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TÍTULO DO ORIGINAL: JEAN-LUC PERSÉCUTÉ
© SISTEMA SOLAR, CRL (2020) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO 2020 ISBN 978-989-8833-56-3 NA CAPA: FELIX NUSSBAUM, RETRATO COM BONÉ VERDE (1936) REVISÃO: DIOGO FERREIRA DEPÓSITO LEGAL 476285/20 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL
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Seria provável — sem as certezas da biografia — que atribuíssemos a Ramuz uma vida de além-escrita, uma dura experiência pessoal com trabalhos do campo, esses que marcam os homens da «sua» montanha — montanha da Suíça romanda onde ele, afinal, não nasceu e muito pouco viveu. Em 1926, Albert Béguin num texto a que chamou «Patience de Ramuz», tira-nos a este respeito todas as dúvidas: «Já não deve ser permitido pronunciarmos sobre Ramuz as palavras “romancista camponês” ou “escritor regionalista” que introduzem uma falsa perspectiva. Ramuz, citadino de nascença e homem de alta cultura, é todo o contrário de um camponês. Se as suas personagens são sempre os aldeões do seu país, […] é […] porque Ramuz procura ir ao encontro dos homens no que eles têm de mais imutável, mais universal; percebeu cedo que só encontraria e exprimiria esse fundo humano escolhendo os seus heróis nos seres com os quais naturalmente se aparentava.» Mas a isto também pode acrescentar-se o que encontramos numa página do seu Journal: O lago e a montanha são-me obsessivos por oferecerem, no seu aspecto mais geral, o que convém ao meu estado de espírito. «Naturalmente», o advérbio que Béguin escolhe para definir o modo como Ramuz se associa aos seus heróis, confere-lhe uma proximidade mas também uma distância «naturais» que são centro dessa aliança apenas literariamente estabelecida; confere-lhe
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uma vida física desencaixada mas próxima das suas personagens, um sentimento puro, de raízes afectivas e culturais, que nada deve ao extracto da sociedade onde ele nasceu — o de uma família bem instalada de comerciantes burgueses que vendiam produtos coloniais. Ramuz viveu uma infância de privilégios, como ele próprio confessa em Découverte du monde: Tive […] uma infância favorecida; as dificuldades que encontrei não foram exteriores nem sequer me chegaram de outros, mas de mim. Dificuldades que a idade adulta acentuou, nunca ligadas a problemas materiais, mas relacionadas com o seu temperamento «saturniano»: Sou um «saturniano»; e ele é, segundo parece e no dizer dos astrólogos, um «obstruído». Bem o reconheço agora no meu trabalho. Acontece-me chegar em poucas horas a dez páginas bem cheias; e depois ver-me durante dois ou três dias na impossibilidade de escrever uma única linha. Ramuz frequentou durante um ano a faculdade de letras em Lausana, a sua terra natal — uma Suíça urbana que desce com ruas íngremes até ao lago Léman — e encontrou aí o pretexto que o levaria a uma longa permanência em Paris. Ainda se fez professor no Colégio de Aubonne, ainda se fez explicador numa escola alsaciana, ainda foi preceptor em Weimar, onde tentou transmitir alguma cultura aos filhos de um conde russo empurrado para ocidente pelos ventos nada aristocráticos da Revolução leninista — tédios que suportou mal e só conseguiram alimentar-lhe o sonho (que persistia) de um doutoramento na Sorbonne e de uma tese que teria como tema esse estranho Maurice de Guérin, prosador-poeta de uma curta obra pagã e romântica. Paris! Maurice de Guérin, com o Centauro e a Bacante dos seus textos mais célebres, nem uma só frase de Ramuz obtiveram;
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Paris foi para ele todo um período de encontros, de solicitações pedidas pela revista La Voile Latine que em Genebra fazia esforços para regenerar a literatura e a pintura da Suíça romanda. — Ela (a literatura romanda) terá de ser contra-universitária, dizia o jovem Ramuz empurrado por uma ingénua decisão, contra-intelectual, ou seja, viva. Mas Paris destinava-o, muito para lá desta defesa romanda, a outras e muito francesas seduções: Vim por seis meses e fiquei mais de doze anos, confessou a lembrar-se desse refúgio que o fez viver dez belos séculos de história e civilização, onde partilhou entusiasmos e domicílios com Charles-Albert Cingria, Henry Spiess e Adrien Bovy. Paris