de mármore, fundadas sobre bases do ouro mais maciço: seu parecer como o Líbano, escolhido como os cedros. Seu paladar a mesma doçura, e todo ele totalmente desejável: tal é meu amado, e tal meu amigo, ó filhas de Jerusalém. Cântico dos Cânticos, Capítulo V Tradução de João Ferreira Annes d’Almeida

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Vim a um lugar que a toda luz é mudo, que muge como o mar sob a tormenta quando o vento ao revés revolve tudo. O tufão infernal nunca se assenta; arrasta as almas com sua rapina e girando e ferindo as atormenta. Quando chegam defronte da ruína aumenta o coro de lamentação; blasfemam contra a perfeição divina. Os que sofrem a pena todos são pecadores da carne — assim o entendo — que ao desejo submetem a razão. Como estorninhos que se vão, batendo, em longo bando, as asas a voar, assim eu vi as almas se movendo pra cá, pra lá, acima e baixo, no ar, sem esperança de poder jamais amenizar a pena ou repousar. E como os grous soltando tristes ais em larga fila ao vento que os fustiga, assim foram chegando mais e mais sombras movidas pela mesma briga; e então falei: «Mestre, quem são aquelas almas que o ar negro sem cessar castiga?» Dante Alighieri, Divina Comédia CANTO V (Inferno) Tradução de Augusto de Campos

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BRAHMA, VISNU, XIVA

Num mundo sem palavras sem tempo sem luz nesse grande vazio O Brahma de quatro rostos medita. De repente um mar de alegria surge no seu coração — O deus abre os olhos. Palavras de quatro bocas Correm por cada face. Através da infinita escuridão, Através do infinito céu, Como uma tempestade que cresce no mar, Como a esperança jamais saciada, A sua Palavra começa a mover-se. Agitada pela alegria a sua respiração é ofegante, Os oito olhos acendem as suas chamas. O seu cabelo de fogo varre o horizonte Brilhante como mil sóis. Da alta nascente do mundo Em inumeráveis correntes Caem cascatas da primordial fonte ardente, Fragmentando o silêncio, Fendendo o seu coração de pedra. Num exuberante universo Com nova vida exalante, Com nova vida exultante, Num céu sem fronteiras Visnu oferece A sua bênção de quatro mãos. Ele ergue o seu búzio E todas as coisas estremecem Com tão estrondoso som. O furor desvanece-se, O fogo apaga-se, Os planetas apagam Com lágrimas as suas chamas.

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O Divino Poeta do mundo Constrói a sua história, E da terrível canção cósmica Nasce a sua épica. Estrelas nas suas órbitas, Lua sol e planetas — Ele conduz com o seu bastão Todas as coisas para a lei, Impondo a disciplina Da métrica e da rima. Nas profundezas de Manasa Visnu observa — A beleza surge Da luz do trevo amarelo. Laksmi distribui sorrisos — As nuvens mostram o arco-íris, Os jardins mostram as flores. O rugido da Criação Transforma-se em música. A suavidade oculta o rigor, Vestindo a capa do poder. Era após era era após era escraviza-o um poderoso ritmo — Por fim a moldura do mundo Cansa o seu corpo, Dorme nos seus olhos, Enfraquece a sua estrutura, Dispersa a sua energia. Do coração de toda a matéria Vem um grito de angústia — «Acorda, acorda, grande Xiva, O nosso corpo já se cansa Do caminho da lei, Dá-nos uma nova forma. Canta a nossa destruição Para ganharmos uma nova vida.» O grande deus acorda, Abre os seus três olhos,

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Perscruta todos os horizontes. Ele ergue o seu arco, a sua pinaka caída, Ele pisa o mundo com os seus passos. Das primeiras às últimas coisas ele treme e sacode-se E estremece. Os laços da natureza quebrados estão. O céu oscila com o rugido De uma onda de extasiada libertação. Paira um inferno — A pira do universo. Despedaçados o sol e a lua, esmagados as estrelas e os planetas Chove de todos os ângulos Um negrume de partículas Engolidas pelas chamas, Absorvidas num instante. No princípio da Criação Havia as trevas sem origem, No princípio da Criação Há um fogo sem fim. No céu que tudo domina no mar de fogo que tudo devora Xiva fecha os seus três olhos. Ele começa o seu grande transe. Rabindranath Tagore, Poesia Tradução de José Agostinho Baptista

