In Principio, A Bíblia Medieval em diálogo com a pintura de Ilda David

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edição Luís Correia de Sousa textos José Mattoso Xavier van Binnebeke Luís Correia de Sousa José Tolentino Mendonça Teresa Duarte Ferreira Ana Cristina de Santana Silva Lígia de Azevedo Martins

D O C U M E N TA

IN PRINCIPIO

IN PRINCIPIO A Bíblia Medieval em diálogo com a pintura de Ilda David

IN PRINCIPIO A Bíblia Medieval em diálogo com a pintura de Ilda David


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IN PRINCIPIO A Bíblia Medieval em diálogo com a pintura de Ilda David edição

Luís Correia de Sousa textos

José Mattoso Xavier van Binnebeke Luís Correia de Sousa José Tolentino Mendonça Teresa Duarte Ferreira Ana Cristina de Santana Silva Lígia de Azevedo Martins

D O C U M E N TA


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Esta obra foi publicada por ocasião da exposição «A Bíblia Medieval – do Românico ao Gótico (sécs. XII-XIII) – em diálogo com a pintura de Ilda David» organizada pela Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e pelo Instituto de Estudos Medievais, com a curadoria de Luís Correia de Sousa e o apoio da Fundação EDP, e que decorreu na BNP, entre 16 de Fevereiro e 21 de Maio de 2016.

agradecimentos Biblioteca da Ajuda (BA) Biblioteca Pública de Évora (BPE)

© Biblioteca Nacional de Portugal Campo Grande, 83, 1749-081 Lisboa © Sistema Solar CRL (chancela Documenta) Rua Passos Manuel, 67 B, 1150-258 Lisboa ISBN 978-989-8834-21-8 Revisão 1.ª edição Tiragem Depósito legal Impressão e acabamento

Helena Roldão, Paulo J. S. Barata Abril de 2016 800 exemplares 409319/16 Gráfica Maiadouro SA Rua Padre Luís Campos, 586 e 686, Vermoim 4471-909 Maia


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Prologus

Não podemos regressar ao passado. O que aconteceu já não volta. O passado deixa sinais, mas quanto mais longe está do presente, mais meios de representação exige; os sinais revelam o seu sentido, mas à custa de «traduções». As técnicas de representação com que tentamos restaurar o passado não lhe restituem a vida. Podemos, quando muito, aperfeiçoar as nossas reconstruções, mas não chegamos nunca a saber até que ponto o imaginário se aproxima da realidade. Recorremos a métodos cada vez mais diversificados e especializados, mas não podemos demonstrar coisa alguma: recorremos à química para analisar os pigmentos da cor; contamos os dias e meses para calcular a data da Páscoa; comparamos os manuscritos para verificarmos a exactidão do texto recebido; avaliamos a verosimilhança das crónicas; estudamos a simbologia das cores, insígnias e bandeiras; medimos o grau de certeza das hipóteses… A lista não tem fim. Estas operações aplicam aos vestígios do passado métodos racionais de interpretação. Mas podemos também recorrer a métodos intuitivos e emotivos. É o que fazemos ao tentar captar as mensagens do passado por meio da arte, do símbolo ou da vivência. Para isso é preciso cultivar o belo, recorrer às estratégias do coração, entregar-se à fruição do prazer estético, escutar a ressonância dos cânticos antigos. Por estes caminhos, procuramos a vibração do passado e não tanto a sua compreensão. Respeitamos o seu silêncio, reunimos as obras geniais, ou simplesmente belas, que nos deixou, deixamo-nos encantar pela fruição do seu fulgor, aprendemos a rezar e a contemplar. Para quem cultiva a vibração emotiva, o passado não perdeu a voz. Ao reunir numa exposição as Bíblias medievais que existem em Portugal, em acervos públicos, a Biblioteca Nacional dá voz a esses vestígios privilegiados do passado. Convida-nos a escutá-los, não tanto para compreender intelectual-

