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Robert Desnos A LIBERDADE OU O AMOR
Robert Desnos A LIBERDADE OU O AMOR
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes Onírico e surrealista. Audaciosamente erótico. Irreprimivelmente subversivo.
www.sistemasolar.pt
Robert Desnos A LIBERDADE OU O AMOR
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A LIBERDADE OU O AMOR
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Robert Desnos
A LIBERDADE OU O AMOR tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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TÍTULO DO ORIGINAL: LA LIBERTÉ OU L’AMOUR
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2016 NA CAPA: COLAGEM DE CRUZEIRO SEIXAS (1981) 1.ª EDIÇÃO, MARÇO DE 2016 ISBN 978-989-0000-00-0
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O surrealismo francês — e falar nele é falar em André Breton — quis o romance arrumado nas mais baixas zonas da literatura. Sabemo-lo pela sua quase-ausência nos escritos surrealistas, pelo que foi sobre ele afirmado na prosa violenta dos seus Manifestos, onde ficou reduzido à caricatura do naturalismo, onde foram trucidados nomes de romancistas nessa altura preponderantes, como Paul Bourget, Anatole France. Para o surrealismo só a poesia era legítima, e qualquer ficção precisava muito mais de a exibir do que contar uma história. Esta lição começou a ser seguida com obediência. Aragon, que em Anicet se tinha lembrado de contar a formação do grupo surrealista sob os moldes de um romance tradicional, desviou-se para os textos surrealizantes de Le libertinage. Os que persistiram na antiga forma afastaram-se do centro dirigido por Breton. Mas Robert Desnos, acarinhado então como excepcional personalidade surrealista, viu em 1924 Deuil pour deuil, o seu primeiro livro em prosa, ser alvo de elogios que chegaram a elegê-lo como «o profeta do surrealismo». De facto, em Julho desse mesmo ano André Breton escrevia: «Há um heroísmo literário, ou antes, poético, fora do qual a obra escrita a pouca distância fica de um interesse documentário. Só a exaltação que ela nos ocasiona conta, e isto nunca aconteceu sem fanatismo da parte do autor. O fanatismo do marquês de Sade, de
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Alphonse Raabe, de Isidore Ducasse confirma-nos nesta opinião, ou seja, que a moral transcendente é filha da intolerância: viva Robespierre, vivam os inquisidores! Na nossa época, e apenas no domínio intelectual, que eu saiba só existem três fanáticos de primeira grandeza: Picasso, Freud e Desnos. Mas este está infinitamente menos perto do que os outros dois de ter dito a sua última palavra. «É de assinalar que tais homens só se erguem em tempo de pânico, e mesmo assim só quando qualquer coisa está com a maior gravidade ameaçada. Sendo bem verdade que no fim da guerra “o levantamento do problema” Dadá respondeu a uma profunda necessidade (há cada vez mais concordância em reconhecê-lo), ele deixou de existir logo que deu lugar a uma explosão ainda mais descarada do que a precedente. […] A sua actividade, a sua atitude geral e o sentido com que a sua produção se afirma permitem que ela se pronuncie como última palavra sobre este fenómeno característico: um “maravilhoso” moderno, que em nada deixa a desejar o antigo e escolheu Robert Desnos como cátedra das suas manifestações. Simbolismo, cubismo, dadaísmo, já estão desde há muito ultrapassados; o Surrealismo está na ordem do dia, e Desnos é o seu profeta. Existe um homem que sonha em voz alta sem dormir e se inscreve desse ponto alto como negação da vida admitida. Sem tal saberem, os escritores, os artistas, estão a seus pés. […] Tal como tantos são mais partidários do rei do que o próprio rei, admita-se que Desnos é mil vezes mais revolucionário do que a revolução.» Mas depois disto, que não era pouco, houve a tentação política. Breton e os seus mais próximos — Louis Aragon, Paul Éluard, Benjamin Péret, Pierre Unik — pensaram que a atitude surrealista melhor se afirmaria unida ao comunismo. A filiação no partido (que a aceitou com algum incómodo, uma vez que as liberdades
