René Crevel, O Meu Corpo e Eu

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René Crevel O MEU CORPO E EU

René Crevel O MEU CORPO E EU

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

O corpo duplo, o verdadeiro ou o seu reflexo. O golden boy do surrealismo e o seu mais amado suicida. «Na nossa família suicidamo-nos muito.»

www.sistemasolar.pt

René Crevel O MEU CORPO E EU


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Com esse belo olhar adolescente que algumas fotografias continuam a dar-nos. AndrĂŠ Breton


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René Crevel O MEU CORPO E EU tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes


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TÍTULO ORIGINAL: MON CORPS ET MOI

© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: GIAMBOLOGNA, RAPTO DE UMA SABINA, 1583 (PORMENOR) 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO 2014 ISBN 978-989-8566-65-2 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE ——————— DEPÓSITO LEGAL 381816/14 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA


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A DEZ VOZES

Na nossa família suicidamo-nos muito. Dizia-o aos amigos e chegou a escrevê-lo em La Mort Difficile sem exigências de uma grande precisão aritmética. Talvez houvesse um primo, um tio… mas certamente o pai. René, com catorze anos de já atormentadas diferenças, e a visão do pai enforcado sem uma razão central a enunciar-se para a gravidade do seu acto; a mãe de religiosidade ofendida a chamá-lo, a denunciar-lhe a ignomínia do corpo, a pedir-lhe que o visse na sua última e indigna atitude, pendurado num quarto da casa. Dominique Desanti: Quando Crevel bebia, murmurava ou gritava que o seu pai se tinha enforcado, a sua mãe o tinha levado, criança ainda, para ver o corpo vertical, hirto, do homem que lhe tinha dado o sangue. O seu pai? Um fantoche azul na ponta de uma corda, sujo de vómitos e esperma. Morte de um pai neurótico e sifilítico, mas divergência amável numa família ao contrário da que ele desejaria ter; um aumento de distâncias, um aperfeiçoamento nas guerras. Klaus Mann: As suas tendências, as suas aversões e até o seu aspecto exterior eram determinados por um ressentimento exaltado para com a família burguesa, em especial para com a mãe. Como a velha senhora Crevel só se vestia de preto, René escolhia as cores mais berrantes para fatos, camisas, peúgas e gravatas. Era frequente aparecer com um ar excêntrico por acrescentar à roupa tão singular uma fisionomia só sua — semi-arcanjo, semi-boxeur.


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Tinha lábios carnudos de criança, cabelo com emaranhado selvagem e olhos inverosímeis. Philippe Soupault: Era um ser que vibrava. Vibrava desde a cabeça até aos pés, e devo acrescentar que dolorosamente. Mesmo o seu riso tão assustador, tão trágico, tão intolerável, era uma revolta. Klaus Mann: Passava o tempo com americanos, alemães, russos, chineses porque a sua mãe considerava todos os estrangeiros indivíduos criminosos e doentes. Bebia uísque e gin porque o seu cheiro a enjoava. Detestava o cristianismo porque ela frequentava a igreja. Como era puritana chocava-a com as suas obscenidades. Brincava publicamente com a morte do seu pai porque a viúva ocultava esta vergonha familiar. Atrás deste programa a sedução generosamente entregue pelo físico, a transbordar de iluminações de espírito, de uma forte e intempestiva fragilidade. Philippe Soupault: Falou-se muito do encanto de René Crevel. Quando o víamos, quando lhe falávamos, sabíamos que estávamos na presença de um ser diferente, e emprego esta palavra com o seu mais forte sentido. Tinha decidido dirigir o seu destino para não cair na facilidade, na banalidade dos meios literários, no êxito a qualquer preço. Mas era capaz de roçar perigosamente estes escolhos. Estou convencido de que esquecia com facilidade os seus livros, que eles eram garrafas atiradas ao mar. Klaus Mann: Não era elegante nem atento aos pormenores do comportamento, nem espiritual no mais vulgar sentido do termo. O seu encanto fulminante — talvez o homem mais dotado de encanto que alguma vez conheci — incluía um elemento trágico e selvagem, uma espécie de exaltação desesperada vinda do âmago e a comunicar-se a todos os gestos, às palavras e aos olhares. Havia nos seus