também fê-lo sentir-se poeta — um poeta de segundo papel perante a outra vocação que lhe nascia, central, de prosador — e logo depois romancista. Neste início de homem de letras, Paris incitou-o a escrever os Petits poèmes en prose integrados numa obra colectiva com o estranho nome Penates de Argila, mas não tardou a dizer-lhe que obedecesse aos mais fortes apelos do criador de ficções em prosa: por isso Aline (1905), que tinha começado por ser um poema em alexandrinos rimados, transformou-se num romance. As suas publicações seguintes, Les Circonstances de la vie (1907) e Jean-Luc Perseguido (1908), já foram romances de raiz, embora os tivesse entremeado com La Grande Guerre du Sondrebond (1906), sobra da primeira tendência — longo relato que ainda contava a sua história subordinando-a às ferozes disciplinas da poesia em verso. Charles Ferdinand Ramuz, já romancista assumido, olhava com desagrado para o mais vulgar sentido da palavra «romance»: — A palavra romance é mal empregue; e neste momento feia;
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por aí se arrasta em todo o lado […] e melhor seria encontrar-lhe outro nome […]. O romance deve ser um poema, escreveu no Journal de Genève em Setembro de 1905, na altura em que tinha publicado Aline, essa primeira ficção que surgia ao público mudada desde a poesia-verso até à poesia-prosa, conciliando-a assim com o que era exigido pela fórmula-romance. Não foi, no entanto, este ambíguo pé em dois mundos da forma escrita que soltou todas as vozes suíças de uma incomodada oposição; foram, sobretudo, um desprezo sintáctico que hostilizava os bons comportamentos da literatura; uma invenção de frases com ritmos que atropelavam regras do bem-escrever, mal aceites pelo orgulho literário de um país «menorizado» por um seu escritor tão avesso à correcção formal dos maiores escritores da língua francesa. Ramuz não se furtava a sacrifícios gramaticais para salvar verdades da linguagem oral dos «seus» aldeões, para dar à sua prosa o andar lento e pesado dos que voltam a casa fatigados pelos trabalhos do campo. As críticas — algumas de intolerância pouco compreensível — levaram-no a uma extensa carta a Bernard Grasset, nessa primeira época o seu principal editor. O francês «clássico», diz esse texto, tende desde há muito, e sob as suas diferentes formas, a não passar de um francês académico com esta consequência maior, que é tornar-se cada vez mais académico e as suas codificações fazerem-se peremptórias, autoritárias, exclusivas. Mas se admitirmos que este francês dito «clássico», e que já o não é, surge ainda hoje válido para um certo número de franceses ou parisienses educados em certas condições e em certos meios, não resta nenhuma dúvida de que não vejo muito bem como poderia ser válido para mim, que não sou cidadão francês, que
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não sou parisiense, que nunca o fui pelos meus ascendentes nem através deles súbdito de nenhum rei, que nunca fiz hereditariamente parte da corte nem dos salões — porque a corte e os salões foram coisas vivas; e foi uma coisa viva, essa língua que só conheci na escola e não é portanto a que eu falo, como é natural. E antes de poder escrevê-la, ou até de a poder falar, teria de fazer a sua aprendizagem. — Esta indiferença pelo francês clássico também o levou à inabalável conclusão, expressa num número de La Voile Latine: Uma obra de arte tem por função ser bela; e nada mais. Não pode satisfazer todas as exigências. No seu Journal virá a afirmar que a imaginação criadora só é activa sob o efeito da sensação: As imagens chegam-me apenas quando não vejo os objectos que as sugerem. Toda a força da arte está no que recordamos; é feita de memória e imaginação. A realidade física substituída pela realidade mental, pelas transformações poéticas da imaginação, foi o que Ramuz nos deu mais e menos reconhecidamente, e com palavras suas, a conhecer. * É de 1913, o seu casamento com a pintora Cécile Celier, também ela uma suíça atraída pelas seduções da capital francesa; mas este casal pouco tempo viveu em Paris. 1914, com a instabilidade social e política provocada pelo começo da Primeira Grande Guerra Mundial, restituiu Ramuz à neutralidade suíça, onde viverá até 1947, o ano da sua morte. Estes trinta e três anos «suíços» não vão levantar entraves práticos ao seu impulso criador. O escritor Charles Ferdinand Ramuz desdobrar-se-á, texto a texto e sem falhas editoriais, pela