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mente a história que contam, como para recriar as emoções que outrora lhes deram vida. Para isso é preciso uma certa iniciação. Mas, uma vez vivido o sagrado, os fragmentos que o materializam não cessam mais de desafiar o desejo. Chamam-nos para mostrar aspectos novos da sua mensagem e convidam-nos a sentir a sua unidade. As obras de Ilda David, expostas com as Bíblias medievais, representam uma ressonância contemporânea, concreta, igualmente palpável, como os próprios códices, da mensagem divina, mediante a leitura que ela fez. Convidam-nos a experimentar o nosso «silêncio de leitura», ou seja, a deixar que a semente do verbo interior frutifique em imagens ou sons, e, por meio deles, alimente a nossa comunhão com Deus. O simples facto de se reunirem umas dezenas de Bíblias dos séculos XII e XIII, de podermos vê-las, folheá-las, palpá-las, compará-las, cria uma ponte nova entre o passado e o presente. O que parecia silêncio definitivo pode tornar-se, para quem se deixa seduzir pela sua contemplação, música recordada depois de esquecida. Por alguns dias, os códices acordam da sua letargia nas prateleiras das estantes. Paralisados durante décadas, escondidos debaixo do pó, reduzidos a cotas numéricas como tatuagens de presidiários, recordam agora, pelo simples facto de existirem, os ofícios divinos, as cerimónias litúrgicas, a salmodia e o canto gregoriano que, por meio deles, se celebravam. Para quem os olha racionalmente, não passam de códices pergamináceos. As suas formas são diferentes, mas o conteúdo é o mesmo. Mas, se os deixarmos falar, se permitimos à nossa imaginação representar as comunidades que os criaram e usaram, então damos conteúdo à História. Projectamos o filme de que foram actores, escutamos a melodia ou a polifonia dos seus cânticos, admiramos as longas horas que os copistas e iluminadores passaram a copiá-los, sentimos o respeito com que os reis, príncipes e prelados os encomendaram, receberam e verificaram se eram dignos de materializar a liturgia sagrada.

Nesta exposição encontramos dois tipos diferentes: além dos códices monumentais que materializam a sacralidade da Palavra de Deus, há os códices mais pequenos, num volume só mas com o texto completo, com iluminuras muito mais reduzidas, muito diferentes, pois, das Bíblias solenes do século XII.

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São as Bíblias portáteis usadas sobretudo pelos mestres das universidades, que viajavam frequentemente e tinham de comentar a Sagrada Escritura, mas também pelos monges, frades mendicantes e clérigos que não podiam assistir aos ofícios divinos, mas tinham, nesse caso, de rezar sozinhos, em silêncio, onde quer que estivessem. As «Bíblias de bolso» passaram então a ser produzidas e vendidas por copistas profissionais. Olhamos com espanto a sua letra minúscula e perguntamos por que razão não dividiam o texto em mais do que um só volume. Talvez porque a unidade compacta do texto representava a unicidade sagrada da Palavra divina, do Logos, do Verbo. O trabalho analítico dos teólogos não devia afectar a totalidade e a eternidade do seu sentido. Sem palavras, as Bíblias convidam-nos, pois, a viver espiritualmente o diálogo com Deus, quer dizer, a unir num só tempo – o momento presente e o eterno – a interpelação intemporal do Verbo a toda a Humanidade. Todavia, a presença conjunta dos volumes medievais induz só por si uma potencialidade própria. Os especialistas da teologia e da cultura bíblicas interessar-se-ão, provavelmente, pela fidelidade do texto transmitido nestes códices, e verão, decerto, nesta exposição a oportunidade de os comparar entre si. Os estudiosos da iluminura descobrirão aqui motivos decorativos, cenas historiadas, aparato visual, cuidado no pormenor, fantasia ou realismo, simbologia multiplicadora de representações novas e antigas, ideias e conceitos semelhantes ou diferentes, mas sempre mais complexos do que até aqui pensavam os especialistas. Os conhecedores da história monástica apreciarão novos elementos acerca da vida quotidiana e da cultura material que estes espantosos e monumentais códices solenes fazem ver só por si. Os historiadores da teologia examinarão as «Bíblias de bolso», com a sua letra minúscula, mas não deixarão de analisar as pequeninas e delicadas iluminuras, procurando averiguar a sua eventual relação simbólica com o texto visualmente monótono ou, porventura, uma função mnemónica destinada a quem queria saber alguns capítulos de cor. O uso da Bíblia do século XII para o XIII transforma, pois, a sua aparência material. Através da sua forma os códices transportam-nos ao tempo que os criou. Uns ao Opus Dei, ao cântico contínuo do ofício divino, à oração contemplativa dos monges ou à obrigação que os príncipes têm de promover a criação de códices que simbolizem a origem divina do seu poder. Outros ao estudo