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intelectuais e de vida reivindicadas pelo grupo eram pouco adaptáveis à sua ortodoxia) criou uma irremediável cisão. Robert Desnos foi dos que se recusaram a admitir uma revolução surrealista de mãos dadas com a revolução soviética. E esta demonstração de independência tornou sem valor anteriores profissões de fé. Nos tempos de Nadja, ainda Breton concedia a Desnos estas maravilhas que ele construía em estado de hipnose: «Quem não visse, como eu, que o seu lápis pousava no papel sem a menor hesitação e traçava com prodigiosa rapidez aquelas espantosas equações poéticas, e não pôde assegurar-se, como eu, de que elas não podiam ter sido preparadas por uma mão mais lenta, não pode fazer uma ideia de tudo o que isto congregava então de valor absoluto e oráculo.» Foi concedido a Robert Desnos algum tempo para entrar na ordem. E como ele insistisse em mostrar-se fora dela, pôde ler estas palavras de Breton comunicadas do alto do seu Segundo Manifesto: «Depois de se lhe ter dado um tempo inacreditável para ele voltar a retomar o que esperaríamos não passar de um abuso passageiro da sua faculdade crítica, estimo que nos encontramos na obrigação de fazer notar a Desnos que só podemos, ao não esperarmos mais nada dele, libertá-lo de todo o compromisso outrora tomado em relação a nós. É certo que não cumpro este dever sem uma certa tristeza. Ao contrário dos nossos primeiros companheiros de percurso, que nunca pensámos reter, Desnos desempenhou no surrealismo um papel necessário e inesquecível, e este momento seria, sem dúvida, mais mal escolhido do que qualquer outro para o contestar.» Há, para a violência desta exclusão, uma resposta não menos violenta de Desnos, e à qual foi dado o nome de 3.º Manifesto do Surrealismo: O surrealismo, tal como é formulado por Breton, é um dos mais graves perigos que podemos fazer correr ao pen-
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samento livre, a mais dissimulada ratoeira onde podemos fazer cair o ateísmo, o melhor auxiliar de um renascimento do catolicismo e do clericalismo. […] O surrealismo caiu no domínio público, está à disposição dos heresiarcas, dos cismáticos e dos ateus. […] Eu, que algum direito tenho a falar do surrealismo, declaro aqui que o surreal só existe para os não-surrealistas. Para os surrealistas só há uma realidade única, inteira, aberta a todos. […] Acreditar no surrealismo é repavimentar os caminhos de Deus. Estava-se em 1927, e o seu texto A Liberdade ou o Amor já não ouviria palavras elogiosas do grupo central onde imperava Breton. Publicado pelas edições Kra, e considerado obsceno e blasfemo pelas autoridades, foi alvo de um processo e de uma condenação que acrescentou à sua retirada do mercado uma multa de duzentos francos. Desnos quis contra-atacar (Nós, os de ascendência normanda, gostamos de processos), mas foi dissuadido desta luta dispendiosa e de antemão perdida. Havia no entanto um aviso em folha solta nos exemplares de uma nova edição truncada: Bónus de encomenda. — A poesia é uma fora-da-lei; e porque várias passagens de A Liberdade ou o Amor são muito livres, o editor julgou seu dever suprimi-las. Estas passagens foram impressas à parte e serão gratuitamente enviadas a todo o leitor que as deseje, em troca deste bónus da livraria Kra, 8, rua Bleue, Paris 9. Aos leitores que desejarem recebê-las por correio com registo, pedimos que paguem as despesas da expedição (3 francos por cada exemplar enviado). R. Desnos. O bónus chegava a um total de trinta páginas, as que só vieram a ser reintegradas numa edição Gallimard de 1962. Lendo o seu texto Confessions d’un enfant du siècle, ficamos a saber que desde muito cedo o autor foi habitado pelo que viriam
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a ser as imaginações centrais deste livro. E é, para isto, muito significativa esta passagem: Eu brincava sozinho. Os meus seis anos viviam no sonho. Com a imaginação alimentada por catástrofes marítimas, eu navegava em belos navios, rumo a encantadores países. As ondas do soalho imitavam, ao ponto de nos enganarmos, as vagas tumultuosas, e eu transformava à minha vontade a cómoda em continente e as cadeiras em ilha deserta. Travessias arriscadas! […] Eu nadava então com toda a força para a praia do tapete. Foi assim que um dia experimentei a minha primeira emoção sexual. […] Tal como nunca consegui fazer amor sem reconstituir os dramas inocentes da minha juventude, também não consegui ter uma emoção poética doutra qualidade que não fosse a experimentada com a leitura de La Légende des Siècles e de Les Misérables. […] Gustave Aymard deu-me a primeira imagem da mulher. Persegui então, na companhia de espanholas fatais, o cavalo selvagem. O sangue correu gratuitamente para satisfazer lábios sensuais, para provocar o estremecimento de seios regulares. […] Um dia, porque um dos alunos [do meu colégio] foi particularmente insuportável, ela (a professora da escola) vergastou-o. O espectáculo desta vergonhosa nudez, a humilhação sentida por alguém do meu sexo, a crueldade sensual da jovem mulher, tocaram-me tão profundamente que não tardei a sentir as sensações familiares aos meus imaginados náufragos. O texto de Desnos surgia impregnado de inesperadas singularidades. O seu título lembrava-se de um incitamento da Revolução Francesa: «A liberdade ou a morte!», e aproveitava a sua fórmula para o transportar a uma visão pessimista do amor. Numa das páginas em que Desnos fala em seu próprio nome, confessa-se com
