René Crevel, «A Morte Difícil»

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René Crevel A MORTE DIFÍCIL

René Crevel A MORTE DIFÍCIL

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

Na nossa família suicidamo-nos muito.

www.sistemasolar.pt

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TÍTULO DO ORIGINAL: LA MORT DIFFICILE

© SISTEMA SOLAR, CRL (2018) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: COLAGEM COM CÉU MÁGICO E UM RESTO DE MAGRITTE REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO 2018 ISBN 978-989-8833-35-8 —————— DEPÓSITO LEGAL 000000/18 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL

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René Crevel descreveu-se numa «Autobiografia» que lhe foi pedida em 1926 pelas Editions du Sagittaire: Nascido no ano 1900 em Paris, a 19 de Agosto, de pais parisienses; isto permitiu-lhe ter um ar eslavo. Liceu, Sorbonne, Faculdade de Direito; o serviço militar até ao fim de 23 dá-lhe a impressão de só estar, desde há poucos meses, verdadeiramente a viver. Não foi ao Tibete nem à Groenlândia, nem mesmo à América, mas as viagens que não tiveram lugar à superfície tentou fazê-las em profundidade. Pode portanto gabar-se de conhecer, de dia e de noite, certas ruas e os seus hotéis. Tem horror a todos os esteticismos, sejam os de Oxford e das calças largas, dos negros e do jazz, dos bailes populares, das pianolas, etc. Bem gostaria de encontrar em romances futuros personagens tão nuas e tão vivas como as facas e os garfos com papel de homens e mulheres nas histórias que a si próprio contava quando era criança, e se arriscam a permanecer inéditas. [Note-se que o primeiro capítulo do seu quarto romance, Babylone, intitular-se-á «Monsieur Faca, Mademoiselle Garfo».] Tinha começado as suas investigações para uma tese de doutoramento em Letras sobre Diderot romancista, na altura em que fundou Aventure com Marcel Arland, Jacques Baron, Georges Limbour, Max Morice, Roger Vitrac, e esta revista permitiu-lhe esquecer o século XVIII e lembrar-se do século XX.

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Conheceu então Louis Aragon, André Breton, Paul Éluard, Philippe Soupault, Tristan Tzara; e um dia, estava ele à frente de um quadro de Georgio Chirico, teve a visão de um mundo novo. Abandonou definitivamente o velho sótão lógico-realista, compreendendo que era cobardia sua confinar-se a uma mediocridade argumentadora; e que amava os verdadeiros poetas — entre eles Rimbaud e Lautréamont, sobretudo — que tinham, sem jogos de palavras nem jogos de imagens, um poder libertador. Participou nas primeiras experiências hipnóticas de onde André Breton extraiu argumentos para o seu Manifeste du Surréalisme. Pôde, sem qualquer ajuda, verificar que o surrealismo era o menos literário e o mais desinteressado dos movimentos, convencer-se de que não há vida moral possível para quem não for dócil às vias subterrâneas ou recusar a realidade das forças obscuras; e de uma vez por todas decidiu, com risco de parecer um D. Quixote, arrivista ou louco, tentar tanto por actos como pelos seus escritos afastar de si as barreiras que limitam o homem e não lhe oferecem nenhuma sustentação. O seu primeiro romance Detours (N.R.F., 1924) era uma obra, um retrato, um passeio preliminar onde os críticos, em particular Benjamin Crémieux, Edmond Jaloux, Albert Thibaudet, reconheceram atitudes, passeios e raivas características do jovem dos dias de hoje; Mon Corps et Moi (1925), romance com um herói que transporta consigo todas as suas aventuras, e onde os gestos e as personagens são apenas pretextos, é um panorama interior. Este Crevel que se escolhia e apressava numa «versão para leitores», omitia o já anunciado e pressentido como seu fim pre-

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coce e, não podemos deixar de dizê-lo, temperamental. Na nossa família suicidamo-nos muito, avisava com frequência, contando que tinha sido convocado pela sua mãe para ver, ainda muito jovem, o seu pai enforcado — com língua de fora e ejaculação no pano das calças — antes de o despendurarem e horizontalizarem no leito fúnebre. Era homossexual de bandeira numa época que hostilizava esta frontalidade com os incómodos da exclusão; era fervoroso comunista, olhado de soslaio pelos catecismos morais do partido (ele respondia-lhes: Desde que haja puritanismo, há perigo para a revolução; e o puritanismo, que é um efeito sexual da reacção, corre fortes riscos de arrastar consigo outras reacções. Ainda acrescentava: Nada do que costuma chamar-se um vício alguma vez me aprisionou ou travou. Contraditórias no tempo, todas as minhas sedes — sedes corporais, sedes de álcool, sedes de drogas, de água pura e tinta — conseguiram construir — mais em turbilhão, é verdade, do que em templo grego — esta síntese que me forma a vida). O surrealismo seduzia-o como força nova, capaz de quebrar todos os tabus e dar à existência um novo sentido, mas adaptava-o à sua vocação de golden boy e dandy, enfrentando com sorriso largo e indiferença a homofobia militante e a hostilidade a todos os mundanismos, professadas por André Breton. Vai não vai era excluído dos tumultos de Paris pelos piores momentos da sua tuberculose. E viam-no tempos depois reaparecer, saído de hospitais e casas de saúde, ressuscitado e com um indestrutível ar jovem que iludia os progressos dos seus bacilos pulmonares. Também escrevia: nestes lazeres da convalescência e nas horas que o afastavam das convulsões da cidade. E construiu assim,