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olhos qualquer coisa indescritível — estrelas com uma vastidão cheia de luz, como dilatadas por um pânico constante ou um interminável esplendor. Olhos que não se encontram muito nesta época mesquinha. Não tinham nenhuma cor definida e pareciam feitos unicamente de uma luz matizada. Prodigiosas coisas se passavam nas suas profundezas agitadas: explosões de electricidade chegada do além, seguidas por obscurecimentos bruscos, como se lhe descessem da testa sofredora as sombras da dor até estes astros irradiantes. Paris ignorou-o — jovem de mais e lateral — até surgir licenciado nas coisas do direito e também das letras, dandy mundano e homossexual de bandeira mas solitário, mas narcisista e sempre a perder-se e a inventar-se num corpo, a correr para sanatórios de montanhas altas que não souberam nunca curar-lhe a dependência do ópio nem matar os bacilos da tuberculose pulmonar. Salvador Dalí: A sua existência era passada entre constantes «idas para», e «vindas de» casas de saúde. Ia para lá morto para reaparecer renascido, florescente, novo, luzidio e eufórico como um bebé. Mas isto durava pouco. O frenesi da autodestruição tomava depressa conta dele e recomeçava a angustiar-se, voltava a fumar ópio, a bater-se contra insolúveis problemas ideológicos, morais, estéticos e sentimentais, a entregar-se sem medida à insónia e às lágrimas, até de tudo isto morrer. Como um obcecado olhava-se então em todos os espelhos para maníacos-impulsivos do Paris deprimente e proustiano desse tempo, sempre a repetir: «Tenho ar de quem está morto, tenho o aspecto de quem já morreu», até perder todas as forças e confessar a alguns íntimos: «Gostaria mais de morrer, a ter de viver assim mais um dia.» Mandavam-no para um sanatório desintoxicar-se, e meses de cuidados intensivos faziam René renascer. Víamo-lo ressurgido em Paris, a transbordar de vida como uma


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criança feliz, vestido como um gigolô superior, brilhante, super-ondulado, já a matar-se com um optimismo de livre curso em generosidades revolucionárias; e depois entregue progressivamente mas de forma inelutável ao fumo, a torturar-se crispado, encolhido sobre si mesmo como uma voluta de feto sem hipótese de sobrevivência. Falava e escrevia sobre o suicídio. Sentia a vida como uma energia de pequenos suicídios com a sua maior realização no acto brutal que conferia passagem à não-existência. René Crevel: A actividade é igual à soma do que chamamos suicídios provisórios. Mas depois destes suicídios provisórios poderei imaginar um gesto definitivo que me permita terminar de vez uma vida de que só gosto acreditando-a precária, e que detesto mal me parece a simples projecção terrestre de um momento de caminhada eterna? A inteligência leva ao suicídio. Mas falei de certas sensações de alma. Esta precisa sensação de alma que não é o medo nem a alegria força-me a prosseguir com o que iniciei. Mas não será a obcecação pelo suicídio o melhor remédio contra o suicídio? René Crevel sentia-se surrealista; e tinha vontade de pertencer àquele grupo que teorizava a arte e a vida em manifestos onde a vara autoritária de André Breton se erguia para marcar territórios não contaminados por velhas águas. Encontrava na sua mensagem o ponto supremo onde a vida dá resposta aos infinitos do desejo humano. O seu entusiasmo foi provisoriamente aceite por André Breton homófobo de raiz, pouco paciente para aventuras de um só sexo e quem as procurasse na agitação mundana. E embora Crevel se protegesse com uma competente sedução foi excluído, advertido, readmitido e salvo — não haja a tal respeito grandes dúvidas — por dois livros: O Meu Corpo e Eu (de 1925), La Mort Difficile (de 1926), inequívocas colagens às estéticas de um Movimento com a maior parte dos seus escri-


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tores menos talentosa do que ele. Como rejeitar uma voz que poderia a tão alto levar o discurso surrealista? O Meu Corpo e Eu ficou como sua obra mais célebre. Jogo de alternâncias, ficção e realidade autobiográfica a inventarem um corpo duplo, seu e de uma imagem no espelho, a impossibilidade de qualquer deles ser o verdadeiro ou o seu reflexo. As limitações desta experiência escrita e idealista fizeram-no aspirar à solução prática do mesmo angustiado inquérito, para ele o comunismo — «comunicação universal dos corpos, das línguas, do corpo da língua e da língua do corpo» — e neste entusiasmo a impossível coabitação, a do Surrealismo e do Comunismo unidos na expressão universal de um promissor destino para a humanidade. Crevel inscreveu-se no Partido; foi esforçado revisor dos realismos secos do jornal L’Humanité; e em 1932 publicou Le Clavecin de Diderot, onde teorizava a cândida união de duas atitudes que em comum pouco mais tinham do que o sobrolho franzido às decadências da burguesia. André Thirion: Crevel procurava dar realidade a todas as esperanças que em 1932 tínhamos posto numa união definitiva e total do Movimento Surrealista e do Partido Comunista… Entregou-se a Marx e Lenine, e nos últimos anos de vida encontrou neles o essencial da sua inspiração… A doença tinha-lhe dilatado a vida interior e conferido uma espécie de distanciamento em relação às coisas, devolvera-lhe um corajoso pessimismo. Valeu de pouco ao Movimento pôr as suas hostes a gritar um discurso apaixonado pelos valores sociais e polítivos do Comunismo. A classe operária — murmurava então o Partido perante estes fervores indesejáveis — nunca poderia compreender intelectuais de uma «burguesia apenas disfarçada», a incompreensível visão do mundo que dava pelo nome de surrealista. Em 1933, o corpo estranho André Breton ainda insistia em elogiar uma U.R.S.S. que não via com bons olhos os comportamen-