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universitário, à perscrutação dos múltiplos sentidos da Palavra (o histórico, o moral, o alegórico e o escatológico), com a ajuda dos comentadores que viajam e ensinam e que, por isso, compram os minicódices portáteis aos seus copistas profissionais. Com os nossos olhos e as nossas mãos, vemos e tocamos o infinito respeito do monge pela Palavra sagrada sob a forma de cântico. E também, com os mesmos olhos e as mesmas mãos, o mesmo respeito pela mesma palavra, mas sob a forma de enigma que requer explicação. Sob aparências diferentes, a Palavra é sempre única. Não se pode dividir, recortar, nem isolar. S. Pedro do Estoril, 18 de Março de 2016

José Mattoso

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As Bíblias Românicas


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Os manuscritos bíblicos do final do século XI e século XII constituem uma das mais significativas expressões artísticas do Românico. As suas iluminuras preservam a luz e a qualidade da paleta medieval, e testemunham uma criatividade surpreendente no domínio do desenho e da construção de formas, nomeadamente nas elaboradas composições de iniciais de grande aparato visual. A reforma da Igreja iniciada pelo Papa Gregório VII e o surgimento de novas ordens religiosas de particular sucesso como a de Cister intensificaram a produção de livros em geral, e de Bíblias em particular; gradualmente, as livrarias das Casas religiosas cresceram consideravelmente. Produzidos nos scriptoria monásticos por copistas e iluminadores, estes manuscritos destinavam-se, essencialmente, à formação dos monges e a suprir as necessidades litúrgicas das comunidades. O estudo da Sacra Pagina, todavia, fazia-se a partir dos comentários dos Padres da Igreja e, a partir do século XI, também das Bíblias glosadas. Em regra os livros estavam distribuídos por vários volumes, de tamanho imponente, sendo frequente o Saltério ser copiado num volume em separado. Escritos em latim e sobre pergaminho, os livros bíblicos são assinalados com grandes iniciais, construídas e ornadas com motivos vegetalistas e geométricos; com alguma frequência surgem ainda criaturas fantásticas, seres antropomórficos e, também, cenas e personagens bíblicas. Em termos ornamentais, o programa de cada Bíblia é muito rico e variado, mas primus inter pares é, sem dúvida, a iluminura que abre o Livro do Génesis. Do ponto de vista textual, as Bíblias do Românico variam consideravelmente na ordem dos textos, prólogos e capítula, sendo de sublinhar, todavia, que é a versão de S. Jerónimo a ser comummente usada. Beneficiada com posteriores revisões,

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nomeadamente a de Estevão Harding (abade de Cister de 1109 a 1133), e amplamente divulgada, esta versão passou a ser conhecida como Vulgata no século XVI1. Lovaina, 24 de Março de 2016

Xavier van Binnebeke

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J.J.G. Alexander, Medieval Illuminators and Their Methods of Work, New Haven 1992; F. Avril, X. Barral i Altet, D. Gaborit-Chopin, Le Monde roman 1060-1220, Paris 1982-83; W. Cahn, Romanesque Bible Illumination, Ithaka 1982; —, Romanesque Manuscripts: the 12th Century, London 1996; C. de Hamel, The Book. A History of the Bible, London 2011; O. Pächt, Book Illumination in the Middle Ages, London 1986; Geschichte der Buchkultur. Romanik, ed. A. Fingernagel, Graz 2007; The New Cambridge History of the Bible. From c. 600 to 1450, eds. R. Marsden, E.A. Matter, Cambridge 2012 (art. F. van Liere); Comment le Livre s’est fait livre. La Fabrication des manuscrits bibliques (IVe-XVe siècle), ed. C. Ruzzier, X. Hermand, Turnhout 2015 (art. G. Mariéthoz).

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1. Bíblia Sacra Latina, «Génesis».

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2. Bíblia Sacra Latina, «I Macabeus».

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3. Bíblia Sacra Latina, «Jeremias».

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4. Bíblia Sacra Latina, Tábuas de concordância evangélica.