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As enormes pedras fálicas que, segundo se diz, existiam no topo dos tumuli, têm por vezes entalhes belíssimos, e por vezes também inscrições. Os historiadores chamam-lhes cippus, cippi. Mas o certo é que o cippus é uma coluna truncada, habitualmente usada como pedra tumular: uma coluna baixa, muitas vezes quadrada, cortada de lado a lado, truncada, para representar possivelmente uma vida que terminou cedo. Algumas das pequenas pedras fálicas são assim — truncadas. Mas outras são bastante altas, enormes e decoradas, com um cone duplo que é seguramente fálico. Quanto às pequenas pedras fálicas inseridas na rochas, essas, não podem representar vidas que terminaram cedo. Em alguns túmulos, logo à entrada, há uma pequena casa em pedra trabalhada, ou uma arca a imitar pedra, com dois tampos inclinados, como os lados do telhado de uma casa oblonga. O rapaz que é nosso guia, que trabalha nos caminhos-de-ferro e está longe de ser um erudito, vai dizendo quase em surdina que os túmulos das mulheres tinham destas casas de pedra, ou arcas, sobre eles — à entrada, diz ele — e que os túmulos dos homens tinham pedras fálicas, as lingas. Mas, uma vez que os túmulos maiores eram túmulos de família, é de crer que tivessem as duas coisas. A casa de pedra, como o rapaz dizia, sugere a Arca de Noé sem a parte do barco: a caixa com a Arca de Noé que tivemos em crianças, cheia de animais. E é precisamente o que ela é, a Arca, arx, o útero. O útero do mundo, do qual nasceram todas as criaturas. O útero, arx, o último refúgio a que a vida regressa. O útero, a arca da aliança, onde reside o mistério da vida eterna, o maná e os mistérios. Ali estava, colocada à entrada dos túmulos etruscos de Cervetri. Talvez a insistência nestes dois símbolos, no mundo etrusco, possa explicar as razões que levaram à completa destruição e aniquilação da consciência etrusca. O novo mundo quis livrar-se desses símbolos do velho mundo, do velho mundo físico. A consciência etrusca estava muito profundamente enraizada nestes símbolos, o falo e a arx. E por isso a consciência etrusca, todo o seu pulsar e ritmo, tinha de ser apagada. E, ouvindo as cotovias a cantar sob o céu azul e sentindo o calor do sol de Abril, voltamos a perceber por que razão os romanos chamavam viciosos aos etruscos. Mesmo nos seus tempos mais prósperos os romanos estavam muito longe de serem uns santos. Embora achassem que deviam sê-lo. Odiavam o falo e a arca, porque desejavam impérios e dominações e, acima de tudo, riqueza: ganho social. Não é possível dançar alegremente ao som da flauta e ao mesmo tempo conquistar nações e arrebanhar quantidades enormes de dinheiro. Delenda est Cartago. Para os ambiciosos, tudo o que se interponha entre eles e o objecto da sua ambição é a incarnação do vício. D.H. Lawrence, Lugares Etruscos Tradução de Helder Moura Pereira

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A ALBERTO DÜRER

Naquelas velhas florestas onde a seiva ondulando Vai do negro tronco do álamo para o da bétula passando, Quantas vezes, imagino, clareiras atravessavas, Pálido, arrepiado, nem olhar para trás ousavas, Apressado e tremendo, num passo convulsivo, Ó meu mestre Alberto Dürer, velho pintor pensativo! Diante de teus quadros venerados, se pode adivinhar Que no negrume das matas, visionário, o teu olhar Distintamente via, pelas sombras encobertos, Um silvano de olhos verdes, um fauno de dedos abertos, E Pã, que cobrirá de flores o antro em que te recolhas, E aquela dríade antiga com as mãos cheias de folhas. Um mundo de terror, é a floresta para ti. O sonho e a realidade juntos habitam aí. Aí, os velhos pinheiros, os ulmeiros sonhadores Se inclinam, torcendo os ramos, em disformes estertores. E nesse lugar sombrio, pelo vento agitado, Nada está totalmente vivo, nem totalmente parado.