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tos da sua hostilização burguesa. O seu orgulho acabou por incitá-lo ao pedido de demissão que passava a confirmá-lo como não-militante; mas também houve a que foi gota a mais no copo dos surrealistas: um irónico texto de Ilya Ehrenburg publicado pelos Izvestia: Os surrealistas — dizia às tantas o escritor soviético — querem muito a Hegel, a Marx e à Revolução, mas o que eles se recusam é a trabalhar. Têm outras ocupações. Estudam por exemplo a pederastia e os sonhos… Entretêm-se a fabricar jogos de palavras obscenos. Os mais pacíficos confessam que o essencial do seu programa é andar atrás das raparigas. Os mais espertos compreendem que assim não vão longe… Elaboram todo um programa: onanismo, pederastia, fetichismo, exibicionismo e até sodomia. Ora, a tudo isto se misturou também a AEAR (sigla para os que evitavam o extenso de Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários) dominada e manobrada pelo Partido Comunista Francês. Salvador Dalí: Os surrealistas, animados de uma grande generosidade idealista, e aliciados pelo carácter equívoco do título Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários, tinham lá ido inscrever-se em massa e formavam a maioria desta associação de burocratas de meia tigela. Como todas as associações deste género, destinadas a afundar-se no vazio e tocadas por uma nulidade congénita, o seu primeiro cuidado foi abrir as portas de um Grande Congresso Internacional. Era fácil discernir de antemão o objectivo de um tal congresso: começar por liquidar todos os escritores e todos os artistas que demonstrassem um mínimo de valor, e principalmente os que já tivessem mostrado ou mantivessem qualquer ideia subversiva, portanto revolucionária. O congresso da AEAR chamou a Paris um vasto grupo de intelectuais revolucionários. Chegavam de outros países da Europa, um ou


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dois da América do Sul, e Breton conheceu fraternidades oferecidas pelos que seguiam noutros lados o Movimento onde ele era o fulgurante e incontestável astro. Deu-se então o fatal encontro com antecedentes para o suicídio de René Crevel. Michel Carassou: Uma sexta-feira depois do jantar, André Breton regressava do bulevar Montparnasse com Nezval, Styrsky, Toyen e Péret. (Três surrealistas checos, nesses dias em Paris, e Benjamin Péret, membro do Movimento Surrealista francês.) E quando se aproximavam da Closerie des Lilas, Toyen reparou que Ilya Ehrenburg saía de um restaurante e estava prestes a atravessar a rua. — Onde está ele? — perguntou Breton. — Nunca lhe pus a vista em cima. Breton nunca se tinha encontrado com o correspondente em Paris dos Izvestia, mas não ignorava o que ele tinha escrito sobre o surrealismo. — Vou ajustar contas consigo — disse quando fez Ehrenburg parar a meio da rua. — Quem é o senhor? — Sou o André Breton. — O quê? Não sei de quem se trata. Breton várias vezes repetiu o seu nome, sempre acompanhado por uma bofetada. E depois foi a vez de Péret «ajustar contas» com o escritor, que não se defendia e procurava apenas proteger o rosto com uma mão. — Andam mal em fazer isto — afirmou, quando Péret deu o «ajuste» por terminado. Apesar de ocorrido longe de Crevel, foi este encontro que suicidou Crevel. Deixar a arder a cara de quem tão habilmente torcia os cordéis da AEAR? A bofetada era recorrente no azedume dos surrealistas franceses, central no seu código dos gestos correctores. Poder-se-ia escrever


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todo um texto sobre as bofetadas surrealistas coleccionando motivos e ocasiões em que A esbofeteou B, e B esbofeteou C. (Uma, tardia porque do Surrealismo do pós-guerra e já distante do seu período mais interventor, deu-a Breton à escritora Rachilde.) Salvador Dalí: O único membro do grupo que acreditou na eficácia da intervenção surrealista no seio daquele Congresso Internacional, foi René Crevel… que fez dele seu terreno de voo e se transformou num seu fervoroso advogado… Surrealista, estava a ser honesto quando acreditou que podíamos marchar de concerto e sem concessões com os comunistas. No entanto, já antes da abertura do Congresso as mais baixas intrigas e os piores murmúrios de bufo tinham feito o seu curso para assegurar a liquidação pura e simples da plataforma ideológica que sustentava o nosso grupo. Crevel era uma lançadeira entre comunistas e surrealistas; tentava conciliações esgotantes e desesperadas, morria e renascia. Cada noite lhe trazia um drama e uma esperança. E o mais terrível drama foi a sua zanga com Breton. Crevel contou-ma com lágrimas infantis. Não lhe encorajei a via comunista… Depois de uma semana de espera, as intrigas dos bastidores do congresso consumaram-se na declarada impossibilidade de Breton ler o relatório do grupo surrealista. Paul Éluard foi encarregado de apresentar uma versão sua muito edulcorada e minimizada. Era provável, depois deste dia, que os minutos de Crevel se despedaçassem entre os que eram deveres do partido e exigências do grupo surrealista. Decidi por fim telefonar-lhe; e na outra ponta do fio respondeu-me com desprezo olímpico uma voz estranha: «Se for de algum modo amigo de Crevel, tome imediatamente um táxi e venha até aqui. Ele está a morrer. Quis matar-se.» Crevel tinha ultrapassado a sua perplexidade perante o suicídio sonhado em Détours, quando escreveu: um chá no fogão a gás; a janela