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maiores êxitos na amizade masculina do que no amor feminino; uma amizade que o faz chamar aos seus amigos «amantes», não no sentido sexual do termo mas por lhe inspirarem o sentimento de forte intensidade que essa palavra melhor exprime. As suas paixões femininas, duas e nenhuma delas completamente lograda, incidiram sobre Yvonne George — a dedicatária do livro, «a que passa», a que surge nele como «cantora de music-hall» — morta aos trinta e três anos de idade, dois anos depois de publicado A Liberdade ou o Amor. Desnos referiu-se-lhe um dia nestes termos: Em Yvonne George admiro a faculdade de dar vida ao que é apenas, e de uma forma tão fraca, múmia exumada num deserto de areia: a canção que dura menos do que a vida de um homem. […] Para ser a mais moderna não precisa de se atravancar com acessórios fugitivos da moda. A eternidade não tem uniforme… só uma entoação, a que esta surpreendente artista, sem dúvida a maior da hora actual, é a única a saber dar à expressão da emoção humana. Ferido pela morte desta deusa onde ele não encontrou inequívoca retribuição do seu amor, mais tarde substituiu-a por Youki Foujita, modelo, ex-mulher do pintor Tsugouharu Foujita, a última grande paixão da sua vida e inspiradora reconhecida de muitos dos seus poemas. O livro abre com um assumido pastiche de Rimbaud. Cinquenta estrofes de quatro versos passam subtilmente por todos os temas aflorados no texto de A Liberdade ou o Amor. Esta opção, ambígua nas suas intenções, tem sido objecto de várias hipóteses interpretativas, a mais frequente ligada ao desejo de mostrar a Breton que um surrealista não precisa de repudiar as anteriores formas de expressão poética, pode adoptá-las e incluí-las sem deslustrar com isso uma atitude central autenticamente surrealista.
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Depois, o primeiro capítulo resume-se a um epitáfio do próprio autor, limitado à secura de duas datas, a do seu nascimento e a da sua morte. E se a do nascimento é correcta, claro está que a da morte é inventada quando ele a faz coincidir com o dia em que acabou de escrever o seu livro. A leitura do último capítulo, com a frase final interrompida e deixando por concluir a narrativa, explica a intenção do primeiro. Só a morte súbita do autor Desnos justificaria que fosse interrompida uma história sem fim, que poderia continuar indefinidamente, somando episódios e épocas e metamorfoses de duas personagens nas mil variações de uma mesma liberdade delirante e lúcida, afirmação de um poeta livre, só possível com a prática do amor-sexo, com a negação do amor-sentimento. Nos restantes onze capítulos, duas personagens centrais — Corsário Soluço e Luísa Onda — são mostradas a viver esta liberdade de vida onde só é admitido o prazer do sexo desfrutado ao longo de uma mitologia pessoal, com situações e épocas sem ligação entre si, num longo poema com imagens que atraem e repelem no cumprimento de uma saudável revolta. Corsário Soluço tanto pode deambular ocioso por Paris, no tempo em que os anúncios preponderantes da cidade são os do Bebé Cadum e do Bibendum Michelin, como estar morto no fundo do mar, ser dono de um luxuoso iate, ser louco num manicómio, assistir à morte de Luís XVI ou ser anfitrião numa festa dos agitados tempos do rag-time. Luísa Onda tanto pode ceder-lhe com toda a sua liberdade de mulher livre num quarto onde Jack o Estripador praticou «uma das suas obras-primas», como ser professora num colégio inglês do condado de Kent. Numa paisagem de tempestades, pesadelos sangrentos, paraísos perdidos e reencontrados, de magias obscenas, de sereias possuidoras de um maléfico poder sobre os homens, Desnos-poeta entrega-se
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Bebé Cadum
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Bibendum Michelin