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bem abastecida relação que hoje lemos como sua bibliografia — em 1918 com um inesperado desvio ao puramente literário: a sua colaboração com o génio de Igor Stravinsky para a História do Soldado, onde o Leitor, o Diabo, a Princesa e o Soldado se misturam como personagens numa narrativa musical, não acompanhada apenas pela mímica e pela dança, mas por diálogos e recitativos de Ramuz. Ramuz, estendido por quarenta anos de trabalho literário, ficou com uma invejável representação na literatura suíça de expressão francesa. Costuma ser recordado por uns quantos títulos que sobressaem, quando se é levado a falar mais apressadamente da sua obra, deixando esquecidos outros momentos onde brilham invulgares centelhas como as deste Jean-Luc Perseguido, seu terceiro romance e ponto alto entre os que marcaram os primeiros anos da sua deambulação parisiense; poema de amor e desespero — absolutos — com força a que não falta um sopro satânico. No seu excesso, Jean-Luc faz-se exemplo dessa grandeza que as indestrutíveis convicções concedem aos seus mártires. À verdade de Jean-Luc, destituída de qualquer confirmação no mundo físico, destituída de uma qualquer defesa no plano moral, só poderia conferir-se uma espessura maculada por uma contaminação. E por isto as frases finais da novela, decididas a levantá-lo à superior grandeza dos mártires, só lhe encontram esta metáfora física: E como ele na cama era grande, muitíssimo grande. * Toda a carreira literária de Ramuz, com os seus êxitos, os seus desaires críticos, foi sentida sob a incomodidade e a perplexi-
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dade de uma incompreensão. Tentou por diversas vezes explicar-se, e por diversas vezes sentiu a necessidade de uma justificação; escolhemo-lo aqui num desses momentos, deixados em 1918 nas páginas do seu Journal: Nasci Ramuz — e mais nada. Fui julgado a partir do meu meio; penso que ninguém me conheceu, e até hoje ninguém fez uma ideia daquilo que eu sou; e nisto reside todo o mal-entendido. À minha volta uma gente emburguesada, sem eu ser burguês. Chegou agora a altura de eu me julgar, e fazê-lo a partir do meu nome; acho que o mereço, sem que isso valha grande coisa. Pretendo merecê-lo com uma descida abaixo de mim mesmo e desfazendo-me de todas as aquisições de acaso que devo à escola, aos meus estudos, ao meu meio, aos meus pais. Pretendo voltar a descer até ao simples, termo que é precisamente fornecido pelo meu estado civil, embora falseado por ter havido, antes da minha chegada ao mundo, aumentos de estado social e fortuna. Coisas que hoje não têm nenhum valor. Penso no que devo fazer, e naquilo de que devo desfazer-me, não levando apenas em conta as minhas próprias aquisições (aquisições não é a palavra exacta, uma vez que me foram impostas), mas as dos meus pais, essas que tanto trabalho lhes deram. Ingratidão — necessária ingratidão. Quiseram fazer-me beneficiar das vantagens sociais que acabaram por ter à sua volta. Ora, socialmente cheguei muitíssimo acima deles, tal como hoje me encontro muitíssimo abaixo deles por uma operação da minha vontade. Pretendo descer até uma natureza que apenas por baixo subsiste; caminhada que nada tem, como poderia julgar-se, de artificial. É, pelo contrário, uma caminhada totalmente natural, e apenas me cabe o mérito de ter sempre
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tido uma ideia clara e procurado essa natureza — um mérito grande, como talvez possa um dia ser reconhecido. Até hoje ninguém o viu, ninguém viu aquilo que eu era; e eu próprio talvez o tenha visto mal. Só facilitarei aos outros esta tarefa com as provas que vou dar (se é que alguma vez irei dá-las) de ter conseguido chegar a bom fim. Julgaram-me a partir de um nome que acabou por não ter nenhum sentido: um nome médio ou que chegou, pelo menos, a ser médio — e que eu faço todos os esforços para que ele o não seja. Procuro apenas a intensidade — a que em baixo existe. Compreende-se o sentido que dou a isto? Serei solitário e não vou queixar-me da minha solidão: tenho a companhia que escolhi. E mesmo que os meus verdadeiros companheiros me ignorem, não os ignoro eu. A.F.