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bem fechada, abro a torneira de chegada, esqueço-me de acender o fósforo; perante o que tinha surgido na revista Le Disque Vert: A inteligência conduz ao suicídio; o que estava nas páginas de O Meu Corpo e Eu: Não é verosímil que nenhum amor, nenhum ódio seja justo nem definitivo. No entanto, apesar de eu ter tido uma educação moral e religiosa despótica, a estima que muito contra vontade minha sou forçado a manter por qualquer pessoa que não tenha sentido medo nem limitado o seu impulso, o impulso mortal, leva-me todos os dias a invejar ainda mais os que sentiram uma angústia forte, ao ponto de não poderem continuar a aceitar os divertimentos episódicos… A vida que aceito é o mais terrível argumento contra mim próprio. A morte que várias vezes me tentou ultrapassava em beleza esse medo de morrer, na sua essência uma gíria, e ao qual poderia também chamar tímido hábito. Parece estranho que a sua filosófica argumentação do suicídio não evitasse a ligação directa ao facto exclusivamente político e, dir-se-á, abaixo das razões existenciais que deveriam ser únicas a justificá-lo. René Crevel vencia, e afinal com razões más, esta hesitação antiga: Quis abrir a porta e não me atrevi a fazê-lo. Sinto, acredito, quero sentir, quero acreditar que fiz mal porque não encontro nenhuma solução na vida, apesar do esforço que faço a procurá-la; mas se não tivesse vislumbrado no gesto definitivo, último, a solução, de onde me teria chegado força bastante para fazer mais essas tentativas? Crevel afastou-se destroçado dos comunistas da AEAR; estavam a destruir-lhe um sonho; mostravam-lhe uma realidade toda exterior ao sonho, diziam-lhe que o Surrealismo e o Comunismo não caminhariam nunca de mãos dadas. Andou com este fantasma pelas ruas de Paris; e quando chegou ao número 25 da rua Nicolo lembrou-se, por certo, do que tinha há nove anos escrito em La Mort Difficile. Cum-


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priu a sua receita fechando a porta, fechando a janela e abrindo a torneira do gás. Ao forro do casaco prendeu o bilhete destinado a marca derradeira do seu negro humor: Nojo, pede-se o favor de incinerar. Salvador Dalí: Saltei para dentro de um táxi, e quando cheguei à rua onde ele vivia espantei-me com a multidão que lá estava parada. Havia um carro de bombeiros à frente da porta. Nada compreendi do que poderia existir entre bombeiros e suicídio, e só depois de uma associação tipicamente daliniana percebi que um incêndio e um suicídio se acasalavam na mesma habitação. Entrei no quarto cheio de bombeiros. René mamava oxigénio com o ar guloso de um bebé. Nunca vi ninguém tão agarrado à existência. Depois de se matar com o gás de Paris, tentava renascer com o oxigénio de Port-Ligat. Antes de se suicidar tinha escrito com letras maiúsculas bem firmes num cartão preso ao seu pulso: René Crevel. Os bacilos de uma tuberculose trabalhavam incansavelmente a sua matéria pulmonar — entretinham-se a destruir os lóbulos já reduzidos na sua massa pela barreira clínica do penumotórax. Mas não seriam eles os agentes decisivos da sua morte. Preparariam apenas, com ajuda dos cachimbos de ópio, a maior debilidade, a incapacidade de resistir a um generoso fluxo de gás butano. Michel Carassou: Entrara tarde em sua casa, depois da reunião com os organizadores do Congresso dos Escritores. Logo de manhã alertados pelo cheiro a gás, inquilinos do edifício onde ele morava pediram ao porteiro para abrir a porta do seu apartamento. Havia no interior outra porta fechada à chave, que foi preciso arrombar. O quarto estava cheio com o gás que saía de uma torneira aberta, e Crevel deitado no chão ainda respirava… Transportaram-no para o hospital Boucicaut. Mas quando lá chegou o coração do desesperado deixara de bater.


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Em 1952 puderam ler-se as entrevistas coleccionadas de André Breton, e ele lembrava-se assim de René Crevel: Na antevéspera da abertura do Congresso, o nosso amigo René Crevel matou-se depois de uma cansativa discussão com os seus organizadores, alimentando a inútil esperança de me ser dada a palavra. Perdemos com ele um dos melhores amigos da primeira hora, ou quase, um dos que tinham emoções e reacções verdadeiramente formadas pelo nosso estado de espírito comum, o autor de obras como L’Esprit contre la Raison e Le Clavecin de Diderot, que a não existirem teriam significado a ausência de uma das mais belas volutas do surrealismo. É bem certo que o desespero de Crevel apenas foi o «supradeterminismo», para o qual ele desde há muito admitia outras causas latentes. O surrealismo? Reflectiu longamente sobre ele em Le Clavecin de Diderot, por exemplo assim: Extrair dos abismos o que foi sagrado pelo homem como tesouros, porque só isso permitia que a massa de ignorância, de esquecimento, de recusa que ele pôs entre a sua consciência e os seus pretendidos tesouros, os considerasse como tais; levar ao mundo fenómenos através dos meios que lhe são próprios (sono, transcrição de sonhos, escrita automática, simulação de delírios nitidamente caracterizados), aquilo que cada criatura, sob as espessuras com que ela os envolveu, considera seu nódulo numenal; agitar o inconsciente até à toca de toupeira onde os desejos do homem se retraem, estropiam no temor das avalanchas homicidas; traçar na terra que parecia condenada a entulho grandes estradas claras, luminosas; libertar à circulação tudo quanto era zona proibida; designar vias novas de comunicação aos espíritos que queriam fazer à má sorte boa cara, esforçando-se por tirar partido, ter orgulho num isolamento com uma miséria estúpida que eles fingiam tomar por patética magnificência.