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ao longo de seis romances, variações autobiográficas onde o encontramos sem grandes esforços de ocultação e sempre no papel de revoltado contra a ordem social. Tinham sido vãos, os esforços da sua família e das escolas de boas regras, para converter um rapaz «fora das normas» aos valores da compostura burguesa, os que já lhe mereciam num texto de juventude esta ironia: Sim, deixem-nos a sofrer no limiar das ideias puras. Sim, prometemos não caminhar em cima dos relvados, não deitar papéis sujos para a rua, e antes do festim do pensamento recitar como oração o que é ortodoxo sabermos e pensarmos do conceito de autoridade. Este rapaz de um mal afamado Paris nocturno, amigo de noites mal dormidas em leitos de acaso, também tinha êxito nas reuniões mundanas do conde e da condessa de Beaumont, hábeis a adaptar os requintes da sua aristocracia à franca convivência com as ideias de vanguarda. Tudo isto lhe confirmava um largo espectro de comportamentos mal vistos pelo surrealismo autoritário do papa Breton; tudo isto o predispunha a um fora-e-dentro rebelde, hostil aos ortodoxos do Movimento; tudo isto fazia-o atrever-se, por exemplo, a escrever romances, a forma literária impura e abominada pela cartilha surrealista. (Já não tinha sido decretado que as únicas opções aceitáveis da expressão literária eram a poesia e o panfleto?) Em 1924 — ainda por cima o ano em que era dado a conhecer ao público o Manifeste du Surréalisme onde Breton decidia o que era e não era, quem era e quem não era, citando Crevel entre os que tinham feito «acto de surrealismo absoluto» — este mesmo Crevel publicava Detours, o seu primeiro romance, investindo-se de uma audácia que só poderia inspirar estupefacção.

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Mais tarde as memórias de Maxime Alexandre, um alsaciano surrealista, recordam este momento: «Estávamos escandalizados por ver que um surrealista, René Crevel, tinha escrito um romance à maneira de um qualquer Anatole France ou Paul Bourguet. Breton, a quem ele o tinha mostrado, devolvera-lhe o manuscrito sem comentários. Saímos dessa reunião e tomámos o metro. Crevel, com o manuscrito debaixo do braço, não parecia incomodado e achava que nada tinha para dizer.» Os romances de Crevel sucederam-se até seis, uns atrás dos outros, inclassificáveis por escolherem sempre o tom da autobiografia disfarçada e transtornada com pedaços de intensa prosa poética e, no último, até de panfleto; por se aventurarem a evidentes formalidades de estilo, fazendo tudo para as não ter; por incluírem na sua história mulheres que o assustavam e ao mesmo tempo atraíam, destinadas a substituir o lado físico do seu convívio com uma intensa atracção espiritual; por incluírem homens que lhe inspiravam sempre um desejo ambíguo, quando não consumado em acto físico; tudo ditado pelas memórias de uma vida real marcada por desastrosas consequências para o seu equilíbrio psíquico e, desde muito cedo, a darem-lhe um «desejo de morte» sentido como a mais verosímil, justa e definitiva das soluções: Diz-se que nos suicidamos por amor, medo ou sífilis. Não é verdade. Toda a gente ama ou julga amar, toda a gente sente medo, toda a gente é mais ou menos sifilítica. O suicídio é um meio de selecção. Suicidam-se os que não têm a quase universal cobardia de lutar contra certa sensação de alma tão intensa que é forçosamente tomada, até nova ordem, por uma sensação de verdade. E só esta sensação permite que aceitemos a mais verosímil, justa e definitiva das soluções, o suicídio.

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Crevel, romancista reincidente, era teimoso e assobiava para o lado, mostrava uma indiferença por aquilo que Breton decidia quanto aos limites a observar perante as armadilhas que minavam a velha literatura-narrativa. O que mais podia assemelhar-se a um romance já tinha o próprio Breton exemplificado em Nadja, confidência autobiográfica sem passado indefinido e a relatar o acontecimento no instante em que ele está a ser, sem descrição de cenário nem de personagens como tradicionais elementos da ficção romanesca. Estas rebeldias marcaram um mau e decisivo lugar nos altos e baixos da relação que ambos construíram, e estendeu-se a divergências no que devia aceitar-se como dimensão política do Movimento Surrealista. O que neste campo se passou, enfeitou-se com movimento e tumulto. A irreverência surrealista era incómoda ao partido comunista francês e à facilidade com que ele associava, a exemplo de Moscovo, as liberdades de comportamento a uma oculta e sabotadora vontade de anarquia. Em 1933, num congresso, o partido decidiu o que só poderia sentir-se como humilhante e drástica decisão: excluir André Breton e Paul Éluard das suas hostes militantes, proclamá-los indesejáveis à boa saúde das suas disciplinas. Crevel, solidário com nomes tão centrais no surrealismo, demitiu-se; alguns meses mais tarde voltou porém a inscrever-se, e para ser até ao fim da sua vida militante comunista (heterodoxo, terá no entanto de admitir-se, a opor-se com mal disfarçado recato ao autoritarismo soviético e à perseguição que ele fazia aos homossexuais, à sua concepção da literatura inimiga das formas e dos temas caros ao «escritor revoltado»; sem receio de afirmar que o combate político é necessário, desde que não seja feito em

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detrimento das experiências literárias; a admitir que a revolução surrealista se propunha alcançar objectivos de bem maior largueza libertária do que qualquer movimento estritamente político, e a sair-se com esta frase subtilmente venenosa: todas as bandeiras são feitas para ficarmos com aversão às cores.) Em Junho de 1935, quando os surrealistas quiseram colaborar no Congresso Internacional organizado pela Association des Écrivains révolutionnaires, que se dizia apta a congregar os que não tinham da literatura uma visão académica e abriam com os seus escritos vias novas, opostas às da literatura «burguesa e decadente», capazes de ajudar a revolução do proletariado, esqueceram-se de que ela era dominada pelo partido comunista francês, o que já tinha expulso Breton e Éluard da sua militância; que até lá tinha, naquele momento, um Ilya Ehrenburg enviado a Paris por Moscovo para travar indesejáveis infiltrações entre os encarregados de difundir a sua mensagem. E Breton também se esquecia de que tinha dias antes esbofeteado na rua Ehrenburg por ele ter escrito que os surrealistas gostavam muito de Hegel, de Marx e da Revolução, embora se recusassem a trabalhar; que preferiam estudar a pederastia e os sonhos; que se entretinham a fabricar jogos de palavras obscenos; que os mais pacíficos confessavam como essencial da sua actuação andar atrás das raparigas; que o seu programa incluía o onanismo, a pederastia, o feiticismo, o exibicionismo e até a sodomia. Estes antecedentes funcionaram com força bastante para impedi-lo de ler numa das sessões do Congresso um texto-manifesto que pretendia deixar claro tudo quanto havia de revolucionário no Surrealismo. Crevel tentou inutilmente argumentar, terçando armas pela importância que teriam as palavras de Breton, mas a direcção do Congresso Internacional não se rendeu às belezas da sua persua-