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capítulo primeiro
Como tinha ficado decidido que Jean-Luc Robille iria nessa manhã de domingo a Sasseneire ver uma cabra, depois de comer ele agarrou no chapéu e no bordão. Deu a seguir um beijo à sua mulher (porque gostava muito dela, e só estavam desde há dois anos casados). Christine perguntou: — A que horas voltas? Respondeu: — Cerca das seis horas. E acrescentou: — Preciso de despachar-me porque tenho o Simon à espera, e ele não gosta que o façam esperar. No entanto, antes de partir foi em pontas de pés até ao quarto e aproximou-se do berço onde dormia o pequeno que um ano antes tinham os dois feito. «Cuidado!», exclamou Christine. Mas quando ele se debruçou não lhe deu um beijo, como tinha a intenção de fazer, limitando-se a vê-lo dormir. Era um grande rapaz de onze meses e duas semanas (porque ao princípio contam-se as semanas e os dias) com faces que pareciam envernizadas e uma grande cabeça redonda, metida na concavidade da almofada. O próprio Jean-Luc fizera o berço com uma bonita madeira de larício, porque trabalhara em obras finas de marcenaria (como costuma dizer-se) e aprendera essa profissão antes de se entregar, ainda com o pai vivo,
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aos bens da sua mãe. Ficou durante um momento inclinado sobre o berço, a ver o miúdo dormir. Depois atravessou a cozinha e abriu a porta da casa. «Adeus, mulher!», disse ainda, e voltou a beijar Christine. Encontrou Simon metido na cama. — Como vês, as minhas dores voltaram — disse-lhe Simon. — O que podemos hoje fazer?… Paciência! — Vamos no próximo domingo — disse Jean-Luc. Tinha-se sentado ao lado da cama; falou um pouco com Simon, e depois a filha dele apareceu. Para fazerem passar o tempo, os três conversaram; ouviram o toque da uma hora, e depois duas horas. Nessa altura Jean-Luc voltou para casa. Encontrou pessoas à frente do albergue, o que lhe fez perder mais um quarto de hora. Mas quando o convidaram a beber, recusou. E os outros desataram a rir-se. «Continuas com essa fisgada?» «Não será permitido?», dizia Jean-Luc. «Oh! É permitido!» Ele também se riu; e depois foi a passo rápido para casa. Subiu a escada, empurrou o ferrolho, mas a porta estava fechada. Pensou: «Ela foi à casa da Marie» (era a mulher do ferrador); baixou-se e apanhou a chave debaixo do monte de lenha onde costumavam escondê-la. Depois decidiu: «Vou à casa da Marie.» Mas não a encontrou; nem eles, a Marie e o seu marido, a tinham visto. Ele lia o jornal; e como gostava de gracejar, levantou a cabeça e disse: «Quando se tem uma mulher não devemos deixá-la só.» Jean-Luc não lhe respondeu, mas estava preocupado. A preocupação surgira-lhe de repente, não sabia porquê, e acompanhou-o na cozinha vazia, onde o fogo estava a apagar-se, e no quarto onde se sentou ao pé do berço a ouvir o
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domingo: um ruído de vozes, um leve ruído de água, e mais nada; toda a gente descansava. Havia um pouco, ainda um quase nada de neve da noite anterior, uma farinha só a afirmar que o Inverno ali estava; já com o dia adiantado entrara a manhã no quarto, onde tudo parecia desde há pouco tempo arrumado. Ele tinha os cotovelos apoiados nos joelhos, e de si para si perguntava: «Mas para onde terá ela ido?» Não encontrava nenhuma resposta. Depois, invadido pelo tédio levantou-se e olhou pela janela. Via uma ponta da vertente do prado, e a seguir vinham os salgueiros, e os choupos, e o grande lago a mostrar-se redondo na forma e ainda