DuBose Heyward, Porgy e Bess

Page 1


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 20


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 20


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 4


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 5

DuBose Heyward

PORGY E BESS

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 20


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 7

Diz-se «o romance do Sul» para separar alguns títulos na vastidão da literatura norte-americana, e não é cuidado que escolha apenas o escritor pela sua geografia natal. É, nos autores dominados por essa geografia, o canto da languidez e do ar quente das plantações, do desejo à flor da pele numa paisagem de sol, de uma sociedade de morais arbitradas pelo conservadorismo e pelo racismo; é, se pudéssemos ouvir os sons de uma linguagem na sua forma escrita, um arrastar de ritmos mais doces e nasalados nesse inglês sem ênfase que nasceu no outro lado do Atlântico; mas também uma reconhecível família de ficções dominadas pelas atitudes e pelos discursos melancólicos dos vencidos na Guerra da Secessão. Os primeiros desta família, como é o caso de Ellen Glasgow, exercitaram-se a ver de perto a humilhação enobrecida de homens do Sul que já se aplicavam a construir o seu mito. Mas foi o enorme best-seller de uma escritora com talento menor e de romance único, Margaret Mitchell, que em 1936 marcou com grandes eficiências de cenário e de personagens esta época ligando-a a um título nostálgico: Gone with the Wind. Senhores aristocráticos viviam a derrota do seu mundo ainda marcado por matizes byronianos e gestos cavalheirescos, tinham uma dolorosa sobrevivência no novo Sul hostil aos valores da sua civilização de proprietários ricos e esclavagistas, entretidos por uma vida social de bailes em mansões com frontarias colunadas à grega.


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

8

4/5/13

10:40 AM

Page 8

A p r e s e n ta ç ã o

Os escritores deste episódio e das ruínas de um mundo derrotado pelas ideias do emancipador Abraham Lincoln, deram lugar a outros — de um Sul mais apaziguado na sua construção democrática mas racista e com tradições diluídas numa igualdade falsa e só imposta pela força da lei. Os escritores deste novo Sul, surgido do pouco não levado pelo vento, são Erskine Caldwell, Carson McCullers, Truman Capote, Robert Penn Warren, Flannery O’Connor, exemplos concensualmente maiores e acrescentados por William Styron, herdeiro literário daquele que acima de todos deve citar-se, William Faulkner, Prémio Nobel e autor do Sul explicado numa entrevista de 1953: «Uma terra violenta feita de extremos, tanto pelo clima como pelo carácter das pessoas que lá vivem. Nela reina sempre o espírito de Fronteira. […] Ter-se-á de acrescentar que perdemos uma guerra, fomos um país ocupado, e a memória desta guerra ainda está entre nós muito viva, e os sofrimentos que ela engendrou e provocou no Sul dão origem a uma hipersensibilidade.» Como seria de esperar, esta literatura «hipersensível» tem entre as mais visíveis referências romanescas o peso de um dos seus incómodos, as relações das comunidades branca e negra que podemos encontrar com a sua quente dualidade sensual (Other Voices Other Rooms de Truman Capote), com a tirania sádica da criada negra (The Member of the Wedding de Carson McCullers), com o exibicionista orgulho do negro emancipado (A House in the Uplands de Erskine Caldwell), com a ferocidade de um racismo de dois sentidos que culmina no linchamento (Light in August de William Faulkner) ou, em sentido contrário, na violação da mulher branca (Trouble in July do mesmo Erskine Caldwell), com o empobrecimento do homem das plantações (levado até à abjecção em To-