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«Génesis» I, 3-31.

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«Êxodo» XXXII, 7-8.

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«Josué» I, 2-3, 8.

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«Rute» II, 5-7.

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5. Bíblia Sacra Latina, «Deuteronómio».

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6. Bíblia Sacra Latina, «II Reis».

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7. Bíblia Sacra Latina, «Job».

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«I Reis» I, 1-3, 15.

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«Esdras» I, 7-8.

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«I Crónicas» XV, 28-29.

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28. Bíblia Sacra Latina, «Daniel».

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29. Bíblia Sacra Latina, «Salmos».

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36. Bíblia Sacra Latina, «Génesis».

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37. Bíblia Sacra Latina, «Génesis».

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«Mateus» XXVI, 18-21.

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«Lucas» II, 4-7.

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«Actos» I, 8-9.

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«II Timóteo» I, 1-3.

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«III João» I, 13-15.

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«Apocalipse» XX, 5-6.

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pp. 54-55 56-57 60-61 62-63 64-65 66-67 68-69 70-71 72-73

17. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BNP ALC. 458, ff. 3v-4 18. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BPE COD. CXXIV/1-6, ff. 2v-3 19. Bíblia Sacra Latina, «Salmos». BNP ALC. 455, ff. 177v-178 20. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BNP ALC. 205, ff. 4v-5 21. Bíblia Sacra Latina, «Cântico dos Cânticos». BNP IL. 34, ff. 197v-198 22. Bíblia Sacra Latina, Prólogo. BA MS. 52-XII-37, f. 1 23. Bíblia Sacra Latina, «Êxodo». BA MS. 52-XII-33, ff. 21v-22 25. Bíblia Sacra Latina, «Isaías». BNP IL. 51, ff. 218v-219 26. Bíblia Sacra em francês, «Juízes». BPE COD. CXXIV/1-1, ff. 127v-128 27. Bíblia Sacra Latina, «Jeremias». BNP IL. 93, ff. 298v-299

74-75 76-77 78 79

Ilda David, «Isaías» XXXIII, 19-20. Acrílico sobre tela, 40 x 60 cm Ilda David, «Jeremias» LI, 1-2. Acrílico sobre tela, 40 x 60 cm Ilda David, «Ezequiel» X, 7. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm Ilda David, «Daniel» VI, 20-22. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm

80-81 82-83 84-85 86-87 88-89 90-91 92-93 94-95

28. Bíblia Sacra Latina, «Daniel». BPE COD. CXXIV/1-7, ff. 339v-340 29. Bíblia Sacra Latina, «Salmos». BNP IL. 50, ff. 235v-236 30. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BPE COD. CXXIV/1-5, ff. 4v-5 33. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BPE COD. CXXIV/1-4, ff. 2v-3 34. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BNP ALC. 457, ff. 4v-5 35. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BNP IL. 20, ff. 2v-3 36. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BNP IL. 63, ff. 4v-5 37. Bíblia Sacra Latina, «Génesis». BPE COD. CXXIV/1-3, ff. 3v-4

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Ilda David, «Mateus» XXVI, 18-21. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm Ilda David, «Lucas» II, 4-7. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm Ilda David, «Actos» I, 8-9. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm Ilda David, «II Timóteo» I, 1-3. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm Ilda David, «III João» I, 13-15. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm Ilda David, «Apocalipse» XX, 5-6. Acrílico sobre tela, 40 x 30 cm

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Representação, paisagem & figura