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são e limitou-se a autorizar que Éluard lesse o texto dos surrealistas, limpo de tudo o que lá se afirmava a contra-senso do farol soviético, do que ele admitia como saudável quanto às mensagens da literatura. Teria sido este desaire literário-político o que levou René Crevel ao suicídio? O seu forte sentido de «supradeterminismo» ter-se-ia nesses dias manifestado com importância bastante para fazê-lo decidir-se, sem qualquer outra motivação, à letal inspiração de gás? A verdade é que no dia 18 de Junho de 1935, na antevéspera da abertura do Congresso Internacional, Crevel suicidou-se prendendo com alfinetes ao peito o que seria a derradeira amostra do seu humor negro: Agradece-se a incineração. Nojo. Rodeado por uma família católica que levava à letra o levantamento de esqueletos do Apocalipse bíblico, não teve direito a este estado de cinzas. Foi guardado, horizontal e com outros «crevéis» que ele em vida sempre tinha olhado com desprezo, num jazigo subterrâneo do cemitério de Montrouge. * Nove anos antes deste acto incompreensível — se o não aceitarmos como momento de um muito complexo desespero — René Crevel escreveu o seu terceiro romance e chamou-lhe A Morte Difícil; a morte que viria, anos mais tarde, a responder na vida real à mais nocturna face da sua condição de homem. E fê-lo com o seu surrealismo de vocação refreado até às exigências de uma grande clareza autobiográfica. Crevel retrata-se aqui como um homossexual assombrado pela ameaça genética do pai louco e pelo comportamento de uma mãe

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cruel e frívola; dividido por verdadeiros desejos físicos e outros que uma ambígua relação feminina muito imperfeitamente disfarça; um jogo de bem calculada progressão no tom — o que fervilha num primeiro capítulo com humorísticas ironias e se esvai aos poucos pelas sombras de um estado físico e psicológico que se destina, em noite fria e num banco público, a acompanhar o desespero do seu fim. Crevel receava, porém, que as exigências deste programa se cumprissem com excessiva exposição de realidades muito evidentes para os que mais de perto o rodeavam, e prejudicassem, incomodassem ou até envergonhassem os que eram modelos das suas personagens. Que Madame Dumont-Dufour surgisse como inegável e talvez piorada versão da sua mãe burguesa, não era para Crevel um problema; ela estava nesses dias a um passo da morte, e mesmo viva e de boa saúde nunca lhe teria merecido respeito que obstasse a este perverso retrato literário; mas havia o caso de Arthur Bruggle, que era impossível não ser colado ao seu amante americano Eugene McCown (a quem chamavam Coconotte ou Eugénie), saído de Kansas City e que desembarcara na França em 1923 com vontade de se usar e desbaratar para vencer nos meios intelectuais e mundanos de Paris. McCown era pintor e pianista de jazz; pintor aceite por importantes galerias de Paris, jazzman com muito êxito nas sonoridades hip-hop que enfeitaram as noites do café Le Bœuf-sur-le-Toit. (E quando regressou à América — registemo-lo também — foi o romancista de The Siege of Innocence (1950) e tradutor de Simenon. Morreu em 1966 num hospital de Nova Iorque, com um cancro nos testículos.) O retrato de McCown, que Crevel fazia em Arthur Bruggle, era excessivamente severo para alguém seu amante e possível de ser identificado por um grande número de leitores. E talvez por

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isto ele tinha chegado a fazer cortes no texto, como pode depreender-se do que escreveu numa carta a Marcel Jouhandeau: Não será indiscreto perguntar-lhe o que pensa do meu trabalho deste Verão, e sobretudo se não acha que o escândalo que daí pode nascer prejudicará aquele que bem sabe e que renasce em cada uma das suas linhas? Diga-me se os cortes do I são úteis, exagerados ou insuficientes. Tenho medo deste livro que agrada ao Soupault mas ele acha, creio eu, escandaloso. Gosto da franqueza mas detesto o escândalo. Crevel acabou por mostrar o texto de A Morte Difícil a McCown; e, perante a desagradável reacção que ele provocou no retratado, decidiu-se a acrescentar-lhe o curto capítulo final, suavizador — sabemo-lo também por uma carta a Jouhandeau: Eugene leu, e tivemos uma conversa onde vi toda a grandeza deste ser que passa actualmente por uma grande crise e despedaçou cinco quadros feitos depois do seu regresso a Paris. Foi-lhe também impossível terminar os deste Verão. Se eu tivesse força bastante, e não tentasse criar em mim uma ilusão sobre o que só é orgulho egoísta, seria mais simples e melhor para com ele. E far-lhe-ia o que é bom fazer, como seria justo que ele a mim fizesse, uma vez que lhe devo a minha inspiração, ou seja, o melhor e mais exaltante da minha vida. Estou no entanto a falar como d’Annunzio ou a velha Rachilde. É verdade que nessa noite não consegui dormir. Tenho os nervos como escadas de corda, aproveitadas num semitorpor por incubos e súcubos com o rosto daquele que bem sabe, que amo mais do que nunca e como não amarei outros. Vou acrescentar algumas páginas finais para libertar com elas a ternura de que Diane é capaz. E se você, caro Marcel, pudesse visitar o