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René Crevel matou-se em 18 de Junho de 1935, com a idade de trinta e cinco anos, e o Surrealismo sobreviveu como movimento até 1940. A Segunda Guerra Mundial dispersou os seus membros, e André Breton refugiou-se nos Estados Unidos da América até 1946. Um «novo» surrealismo de pós-guerra juntou vozes literárias e artistas plásticos, mas sem pretexto nem energia que voltassem a mostrá-los reunidos num movimento agitador. Breton limitava-se a patrocinar exposições e fazer sentir-se como presença no que mais animava a revista La Brèche. René Crevel era lembrado como o seu irrepetível golden boy. Tinha sido um espírito fulgurante e passava a ser saudade indispensável nos que atingiam a idade das memórias. Marcara duplamente o Surrealismo com as desgraças de uma única hora: do seu maior fracasso político, do acto brutal que lhe ofereceu o mais chorado suicida. Bem tinha avisado Crevel: Na nossa família suicidamo-nos muito. A.F.

Vozes extraídas de Breton (André), Entretiens, Gallimard, Paris, 1970. Carassou (Michel), René Crevel, Fayard, Paris, 1989. Crevel (René), La Mort difficile, Pauvert, Paris, 1974. Détours, Pauvert, Paris, 1985. Mon Corps et Moi, Pauvert, Paris, 1985. «Mais si la mort néstait qu’un mot», Le Disque Vert n.º 1, 1925. Le Clavecin de Diderot, Pauvert, Paris, 1966. Dalí (Salvador), «Préface», in La Mort difficile. Desanti (Dominique), Robert Desnos, le roman d’une vie, Mercure de France, 1999. Erhenburg (Ilya), Vu par un écrivain de l’URSS (citado em Entretiens de André Breton). Mann (Klaus), Der Wendepunkt, ein Lebensbericht, Spangenberg Verlag, Munique, 1982. Soupault (Philippe), Profils Perdus, Mercure de Farnce, Paris, 1963. Thirion (André), Révolutionnaires sans Révolution, Robert Laffont, Paris, 1972.


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Ă€ que sabe viajar e julgar.


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i d o t e m p o d o s outros

Jantamos cedo e depressa nos pequenos hotéis de montanha. Eu estava sozinho à mesa. E agora estou sozinho no meu quarto. Sozinho. Com tanta força e tão longamente desejei esta aventura, que muitas vezes tive dúvidas de poder algum dia vê-la acontecer. Ora, realizado enfim o meu voto, fico esta noite à minha disposição. Nenhuma ponte me conduz aos outros. Dos que mais e melhor amei só tenho a memória de uma flor, uma fotografia. A flor, uma rosa, murcha no copo de lavar os dentes. Ontem, à mesma hora, desabrochava na minha capa. A altura da botoeira permitia que a flor me surpreendesse o rosto mal ele se baixava. Mas antes de se espantar com uma suavidade vegetal, a minha pele de fim de tarde tinha sempre reminiscências de cravo. Durante todo um Inverno, toda uma Primavera, não teria eu querido confundir a felicidade com essas pétalas de bordos recortados sobre o bom comportamento nocturno de uma seda duramente moldada com forma de lapela? Todo um Inverno, toda uma Primavera. Ontem. Numa estação de caminhos-de-ferro e com olhos fechados, uma flor ainda nos condena a acreditar em tapetes, em ombros à mostra, em pérolas. Por isso já não me atrevo a esperar que a solidão seja possível.