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

A p r e s e n ta ç ã o

10:40 AM

Page 9

9

bacco Road, ainda de Erskine Caldwell)… Mas subjacente a estas histórias de violência e sensualidade, a resignação do sulista perante o sacrifício inútil (muito sentido nas personagens de Faulkner). Estes conflitos servem uma literatura em muitas das suas páginas cruel, e que em dois momentos de suprema audácia pôde atrever-se à violação com a espiga de milho em Sanctuary de Faulkner e ao canibalismo de «Desire and the Black Masseur», um conto de Tennessee Williams onde o negro restringido a objecto de prazer, e com o seu papel no ritual dos sentidos determinado pela Expiação, devora o branco que o deseja. São histórias de um Sul tumultuosamente vivido por relações de amor-ódio, que parece não poder esquecer-se da derrota humilhante na Guerra da Secessão nem da impertinente liberdade concedida aos negros; que vive num novelo de sentimentos contraditórios, nunca desembaraçado pelo esforço dos seus autores e que resiste a explicações simplistas; o que está atrás da pergunta que enfatiza o final de Absalom! Absalom!, o romance de William Faulkner: «Tu, por que odeias o Sul?» São muitas as vozes desta literatura. Maiores as já referidas, e acrescentadas por outras menores ou de acidental presença — menores as de William Goyen, por exemplo, com inocências e solidões pouco salvas pelos seus esforços formais, ou as do Fred Chappell de It Is Time Lord e do Reynolds Price de Permanent Errors, ou as de Georges Carret e William Humphrey… — de acidental presença a que encontra bom exemplo em Harper Lee escritora de um só livro, To Kill a Mockinbird, autora incapaz de vencer a batalha de um segundo romance sem a ajuda de Truman Capote, em tempos de grande amizade benemérito por ter acedido a melhorar a sua história com oficina e talento próprios, reconhecidos depois como de Harper Lee pelo Pulitzer Prize.


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

10

4/5/13

10:40 AM

Page 10

A p r e s e n ta ç ã o

Mas há neste capítulo o caso singular de DuBose Heyward, a quem nos apetece chamar o sulista refém de George Gershwin (prova disso é esta tradução chamar-se Porgy e Bess, e não apenas Porgy); com o melhor dos seus romances sufocado por uma ópera popular e momentos musicais que surgem dentro dela com grande força autónoma: Summertime, I Got Plenty O’ Nuttin’, You Is My Woman Now ou It Ain’t Necessarily So. O Sul de Heyward é a Carolina de Charleston (onde ele nasceu em 1885), nunca mencionado no romance mas identificável pelas referências toponímicas do cenário; historicamente conhecido como centro de resistência sulista e primeiro Estado secessionista, só em 1868 reintegrado na União. DuBose Heyward orgulhava-se de ter nos seus antepassados Thomas Heyward Jr. (um dos assinantes da Declaração de Independência dos Estados Unidos como representante da Carolina do Sul), e não lhe desagradaria ver-se também ele reconhecido como eminente defensor da dignidade democrática do seu país. Exemplos históricos mostravam-lhe que talvez não fosse grave, em terras onde se cultiva o prestígio do homem por si próprio feito, ter abandonado o ensino oficial com catorze anos de idade («fui um miserável estudante», reconheceria mais tarde, quando lhe pediram para falar de si). A derrocada de muitos dos seus sonhos esteve bastante mais na sucessão de enfermidades graves — ainda mais graves na época em que ele viveu — que o destinaram desde os dezoito anos de idade a intermináveis períodos de debilidade física: a poliomielite que passava pouco depois testemunho a uma febre tifóide, e a seguir a uma pleuresia, as más companhias que em Junho de 1940 não determinaram, como seria de esperar, a sua morte; e que foi decidida, afinal, por um ataque cardíaco.