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Eugene! Isso far-lhe-ia muito bem. Monsieur Eugene quer ser um grande artista e rasga as suas telas. Que tristeza! A Morte Difícil foi publicado em Novembro de 1926, e no mês seguinte a conturbada ligação sexual de Crevel e McCown teve um decisivo e irremediável final. (O livro, de uma audaciosa franqueza para a época e catalisador, talvez, desta ruptura, conseguiu que o traduzissem de imediato para alemão e para a língua checa). Crevel viveria mais nove anos que lhe chegariam para publicar três romances e um ensaio, para agravar o progresso dos seus bacilos até ao sanatório de Montana (em 1930) e ao de Davos (em 1931), para viajar em 1932 até Portugal, na companhia da condessa Tota de Cuevas, para se demitir em 1933 da Association des écrivains et des artistes révolutionnaires, para se internar de novo no sanatório de Davos, para abandonar em 1935 o Movimento Surrealista e fazer em Espanha uma viagem com Buñuel; e para, dois meses depois desta viagem, se suicidar. A imprensa de Paris noticiou-lhe muito laconicamente a morte, mas o jornal L’Intransigeant foi um pouco mais extenso quando em 19 de Junho se alongou nesta nota: «O jovem escritor René Crevel, que estava prestes a fazer trinta e cinco anos de idade, acaba de suicidar-se no seu apartamento de Paris, na rua Nicolo, 25, com a ajuda do gás. Desde há muito tempo doente, tinha na sua obra como na sua vida testemunhado um pessimismo que já era evidente desde a sua infância. Licenciado em Direito e em Letras, participou no Movimento Surrealista fundado em 1921, na revista Aventure que pouco tempo durou; e depois dirigiu, durante alguns meses, L’Université de Paris, órgão da Associação Geral dos Estudantes; em 1923 entrou para as Nouvelles litéraires como secretário da redação. Publicou Mon Corps et

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Moi; Babylon; L’Esprit contre la raison; Êtes-vous fous?; Salvador Dalí ou l’Anti-Obscurantisme, e esse livro com um título que hoje assume um penoso significado: A Morte Difícil. A pouco explicável morte de Crevel levantou entre os seus próximos uma onda de variadas e tresloucadas justificações. O que tinha acontecido na sua vida, capaz de decidi-lo ao acto do suicídio? Quem o tinha abandonado, sem reconhecer a necessidade de lhe dar apoio em dias de um muito negro cenário psicológico? Teria ele optado por aquele fim rápido, preferível ao de uma arrastada e deprimente agonia de tuberculoso? Acima de todas as conjecturas acabou por pairar a evidência de que ele era, afinal, um seduzido pela morte; que tinha sido a este respeito muito clara a sua resposta a um inquérito sobre o suicídio; e que tantas vezes lhe fora ouvida a afirmação: na nossa família suicidamo-nos muito… Isto tranquilizava e desresponsabilizava; embora também houvesse sobre esta morte os cépticos; os que negavam ao suicídio um valor independente do mundo, como acto todo poderoso e a impor-se por valor próprio, destituído de incentivos das coisas e das pessoas que o rodeavam. Lembremos, a este respeito, o que escreveu Antonin Artaud doze anos mais tarde sobre um holandês que punha corvos a pairar sobre a radiosa e solar vitalidade de um campo de trigo: «Ninguém se suicida sozinho. Nunca houve quem estivesse sozinho para nascer. Também nunca houve quem estivesse sozinho para morrer. Mas em caso de suicídio é preciso um exército de má gente para fazer o corpo decidir-se ao gesto contranatura que é ele privar-se da sua vida. E acredito que haja sempre alguém para nos despojar da nossa própria vida no minuto da morte extrema.» A.F.

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capítulo i

palavra puxa palavra

Madame Dumont-Dufour e Madame Blok falam das suas desgraças. Ou seja, dos seus maridos. Madame Dumont-Dufour, que seria jurista como o seu falecido pai, o presidente Dufour, se lhe tivesse calhado na sorte nascer homem, de repente renuncia à enumeração dos seus danos individuais para fazer um requisitório — e com palavras que não são ditas entre dentes, pois então, tem esse direito — contra o alcance social das próprias leis. … Sim, as leis; é de tal ordem a estupidez do código, e tão grande o seu preconceito, que Monsieur Dumont bem teria podido entregar-se tanto quanto lhe fosse possível à loucura das suas bandalheiras; a sua mulher hoje não teria, assim mesmo, qualquer hipótese de divórcio. À falta de céu, os olhos tomam como testemunha o tecto; as mãos fazem o melhor que podem; e Madame Blok pensa que Madame Dumont-Dufour não ficaria deslocada num qualquer grande salão ornamentado por cinquenta lustres, setenta e cinco pianos de cauda e uma infinidade de girândolas. Mas não se trata de um salão, para dizer a verdade, por muito grande que seja aquilo onde Madame Dumont-Dufour evoca um país inteiro e ainda mais: o seu domínio das recordações. O domínio das recordações: um mar onde transparece uma cidade submersa porque elas estão no fundo da água, ó mi-

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nha cara Madame Blok, bem no fundo das ilusões de Madame Dumont-Dufour. Neste momento, lá em baixo o que lhe resta? Pesares, a memória de gestos sem alegria. Quanto ao futuro, nem se atreve a imaginá-lo. Se fosse dessas malucas que se contentam com imaginar, poderia passar o dia, sem dúvida, a fabricar imaginárias vinganças. Ai dela! Madame Dumont-Dufour, que gosta da pompa e só se deixa dominar por altas montanhas, pelos cartões de visita negros de tantos títulos, pelos carros fúnebres empenachados, pelas missas de casamento com os seus cintilantes candelabros, os seus lírios sem pólen, e pelas famílias bem arreadas; Madame Dumont-Dufour, que prefere a majestade das plumas de avestruz à cor das aves-do-paraíso, não só não se sente cumulada nas suas altas aspirações mas recusa a si mesma a esperança de alguma vez satisfazer os seus nobres gostos. Ela, que está hoje no seu Outono, teria feito cá de baixo honras a um domínio de recordações com tão nobre suavidade como a Versalhes da Maintenon. Em vez disso tem um orgulho que é suficientemente forte para não desprezar a humildade exaltante, e embora não se faça rogada para afirmar que os homens são poeira e nada mais do que poeira, tem vergonha dos seus quartos que dão para o pátio e passa pela tortura de não poder apontar nada que faça inveja a Madame Blok. O seu passado, o domínio das recordações; nem mais nem menos do que um vulgar quarto de arrumos onde nem lhe é sequer permitido desfazer-se definitivamente dos miseráveis acessórios da vida conjugal, uma vez que o divórcio — é um facto — continua a estar-lhe proibido. Saberá Madame Blok porquê?