É impossível não reparar no impacto plástico produzido pelo fundo das pinturas de Ilda David. As figuras são certamente muito importantes, e para mais quando se trata, como aqui, de estabelecer um diálogo com a galeria de personagens que o códice bíblico contém. Mas os fundos revelam um trabalho de composição que não é apenas tributário da narrativa figural: em si mesmos configuram um gesto, uma tomada de posição e um programa. Na verdade, nas pinturas de Ilda David não é a natureza que se vê ao fundo, embora apressadamente o possamos pensar. Quando julgamos reconhecer o relevo da terra, os seus recortes insinuantes e inexplicados, as suas aberturas por desfiladeiros e grutas, as formas tão familiares da vegetação ou até o modo como a luz incide sobre linhas e caminhos, verdadeiramente não é o relevo da terra, nem os detalhes morfológicos, nem o azulado dos bosques que os nossos olhos avistam. Avistam sim aquilo que Georg Simmel caracterizava como «um peculiar processo espiritual»: a distinção entre natureza e paisagem. A natureza é um território extrínseco ao homem, um fenómeno físico independente dele, mesmo quando acolhe elementos construídos. A paisagem descreve-se, no pólo oposto, como percepção, estado de espírito. Não mostra o mundo, mas o estar no mundo. A natureza reflecte o nexo ininterrupto que liga todas as coisas. Ela é a unidade do acontecer expressa na continuidade espacial e temporal. Por isso, por exemplo, falar de fragmentos de natureza é, em rigor, uma contradição em si. A natureza não tem fragmentos, nem fracções, nem percursos particulares, nem indivíduos. A natureza não tem biografia: ela só pode existir como conjunto, exibindo uma unidade absoluta, sem fronteiras. A paisagem é o inverso disso: ela é essencialmente demarcação. Num golpe que, sendo óptico, não deixa também de ser estético e espiritual, reivindica-se a possibilidade de desenhar parcelas, referir pontos de passagem, narrar apenas a

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parte, considerar o excerto como susceptível de ligar-nos ao todo, o que se afasta completamente do conceito de natureza. Simmel dá um nome a esta transição de natureza a paisagem: chama-lhe contemplação afectiva, pois nela o eu que vê coincide com o eu que sente. «Contemplação afectiva» é um belo nome para designar o que a pintura de Ilda David partilha connosco. O seu método de aproximação ao texto bíblico e aos seus ecos, sempre mais proliferantes à medida que os escutamos, passa por recolher-se (e recolher-nos) a uma contenção que afectuosamente contempla, sem mais. Sem juízos que descosam o enigma. Sem respostas que diluam a pergunta. Sem representação que se intrometa no silêncio que cada cena tinha antes e terá depois da leitura.

E a mesma «contemplação afectiva» encontramos, imagem a imagem, no que respeita às figuras. O termo figura tem a mesma raiz etimológica de fingere, figulus, fictor e effigies, palavras que semanticamente se explicam como alusões à «forma plástica», embora figura seja ao mesmo tempo mais concreta e mais dinâmica do que forma. Assim em Aristóteles, mesmo quando o uso de figura ganhou o sentido de «selo impresso», suponha-se que tal ocorresse no interior de um movimento (De memoria et reminiscentia, 450a, 31: he kinesis ensemainetai hoion typon tina tou aisthematos [o movimento implica uma certa impressão da coisa sentida]). E do mesmo modo em Lucrécio, quando figura se impõe com o significado de «cópia», o mínimo que se pode dizer é esta vir sugerida numa acepção absolutamente invulgar, pois refere não aquilo que é imóvel e se pode reencontrar no acto do reconhecimento, mas sim as estruturas que se desgarram das coisas como películas (membranas) e flutuam no ar. Por isso ninguém estranhou que ainda Lucrécio tenha empregado pela primeira vez o termo figura como «visão de um sonho», «imagem da fantasia» ou «fantasma». Como dizia Varrão, ducere consuescat multas manus una figuras [Que uma única mão se acostume a produzir muitas figuras] (Ars amoris, 3, 493). O que faz Ilda David em relação às figuras bíblicas? Podemos constatar que a sua mão acostumou-se, no projecto excepcional que foi revisitar figuralmente a primeira e magnífica tradução da Bíblia em língua portuguesa, a pro-

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duzir muitas figuras. Figuras que são a todo o momento selos, efígies, moldes, visões oníricas ou fantasmas das próprias figuras. Dito isto falta referir uma dimensão fundamental e que é porventura a marca secreta e intensíssima destas pinturas. Essa dimensão que Erich Auerbach foi tão bem cotejar nos Padres da Igreja, Tertuliano à cabeça, a propósito de figura. É que figura não se esgota no retorno a um passado, recuperando-o de diversos modos. Figura indica igualmente – e será esse porventura o seu significado mais determinante – a representação concreta de algo que vai realizar-se no futuro. Figura é então uma representação real e histórica que anuncia outra coisa que também é histórica e real. Figurar passa a ser sinónimo de profetizar. Em conclusão: a força destas imagens de Ilda David não estará tanto no gesto de documentar o que foi, mas na ousadia de colocar-nos à espera do que será. A pintura é uma máquina revelatória. José Tolentino Mendonça