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

A p r e s e n ta ç ã o

10:40 AM

Page 11

11

Para desfazer a solidão destas convalescenças de caminhada lenta, desviado no mais vital período da sua vida das agitações que entusiasmavam a juventude americana da «era do jazz», DuBose recorreu ao solitário exercício da escrita. Gostava de ler. Gostava de escrever. E nesta resposta literária tinha como apoio forte a sua mãe artista, intérprete de canções Gullah numa sociedade de amadores. Em 1913, com vinte e três anos de idade mostrou-se a Charleston como autor da peça em um acto An Artistic Triumph, logo depois levada à cena num teatro local; e cinco anos mais tarde uma revista de reduzida tiragem aceitou o seu conto «The Brute». De mais nove anos este escritor lento precisou para preparar a sua estreia como poeta — poeta de sopro negro — o do livro localmente apreciado Carolina Chansons, Legends of the Low Country; e trabalho de mais três anos exigiu de si próprio para chegar em 1925 a Porgy, o seu primeiro (e também mais célebre) romance, a sua primeira obra com repercussão nacional. Heyward sentia-se pouco seguro perante as complexidades da escrita de um romance, como se depreende dos versos que antecedem a sua história. Mas Porgy deu-lhe a surpresa de conseguir fazer-se assinalável êxito, quer por adesão do público, quer por atenção da crítica — e deve ser levado em conta que foi também o ano de Manhattan Transfer de John dos Passos, The Great Gatsby de Scott Fitzgerald, An American Tragedy de Theodore Dreiser e The Making of Americans de Gertrude Stein. A Heyward talvez não fosse reconhecido um talento equiparável ao destes escritores que o país já instalava (com maior ou menor complacência) na sua primeira fila, mas aparecia como um olhar novo sobre as relações entre as comunidades branca e negra num Estado de cenho carregado perante as liberdades impostas pela vitória do Norte; e também era — em-


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

12

4/5/13

10:40 AM

Page 12

A p r e s e n ta ç ã o

bora só mais tarde pudesse perceber-se — precursor do chamado Romance do Sul. DuBose Heyward anunciava essa família literária onde mais alto iriam falar Caldwell, McCullers e Faulkner; e mostrava-se já como primeiro corpo vivo sobre o cadáver de Uncle Tom’s Cabin de Harriet Beecher Stowe («um romance ditado por Deus», tinha dito a sua autora), sobre as lágrimas e a piedade que ele continuava, com pouca eficácia, a implorar aos leitores sete dezenas de anos adiantados sobre a data da emancipação dos escravos. Pode também dizer-se que DuBose Heyward se sentiu depois de Porgy realizado. Porque tinha feito a conquista de um lugar entre os que sobressaíam nesse ano nas letras norte-americanas (até Langston Hughes, um escritor negro — o que era relevante neste caso — fazia notar que os seus «olhos “brancos” davam vida às maravilhosas qualidades poéticas dos habitantes da Catfish Row»); porque a sua inaptidão para negócios encontrava num amigo qualidades que a si próprio faltavam, ideais para o êxito da companhia de seguros que o tinha como sócio; porque vivia horas de criador protegidas pela sua esposa Dorothy, sua incondicional apoiante e co-autora em duas obras teatrais inspiradas pelos seus romances. O êxito de Porgy ficou em grande parte a dever-se a algumas singularidades da sua história e do seu cenário; ao exotismo «caseiro» de bairro negro; aos momentos — de um ritual fúnebre, de um cortejo festivo, de uma floresta, de uma tempestade — onde o autor se exibe com grande eficácia descritiva; a um par amoroso sem graças físicas que se sobreponham à desgraça de membros mal conformados e a uma desfiguradora cicatriz na face; à indiferença pela boa regra do assassino castigado; à recusa em não instalar Porgy e Bess entre os apaixonados trágicos que alimentam a lista dos «imortais do amor».