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Madame Blok não sabe porquê; gostaria de fazer essa pergunta, mas teme ser indiscreta. Indiscreta? Uma destra soberana apazigua escrúpulos. Indiscreta? Haverá entre elas segredos? Se ambas sofreram, por que hão-de poupar nas suas confidências os homens, esses carrascos? São duas mulheres num salão de Auteuil, duas irmãs na miséria. Duas irmãs na miséria. A expressão é esta. Foi Madame Dumont-Dufour, claro está, quem a encontrou. E tanto orgulho sente nela como nos seus pratos de cobre marroquino e nas suas jarras da China. Duas irmãs na miséria. O epíteto não deixará de fazer ali a sua vidinha. Madame Dumont-Dufour elegeu-a como estandarte e sente que vai tirar dessa bandeira efeitos tão surpreendentes como Lamartine tirou da tricolor. Madame Dumont-Dufour tem uma égide, um hífen como sinal; de resto, dotada de outras qualidades mais raras do que a eloquência, fica parecida com Lamartine na sua janela municipal. Madame Blok, que tem rudimentos da história da França, compará-la-ia de bom grado a Henrique IV. Não se lhe vê nenhum penacho branco, mas sabe que basta ir atrás dela. Imagine-se lá bem, irmãs na miséria. Um silêncio. Dois corpos imóveis parecem ocos. Através deste vazio, a própria Madame Dumont-Dufour tem noção do infinito e pouco mais seria preciso para julgar que lhe chupavam a alma com um qualquer desses aparelhos que servem para limpar tapetes. Sabe-se, no entanto, que as pálpebras de Madame Blok ficam molhadas. Para dizer a verdade, nem as recordações

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penosas, nem a ternura que lhe foi oferecida com o chá e as toasts, nem o espectáculo de uma desolação que Madame Dumont-Dufour mostra em cada um dos recantos das frases-panorama saberiam explicar esta humidade das pestanas, estas narinas a tremer. Não, a verdade é por uma vez muito simples: Madame Blok tem fome, está com fome de saber. Madame Blok vive com a sua filha Diane. E Diane, que anda sempre por montes e vales — entenda-se por isto o cinema, o teatro, a casa de amigos e Deus sabe que outros lugares, todos os sítios por onde uma rapariga destes dias não receia aventurar-se — Diane, que saberá disto bem mais do que a sua mãe, uma vez que dança, bebe chá, cocktails, pinta, conhece artistas, Diane não fala. Despacha em dois compassos e três movimentos as refeições. A sua boca só se abre para comer. Por isso a pobre mãe nada sabe de um mundo que as suas desgraças lhe deixaram distante. É verdade que existe o primo Bricoulet. Chega de manhã, cerca das dez horas, põe um beijo nas duas faces de Madame Blok, dá-lhe a entender que um homem viúvo (há uns dez anos Madame Bricoulet foi roubada ao afecto deste caro Honoré) e uma mulher viúva (Madame Blok está há mais de dois lustros entregue à morte) podem dar origem a um casal. Madame Blok fica enternecida. Bricoulet faz perguntas sobre o estado da sua fortuna, quer sempre saber pormenores sobre o suicídio de Monsieur Blok; só se decide a levantar o cerco para almoçar e quando lhe diz, juntamente com uma qualquer agradável insolência, bom-dia. Depois de Bricoulet se ir embora, Madame Blok arma-se de toda a coragem e repreende a sua filha:

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— Não foste amável para o primo Honoré. — O reles desse fanhoso (Bricoulet fala pelo nariz). — Diane, és injusta. — Ele andou, com certeza, a dizer-lhe meiguices, mostrou-se terno, pediu-a em casamento. Minha pobre mãe. O que ele quer são os nossos tostões. É um avarento chapado. É capaz de rapar até ao fio. — Diane cantarola: Bricucu, Bricucu, Bricoulet rapa tudo até ao fifio, até ao fifio. Bricoulet rapa, rapa até ao fio. E depois continua: — Desconfie-me desse Bricoulet. — Diane, a cólera faz-te perder a cabeça. — Não é por si que ele tem interesse, interessam-lhe as suas desgraças. Tem gostos esquisitos, esse querido Honoré. Disseram-me que gosta de bofes de vitelo. Faz refeições iguais às do seu gato. Diane nunca mais pararia. Bricoulet inspira-a. Madame Blok vê-se obrigada a pôr-lhe um travão. O mais triste é o primo ter reparado nesta hostilidade. As suas visitas fazem-se mais raras. E Madame Blok, que andava com vontade de pedir-lhe algumas informações sobre Madame Dumont-Dufour, e sobretudo sobre o seu invisível marido que Honoré conheceu desde o colégio! Ela também teria gostado que um homem cheio de experiência lhe desse a sua opinião sobre

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Pierre Dumont, o filho de Madame Dumont-Dufour, um possível genro porque era o melhor amigo de Diane, e fazia como ela pintura. Mas Bricoulet vingava com a mãe a inimizade da filha, e Madame Blok até àquela tarde nada ficara a saber sobre Madame Dumont-Dufour, apesar de terem passado juntas o último Verão no mar. Agosto, por certo, não é mês de confidências; e foi preciso este dia de Outono num muito cinzento salão de Auteuil, e sem haver nenhuma memória de um vestido branco para estas damas — usando as palavras de Madame Dumont-Dufour — se descobrirem uma à outra como irmãs na miséria. Ora, como Madame Blok cometeu a imprudência de confessar o tédio que sente, quase sem matizes, desde o dia 1 de Janeiro até ao de São Silvestre, sem ter mais distracção do que ir uma vez por semana ao concerto Colonne nas suas matinês das tardes de sábado, Madame Dumont-Dufour vai acumulando promessas de mexericos que fazem subir as lágrimas aos olhos da sua irmã na miséria como o fumo de um bom prato faz ao guloso água na boca. Hábil a julgar apenas com uma olhadela o seu público, depois de descobrir este apetite decidiu retardar o momento de servir o petisco. Primeiro, umas quantas verdades como entrada. Madame Blok começou a morder os lábios enquanto Madame Dumont-Dufour se erguia acima dos homens, dos factos e das coisas. Nada saberia contrariar-lhe a ascensão. A palavra piedade cai no meio de uma frase. E vai ser uma pequena dissertação.