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No entanto ela foi todo o meu desejo nos teatros onde o vermelho do veludo das cadeiras desde há meses me parecia a verdadeira cor do tédio. Ela apenas, a que eu procurava nas ruas quando as casas, ao cair do dia, para novas tentações iluminavam os seus invólucros de pedra de uma túnica complicada até ao irreal. Guloso por álcool, jazz, tudo o que embriaga, eu ainda entrava nos locais onde se dança, bebe e nos embriagamos, e eu dançava e bebia indiferente ao que ia ouvindo, mas feliz por ouvir, dançar, beber para esquecer os outros que embora me tivessem limitado não tinham prestado nenhum auxílio. Sim, lembro-me bem. Duas horas, as da manhã. O bar é minúsculo. Faz muito calor. A porta abre-se. Viva a frescura. Alguém dá-me os bons-dias. Uma mão afaga-me o ombro. Estou feliz, não pela voz nem pela mão, mas porque é tão suave o ar que vem surpreender-me. Digo bom-dia à frescura sem nenhuma necessidade das palavras que os seres humanos usam para cumprimentar. Ai de mim! Só há ali a frescura que se aproveitou da porta. Eu tinha-me esquecido dos meus semelhantes. Um ser humano esforça-se por fazer lembrar-me deles. Insiste, sou beijado. Deve retribuir-se delicadeza com delicadeza; e lá recomeçam os simulacros: «Bom-dia, espírito vestido com um corpo». Gosto desta fórmula, repito-a. O espírito é isto mesmo, eu queria refazer uma pureza de jogador de xadrez, não renunciar à felicidade mas viver, actuar, deleitar-me com pensamentos. Nunca houve contacto humano que alguma vez me impedisse de sentir a solidão. De que valerá então sujar-me? Acabaram-se as alegrias (?) da carne. Repito uma terceira vez: «Bom-dia, espírito vestido com um corpo», dando assim o tom de uma nova confiança a quem acaba de entrar.


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Ai de mim! Quer a má sorte que eu fique mesmo ao pé de um corpo que se julga vestido com um espírito. Rimo-nos, zangamo-nos, marco a oposição que existe entre mim e o outro: «O meu espírito veste-se com um corpo e tu, o teu corpo, julga que se veste com um espírito.» Prevejo a bofetada, defendo-me dela e mesmo assim apanho-a. Bom-dia. Boa-noite. Vou ver como nasce o sol no Bosque de Bolonha. Caminhei. A aurora pendurava nas árvores farrapos de inocência. Um pequeno barco acabava de se enferrujar, abandonado pelos homens. Feliz com a sua sorte. Solitário como eu. Sozinho. Nova ilusão. Parece que o outro vem atrás de mim. Oiço-lhe a voz: «Olha, é o iate daquela actriz que se afogou no Reno.» Sim, estou a lembrar-me. Lembrarmo-nos. Outra vez, sempre. O meu professor de filosofia tinha afinal razão quando dizia que o presente não existe. Mas ali o problema não é esse. Há no Sena um iate abandonado. Quem se atreveria a lá viver depois de uma actriz se ter atirado dele à água numa noite de orgia, para se afogar no Reno? Foi, segundo creio, no Verão de 1911. 1911. O ano da minha primeira comunhão. Uma noite de orgia, tinha repetido a cozinheira a comentar o suicídio que talvez fosse um assassínio. Nos meus sonhos orgie rimava com hostie1. Por que se oferecem ao meu amor criaturas culpadas ou infelizes? Eu queria que os rios fossem amaldiçoados, os canais por onde esta barcaça tinha chegado até à ponte de Suresnes, última casa humana de uma mulher que a minha infância, crédula perante o que diziam os programas e L’Illustration, julgava afortunada. «É uma rainha do nosso Paris», sentia prazer em repetir uma amiga da minha mãe que gostava da pompa. 1

«Orgia» e «hóstia», respectivamente. (N. do T.)


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Ela ter-se-ia também sentido abominavelmente livre na sua solidão entre os outros, uma vez que não quis saber dos convidados e numa noite de embriaguez, ou seja, de coragem, se atirou à água do rio? Fada de plumas amazonas, que reinastes sobre a idade dos vestidos-calções, eu nego a presença da outra para te dedicar a minha solidão nesta ponte da orla do Bosque de Bolonha, durante a alvorada de um dia de Junho. Amei-te muito. A ti e à dama do pescoço à mostra. Ainda te amo, embora tenha de confessar que amei ainda mais a dama do pescoço à mostra1. Durante a minha infância as mulheres só mostravam o peito para ir ao baile. Na primeira metade do ano de 1914, uma cidadã de Genebra anunciou-me os cataclismos que na Côte d’Azur iriam ensurdecer-me a adolescência por causa das blusas decotadas. Mas como ela usava sempre um hermético véu de seda preta, o seu país ficou à margem de qualquer catástrofe. A dama do pescoço à mostra adiantou-se vários anos às elegantes de 1914. O que lhe deu má reputação. Era a mulher mais célebre do mundo; acusavam-na de ter morto o seu marido e a sua mãe, e por causa dela comprávamos os jornais às escondidas. Aos olhos dos meus camaradas, que por causa da geografia dos corpos começavam a ligar menos à colecção de selos, o mais interessante em todo este caso era a bem dizer o sobrenome do jovem criado de quarto, que não surpreendia menos do que um palavrão dito em público2, e com o seu bem divulgado triunfo vingava as in1 Em 1923, Crevel publicou um texto intitulado «A Dama do Pescoço à Mostra», uma mulher não identificada que mais tarde foi, segundo ali se diz, uma lady. (N. do T.) 2 Dir-se-á a seguir qual era este nome: Couillard, que sugere couille, a palavra mais forte do calão francês para testículo. (N. do T.)