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

A p r e s e n ta ç ã o

10:40 AM

Page 13

13

Em Porgy e em Bess não vemos características que confiram ao seu caso uma tal dimensão. Pressentimos em Porgy o aleijado reconhecido àquela que o faz sentir-se homem, honrado pela responsabilidade de defender a que é sua mulher — Bess, you is my woman now, diz-se com uma característica discordância entre o pronome e a pessoa verbal num dos temas mais conhecidos da ópera de Gershwin; e em Bess um «lado Carmen» sem a força romântica que enlouquece as personagens de Merimée, uma mulher que se confessa incapaz de resistir à qualidade sexual de Crown e só por oportunismo rasteiro ligada ao que pode dar-lhe casa e vesti-la com roupas de boa qualidade. A desgraça física de Porgy, com muitas referências directas ao longo do texto e indirectamente confrontada pelas descrições de esplêndidas virilidades, é acentuada pelo autor e só com uma aparente lealdade Bess convive com ela; o seu papel de mãe adoptiva, desempenhado com uma paixão que se diria insuspeita, vemo-lo facilmente traído quando julga terminado o apoio material de Porgy. O final do livro mostra-nos o Porgy ferido, o Porgy sem a Bess que há-de ser encontrada onde lhe forem oferecidos vinho, drogas e homens que sexualmente a satisfaçam. E este Porgy restituído à dimensão das suas incapacidades terá como único aliado o sol, o Sol que é deus no Sul. Porgy e Bess pertencem a um grupo humano humilhado na sua segregação de bairro negro, conformado com a superioridade social do homem branco, e que se defende destas fatalidades com a embriaguez do canto, com uma religiosidade cristã de mãos dadas com a magia, com uma languidez alimentada por calor e sol. Todo o livro vive sob o peso do clima temperamental de Charleston, que condiciona os sentimentos e os actos dos habitantes da Catfish Row. Cena a cena iremos saber se as personagens deste conflito são bati-


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

14

4/5/13

10:40 AM

Page 14

A p r e s e n ta ç ã o

das por calor, chuva ou vento; e a última frase do livro, para um Porgy envelhecido e vencido, invoca a força benfazeja do Sul, a que inunda o seu desgosto com «a ironia de um sol matinal». DuBose Heyward ainda mostrou neste romance a ambição de reproduzir fonética e sintacticamente a linguagem dos negros da sua terra. Quer em África, quer na América, a língua do colonizador ou do senhor construiu nos bairros negros especificidades cultivadas com um orgulho de raça, como marca de uma marginalidade que opõe a sua diferença à sociedade da cultura «branca». Em ambos os continentes os tempos verbais reduziram-se às formas mais simples do indicativo e do pretérito, foi consentida a discordância entre o número do artigo e do seu substantivo, do pronome e da pessoa verbal, e foi sobretudo cultivado um distúrbio nas regras que a língua erudita estabelece para as conjugações pronominais. No entanto, a distorção fonética a que vulgarmente se chama sotaque tem, no caso português, uma reduzida possibilidade de ser transmitida com aceitável verdade numa forma escrita. Por isso, nos diálogos entre negros esta tradução só chegou à tentativa de reproduzir as mais reconhecíveis formas da singularidade gramatical praticada nos bairros populares onde é falado um português «africano». Depois do Porgy romance, Heyward e a sua mulher Dorothy deram-lhe a forma teatral que em 1927 teve na Broadway a sua primeira representação cénica. E em 1929 DuBose acrescentou individualmente a sua carreira literária com Mamba’s Daughters, que também viria a ser adaptado ao teatro pela mesma dupla. Ainda publicou em 1931 a peça teatral Brass Ankle, e a seguir Star Spangled Virgin, o seu último romance, desta vez sem os negros da Catfish Row de Charleston e com uma sociedade nativa