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Piedade para aqui, piedade para lá, sim, cara amiga, piedade, piedade… e Madame Dumont-Dufour afirma que nem por um minuto se esquece de como ela se pratica. De resto, como podemos viver se a ignorarmos? A perfeição não é deste mundo. A humanidade não quer o difícil. Aliás, não sabemos a quem se deve nem ao que se deve atribuir culpas. Muitos factores intervêm: a falta de sorte, a hereditariedade, as más inclinações. Pobre Madame Dumont-Dufour, que apesar de ter um espírito metódico, uma inteligência razoável e um coração sensato, nada lhe saiu acertado! Pierre, o seu filho que teve uma ama alcoólica (a falta de sorte foi esta) tem um feitio que vai de vento em popa. Tem aliás a quem sair; ao seu pai (a hereditariedade foi esta) que sempre se mostrou de uma tal violência! Mas nada disto valeria muito se o referido Pierre não tivesse um esquisito gosto e uma curiosidade (as más inclinações são estas) que bem chegam para a sua mãe perder com razão a cabeça; porque se ela se regozija com o afecto que ele dedica à querida Diane, como não há-de temer as piores catástrofes com a sua amizade por homens de uma estranja que nem sabemos qual é. De uma estranja, sim. E que têm a França, Paris e, o que é mais grave, Pierre Dumont nas mãos. A juventude perde a cabeça. Que Madame Blok esteja de olho atento à Diane; Madame Dumont-Dufour, essa vê-se forçada a deixar Pierre andar por onde quer, o que a faz sofrer muito. Tantas noites em branco e tantos dias em negro. A carne é fraca. Estes rapazolas do século XX cedem a todas as tentações da moderna Babilónia, e todos os anos arranjam outras. No tempo de Madame Blok e de Madame Dumont-Dufour, os rapazes apaixonavam-se pelas mulheres do Maxim, pegas

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como dizia Monsieur Dumont. As raparigas sonhavam com ciganos, com os seus casacos de mangas largas, com os seus bonitos bigodes. Hoje as mulheres do Maxim foram substituídas sabe-se lá por que aventureiras, prostitutas de todos os países e de todos os sexos. Deixou de haver ciganos, mas há negros que tocam saxofone. Inventaram-se vícios, bebidas, estupefacientes; e como é que tudo isto acabará? Madame Dumont-Dufour tem muita razão em dizer que é preciso piedade. Sabe-o, não sabe ela outra coisa. Meu Deus, a dolorosa experiência da vida… Tanto pior para Madame Blok, que está perto do piano num cadeirão forrado com um tecido do género Aubusson, a morrer de impaciência; hoje, Madame Dumont-Dufour está com uma alma de presidente de tribunal criminal ou de advogado. Nunca se sentiu com tanta eloquência. E entrega-se a ela, não negligencia nenhum dos recursos dessa arte de bem falar, aquela a que o seu pai não tinha medo de recorrer, nem mesmo nas suas relações com os criados. A voz desliza-lhe sobre a desgraça com uma majestade de cisne negro. Acabará por morrer no meio daqueles móveis, testemunhas de todo o seu sofrimento, e perante uma visita que não sabe segui-la no seu voo? Já pronuncia a sua própria oração fúnebre, faz as sílabas ficarem pesadas, prolonga-as, repete-as, acaricia-as com a língua como se trouxessem a promessa de um sono para todo o sempre libertador. Durante um minuto pensa em agarrar em armas que a defendam contra a insolência de Pierre e a maldade universal. Mas no seu desespero aceita a morte, chama-a, e já reúne flores para fazer coroas, coroas que se transformam por sua vez em tecidos, véus que a envolvem, estátua da desgraça conjugal perante aquela Madame Blok que ali rói o seu ranho,

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que desejaria levantar-se, perguntar-lhe se ainda vai estar muito tempo a troçar dela. Um pouco mais, e a pacífica Madame Blok começará a pensar num ultimato: Diga-me já, imediatamente, por que lhe não é possível obter o divórcio, senão… Mas não há meio, ai de mim!, de Madame Dumont-Dufour soltar sobre o assunto uma palavra; é-lhe então dito que não seja severa. Se ela descobrir que isso a obriga a dar um fim àquele discurso sobre teorias metafísicas e morais, talvez o tão aguardado relato comece. Madame Blok quer uma conclusão. Uma qualquer. Por isso diz, jovial: — Não deve ser severa. — De acordo, mas há limites — responde a infatigável Madame Dumont-Dufour. Mesmo que Monsieur Dumont não se tivesse entregado a excessos de uma tal gravidade, como a lei a obrigava a usar o nome de uma criatura com a qual nunca se sentiu, mesmo no tempo da lua-de-mel, solidária, acrescentar-lhe-ia sempre (como se o diminuísse assim um pouco) o nome do seu pai presidente Dufour, bastante mais honroso. Assim foi que Madame Edgar Dumont se transformou em Madame Dumont-Dufour. Para dizer a verdade, estes dois patronímicos quase gémeos e separados por um hífen sempre a consolaram um pouco; mas como não gosta de êxitos fáceis, àquela Madame Blok que lhe parece judia não quer deixar visível que tem orgulho em chamar-se Dumont-Dufour. Não pode assim mesmo impedir-se de fazer notar em voz alta que o nome duplo, a despeito da sua aparente simplici-