sem nenhuma retenção, num mundo onde tudo é lícito quando solicitado por exigentes prazeres do amor, ao seus preferidos fantasmas líricos; faz de Corsário Soluço a emancipação integral e parece a um passo de querer repetir Rimbaud: «Este é o tempo dos assassinos.» Veremos esta personagem central masculina acompanhada por outras que a prolongam no relato de experiências de uma liberdade onde o sentimento do amor não participa; também veremos que à imagem risonha de Bebé Cadum, a dominar do alto dos prédios o habitante da cidade com o anúncio do seu sabonete, cabe o papel de um novo cristo da idade moderna, com um gólgota onde a etérea fluidez da sua espuma é vencida pela força bruta e elástica do Bibendum dos pneus Michelin, símbolo da agressividade automóvel e do mundo vencedor onde ela se insere; veremos que a heroína histórica Joana d’Arc, a mártir que não soube aproveitar as potencialidades sexuais do mundo masculino onde viveu, é vingada pela Joana d’Arco-Íris, que vem à terra cumprir-se naquilo onde a sua irmã falhou; e teremos ainda de passar pelo ras-
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gado elogio do marquês de Sade, visto como símbolo de uma total liberdade do ser sexual, ligada a todos os valores de um revolucionário defensor do povo. Robert Desnos era filho de um responsável pelas carnes do mercado dos Halles. Contentara-se com estudos sumários, escolhendo desde muito jovem uma vida de empregos e ocupações que lhe chegavam ao sabor da sorte e dos acasos, fazendo recados numa drogaria, inventando slogans numa agência de publicidade, secretariando um jornalista mundano. E desde muito cedo mostrou-se inveterado leitor e com uma facilidade no discurso poético que soube fazer um espanto entusiasmado em Benjamin Péret e Roger Vitrac. Era boa porta para a sua inclusão num grupo que ainda não dava a si próprio nenhum nome mas não tardaria a lembrar-se de uma palavra de Apollinaire para se escolher «surrealista». Dentro desse grupo Desnos revelou-se um espantoso caso de escrita automática, de anotador de sonhos, um perito em cadavres exquis (esses cadáveres de várias mãos que costumam ser mal traduzidos para português como «esquisitos»). Foi adoptado, elogiado e querido por Breton; foi repudiado, censurado e expulso por Breton. Depois de A Liberdade ou o Amor, Desnos teve dezoito anos de vida para se exercer como poeta de versos, jornalista, crítico literário e de cinema, vendedor imobiliário; para ser o argumentista de filmes como L’Etoile de Mer de Man Ray, Minuit à catorze heures e Bonsoir mesdames, bonsoir messieurs de Roland Tual, para ser autor de um programa radiofónico célebre (La complainte de Fantômas), para escrever os textos líricos do filme Panurge de Michel Beruheim, a letra da cantata feita para a inauguração do Museu do Homem, com música de Darius Milhaud… Teve uma actividade intelectual intensa e ocasião para se afirmar
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como um dos maiores poetas da sua geração; pôde reunir os seus poemas mais significativos em dois livros, Corps et biens (1930) e Fortunes (1942) (com o longo poema Siramour onde Lisboa é cinco vezes citada1); e conseguir escrever um quase-romance Le vin est tiré… (1943), onde lamenta e comenta os malefícios da droga (Desnos foi um viciado opiómano)… Mas, a embaciar este imparável entusiasmo de homem de cultura derramado pela poesia escrita, pela rádio, pelo jornalismo, pelo cinema, houve um fatal acidente ligado à sua corajosa militância anti-fascista. Os artigos que assinou no jornal Aujourd’hui, odiado pela extrema direita, e com o pseudónimo Cancale num jornal clandestino anti-alemão, marcaram-no durante a presença nazi como um alvo a abater. Foi preso em 22 de Fevereiro de 1944; deportado para Compiègne, depois para Auchwitz, Buchenwald, Flossenburg, Flöha, e finalmente para Teresin na Checoslováquia. Youki Foujita, com quem ele então vivia, tinha ido para a América como tantos outros franceses incapazes de suportar o invasor germânico. Desnos passou o seu tempo de recluso a escrever-lhe cartas, sem saber se alguma vez lhe chegariam às mãos; a fazer versos que a tinham como inspiradora e destinatária. Nos finais de Maio de 1945 foi vítima de uma epidemia de tifo com vitórias fáceis na promiscuidade deste último campo de concentração; e, quando as forças aliadas libertaram a Checoslováquia, foi internado num hospital que lhe prestou os possíveis cuidados sem conse1 A tradução para português desses cinco blocos feri-los-ia profundamente no seu encanto verbal e na sua sedução rítmica. São assim na língua original: Nous irons à Lisbonne, âme lourde et cœur gai / Cueillir la belladone aux jardins que j’avais (repetido três vezes); Sirène de Lisbonne, / Lionne rousse aux aguets. / Je parle ici de la sirène idéale et vivante. / Jadis une sirène / À Lisbonne vivait; e ainda: Que Lisbonne est jolie, / La fumée des vapours / Sens la brise mollie / Prend des formes de fleurs.