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O agrião bebe; a água corre; e os freixos nas ladeiras, Debaixo de um mato medonho e de silvas trepadeiras, Lentamente encolhem os seus pés negros e velhos; As flores, lembrando cisnes, têm lagos por espelhos; E sobre vós que passais e as fizestes acordadas, Muitas e estranhas quimeras de gargantas escamadas, Entre os dedos apertando um grosso tronco nodoso, Do fundo de um antro escuro fixam um olhar luminoso. Ó vegetação! espírito! matéria! força! Coberta de dura casca ou de pele ainda moça! Nos bosques, assim como tu, nunca tenho vagueado, Mestre, sem sentir o meu peito de um terror penetrado, Sem ver estremecer as ervas e, embalados pelos ventos, Pendurar em cada ramo os meus confusos pensamentos. Só Deus, que é testemunha dos feitos mais misteriosos, Só Deus sabe como eu, nesses lugares umbrosos, Eu, a quem uma secreta chama sempre vem aquecer, Pude sentir palpitar, com o coração a bater, E conversar em surdina, e rir, com a alma em festa, Os carvalhos monstruosos que habitam a floresta. Victor Hugo, Poesia Tradução de Manuela Parreira da Silva

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A saúde e o estado de espírito agem de maneira tão forte sobre tudo o que nos rodeia que, naquela época, várias vezes me veio à memória a imensa alegria que sentira ao fazer aquele caminho em direcção a São Petersburgo, o mesmo que agora com tanta tristeza acabara de percorrer. Lembro-me, sobretudo, de como a paisagem da Curlândia me deslumbrara. As magníficas florestas de velhos castanheiros, de enormes abetos ou de amieiros cujos troncos esbranquiçados tão claramente sobressaem da folhagem semelhante à dos chorões; os lagos amenos, as encantadoras colinas, os pequenos e belos vales, tudo a minha imaginação serena e feliz animava com um sem-número de ideias alegres e poéticas. Nos bosques, via Diana seguida pelo seu cortejo; nos prados, danças de pastores e pastoras, como as que vira em Roma nos baixo-relevos antigos: enfim, ia encantando o meu caminho. Mas no regresso já não havia figuras fantásticas nem alegres danças. A minha tristeza e sofrimento tinham despovoado aquele belo país que dolorosamente eu ia contemplando. […] As árvores que contornam o lago Nèmi são enormes; algumas são tão antigas que o tronco e os ramos, com o tempo, ficaram ressequidos e esbranquiçados. Tomámos a decisão de os ir contemplar com a luz da lua, e a minha filha quis acompanhar-nos. Nada havia de mais encantador do que o efeito produzido por essas árvores desenhando sombras nas águas do lago. Permanecemos muito tempo em contemplação; mas, ao seguir por um caminho mais adiante, essas mesmas árvores, agitando-se ao vento, tomavam a forma de grandes espectros que nos ameaçavam; a minha pobre filha morria de medo; dizia-me muito assustada: — «Estão vivos, mamã, tenho a certeza que estão vivos».

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[…] Finalmente, depois de termos sido sacudidos sem descanso por vagas terríveis, desembarcámos na ilha de Capri, pouco depois do nascer do Sol. Aí, apenas encontrámos os pescadores, que habitam as grutas dos rochedos à beira mar. Um deles ofereceu-se para nos servir de guia, e nos arranjar alguns burros, uma vez que queríamos subir ao ponto mais alto da ilha. O caminho por onde trepámos era ladeado, à esquerda, por pomares de laranjeiras e de limoeiros em flor, por ervas aromáticas e ramos de aloés que espalhavam um perfume delicioso. À nossa direita, rochedos e ruínas de antigas construções. Elisabeth Vigée-Lebrun, Memórias (excertos) Tradução de Maria Etelvina Santos