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

A p r e s e n ta ç ã o

10:40 AM

Page 15

15

idílica a existir e a viver nas Virgin Islands. Nenhuma destas obras teve o êxito de Porgy, que voltou com força à memória do público quando George Gershwin compôs a ópera em três actos Porgy and Bess, baseada na sua versão teatral. Porgy and Bess estreou-se em Boston no mês de Setembro de 1935, e Gershwin mostrou um dos seus mais altos momentos de compositor nesta fusão de ópera à italiana com um show musical americano. As suas partes orquestrais não evitam evidentes lições de Debussy, Mussorgsky ou até mesmo Stravinsky, mas há da sua melhor e mais genuína veia nas canções, nos ritmos de jazz nostálgicos, nos sons de blue. Esta versão operática de Porgy amacia, porém, duas características marcantes das suas personagens centrais. O palco não só faz do aleijado Porgy um homem que apenas coxeia e usa bengala; não se atreve à cicatriz que desfigura o rosto de Bess. Pode no entanto considerar-se que a acção segue de bastante perto o texto original com a excepção da última cena, porque nos dá a saber que Bess foi com O Vida Airada para Nova Iorque, em vez de estar em Savannah com outros homens, e porque nos dá a entender que Porgy vai ter com ela em vez de se deixar, subitamente velho e vencido, ao sol quente do pátio da Catfish Row. Registe-se ainda que o cinema de Hollywood teve uma produção acidentada quando se lembrou em 1959 de Porgy e Bess e fez dele um dos últimos títulos da era dos filmes musicais. Apesar de James M. Hutchisson, biógrafo de DuBose Heyward, ter escrito que Porgy é «a primeira grande novela que retrata os negros sem condescendência», o movimento Black Power olhou para ela (e para a ópera que na sua história se inspirou) com activo desagrado. Via-os como paternalistas e subtilmente racistas; desaprovava a resignada e passiva oposição dos seus negros ao poder branco; que eles próprios se


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

16

4/5/13

10:40 AM

Page 16

A p r e s e n ta ç ã o

tratassem uns aos outros por nigger (forma pejorativa que em português tem próximo equivalente em «preto») e aos brancos chamassem com subserviência boss (patrão). Avisada sobre a inoportunidade de revigorar a história de Porgy e Bess através de um meio de tão forte divulgação como o cinema, a Columbia Pictures não deu ouvidos ao protesto. E na véspera do começo das filmagens surpreendeu-se com todos os seus cenários incendiados. Rouben Mamoulian, o primeiro encenador da ópera Porgy and Bess, tinha sido contratado para realizar o filme mas abandonou o projecto. E foi substituído à pressa pelo vienense Otto Preminger que cinco anos antes tinha realizado, com elogios da crítica e do público, Carmen Jones, uma polémica e negra versão da ópera de Bizet. O seu trabalho teve de contentar-se com pouco mais do que o cenário da Catfish Row, reconstituído a partir de cinzas. E, desta vez, as personagens centrais de Heyward ainda mais longe ficaram das propostas no romance: Porgy e Bess foram Sidney Poitier e Dorothy Dandridge, negros handsome entre os que o cinema americano algum dia mostrou. Lisboa viu-os no cinema Tivoli com o esplendor do formato 70mm, em Setembro de 1961. A.F.


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

O Porgy, a Maria e a Bess, O Robbins e o Peter e o Crown; Vida e harpa de três cordas Descidas da selva à cidade. Toadas vossas foram ouvidas Para a paixão, a morte, o berço, Fazendo-nos rir e chorar No cálido seio da terra. E agora com mãos inexpertas No extraordinário instrumento novo, Ordena-te um fogoso Deus Que estranhas canções ofereças. Que este Deus de Brancos e Negros Os nossos corações enobreça Para ficarmos preclaros E esta ária cantar.

Page 17


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 18


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

P R I M E I R A P A RT E

Page 19


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 20


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

10:40 AM

Page 21

Porgy viveu na Idade de Ouro. Não a Idade de Ouro de um passado distante e lendário; não a quimera de todos os homens com mais de meia idade, que só existe no coração da juventude; mas aquela época guardada como um tesouro, em que todos os homens numa antiga e formosa cidade que o tempo esqueceu, antes de a destruir, até chegarem a velhos são rapazes. Nesta cidade a Idade de Ouro persistia em muitas coisas, não sendo menor entre elas a profissão de mendigo. Era nesses dias uma profissão com tradições. Presumia-se que um homem mendigava por ter fome, como outro homem de mais vivo temperamento se fazia por causa idêntica estivador. O seu pedido de auxílio suscitava as singelas reacções de um impulso generoso, um movimento da mão e a dádiva de uma moeda, em vez dos elaborados e detestáveis procedimentos de uma filantropia organizada. Só ao próprio os antecedentes e a idade mental diziam respeito; e na maioria dos casos ele tinha, para aqueles e para esta, falta de memória. Se tudo isto fosse diferente, se Porgy tivesse aparecido uma geração ou um par de anos mais tarde, ter-se-ia repetido a velha tragédia do génio sem oportunidades. Porque, tal como o artista nasce com a visão da beleza e o comerciante com olho para o negócio, Porgy tinha obtido de uma benévola providência os dotes para a carreira da mendicidade. Em vez de pernas robus-