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Desnos em Teresin
guir salvá-lo. Foi poeta até ao fim; e teve o seu último poema recolhido por uma enfermeira e dedicado, como os antecedentes, a Youki. Não é dos seus melhores mas já tem num verso esta certeza: Resta-me ser sombra entre as sombras. Robert Desnos morreu em 8 de Junho de 1945, e em 24 de Outubro as suas cinzas foram levadas para o cemitério de Montparnasse em Paris. Houve um cortejo, discursos, saudosos reconhecimentos de antigos companheiros do surrealismo, e a marcar-lhe o túmulo o epitáfio que afastava para longe a ironia proposta num dos seus papéis:
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Aqui jaz Robert Desnos, E muito chumbo na cabeça Ele precisou Para dormir, enfim, Neste bom sono de chumbo. Não está esquecido. É exemplo entre os mais altos da poesia do século XX; e em páginas de prosa poética responsável por um dos cometimentos mais belos do surrealismo francês — onírico, erótico, subversivo — esse a que ele chamou, tirando o seu chapéu aos ecos de Revolução Francesa, A Liberdade ou o Amor. A.F.
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À revolução, ao amor, àquela que os encarna.
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«os vigil antes» de arthur rimbaud
Levantem-se na costa de esquinas duvidosas Faróis que denunciem espumosos recifes, E um feliz clarão ofereçam aos mastros em perigo Se eles não souberem por que são crucificados. Ao frágil horizonte longo tempo enviam O desesperado apelo dos Cristóvão Colombo Antes de terem, na marca de um pé selvagem, Resposta concedida à sua prece desenvolta. E que um rei negro piloto, apaixonado por navegações Com uma esteira que um fogo de sol apaga, Tua esteira de infâmia, ó civilização! Saiba um dia devolver-nos à fauna. Comemos em excesso os peixes histéricos Com espinhas que imprimem nas mãos o seu estigma E nos fizeram sonhar encontros místicos Quando sofríamos de ventre saciado pelos caminhos. Noites inteiras à frente das folhagens dormiremos, Por haver na brutalidade uma trégua,
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A não ser que um sonho vão nos vinque o rosto E encaminhe as pernas para outra cidade. A estrela-guia dos marinheiros socorridos, Velhos lobos com bigode que prendia as tempestades À irradiação de visíveis astros, Há muito nos abandonou a febril coragem. Bons tempos, do mago caído entre palhas e tecidos, Trémulo à cabeceira de um parto Anunciador de divinos nascimentos Que partem nas nossas mãos desiludidas órbitas. Ah! Basta! Desmoronai-vos, muralhas e adros! Estrela! Que bom era quando gemiam velas Em pedregosos rios com fome de mortos, Levando conquistadores com gengivas sangrentas. Mas para nós, sem urtigas nem altas cicutas Que nos lambessem a pele e mordessem o estômago, No seio de exíguas cidades a estrela é um cruzeiro Que à noite oscila como a rede onde dormimos. É o candeeiro aceso que vemos da rua Desenhar um seio nas pregas da cortina, Ainda que uma voz sonora teime tantas vezes E faça deste sonho um pesadelo.