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Foi então que a árvore, partindo do arvoredo, veio à minha casa falar comigo, ou seja, pediu-me que eu a acolhesse ininterruptamente para aprender a ler; não lhe disse que era impossível estabelecer uma relação entre nós duas porque eu não sou árvore. Ela diz que nos tem confundido com o arvoredo, a mim e às sombras ligeiras que eu emito. Ela viu, no pinhal, uma dessas sombras a soprar vida sobre um animal desta casa que está doente. Ela afirma que um sopro de vida é leitura. Maria Gabriela Llansol, Um Beijo Dado Mais Tarde

Jodoigne, 27 de Março de 1979 Tal como sou acompanhada pelos lagos — águas adormecidas naturais e duráveis —, de igual modo deve fazer parte da sombra, que se desloca comigo, inscrever os dias estendidos por longo período de tempo. No seu calendário deve impor-se imediatamente a noção de noite — uma semana, um mês, um ano de noites. Sem o calendário, o fluir do tempo deve parecer-lhe incomensurável, e tornar-se um obstáculo à separação clara entre as figuras que voltam em períodos (perigos) regulares, ao mesmo ponto da abóbada. Se geralmente os meses começam com a lua nova, ela atravessa épocas em que não tem outro sonho senão o de conhecer, e todos os livros, limites e indícios da vida quotidiana lhe parecem pequenos microcosmos justapostos com o mesmo fim, ou a mesma origem. É por isso particularmente importante o organização de um calendário que traga estabilidade ao meio, e dê protecção à Casa que, com um sentido abissal, podia tornar-se o universo, e desaparecer.

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Jodoigne, 1 de Junho de 1979 dou passeios no infinitamente grande dos jardins (Causa Amante, ou O Nascimento de Ana Peñalosa, 1.º título). à noite: penso em Giordano Bruno, em quem teria sido sua mãe. Onde vives ainda, Giordano, em que dia? Quem foi tua mãe? Se vier acolher-se entre nós, não a deixaremos só. Faremos com ela uma espécie de jogo, mas ela nunca suspeitará de que maneira foste morto. Eu tinha vontade de cantar-vos louvores, pois vos via chegar ao limiar do mundo; quem te pôs no limiar da chama, a prumo na chama, homem inteiro? Sempre ela foi uma mulher três vezes radiante. Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no Punho

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A arte nasce do desejo humano em comunicar com o semelhante — e para tal qualquer meio é válido. Na pintura como na literatura é habitual confundir o meio com o fim — a Natureza é o meio, não o fim. Se mudando a Natureza é possível exprimir algo, então muda-se. Uma paisagem transmite-nos uma determinada impressão, se conseguirmos pintá-la estaremos a reflectir o nosso estado de alma. Esse estado de alma é o que importa — a Natureza é somente o meio. Pouco importa se o quadro se parece ou não com a Natureza. Explicar um quadro é impossível — é precisamente porque o pintor não saberia explicar-se de outra maneira que pintou o quadro. E ainda assim o quadro é um vago reflexo do que se pretendia dizer. Não acredito na arte que não nasce da necessidade do homem abrir o coração. Edvard Munch, Cadernos da Alma