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As livrarias de dois grandes coleccionadores: frei Manuel do Cenáculo e D. Francisco de Melo Manoel da Câmara

A constituição da Colecção de Iluminados da Biblioteca Nacional de Portugal deveu-se fundamentalmente à incorporação das bibliotecas particulares de dois distintos bibliófilos setecentistas, que reuniram duas das mais notáveis livrarias existentes em Portugal, acompanhando a tendência de incremento de bibliotecas particulares que se verificou na Europa, nos séculos XVII e XVIII. Em primeiro lugar, distingue-se sem dúvida a extensa e valiosa doação de frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas (1724-1814), bispo de Beja (mais tarde arcebispo de Évora), figura maior do Iluminismo português, fundador e mecenas das principais bibliotecas do Reino, a qual foi oficializada em 24 de Março de 1797, por carta ao Príncipe Regente 1, e levada a cabo, em várias fases de transferência, entre os meses de Dezembro de 1796 e Janeiro de 1798. Esta doação representaria, de facto, uma componente essencial do acervo da Real Biblioteca Pública da Corte (RBPC) nas várias ordens dos saberes, durante os primeiros anos de funcionamento da instituição e integrava numerosas obras impressas e manuscritas, que se contam hoje entre os maiores tesouros bibliográficos nacionais 2. Carta autógrafa de frei Manuel do Cenáculo, assinada e datada de Beja, 24 de Março de 1797, oferecendo a D. João VI a doação dos seus livros e do seu Monetário para a Real Biblioteca Pública de Lisboa ( COD. 11522, ff. [3-4]). 2 No «Livro das Doações Gratuitas que se fazem à Real Bibliotheca Publica da Corte» encontra-se o seguinte registo (sem indicação de data): «O Ex.mo e R.mo D. Fr. Manoel do Cenáculo Villasboas, Bispo de Beja, do Conselho de S. Mag. de Mestre que foi dos Sereníssimos Príncipes D. Jozé, e D. João, e Prezidente da Real Meza Censória, e da Junta do Subsidio Literário, Varão dotado de todas as boas partes, cheio de efficacia, e Zello pela honra da Religião, pela gloria da Pátria, pelo augmento, e esplendor das Artes, e das Sciencias, tendo illustrado a todas ellas com suas obras de altíssima doutrina, e de Vastíssima erudição, e querendo que a parte mais precioza das riquissimas Colecções de livros, e de Antiguidades, que a sua deligencia soube ajuntar com excessivas despezas, e trabalhos no espaço de m.tos annos, houvesse de ficar sempre em hum depozito seguro, donde podesse aproveitar a todos os prezentes, e Vindouros; sacrificou generozam.te o seu interesse e o seu próprio gosto, e entretenimento ao bom publico da Nação, e doou liberalm.te a esta Real Bibliotecha o seg.te […] Hua Collecção de Mss. pertencentes 1