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vestigações clandestinas, e com frequência infrutíferas, que os estudantes faziam no Larousse em sete volumes, nos semanários licenciosos e nas canções de pataco com mulhers nuas que babavam nos rostos, nos peitos e nas barrigas das pernas uma tinta de impressão que nunca secava. Para mim, e apesar do sobrenome, este Rémy não me interessava nada. Não valia mais nem menos do que qualquer outro Couillard e, de resto, prolongava orgulhosamente a linha dos vulgares tipos que ficam bem na primeira página dos jornais. Eu amava a dama do pescoço à mostra, e amava-a por ser a dama do pescoço à mostra. Acomodava-me muito bem a esta paixão, julgava-a absoluta e circunscrita; e porque ignorava os princípios da relatividade, fazia-o só com o argumento de a mim próprio outorgar esta glória das ciências, alegria das reuniões mundanas, suplício dos corações. A dama do pescoço à mostra é a dama do pescoço à mostra; com letras que só eu conseguia ler, escrevi esta frase no papel de parede do meu quarto de criança. E deixava assim de me sentir entediado. Eu tinha oito anos, e quando se abriram as portas do cárcere não havia mais ninguém a defendê-la sem exibicionismo, sem esperança de tirar daí o menor proveito. Ainda hoje a vejo como as revistas a mostravam. No compartimento dos acusados era uma coisa pequena, franzina ao máximo sob um monte de crepes. Representavam-na de frente ou voltada para a direita, para a esquerda, desmaiada, mais forte no véu do que nos músculos. Outras vezes a dor da sua fronte arrastava até às mãos as insígnias do duplo luto. Mas quaisquer que fossem estes movimentos, todo o seu mistério não tinha mais do que um eixo.


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À frente do espelho eu reconstituía os arrepios que lhe partiam das clavículas e chegavam à cabeça imóvel. Os juízes não podiam condenar uma mulher com tão formosos gestos entre o queixo e os ombros. Absolvida, a dama do pescoço à mostra publicou as suas memórias. Abstive-me respeitosamente de as ler. Casou com um estrangeiro de muito bom nascimento. Deu-me vontade de escrever a este marido: «Beije-lhe demoradamente todo o pescoço, o seu pescoço à mostra.» Agora, a idade devia obrigá-la durante o dia à mentira das golas herméticas; e durante a noite à astúcia de tules muito habilidosamente vaporosos. Ela, que julguei a única, ela, que eu esperaria ver para sempre igual a si própria na minha memória, já deixou de estar como um ovo para a sua casca. A Perrete da fábula nunca se enganou mais do que ela. Fiz-me um homem, e a dama do pescoço à mostra deixou de ser a dama do pescoço à mostra. Agora há um alvorecer no Bosque de Bolonha. Para eu ser obrigado a acreditar que o dia recomeça, eléctricos exageram as estridências, a sua maquilhagem amarela. Afirmação de um subúrbio que faz uma piscadela de olho e nada oferece capaz de me impressionar, que me lembra aquilo que um filósofo verificou: «Morrer é desinteressarmo-nos.» Se eu apenas sou tangente ao mundo, por que me não é permitido cair já aqui em pó, a dois quilómetros da Porta Maillot? Mas como Deus Pai não me quer no Paraíso dele, vai ser preciso que eu volte, como ontem, a dar uso a objectos, a criaturas terrestres. Mesmo que eu não esteja hoje disposto a «atirar-me» a alguém. Por sorte, para me salvar existe o outro.


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O outro acha que a contemplação durou tempo de mais. Oiço: temos de ir para casa. É verdade, a alvorada conduz ao amor. Então vamos. Na minha casa deito a mão a esse corpo, como já tive a honra de o ter feito a vários outros só por vontade de me livrar dos mais precisos desejos, sem a esperança de satisfazer algum deles e sem o gosto de os prolongar. E embora eu me tivesse condenado durante algum tempo aos rodeios, para dizer a verdade senti sempre vergonha destes ziguezagues que não levam o homem a nenhuma exaltação (como me parece que a solidão hoje pode, deve levar) e até chegam a deixá-lo em plena névoa, no meio daqueles outros de quem não sabe extrair nenhuma alegria. Por isso me pareceu sempre que o grito nasce apenas da necessidade de evasão, o que foge por acaso da boca e me percorre toda a pele despida, o grito «mata-me» quando é resposta à minha prece por pudor não confessada, e que ao mesmo tempo é conforto e uma exaltação para o meu triste segredo, já que é a vontade de actuar exercida contra um simples sexo, o lado cara-ou-coroa de um indivíduo completamente vestido ou despido, visível ou figurado, uma massa, um povo. E se a ciência oferecesse um meio de nos matarmos, não direi agradavel mas pelo menos limpo e seguro, por certo eu não teria feito a tentativa do amor nem destas partidas, com a última a levar-me à meditação desta noite na montanha. Ora, já não é de mim que hoje pretendo fugir, mas dos outros com quem comecei por me querer perder. Devo aos meus amigos, aos meus inimigos, a mais cruel das obsessões: os seus olhos, os