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ANTIGUIDADES Medalhão. Há um efeito paradoxal em tudo aquilo que é designado de belo: o facto de se manifestar. Moinho de orações. Só a imagem que se oferece à vista alimenta e mantém viva a vontade. Já a mera palavra pode levá-la, quando muito, a inflamar-se, para depois continuar a arder em lume brando. Não há vontade plena sem a percepção precisa da imagem. Não há percepção sem activação nervosa. E a respiração é o seu factor de regulação mais preciso. A sonoridade das fórmulas é um cânone desta respiração. Daqui vem a prática meditativa do ioga, em que se respira sobre as sílabas sagradas. Daqui, a sua omnipotência. Colher antiga. Há uma coisa que é privilégio dos maiores poetas épicos: poder alimentar os seus heróis. Mapa antigo. A maior parte das pessoas busca num amor a pátria eterna. Outros porém, muito poucos, a eterna viagem. Estes são melancólicos, e têm motivos para temer o contacto com a terra-mãe. Procuram aqueles que poderiam manter afastada deles a saudade da pátria. A esses são fiéis. Os livros medievais sobre a doutrina dos temperamentos conhecem bem a nostalgia deste tipo de homens pelas viagens longas. Leque. Todos terão passado pela seguinte experiência: se amamos alguém, ou mesmo se estivermos apenas intensamente ocupados com essa pessoa, encontraremos o seu retrato em quase todos os livros. É verdade, ele aparece como protagonista e antagonista. Nos contos, romances e novelas aparece-nos sempre em novas metamorfoses. Daqui podemos concluir: a faculdade da imaginação é o dom de fazer interpolações no infinitamente pequeno, de inventar para cada intensidade, enquanto algo de extensivo, uma nova e densa plenitude, em suma, de tomar cada imagem como se fosse a do leque fechado que só ao desdobrar-se respira e com esta nova amplitude evidencia no seu interior os traços da pessoa amada. Relevo. Estamos em companhia da mulher que amamos, conversando com ela. Depois, semanas ou meses mais tarde, já separados dela, vem-nos de novo à memória o assunto da conversa. Mas agora o motivo parece-nos banal, cru, sem relevo, e apercebemo-nos de que foi apenas ela quem, ao debruçar-se em amor sobre ele, lhe deu sombra e o protegeu diante de nós, para que o pensamento vivesse como um relevo em todas as dobras e recantos desse motivo. Se estivermos sós, como agora, ele está aí, raso, sem consolo nem sombra, na luz do conhecimento que dele temos. Torso. Só quem fosse capaz de contemplar o seu próprio passado como fruto de contrariedades e da necessidade estaria em condições de, em cada momento presente, tirar dele o máximo partido. Pois aquilo que vivemos um dia é, na melhor das hipóteses, comparável àquela bela estátua a que o transporte quebrou todos os membros, e agora mais não tem para oferecer do que o precioso bloco a partir do qual terá de ser esculpida a forma do futuro. Walter Benjamin, Imagens de Pensamento Edição e tradução de João Barrento

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Uma corda sobre o abismo Nuno Faria

Este é um livro definitivamente sem começo e presumivelmente sem fim. Um livro que se inscreve num tempo sem tempo, numa arte sem história, que procura os filamentos de uma linhagem a perder de vista, obscura e luminosa, secreta e refulgente. É um livro com imagens em que se inscrevem palavras — das mais sábias, das mais antigas, distantes no tempo e na geografia mas nossas vizinhas, diria mesmo nossas contemporâneas. Goethe, Dante, S. João da Cruz, Llansol, Cântico dos Cânticos, Dürer, Munch, Tagore, Lawrence, Benjamin, Vigée-Lebrun. Por aqui passam as visões de um Victor Hugo, os pequenos desenhos de grutas de Goethe, registados durante as viagens alpinas, as imagens de Carlos Relvas, encenando-se em lugares altos tal como, no exílio, Victor Hugo, as pequenas figuras ibéricas ou cartaginesas. E há ainda retratos de Monet, Van Gogh e Beuys. A história esotérica das palavras e das imagens não tem época, revela-se nos encontros, nas pausas, nos tempos mortos, nos intervalos. Antes de existirem como imagens as imagens de Ilda David formam-se a partir desses laços invisíveis, de cruzamentos, de pontos de que só ela conhece as conexões. É esse lugar, a função assignada ao desenho na economia do seu trabalho, no universo de referências que vem construindo há mais de três décadas. O desenho, aqui, age como uma voz inaudível, que guia mais do que aponta, sempre em sub-registo, aquém da visibilidade, para lá da história. O desenho está em vários planos e não está em nenhum em particular, está em vários tempos, define um espaço de profundidade, um mergulho no abismo, na história secreta, obscura, dos encontros. É um rizoma, só discernível, só legível se o concebermos como narrativa que surge fora do registo oficial, formal, da história.