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

22

4/5/13

10:40 AM

Page 22

D u B o s e H e y wa r d

tas que o predestinariam à vida de estivador num dos grandes armazéns do cais, porque entrara no mundo com as extremidades inferiores totalmente incapazes especializara-se a atrair olhares e a inspirar a simpatia fácil dos que por ele passavam. Logo à nascença ou porque tivesse posto em prática uma certa filosofia de vida, adquirira uma personalidade impossível de passar despercebida, que despertava o interesse e ao mesmo tempo provocava um subtil incómodo. Qualquer coisa o diferenciava das hordas dos profissionais que competiam com ele na chamada de atenção aos corações sensíveis. Nos locais onde outros pediam com avidez que reparassem neles e se desfaziam em loquazes bênçãos e agradecimentos, Porgy mantinha-se em silêncio, ficava em êxtase. Havia qualquer coisa de oriental e místico na profunda introspecção do seu olhar. Nunca sorria e só agradecia esmolas erguendo lentamente olhos que continham estranhas sombras. Era um negro com aquela escuridão quase purpúrea do sangue puro do Congo. Tinha mãos muito grandes e musculosas, e mesmo ociosamente dobradas no colo pareciam fazer um formidável e chocante contraste com o seu corpo frágil. Se alguém deixasse cair uma moeda na sua escudela, só estando nesse momento invulgarmente preocupado não levaria como troco uma duradoura e algo inquietante sensação: de uma paciência infinita, e atrás dela a vibração de uma não consumada mas espantosa energia. Ninguém sabia qual era a idade de Porgy. Ninguém se lembrava em que altura tinha aparecido pela primeira vez entre as fileiras dos mendigos locais. Uma mulher que vinte anos antes se casara lembrava-se de o ver sentado nos degraus, quando entrara na igreja, e de o seu aspecto tê-la chocado.


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

Porgy e Bess

10:40 AM

Page 23

23

Uma vez, uma criança viu Porgy e disse inesperadamente: «Ele está à espera de quê?» E isto exprimia-o melhor do que qualquer outra coisa. Ele esperava, esperava com a intensidade de uma lente que concentra os raios do sol. Praticava a sua profissão com firmeza idêntica à de alguns homens de negócios e com respeitáveis cargos, que eram os seus clientes mais valiosos; e o primeiro a chegar de manhã à zona comercial encontrava-o encostado à parede da velha farmácia da esquina da King Charles Street e da Metting House Road. Um longo hábito que o seu olhar sensível ao belo tinha reforçado, afeiçoara-o ao lugar. Era seu costume sentar-se ali ao fresco das primeiras horas matinais, e através da estreita via pública olhar para o verde viçoso da Jasper Square onde crianças punham papagaios a voar e jogavam às escondidas no meio dos arbustos. Depois, com a manhã avançada e o sol a derramar um calor semitropical entre aquela correnteza de paredes de tijolo gémeas, para o deixar ali encurralado como um pantanoso charco de chamas, passava por uma agradável e atávica tranquilidade; e o pavoroso calor fazia-o dormitar ao de leve como só um negro de sangue puro consegue fazer. Ao princípio da tarde uma frágil sombra azul começava a crescer à sua volta e a alastrar-se com grande rapidez; esfriava as lajes abrasadoras e a maré de clientes, de regresso a casa, passava à frente da sua escudela vazia. Mas Porgy gostava mais dos fins de tarde, quando a rua voltava a ficar calma e a menos colorida luz do sol batia de raspão no telhado baixo da farmácia para pintar o estuque da residência da frente com uma cor creme que lhe conferia um ouro róseo e deixava as telhas, que a água da chuva lavara, com