sem gelo; costumava ser de um belo luzidio que reflectia toda a montanha; mas a neve, a fundir-se por cima dele, como que o tinha despolido. Atrás subiam sob o céu azul andares todos brancos com manchas negras. De repente, os olhos de Jean-Luc pousaram na terra e ali se fixaram. Porque havia um rasto de passos. Passos na neve, pequenos e bem marcados. Não se dirigiam para a aldeia, onde o caminho já estava batido, mas para o outro lado, a seguirem a beira do lago. Pensou: «Para onde é que ela foi?» Pouco depois decidiu-se. Agarrou no menino, que estava a acordar, embrulhou-o no bem quente de um xaile e voltou à casa de Marie: «Fazes-me o favor de ficar com ele enquanto eu andar longe daqui?» Marie perguntou: «Afinal, a Christine não está de volta?» Disse-lhe que não. Foi até à sua casa, mas não entrou e pôs-se a seguir o rasto. Começava mesmo à frente da porta. Seguiu-o com as mãos nos bolsos e sem parecer que o fazia, por causa dos que podiam vê-lo, mas tinha o coração a bater com força e ainda a esperança de que os passos,
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depois de chegarem ao caminho que à beira do lago ladeava o dique, se voltassem para a aldeia. Mas não; voltavam-se, de facto, mas para a outra direcção, a da montanha. Começou a andar mais depressa. Agora, no caminho os passos misturavam-se; também tinham ali passado um mulo e homens, mas só prestava atenção à camada de neve ainda lisa que havia nos lados; e realmente não tardou a encontrar uns passos curtos que iam para a esquerda por uma espécie de dobra do terreno, como as que existem por toda aquela região; percorreu-a na parte mais funda e foi directamente levado à base da vertente, que começou a escalar. Nos taludes bem expostos a neve já se tinha derretido, deixando que algumas placas de jovem relva a perfurassem; e o rasto parava ali de repente, para reaparecer mais acima e agora na terra húmida onde o tacão se afundara, onde os pregos dos sapatos a tinham pisado ao escorregarem, não podia a tal respeito haver nenhuma dúvida. Agora dirigiam-se numa direcção oblíqua para outro caminho que ia ter ao planalto dos Roffes. Jean-Luc dizia consigo mesmo: «Ela fez um desvio!» Dizia-o a olhar para as marcas dos pregos. «E ainda por cima não tirou os sapatos domingueiros.» Reconhecia bem o desenho dos pregos que só rodeavam por completo a sola com as suas cabeças redondas e lisas, porque esses sapatos eram um presente que ele lhe tinha dado numa das suas idas à feira do Outono. E também pensava: «Mas que pequenos pés ela tem!», enquanto qualquer coisa como uma voz dentro de si repetia: «Pezinhos queridos, pezinhos queridos, mais bonitos não há!» Continuava porém a andar, e foi ter ao segundo caminho. Era no Verão pedregoso, todo iluminado de sol, com
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belos tufos de rosas-silvestres com pequenas folhas e flores rosadas. A neve tinha coberto tudo; as moitas pareciam grandes novelos de um desmanchado fio grosso. E depois se nos voltarmos, como estamos no alto distinguimos a direito e abaixo de nós todas as casas da aldeia, apertadas e alinhadas numa concavidade como ovos num ninho, com telhados brancos no meio do branco, e ao centro a grande igreja com paredes despidas; depois, recortada no céu e na profundeza do largo vale erguia-se atrás deles uma estranha colina pontiaguda com bordos em dentes de serra, por causa dos pinheiros: — o Bourni, como lhe chamam. Era esta a vista, e ele subia. A dada altura saiu de entre as moitas um grande pinheiro solitário. Quando