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dade, soa a nobreza da Terceira República mesmo que já não haja quem dê importância aos méritos dos franceses da classe média; uma classe, querida amiga, que nunca deixou de fornecer ao país os seus servidores de elite. Madame Dumont-Dufour, por exemplo, é filha de um magistrado; e o seu marido, por muito indigno que se tenha mostrado, não deixa de ser um coronel. Há uma pausa. O primo Bricoulet nunca disse a Madame Blok que Monsieur Dumont tinha sido coronel. Mas a haver um coronel, aquilo do divórcio fica explicado. Madame Blok enche o salão de Auteuil com um «Ah!» gémeo do que não foi possível Cristóvão Colombo deixar de soltar quando descobriu a América ou a forma de fazer ficar de pé um ovo cozido. Mas Madame Dumont-Dufour deita por terra este triunfo quando diz: — Não julgue que não posso divorciar-me por Monsieur Dumont ser coronel, e que isso me condenará a um cartão de visita sem nome de baptismo! Está a soletrar à sua frente um cartão de visita imaginário, MME DUMONT-DUFOUR

e conclui isto: — O que há mais triste do que um cartão de visita sem nome de baptismo? «É um mar sem peixes», tem Madame Blok vontade de responder, sem conseguir deixar de pensar que Madame Dumont-Dufour é uma pedante.

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capítulo iv

a noite, o frio, a liberdade, a morte

O nevoeiro é muito rápido a sufocar Pierre; e como ele não sabe respirar (Bruggle cem vezes lho disse), mesmo que os elementos fossem propícios a uma marcha a pé bastar-lhe-iam cem metros percorridos a passo de ginástica para ele, sem apelo nem agravo, ter de parar. Enquanto recupera o fôlego inspecciona tudo à sua volta, como se temesse uma perseguição. Não vê nada, não vê ninguém. Sente-se solitário, sente-se livre e não tarda que esteja a rir-se dos seus medos. Diane. Ela alguma vez se atreveria a galopar atrás de um rapaz nas ruas de Paris, às dez da noite? Agora já ela deve saber, de facto, com o que pode contar. Como o humor marcial do coronel e o feitio belicoso de Madame Dumont-Dufour lhe permitiram ver desde criança tantas lutas nos comércios de amor ou amizade, Pierre sente-se agora vencedor por ter dado com os pés em Diane, depois de a ter chamado para junto de si, e acha agora que os seus métodos são na sua simplicidade perfeitos. Sente-se orgulhoso como um encenador quando vê que um pedaço de tecido bem colocado sobre fundo negro bastou para sugerir uma árvore, uma casa, uma montanha, uma paisagem. Na verdade aquele jantar com Diane, como ainda há pouco reparou, foi uma ponte estendida desde Madame Dumont-Dufour até Bruggle, desde escrúpulos mornos até às cruas alegrias.

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Fez uma escolha e felicita-se por ter finalmente escolhido, e escolhido bem. Madame Dumont-Dufour, Diane, Bruggle, três vértices de um triângulo onde Pierre se ia gastando ao passar de uns para os outros. Cercado agora por Bruggle, vai esquecer-se dos hábitos que o faziam dia a dia empalidecer ainda mais. Nessa noite a névoa suja ainda permite que num vidro se acuse um rosto esverdeado, se acusem faces cavadas. Mas uma vez que deve mostrar dali em diante saúde, tenha já hoje aparência disso. Que o seu muito caro Arthur já não possa voltar a lançar-lhe à cara um «estás com um ar pouco saudável» que muito o fazia sofrer. Parado debaixo de um bico de gás belisca o rosto, esbofeteia-se até um pouco de tom róseo lhe colorir as faces; e depois, quando o espelho ao princípio pessimista lhe devolve uma imagem que o consterna um pouco menos, três copos de aguardente ao balcão da primeira tasca que lhe aparece matam de vez a inquietação. Acaba por chamar um táxi, e chega com muita rapidez à casa de Bruggle. Logo no rés-do-chão pedaços de uma valsa rápida lembram-lhe as noites nos arredores da cidade, as letras que são feixes de luz por cima das portas, as tabuletas dos hotéis que se acendem e apagam (piscam-nos o olho, diz Monsieur Arthur) e as nucas rapadas, os cachecóis vermelhos, as botinas com cano de tecido muito claro que até ao Arthur nunca deixam de encantar, o olhar líquido, as pálpebras mais hábeis a estremecer do que asas, as narinas abertas de par em par para melhor se embriagarem com um cheiro a humidade quente, a aguardente de cereja e a carne jovem e fácil. Pierre sobe a passos lentos os cinco andares, com o coração a bater muito porque já imagina Bruggle entre aquilo

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que ele chama, com um sorriso não apenas de ironia, os seus esplendores. O estúdio está iluminado por lanternas venezianas, tem toda uma parede guarnecida com garrafas, e a dar réplica ao piano Steinway um outro, mecânico, que substituiu a grafonola e os discos. Monsieur Arthur criou com isto uma atmosfera igual à dos lugares onde se reúnem os pequenos boxeurs, os rufias, as putas, os burlões, aos seus olhos novinhos em folha, curiosidades de um costume de mais íntima voluptuosidade, mas ainda assim curiosidades que substituem as esculturas de arte negra, a psicanálise, a ilha Saint-Louis. Pierre nunca se atreveu a censurar Bruggle por aquilo que, em dias de mau humor, ele chamaria de bom grado um snobismo. Nessa noite ele só vê nessa mania coisas que enternecem, e até chega a sorrir-se quando se lembra de um jantar que lhe pareceu interminável, entre Arthur e um jovem gandulo, um grande artista, como lhe foi anunciado, um grande artista e que tocava acordeão como mais ninguém. Este virtuoso de La Vilette fazia o seu serviço militar na marinha e podia, quando o melhor dos acasos lho permitia, tirar partido de uma pele com frescura suficiente para endoidecer todos aqueles a quem a vista de um boné com borla vermelha congestiona. De resto, o seu natural vigor não só o defendia muito bem das fadigas ou dos escrúpulos capazes de estragar os proveitos oferecidos pela sua juventude, pela arte de uma piscadela de olho e pela encorajadora facilidade em partilhar prontamente os desejos que a sua pessoa tinha começado a inspirar, mas a oportunidade de acrescentar às cinco moedas do seu quotidiano um suplemento. Como a farda ajuda os jovens ao livre comércio dos seus encantos e lhes con-