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

24

4/5/13

10:40 AM

Page 24

D u B o s e H e y wa r d

a cor do cobre tostado. Depois, a senhora esguia e vestida de branco que ali habitava abria as portas escuras das sacadas do salão do segundo andar, sentava-se a um piano que Porgy só vagamente distinguia, tocava ao crepúsculo, e ele ficava a ouvi-la até o velho Peter passar com a carroça e levá-lo para casa. * Porgy só tinha um vício. Com as trivialidades do dia reduzidas ao seu mais baixo nível, transformava-se à noite num jogador inveterado. Todas as tardes dividia cuidadosamente a colecta reservando um mínimo para o alojamento e a comida, e destinava o resto ao jogo nocturno. Visto à luz do fumarento candeeiro a petróleo, com o círculo de faces excitadas perto dele deixava de ser o mendigo exposto ao pó. O seu sangue estagnado dava um salto e ganhava uma inesperada vida. Era parceiro de tipos magníficos e possantes que levantavam fardos de algodão e tinham o intolerável cheiro dos que trabalham numa fábrica de adubos. Estava consciente de ter ganho junto deles um disputado respeito, já que sabia persuadir e iludir os pequenos dados de marfim fazendo-os obedecer-lhe. Era raro sortirem efeito os fortes «vá lá, meus queridos» e os explosivos «vê lá se sais, ó sete» dos seus companheiros; e ele, feliz e atento, pensava em novas e suaves palavras capazes de lhe reforçar a sorte. Eram horas em que perdia o ar de quem vivia no futuro. Enquanto os dados saltavam, era num intenso e fogoso presente que ele existia. Numa noite de sábado do fim de Abril, com o primeiro sopro a fazer no ar um prenúncio de Verão, Porgy estava na Catfish Row sentado num círculo de jogadores à frente da sua


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

Porgy e Bess

10:40 AM

Page 25

25

porta, e em voz baixa ia murmurando preces aos deuses da sorte. Todo o dia tivera consciência de que estava vagamente apreensivo. Da baía não chegava nenhuma brisa e parecera-lhe, sentado no seu lugar ao pé da farmácia, que o céu opaco tinha uma cor cinzenta-azulada e esmagava com um grande peso a cidade. Para o fim da tarde rebentara no horizonte do Oeste uma trovoada que ribombava ameaçadoramente, mas tinha depois parado deixando o ar quente, abafado e húmido. Os negros que regressavam a casa levavam consigo uma irritação surda, e em vez da habitual noite de sábado com conversas e cânticos, na maior parte dos seus quartos havia escuridão e silêncio, e o pátio estava deserto. O jogo começou tarde e com poucos jogadores. Agachado à frente de Porgy e a lançar o copo de dados com um reservado silêncio, estava um negro chamado Crown. Era um homem da estiva com corpo de gladiador e má fama. Trazia o gancho de deslocar fardos pendurado no cinto, como um chicote, e o candeeiro a petróleo punha nas lajes um reflexo claro sempre que ele se inclinava para lançar os dados. Como tinha estado a beber com Robbins, agora ao seu lado, os eflúvios de um uísque ordinário empestavam o ar. Robbins era palrador e, bem bebido, com o costume de falar sem descanso da mulher e dos filhos que lhe inspiravam um desmedido orgulho. Era bastante comedido e, se exceptuarmos as noites de sábado com álcool e jogo, tinha hábitos moderados. — A minha senhora nasceu preta de homem branco — gabava-se ele. — Pertence na família do governador Rutledge. Não viram Miss Rutledge visitar ela quando ficou doente? E os meus miúdo cresce com maneiras.