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O registo e descrição pormenorizada das espécies doadas iria consubstanciar-se quer no catálogo de obras manuscritas e impressas enviado inicialmente pelo doador 3, quer nos restantes catálogos, elaborados já na Real Biblioteca durante (ou após) a doação. Estes últimos, com o título Catalogo Methodico dos Livros que o Ex.mo e R.mo D. Fr. Manoel do Cenaculo Villas-boas Bispo de Beja doou à Real Bibliotheca Publica da Corte no anno de 1797, formam um conjunto de quatro tomos, abrangendo os dois primeiros as obras impressas e o terceiro e o último as obras manuscritas, ordenadas por grandes secções temáticas 4. Do conjunto de 30 manuscritos iluminados que integravam a doação, alguns são exemplificativos da qualidade das escolas de iluminura estrangeiras, sobretudo francesa, como o Missal de Saint Martin d’Este 5, missal de altar datado de 1402, ou a Bíblia Sacra Latina 6 da segunda metade do século XIII, em velino e profusamente ornamentada com iniciais historiadas e ornadas, igualmente de produção francesa e descrita nesta obra. A proveniência da Colecção de Cenáculo foi registada (em muitas das espécies) com a marca de posse manuscrita «Beja», assim identificada há alguns anos por comparação com as indicações patentes no catálogo já mencionado. Algumas décadas depois, a livraria de D. Francisco de Melo Manoel da Câmara (1773-1852) foi adquirida (por compra) pela Biblioteca Nacional de Lisboa em 9 de Março de 1852 a seu filho, D. João de Melo Manuel da Câmara Medeiros (1800-1883), 1.º conde da Silvâ, pelo valor de 25 mil cruzados (o equivalente a 10 contos de réis). Integrava cerca de 50 incunábulos, edições quinhentistas e seiscentistas extremamente raras, e um valioso conjunto de 35 manuscritos iluminados, tesouros bibliográficos únicos. Segundo Camilo Castelo Branco, citado por Raúl Proença 7, a livraria teria sido organizada por um antepassado, D. Francisco Manuel de Melo, alcaidea cada hua das Artes, e Sciencias, que constão do Catalogo também Methodico, q se fez em um Volume de folha.»; o Livro das Doações (1803-1863) tem a cota BNP/AHBN/AC/DOA/02/Lv.01. 3 Copia do Catalogo dos Livros que o Exmº e Revmº Bispo de Beja pertende remeter para a Real Bibliotheca Publica da Corte (transcrição do título autógrafa de António Ribeiro dos Santos): COD. 11524. 4 BNP COD. 11522-11525. 5 BNP IL. 86. 6 BNP IL. 93. 7 Raúl Proença, «Bibliófilos e bibliógrafos: A livraria de D. Francisco Manuel», Anais das Bibliotecas e Arquivos, II série, volume 1, n.º 4, Out/Dez. 1920, pp. 302-306.

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-mor de Lamego falecido em 1719. Sinal da relevância desta aquisição para a Biblioteca Nacional foi também o facto de ter constituído uma secção especial conservada à parte, situação que se manteve até 1888, ano em que António Enes, à data Inspector-Geral das Bibliotecas e Arquivos, ordenou que as espécies fossem integradas nas diversas colecções de livro antigo e manuscritos já organizadas, tendo-se assim disseminado fisicamente a livraria. As descrições das obras encontram-se reunidas num volumoso catálogo manuscrito, datado de 18528, ordenado alfabeticamente por nome de autor; é constituído por uma «secção» principal e dois suplementos, que referenciam as obras impressas, e no final integra o «Catalogo dos Manoscritos». Em grande parte dos livros foi aposto um ex-líbris em forma de carimbo oblongo com a inscrição: «Livraria de D. Franc. Manuel», ficando assim registada a proveniência, informação fundamental para a reconstituição da sua história. Alguns dos manuscritos exemplificam o esplendor das escolas de iluminura francesas e italianas, como o magnífico Missal Carmelita do século XIV9. Além de sete Livros de Horas, salientam-se as cinco Bíblias10, de reconhecida excepcionalidade artística, nomeadamente as «parisienses» que se descrevem nesta obra. No contexto das selectas doações e aquisições que se constituíram como o vasto núcleo inicial da RBPC, é de salientar sem dúvida o contributo destes dois acervos para a consistência e valorização das colecções de Iluminados, onde pontuam alguns dos maiores tesouros do património bibliográfico nacional. Teresa Duarte Ferreira Ana Cristina de Santana Silva Lígia de Azevedo Martins Serviço de Colecções de Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal

8 Proveniente do Arquivo Histórico da Biblioteca Nacional, este catálogo foi incorporado na Colecção

de Códices, onde detém a cota COD. 11590. No mesmo Arquivo Histórico existem mais dois catálogos desta livraria, de 1852. Vd. Maria Madalena Garcia e Lígia de Azevedo Martins, Inventário do Arquivo Histórico da Biblioteca Nacional: 1796-1950. Lisboa: BN, 1996, p. 108. 9 BNP IL. 112. 10 BNP IL. 33, 34, 50, 51, 63.

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edição Luís Correia de Sousa textos José Mattoso Xavier van Binnebeke Luís Correia de Sousa José Tolentino Mendonça Teresa Duarte Ferreira Ana Cristina de Santana Silva Lígia de Azevedo Martins

D O C U M E N TA

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IN PRINCIPIO A Bíblia Medieval em diálogo com a pintura de Ilda David

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