ali chegou, Jean-Luc fez uma paragem súbita. Porque acabava de ver um segundo rasto. Este segundo rasto reunia-se ao outro, debaixo do pinheiro. Eram passos largos, passos de homem; eles deviam ter-se encontrado debaixo do pinheiro, porque a neve estava toda espezinhada; depois os passos largos e os curtos tinham continuado a par, como se via mais longe, no caminho com marcas, ora mais afastadas, ora mais próximas, por vezes quase confundidas. Ele abria os olhos. Não podia acreditar, e era no entanto forçado a isso porque a camada de neve se tornava mais espessa, acumulada nas concavidades pelo vento; e, tão longe quanto era possível ver-se neste ombro de colina, os pregos indicados a azul por uma sombra continuavam a mostrar-se profundos, e como se fossem a costura de um pano. Jean-Luc tinha voltado a andar mais depressa, e não tardou a chegar à crista. Entramos aí numa reentrância onde o
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caminho segue pelo centro. Os larícios cor de mel, de tronco cinzento, cinzentos em certos ramos já desfolhados, estavam como que alinhados à volta; e à frente, por um entalhe sobre o céu verde, sobressaía ao longe um cume rosado. Na luz, sobre a neve, também havia um suave tom rosado, ou antes, quase louro, enquanto neste veludo brilhavam como ouro várias saliências ou arestas, e ainda uma ponta de árvore no matagal, uma fenda de terreno. Mas havia ali um coração triste, e tudo estava em silêncio. Um chocard 1, que levantara voo durante um momento no céu, ocupava um lugar que deixou logo depois de ocupar; os ruídos chegavam de muito longe, como se fossem estranhos à terra; ouvia-se tocar o sino de uma aldeia, não se sabia onde, talvez na planície, mas não tardou a calar-se; houve um tiro de espingarda, talvez de um caçador furtivo numa garganta lá em baixo, que durante muito tempo se prolongou, a bater nela com os seus ecos. Jean-Luc passou a mão pela testa, porque a tinha suada, mas não parou; agora, mesmo que tivesse os olhos fechados adivinharia tudo. Voltou a subir a reentrância e voltou de novo à direita; depois, no meio dos primeiros larícios dirigiu-se para a floresta. E entrou na floresta. De repente houve um segundo lugar espezinhado; e depois só passou a distinguir-se um rasto, o dos largos passos de homem. Examinou-o; não, não era mais do que um; e as suas pernas fraquejaram. Dizia: «Só se a levou nos braços; estava fatigada e ele levou-a!» O rasto estava realmente mais fundo do Pássaro negro com bico amarelo e patas vermelhas, que existe nas montanhas da Suíça. (N. do T.) 1
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que antes, mais arrastado, com uma pedra aqui e além saída, e debaixo das árvores um pouco de terra negra ou agulhas de larícios; eles tinham noutro sítio tropeçado numa raiz oculta e depois descansado; e agora passava a haver de novo os dois pequenos pés indicados pela neve. Era como tinha previsto. Havia na orla da floresta um palheiro novo que pertencia a um tal Augustin Crettaz. «É ele!», pensou Jean-Luc. «Dizia-se que estava ausente; mas afinal voltou, e a Christine nada me disse!» Apoiou-se num tronco, a olhar. Não se ouvia nada, não se via nada; devia haver feno no palheiro, e eles estavam comodamente deitados. Fez um movimento, como se quisesse avançar, mas nessa altura alguém ali perto começou a rir-se; bem conhecia esse riso; a passo largo voltou a descer. Quando ela chegou eram cinco horas e já o dia baixava (por serem os dias mais curtos do ano). Ao mesmo tempo caiu o frio das noites de Inverno, o que