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fere um anonimato com uma hipócrita dignidade, Monsieur Arthur que gostava de fascinar decidiu durante uma licença deste jovem pelintra oferecer-lhe um jantar num grande restaurante até esse dia vedado às suas calças patas-de-elefante, aos seus cachecóis de lã de seda violentamente floridos, às suas camisas cor-de-rosa e aos seus sapatos com gáspeas muito evidentes. Este humilde marinheiro desorientado pelo brilho das luzes e pela dignidade dos chefes de mesa, que não sabia pôr na toalha branca as suas grandes patas de acordeonista nem que uso dar a um desconcertante garfo, para não parecer tonto ou deslocado entre Bruggle e Pierre que tanta coragem mostravam a utilizar aquele talher de peixe, sempre que uma mulher entrava ou lhe traziam um prato declarava com esse desdém que as almas inocentes e simples usam como sinal de à-vontade e liberdade: «Para ser melhor qu’isto é muito caro», fazendo Monsieur Arthur retorquir como um eco amplificado por um riso de bom humor: «Para ser melhor do que isto, é muito caro.» Depois do jantar houve uma passeata até à feira; e como Pierre não quis entrar na barraca do museu Dupuytren, o pretexto foi bom para se livrarem dele. Recusou-se, como sempre, a ver uma qualquer má inspiração neste acto do seu fugidio amigo, e foi para casa de Bruggle persuadido de que eles estariam lá à sua espera. Quando não encontrou a porta do apartamento fechada, apenas encostada, viu nesta negligência uma atenção de Bruggle, mas só até chegar à porta do seu quarto e encontrá-lo a dançar, com o boné do marinheiro na cabeça, e este com um copo na mão e a lembrar-se de um estribilho — «Quando a tua carne se roça pela minha» — que

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lhe chegava da sentimental memória de um bar do cais de Cronstadt, à beira da água. Dir-se-ia que só o acordeonista teria ali de dizer ou cantar, e que Monsieur Arthur decidira fazer o seu charleston solitário sem nada dizer nem cantar, acompanhado apenas pela romança que um chulo parisiense, numa noite de Toulon muito suavemente equívoca, tinha aprendido. Bruggle só depois de acabar de dançar é que se apercebeu da presença de Pierre. — Olha, o Pierre! O que é que se passa? — Nada. — Queres alguma coisa? — Não. — Senta-te. — Não. — Não faças essa cara. Se isto não te agrada, põe-te a milhas. Estou na minha casa. Tenho direito à minha liberdade. Gosto que a respeitem. — Dizes a tua liberdade, mas devias dizer o teu egoísmo. — Oh! Já chega. E o Pierre lá começa a engolir as palavras, a perder-se nas frases; e de cabeça perdida a morder, bater, insultar ao ponto de o tocador de acordeão sair para fora dali, desenfreado. A partir deste dia Pierre mandou para o diabo todos os boxeurs de quem Bruggle gostava; mas começou a ser noutros lugares mais estimado e a divulgar com muito consciente e afectado calculismo as palavras do peso-pesado seu benévolo professor de educação física: «Não é por seres um pau de virar tripas que temos de achar-te mal feito de corpo.»

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Mas nesta noite, quando acaba por dar consigo no patamar de Bruggle, e porque está agora a alguns segundos, a alguns metros do ser amado, nada mais vê do que a reles pianola que o condena à inquietação. Já lhe saiu do pensamento a crónica animosidade contra a sua mãe, já se esqueceu até que ponto se sentiu aborrecido ao pé de Diane. Zangou-se com a sua mãe, fugiu de Diane, embora queira acreditar que o fez por causa de uma criatura bem merecedora do sacrifício de todas as outras. O seu amor, como um vidro pintado, mudou por transparência a cor de toda a sua vida, desde os mais largos pensamentos até aos mais insignificantes pormenores. Mas para este amor não ser apenas uma triste mica, precisará de convencer-se de que ele tem por lógica, e muito perto andará de dizer por matemática, direito à sua recompensa. Espera assim, no limiar da porta, que Bruggle lhe prove com uma palavra ou um gesto que não fez mal preferindo-o a todos os outros. Com a mão na porta, os seus dedos bem mais tremem do que batem. Não por sentir medo, mas de felicidade. No estúdio dança uma dezena de pares. O dono da casa faz cocktails e a condessa romena-escandinava, extasiada nos braços de um reles vadio, tenta saltitar uma valsa rápida. Uma americana explica em muito alta voz que o seu apartamento só tem dois quartos mas espetou numa das paredes todos os seus brincos. Toma Pierre por testemunha; e Pierre, apesar de ainda não ter cumprimentado Bruggle vê-se obrigado a atravessar filas inteiras de pérolas de Veneza, bolas, anéis, losangos, pequenos animais de ouro e prata, gotas de cristal, que uma bela coleccionadora transatlântica põe, uns atrás de outros, no reboco de gesso e no lóbulo das suas orelhas.

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índice

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo i: Capítulo 11: Capítuloiii : Capítulo iv : Capítulo v:

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Palavra puxa palavra . . . . . . . . . . . . . . . . . Ratapoilópolis? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O jantar com Diane . . . . . . . . . . . . . . . . . A noite, o frio, a liberdade, a morte . . Mais uma ajuda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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René Crevel A MORTE DIFÍCIL

René Crevel A MORTE DIFÍCIL

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

Na nossa família suicidamo-nos muito.

www.sistemasolar.pt

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