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Ah! Quando os tiros brotam na esquina das ruas Levam uma trégua ao coração dos estudantes Que pensam comovidos nas ceias do Véfour Soltando ais-de-mim que sobem às mansardas. Brincámos em jogos-do-avião cheios de luz, Piscando um olho, incomodados pelo eco Do som pesado que abre o portal dos pátios Deixando passar fiacres com invisíveis blusas de mulher. Desesperados quando um amor forçava as nossas mãos A imitar um jogo de serpentes que deslizam Deixando-nos sem dó à beira de amanhãs E a choramingar como um tolo sacristão as parcas esmolas. E a duvidarmos que nem vigor viril tivéssemos Para estreitar o consolo do teu corpo, ó ficção, Engolíamos descrentes o teu filtro verde, Obstinados até à euforia animal. Ultrapassada, a pena mostrava-se mais tónica Do que a malva dos bosques e a casca quente da quina, E todos chegávamos ao nosso inferno platónico, Nus até ao coração assassinado por um estranho tigre. Tivemos dentes de aço que venciam o escorbuto E moíam luíses de ouro, tivemos maxilares prognatas Que cediam ao sonho de ascensões sem termo, E o sangue deu cor aos nossos celerados lábios.
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Ó mulheres, que víamos de ombros curvados Tentando aproximar das calças a blusa cor-de-rosa! Que beijos floriam os vossos peitos lisos Quando a noite punha garanhões nos nossos passos. Silêncio, meninos! Mais numerosas do que ondas Rolam na base das dunas memórias cheias de espuma: Levámos longe a cobardia destes ruminantes Com um corno que simula no futuro uma fortuna. Ide-vos, bastardos! Vede, ó Don Juan com enfisema, Os nossos dedos dormentes e os nossos músculos fracos Por terem suportado a vida transformada em regra, Os pés cansados de atravessar desfiladeiros. E agora, fugindo ao lago dos candeeiros públicos Pedimos a esse claro chão cheio de azul Que aos desejos nos devolva um vigor púbere Porque nos dorme um gato frio em pleno coração. Caminhos-de-ferro, gritai atrás de nós em vão. Se for preciso viveremos cegos, surdos, numa multidão Sem ter saudade do feroz cheiro da selva E do marulho negro no amor dos tubarões. Que a cidade adormecida tenha longos pesadelos Saídos em procissão branca do fundo dos corações. Que noite nos levará tenazes de lagosta aos olhos, Que vulcão nos lançará as suas lavas?
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Mais perdidos nestes arredores sinistros Do que um zuavo sentinela na África profunda, Com um ralo de tambores na nossa garganta Expulsamos burgueses trémulos nas suas flanelas. Para as pupilas em sangue evocaremos O desfile distante dos seus guardas-barreiras Com o peito à mostra, a baba do tédio, o olho indecente Quando a locomotiva entreabre as suas pálpebras. Campónios detidos na passagem de nível, As vossas mãos estendem-se para os vagões sonoros. Ficai longe disto, com mulheres e novilhos, E a igreja que imita sem êxito os semáforos. Não constrangerá estas pedras o incêndio Nem as igrejas curvadas como paralíticos? Irão novos Robespierre devolver-lhes Impiedosamente a vaca e os asnos eleitos? Fará mais alta esta chama que à volta dos cibórios vigia Lambendo as gordas faces dos santos, Destruirá ao som de cornetas de bombeiros, alegre feira, Os três deuses com um tempo que já caducou? Cristo de braços na cruz! De que te vale endireitares o corpo? Viste algum dia as algas venenosas Tecerem coroas na fronte dos peixes mortos E tratarem vinosas feridas dos afogados?
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Na cidade, onde o gás apaixonadamente canta À luz de bailes com uma rapaziada robusta Que seus beijos ajusta a maldosas bocas, Sofre a tua igreja maravilhosos estragos. Foram então erguidos casebres de tábuas, Surgiram assustadores os vigilantes nocturnos Juntos por instantes e esfalfados, que povoam o tédio Desencadeando uma tempestade de tosses. Em braseiros rubros aquecem dedos mortos E vêem com olhos satisfeitos os escombros Perguntando arrepiados se os heróis triunfaram, Como diz Homero, sobre um sem-número de ratos. Em panos de muro onde o frio vento se diverte, E por vezes subsistem pedaços de papel, Revêem amantes que testa-a-face dormem, E os seus amores contam como adelos Que recolhem, misturados, seda e algodão Quando estudam de manhã a colheita nocturna. E depois, se a neve morde as suas caras de pau, Dão à sola a sonhar com borzeguins. Dormitam com a rolha de tabaco sujo no nariz, À hora em que o sopro quente de pão fresco Se exala por entre respiradores enevoados, Em que os algozes acordam nas suas camas.