surpreende a água que corre e endurece os caminhos. O sineiro saiu então do albergue e começou a subir a escada alta do campanário, porque tinha chegado o momento do angelus. Ela espantou-se por encontrar só encostada a porta da cozinha. Entrou; ainda caía pela janela um pouco de dia, e viu Jean-Luc sentado ao pé do fogão. Nenhum fogo e a cinza morta; estava sentado. Ela disse: — Como é possível já teres chegado? Ele respondeu: — Não fui lá porque encontrei o Simon doente. Christine fez com os ombros um pequeno movimento, logo a seguir contido, mas que Jean-Luc não notou por estar
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inclinado. De resto, nem tinha sequer olhado para ela; olhava apenas para o chão à sua frente. Christine acrescentou: — Sem fogo não sentes frio? Começa a gelar. Jean-Luc respondeu: — Não tenho frio. Quando o angelus tocou, um e outro calaram-se. Jean-Luc continuava com a cabeça baixa e tinha deitado nos braços o menino, que se fazia pesado por estar a dormir; era uma coisa que dormia assim, durante todo o dia e comia. Quando o angelus terminou, as suas pequenas pálpebras abriram-se, e com a quentura do sono viu-se que um sangue mais vermelho se espalhava sob a pele. — Ele comeu? — disse Christine. Jean-Luc disse: — Dei-lhe de comer. Ela tinha começado a acender o fogo. E ficou de repente em plena luz. Viu-se então o que ainda não tinha sido visível. Nos cabelos um pouco despenteados, e a caírem na testa com pequenas mechas frisadas (era costume estarem bem esticados), brilhavam gotas que tinham ficado retidas; na gola da capa, o alfinete de ouro falso estava agrafado de esguelha; nos ombros e no peito havia manchas de molhado. Jean-Luc voltou-se para ela. — Não chove assim tanto! — disse ele. — São as gotas que caem dos telhados. Disse-o com uma voz segura. E depois aproximou-se bruscamente dele. — Dá-me por um momento o menino. Com a cabeça ele disse que não.
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Christine não insistiu nem pareceu sequer surpreendida; continuava a fazer o seu trabalho, a ir e a vir na cozinha, a agarrar nas chávenas e nos pratos que estavam na prateleira; com a panela já ao fogo, desceu até à cave para cortar um pedaço de queijo, e trouxe o pão; a água começou a ferver, e despejou-a na cafeteira. Ouviu-se o ruído das pequenas gotas que passavam através do filtro e caíam uma a uma no recipiente de lata; e o leite ao fogo subia. — Podes vir— disse ela — está pronto. A criança já tinha adormecido, mas Jean-Luc continuava com ela nos braços e não a largou, mesmo quando veio sentar-se à mesa; soergueu-a, embora com precaução, estendendo-a depois sobre os joelhos, com uma das pernas um pouco levantada. Christine não dizia nada. Estavam sentados face a face, e havia entre eles a largura da mesa que tinha em cima o grande e chato pedaço de pão, a bilha do leite e o queijo que ela cortou com uma faca e começou logo depois a comer. Também tinha enchido as chávenas de barro escuro com o interior amarelo, e o café fumegava com o seu bom cheiro. Ela comia e bebia. Jean-Luc também tinha cortado pão e começado a comer; mas apesar do seu habitual grande apetite de forte e bom trabalhador, os pedaços não lhe passavam da garganta. Naquele momento, na sua boca o pão parecia terra seca; por isso bebeu, para fazê-lo descer, mas continuou com o prato cheio. Christine, essa, voltara a servir-se e a encher de novo a sua chávena. Perguntou: — O que tens tu? Ele afastou o prato para longe, deixou cair a faca na mesa, baixou a cabeça e assim ficou.