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É essa, em primeira instância, a linguagem do bordado — a sapiência dos gestos incessantemente repetidos que se enlaçam nas palavras e nos silêncios trocados, aprendidos, transmitidos, por interposta mão ou de viva voz, por via aérea. Essa linguagem eminentemente feminina, no sentido que é sobretudo praticada por mulheres, frequentemente como forma de resistência e de exercício de uma expressão que tantas vezes lhes foi negada, contém os segredos e as propriedades do desenho, a saber, é a superfície, o campo onde o corpo toma corpo, a voz ganha sonoridade, a linguagem se articula, o indivíduo se constitui. «O homem é uma corda estendida sobre o abismo», dizia Zaratustra do alto da montanha onde, metaforicamente, Nietzsche o colocou — a montanha é ponto alto que permite a clarividência, que permite ver para lá das convenções, ver de cima; mas é também o lugar da vertigem, do risco, da exposição, ver com o corpo. Como não pensar em Philippe Petit, o funâmbulo francês que atravessou o World Trade Center, em Nova Iorque, sobre um cabo estendido entre as torres gémeas, a quase 500 metros de altura. É esse o lugar que, tantas vezes por fatalidade, os artistas escolhem para eles mesmos — sobre o abismo, no vazio dos gestos, na noite dos tempos, repetindo à exaustão, refazendo, por alguns segundos de clarividência, de felicidade pura ou de miséria infinita. Como em Misérable Miracle de Henri Michaux, «contemplação do demoníaco e do divino como uma realidade indivísivel, como a última realidade» (na leitura de Octavio Paz), tudo começa com uma vibração e culmina num horizonte de presenças benéficas. Para citar o poeta e desenhador belga: «Eu abraço a perfeição divina da continuação do Ser através do tempo, uma continuação que é tão bela — tão bela que eu perco a consciência — tão bela que, como diz o Mahabharata, os próprios deuses têm ciúmes e chegam a admirá-lo.»

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A rope over an abyss Nuno Faria

This is definitely a book that has no beginning and presumably no end. A book that is inscribed in an endless time, in an art without history, which seeks the filaments of a lineage that stretches out of sight, obscure and luminous, secret and effulgent. It is a book with images, in which words are inscribed — from the wisest, most ancient thinkers, from distance epochs and places, but who are also our neighbours, one might even say our contemporaries: Goethe, Dante, St. John of the Cross, Llansol, the Song of Songs, Dürer, Munch, Tagore, Lawrence, Benjamin, Vigée-Lebrun. These drawings are crossed by the visions of Victor Hugo, the small drawings of caves executed by Goethe during the writer’s alpine trips, Carlos Relvas images, staging himself in high places such as Victor Hugo in exile, the small Iberian and Charthaginian figures. And there are Monet, Van Gogh and Beuys’ portraits. The esoteric history of words and images is timeless. It reveals itself in the encounters, the breaks, the dead times, the intervals. Before existing as images, the images of Ilda David formed themselves from these invisible ties, crossings, points of which she’s the only one who knows the connections. It is this place, the function assigned to drawing in the economy of her work, in the universe of references that she has built up over more than three decades. Drawing acts here as an inaudible voice, which guides us rather than points, always in a sub-record, below visibility, beyond history. Drawing exists on various planes, without being on any single one in particular. It exists at various times, defines a space of depth, a plunge into the abyss, in the secret, obscure history of encounters. It is a rhizome — that is only discernable, only readable, if we conceive it as a narrative that arises beyond the official, formal registration of history.

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In the first instance, this is the language of embroidery — the wisdom of incessantly repeated gestures that intertwine in words and exchanged silences, learned, transmitted, by a third hand, or spoken aloud, into the air. This eminently feminine language, inasmuch that it is practiced above all by women, often as a means of resistance and to exercise a form of expression that has so often been denied to them, contains the secrets and properties of drawing, namely, it is the surface, the field where the body takes shape, the voice gains sound, language is articulated, the individual is forged. “Man is … a rope over an abyss”, Zarathustra said from the mountaintop where Nietzsche metaphorically placed him — the mountain is the high point that permits clairvoyance, which allows us to see beyond conventions, to see from above. But it is also a place of vertigo, of risk, of exposure, where we can see with the body. We inevitably think of Philippe Petit, the French funambulist who crossed a cable stretched between the twin towers of the World Trade Center in New York — nearly 500 metres up in the air. This is the place that, often with tragic results, artists tend to choose for themselves — over an abyss, in the void of gestures, in the night of time, repeating to exhaustion, remaking, during a few seconds of clairvoyance, pure happiness or infinite misery. As in Henri Michaux’s Misérable Miracle, “contemplation of the demoniacal and the divine as an indivisible reality, as the ultimate reality” (in Octavio Paz reading), everything starts with a vibration and culminates in a horizon of beneficial presences. To quote the belgian poet and artist, “I cling to the divine perfection of the continuation of Being through time, a continuation that is so beautiful — so beautiful that I lose consciousness — so beautiful that, as the Mahabharata says, the gods themselves grow jealous and come to admire it.”