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Quando os lacaios transpiram um alvor criminoso E erguem cadafalsos no fim dos bulevares, Quando o olhar vivo e mãos modelam seios, Evocamos o amor e a morte que nos falta. Mas curvados e moles perante as brasas mortas, Vêem das brumas da manhã surgir os leiteiros Atentos por ali, de porta em porta, E polícias a levarem para a esquadra as suas devassas. Não, nada disto tem a ver com as nossas vigílias líricas. Temos olhos pisados pelos vampiros da meia-noite, Nas faces maravilhadas o sangue põe-nos uma cor, E as nossas bocas sangraram com beijos sedosos. Nós, a multidão que em redor das guilhotinas Espera a revelação de novos Gólgotas, Nós, atados no amor por cordões de cortinas, Nós, com palavras que insultam os notáveis, Nós, que vamos à Ópera e malhamos com prazer As costas das que se enfeitaram com pérolas, Nós, mestres em naufrágios com vagas Que bateram e saborearam carnes; nós, de amores Dispersos pela cólera; mergulhadores sagrados Em bancos de ostras no fundo de sangrentos mares, Cortadores de amarras no flanco dos navios ancorados E de tranças caídas pelas costas de indolentes raparigas,
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Desprezamos estas noites de vigília onde as saudades Vão devorando velhos, onde migalas ferozes Ampliam desejos de vergas e mastreações E a lancinante aflição de lendárias sarnas. Vigília do oficial de quarto num navio almirante, Combate de polvo e lagosta no fundo de destroços De onde pendem bandeiras molhadas. Era noite de baile Quando tudo se afundou sem choque num mar côncavo. A orquestra estava a tocar a valsa e os dançarinos de fraque Agarravam-se a desconhecidas dançarinas. O amor lastrado pelo ouro afundou-se num saco, Uma jangada transportou milionárias nuas. Num café claro de espelhos sem brilho É que manejamos como num guinhol a humanidade, Gente passada, gente futura, imagens abolidas, E os aspectos do verbo em santíssima trindade. Há por vezes a surpresa de as nossas mãos trançarem flores Nas vidraças embaciadas, enquanto vão descendo o rio Rebocadores cheios de força em direcção aos portos Vestidos de novo pelos pilares das pontes. Não ousamos relembrar o voto de um afogamento Salvo a tempo; e para acabar com os homens, Esses porcos, gostamos de rostos pintados e olhos pisados, E mimamos com detestáveis transportes o amor.
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Se os olhos das raparigas são laços que prendem os pulsos, Que razão teremos para gostar tanto dos rostos? O que esperamos? Está na hora de as filhós cantarem. Com rosas das suas blusas vamos perder os olhos. Vigílias para quê? Descendo outrora de um céu meigo Para nós Jesus fazia milagres anuais. Era um Natal de gelo que rachava as pedras Para não macular os pés descalços do Emanuel. Pesam-nos os pés com as vossas gredas móveis, Pântanos onde se enterra o corpo branco dos Jesus, Julho viu afundarem-se as sábias preces E os Papas de escapulários descosidos. E depois perscrutamos a noite insípida de nuvens Com a esperança de ver uma nadadora Que antes do alvor, e a cada braçada, Concilie o amor com a liberdade. 26 de Novembro -1 de Dezembro de 1923
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i. robert d esnos
Nascido em Paris em 4 de Julho de 1900. Falecido em Paris em 13 de Dezembro de 1924, no dia em que escreveu estas linhas.