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

26

4/5/13

10:40 AM

Page 26

D u B o s e H e y wa r d

— Guarda as tuas palavras para o raio dos dado. Com os dado não há pachorra para falar da mulher! — atalhou um jovem negro do grupo. — É mesmo! — disse outro. — Eles e elas anda ao mesmo, anda atrás da massa do preto. Não deixa que vão entender-se. — Cala-te o raio da boca! — rosnou Crown. Surpreendido, o lanço de dados de Robbins foi impetuoso. E mal eles caíram Crown apanhou-os e sacudiu-os furiosamente na grande mão, com pragas bastante ordinárias pô-los a rolar no círculo mal iluminado, e logo à primeira perdeu. Com um gesto carinhoso, por um momento Porgy segurou-os nos dedos esguios da mão musculosa. — Oh, estrelinhas, deita um pouco de luz para mim! — cantou baixinho; e quando fez a jogada ganhou. — Deita para mim um sol e uma lua! — pediu; e os dados voltaram a obedecer-lhe. — O Porgy lança feitiço nos dado — exclamou Crown enquanto esvaziava uma garrafa que foi estilhaçar-se no pavimento. Era rápido, este jogo que prosseguia junto das paredes íngremes do edifício. Vozes sonolentas cantavam num quarto distante e como que eram esmagadas pelo ar opressivo. Noutra zona do edifício alguém dedilhava uma viola monotonamente, corda a corda, até a escuridão começar a latejar como uma velha ferida. Mas os jogadores só estavam atentos à mancha de luz alaranjada que batia nas lajes e à vida dos pequenos dados que através delas se agitavam ou ficavam preguiçosos, consoante o humor da mão que os lançava. Sentado à porta de Porgy, o velho carroceiro Peter fumava com ar tranquilo e olhava para eles a sorrir, tão indulgente quanto a idade da tolerância lho permitia. Tinha intervenções


M_Du Bose Hayward_Porgy e Bess.qxp:Ficção

4/5/13

Porgy e Bess

10:40 AM

Page 27

27

que costumavam fazer o efeito de um calmante. Num dia em que Crown sofrera perdas pesadas e, voltado para Robbins, dissera com maus modos: «Vê lá, preto, não vale batota», Peter avisara-os: «Amigos, os bêbado e os dado se juntando dão para o torto. Vale mais ter calma.» Mas dessa vez tudo aconteceu com a rapidez de um relâmpago. Robbins voltara a agitar o copo, tinha feito o lançamento, tinha recolhido os dados antes de o espírito lento de Crown conseguir contá-los, e metido as moedas no bolso. Com um grunhido surdo, o corpo agachado de Crown atirou para a frente o seu formidável peso fazendo o candeeiro estilhaçar-se, e empurrou Robbins até à parede. Ambos se puseram de pé e se enfrentaram. Espalhado sobre as lajes, o petróleo do candeeiro partido ardia com uma chama vermelha. Crown voltou a agachar-se para um segundo salto. Era bem visível o desenho dos seus lábios sobre os dentes brilhantes. A luz batia-lhe em cheio na queixada proeminente e deixava-lhe a testa oblíqua na sombra. Para equilibrar o corpo maciço, tinha uma das mãos apoiada ao de leve no pavimento, e a outra levantava o gancho dos fardos, prestes a atacar como uma garra. Comparado com ele, Robbins era lastimavelmente fraco e incapaz; mas só num desesperado momento ficou indeciso porque recorreu logo à única possibilidade que lhe restava. Por baixo desse gancho assustador atirou como uma lança o corpo flexível para a frente, e lutaram corpo-a-corpo. E caíram, caíram, caíram, deslizando até um fundo a séculos de distância. As roupas não os estorvaram. Como por milagre, aqueles corpos escuros e crispados rasgaram os tecidos leves. Cordas e bar-


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.