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meus, líquidos com densidades diferentes que se sobrepõem e nunca podem verdadeiramente penetrar-se, misturar-se. Orgulhoso e ao mesmo tempo ingénuo, aceitei amar os seus olhos porque queria descobrir-me neles à transparência, e além do mais tinha-os durante muito tempo desejado com a certeza de que iriam vingar-me do insuficiente mistério dos espelhos da minha infância. Tratava-se, Narciso, de me afogar. Um ribeiro imobilizado ao longo dos muros não tinha querido saber de mim. Padaria, era-me anunciado em letras de ouro, e um feixe disseminava-se no espelho. O rio vertical das lojas não tinha levado consigo os fios de palha nem os fios de sonho. Desde então resolvi deixar a alegria e a dor num sítio qualquer, fora de mim, mas foi tão grande a minha loucura, que a tudo quanto era ser encontrado na estrada sombria pedi, não o divertimento, não uma qualquer exaltação a que o amor experimentado me pudesse deixar tangente, mas o absoluto. O absoluto? Eu perdia-me. Ter-me-ia de acusar de orgulho ou, pelo contrário e para minha defesa, dizer que procurava nos seres a revelação de uma alma universal? Ai de mim! Só de tempos a tempos podia voltar a descobrir este pequeno monte de ossos, de papilas feitas para o prazer, de ideias confusas e sentimentos claros que usavam o meu nome. Lagos de decepções que eu teria tomado por espelhos, como amar ainda os olhos que me são estranhos? Ora, o que eu vi um dia à transparência, e desta vez nos meus olhos, foi os olhos deles, os olhos dos outros. Os outros, com uma existência em que eu não podia acreditar, e no entanto triunfavam sobre mim. A partir daí, como não desejar o minuto em que fosse possível, liberto de todos os pensamentos, desembaraçar-me da própria memória?


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vii a m o rt e e a verdade

Só a morte, quando petrifica os mais queridos rostos, nos permite acreditar que é uma expressão definitiva, e também definitivo o sentimento que por causa disto nasce no mais secreto de nós. Mas quanto às afirmações que o movimento constantemente renova, há um pouco de verdade em cada uma delas, embora limitada pelo tempo e sem podermos confundi-la com a verdade. Por isso o minuto actual faz da franqueza anterior uma mentira. Não obstante a vida acaba, e todos os cordéis se partem. Os fantoches renunciam aos subterfúgios da agitação, à simuladora epilepsia. Os edifícios convencionais desabam sob as suas escoras de mentira, e mesmo que choremos a catástrofe e acreditemos que a desgraça ainda vai fazer recuar certos limites, quando contemplamos a derrocada onde ficou submerso aquilo a que devíamos a maior porque mais garantida felicidade, bem depressa somos levados a pensar que mais vale ser assim porque aquele em que pusemos a nossa complacência se diviniza a seguir à morte e, pelo contrário, menoriza-se até merecer o ódio se o fogo ilusório de amor ou de amizade se apagar só pela acção da chamada força das coisas que nunca deixa de triunfar sobre a força dos seres. Incapazes de viver sem o travo da dúvida, quando nos é arrebatada a criatura que sentimos mais perto de encarnar a perfeição ficamos felizes por ela não ter encontrado tempo nem momento para sair do círculo ideal onde a exigência do nosso amor preten-


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dia circunscrever a sua humanidade difusa; e é por isso que à frente do seu caixão cedemos menos ao desgosto do que à dilacerante exaltação, mas ainda assim exaltação, de pensar que nos foi concedida uma recompensa; e se ela não é levada por diante isso deve-se apenas ao facto de a condição humana chegar para impedi-la de consumar-se de forma duradoura, embora o não faça à fraqueza daquele a quem isto devemos. Além do mais, a magnificência de um corpo que se desembaraçou da vida e que as nossas mãos rosadas, quentes mas fracas, não se atrevem a tocar, parece já de um mundo onde o seu verdadeiro e insensível reino começa, uma vez que o sensível, ao qual devemos a nossa renovação, quer dizer, a nossa negação e a nossa renegação constantes, nada de definitivo saberia tolerar. Os nossos amores, os nossos ódios, as nossas mais apaixonadas experiências? Reflexos na água; e para nossa desgraça, para nossa vergonha, aprendemos que a água não tem cor, nem sabor, nem odor. Como somos condenados a não saber se qualquer dia estaremos delimitados, camaleões de formas e cores, não chegamos a fixar certos reflexos na água que seduzem, porque apesar do desejo que sentimos de fazê-lo não decidimos, apesar de tudo, acreditar que são reais, para justificar o abuso do poder tentamos fabricar uma verdade do inapreensível. O movimento continua a deformar à nossa volta objectos e seres, e tão bem o faz que não os reconhecemos. Não obstante, falamos de verdade. De verdade relativa. E são ramos de flores combinados. Juntamos as suposições, pobres flores que nos pareceram durante um certo momento adequadas a distrair os menos frívolos. O conjunto murcha depressa. A era dos divertimentos não pode durar.


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René Crevel O MEU CORPO E EU

René Crevel O MEU CORPO E EU

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

O corpo duplo, o verdadeiro ou o seu reflexo. O golden boy do surrealismo e o seu mais amado suicida. «Na nossa família suicidamo-nos muito.»

www.sistemasolar.pt

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