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Christine voltou a dizer: — Jean-Luc! Ele não se mexia; estava ausente; e as suas mãos, que tinham deslizado até à beira da mesa, eram grandes mãos vazias penduradas. Viu-se que tinham de falar. — Escuta — disse ela — temos de entender-nos. Lembras-te, com certeza, do dia do padroeiro, quando me perguntaste se eu te queria. Quando disseste que me amavas, respondi: «Eu cá gosto mais do Augustin; ele também me pediu, embora o seu pai não queira porque sou muito pobre; mas como estou farta de ser criada na casa dos outros, se quiseres podemos ficar noivos; no entanto, se o Augustin quiser dar-me um beijo, vou deixar que ele me dê um beijo.» Não é verdade que eu disse isto? Ele nada respondeu, e ela continuou: — E quando a tua mãe também não quis, e foste ter com ela e disseste: «Estou-me nas tintas para ti!», não é verdade que te dei este conselho: «Vê-lá bem, não te zangues com ela porque dá azar. Será fácil arranjares outra!» Não me deste ouvidos. Mais uma vez: não é verdade? Ficou à espera, mas como nada ouviu acrescentou: — E como continuavas a estar comigo e vinhas constantemente ver-me, não é verdade que eu te disse: «Não és como os outros.» E quando eu disse: «Além do mais, és muito magro.» Tu rias-te. Diz lá: não é verdade? Voltou a parar; mas não valeu de nada. — Pois é! O Augustin voltou, convidou-me e fomos juntos para o feno. E se tu, se tu vieste atrás de nós, o que posso fazer?
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Depois de dizer isto, calou-se; ele continuava em silêncio. No fogão havia um grande pau de lenha roído por metade e que se partiu de repente, fazendo um dos pedaços rolar na cinza. A apontar para a criança, Christine voltou a dizer: — Dá-mo, estás a ouvir? Mas ele recuou bruscamente; e fazendo com a mão um gesto, como se quisesse afastá-la de si, disse: — Não voltarás a tocar-lhe! Ela encolheu os ombros e respondeu: «Tenho alguém que me console.» Abriu a porta, saiu e foi até aos degraus, encostando-se à tranqueira. Não havia lua nenhuma, mas uma porção de belas estrelas brancas que pareciam de vidro e penduradas por fios e a mexerem-se juntas, ao vento, e que mal chegavam a iluminar. Sob o extenso negro de céu e sombra, a neve era estranha de se ver com a sua grande extensão branca, esse clarão que a partir dela se levantava; e no meio o lago todo sombra, com a neve por cima dele derretida. Christine apertou contra si o xaile. Depois, a debruçar-se para o exterior dos degraus, olhou a aldeia que se vislumbrava atrás da esquina da casa; estava a olhar para uma determinada janela. Os quadriláteros dos telhados destacavam-se a branco; e as paredes de madeira escura como que se tinham desfeito e dissolvido na noite, dando a ideia de que eles, os telhados, se penduravam no ar. Havia aquele ponto de luz de candeeiro como um olho vermelho, e mais nada. Jean-Luc, esse, andava na cozinha, mas os seus passos afastaram-se; uma porta rangeu, ele entrou no quarto e os
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Charles Ferdinand Ramuz
passos depois aproximaram-se; Christine voltou-se, e nessa altura Jean-Luc passou ao pé dela. Tinha o chapéu na cabeça. Com um braço agarrava na criança, e havia debaixo do outro um embrulho; desceu a escada. Ela disse: «O que fazes tu?» Repetiu: «Jean-Luc, o que fazes tu?» Mas era tarde de mais. Já estava longe. Ia para os lados da aldeia. No dia seguinte ficou a saber-se que ele tinha descido até lá abaixo, à casa da sua mãe; e isto ainda melhor ficou a saber-se quando Félicien, o jovem criado, veio a seu mando buscar as duas vacas e a cabra.
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