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ILDA DAVID’

Benavente, 1955. Frequentou o curso de pintura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, 1976 a 1981. Vive e trabalha em Lisboa. 2015 2014 2014 2012 2011 2009 2009 2007 2006 2005 2003

2002 2001 2000

«Epifania da Graça» (mosaico), Catedral de Bragança «Azul de Perdição» (pintura sobre papel), Giefarte, Lisboa «Amor de Perdição» (pintura sobre papel), Casa de Camilo, S. Miguel de Seide «O Quarto e o Bosque» (desenho), Giefarte, Lisboa «Pentecostes», pintura na Capela do Rato, Lisboa «Vicente» (pintura), Teatro de São João, Porto «Cartas de São Paulo» (pintura), Seminário Conciliar de Braga, Braga «Pentateuco» (pintura), Museu Carlos Machado, Ponta Delgada «Ínsula» (pintura), Escola António Arroio, Lisboa «Tábuas de Pedra» (pintura), Porta 33, Funchal «Florestas» (desenho), Giefarte, Lisboa «Evaporação» (pintura), Centro Cultural Emmerico Nunes, Sines «Camarupa» (pintura), Pavilhão Branco/Museu da Cidade, Lisboa Pintura, Giefarte, Lisboa Pintura, Mundial-Confiança Chiado 8/Arte Contemporânea, Lisboa Pintura, Galeria Fernando Santos, Porto Pintura, Giefarte, Lisboa «Fausto» (pintura), Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra «Fausto» (pintura), Galeria Fernando Santos, Porto «Incubus» (pintura), Sala Jorge Vieira, Parque das Nações, Lisboa


Desta livro foi produzida uma tiragem especial de 50 exemplares numerados de 1/50 a 50/50 e 20 exemplares numerados de I/XX a XX/XX todos assinados pelos autores A special edition of 50 copies was produced from this book numbered 1/50 to 50/50 and 20 copies numbered I/XX to XX/XX all signed by the authors


Este livro foi publicado por ocasião da exposição «Ilda David – Do negro a luz – Desenho 1986-2016» realizada na Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, de 19 de Março a 30 de Abril de 2016 com curadoria de Nuno Faria This book was published on the occasion of the exhibition «Ilda David – Do negro a luz – Desenho 1986-2016» presented at Fundação Carmona e Costa from Mars 19 to April 30, 2016 curated by Nuno Faria © Fundação Carmona e Costa, Rua Soeiro Pereira Gomes, Lt. 1 – 6.º D, 1600-196 Lisboa © Sistema Solar, Crl. (Documenta), Rua Passos Manuel, 67 B, 1150-258 Lisboa textos © Autores imagens © Ilda David 1.ª edição Março 2016 | March 2016 ISBN 978-989-860000000 Edição | Edition Coordenação da produção | Production coordination Tradução | Translation Fotografia | Photography Design gráfico | Graphic design Revisão | Proofreading

Nuno Faria Pedro Valdez / fcc Martin Dale Bruno Lopes Manuel Rosa António d’Andrade

Tiragem | Print run 800 exemplares Depósito legal | Legal depot 00000/16 Pré-impressão, impressão e acabamento | Preproof, printing and binding: Gráfica Maiadouro SA Rua Padre Luís Campos, 586 e 686 (Vermoim) 4471-909 Maia Portugal


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