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ii. as profundez as da noite
Quando cheguei à rua, as folhas das árvores caíam. Atrás de mim a escada só era um firmamento semeado com estrelas, e eu distinguia no meio delas a marca nítida dos passos de uma certa mulher com tacões Luís XV que tinham martelado durante muito tempo o macadame das áleas onde corriam os lagartos do deserto, os mais frágeis animais que eu domesticara e recolhera depois na minha casa, onde partilharam os interesses do meu sono. Os tacões Luís XV foram atrás deles. Tratava-se, garanto eu, de um espantoso período da minha vida que a todos os minutos nocturnos fazia uma nova marca na alcatifa do meu quarto: marca estranha e que em certas ocasiões me causava um arrepio. Em tempo de tempestade ou luar, quantas vezes me levantei para contemplar à luz de uma lenha que ardia, de um fósforo ou de um vagalume, estas memórias de mulheres que vinham até à minha cama completamente nuas, se exceptuarmos as meias e os sapatos de tacão alto que não tiravam por deferência para com o meu desejo, e mais insólitos do que uma sombrinha encontrada por um paquete em pleno Pacífico. Tacões maravilhosos, contra os quais eu raspava os meus pés; tacões!, em que estrada estais a soar? E alguma vez voltarei a ver-vos? A minha porta estava então completamente aberta ao mistério, mas ele entrou fechando-a atrás de si; e de ora em diante, sem dizer uma palavra escuto um ruído imenso de pés,
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o de uma multidão de mulheres nuas que sitiam o buraco da minha fechadura. A multidão dos seus tacões Luís XV faz um barulho comparável ao de um fogo de achas na lareira, ao dos campos de trigo maduro, ao dos relógios nos quartos desertos da noite, ao de uma respiração estranha ao lado do nosso rosto e sobre o mesmo travesseiro. Eu tinha-me entretanto metido na rua Des Pyramides. O vento trazia folhas arrancadas às árvores das Tulherias, e essas folhas caíam com um fraco ruído. Eram luvas; luvas de todos os géneros, luvas de pele, luvas da Suécia, longas luvas de tecido. E à frente do joalheiro é que uma mulher descalça a luva para experimentar um anel e dar a mão a beijar ao Corsário Soluço; é uma cantora ao fundo de um teatro enfurecido, que se aproxima com eflúvios de guilhotina e gritos de Revolução; é um pedaço de mão que podemos ver ao nível dos botões. De vez em quando caía uma luva de boxe mais pesada do que um meteoro em final de corrida. A multidão espezinhava estas memórias de beijos e amplexos sem lhes prestar a deferente atenção que elas solicitavam. Só eu evitava magoá-las. Por vezes chegava a apanhar uma. Com um suave abraço ela agradecia-me. Sentia-a estremecer no bolso das calças. A sua dona devia desse mesmo modo estremecer no fugitivo instante do amor. Eu andava. Voltando pelo mesmo caminho e seguindo ao longo das arcadas da rua De Rivoli, acabei por ver Luísa Onda1 a andar à minha frente. 1 No original Louise Lame, que tanto pode ser Luísa Onda como Luísa Lâmina. No entanto, a preferência de todo este texto por imagens aquáticas fez com que fosse adoptado, na tradução, Onda. (N. do T.)
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vi. panfleto contra a morte
O corpo de Luísa Onda foi colocado num caixão, e o caixão numa carreta fúnebre. A viatura ridícula tomou o caminho do cemitério Montparnasse. Rio atravessado, casas ladeadas, paragem de eléctricos à frente do funeral, chapeladas dos transeuntes, diferenças de velocidades no cortejo, aquilo que faz a assistência dar encontrões ou formar grupos, e os gatos-pingados conversarem… 1.º gato-pingado: — Havia na minha terra uma grande casa. Aquele e aquela que a habitavam podiam a seu bel-prazer apanhar flores em todo o campo vizinho, de tal forma a casa dava um garantido privilégio aos seus habitantes. Mas eles e os ornatos e o pedestal das estátuas preocupavam-se mais, uns com o sal acumulado em cones nos pântanos artificiais, outros com o pombo-correio que passa no céu levando uma carta de amor debaixo da asa: «Minha querida Matilde, as grandes lontras da terra polar e os lobos calorosamente envoltos em peles atiram-se para a boca das nossas carabinas quando pronuncio o teu nome. Em plena estepe encontrei um calvário. Quando toquei no Cristo ele desfez-se em migalhas como um velho mamute congelado; os cães do meu trenó devoraram-no, e não se tinham confessado. Não há confessores para cães. Mas estavam em jejum. Minha querida Matildezinha, o teu amante, o teu amante…»; eles preocupavam-se mais com isto do que se preo-
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cupavam com flores. E por baixo da sua moradia escavavam um grande subterrâneo, e queriam chegar ao mar abrindo essa passagem cuidadosamente escorada através do terreno mole, das camadas calcárias, dos restos fósseis, das cavernas subterrâneas, cavernas muitas vezes atravessadas por um riacho puro, eriçadas com estalactites e estalagmites, por vezes ilustradas com desenhos pré-históricos ou atravancadas com ossadas difíceis de identificar, sem temerem a noite perfeita do sub-solo nem um enterro prematuro. Chegaram ao mar depois de seis anos de esforços. Com a luz, o jorro saltou e afogou-os. Um géiser salgado, que se eleva a partir da casa abandonada, é o único vestígio desta aventura. 2.º gato-pingado: — O moinho de café ronronava nas mãos da cozinheira. Depois houve no silêncio do pomar o patético e súbito grito do porteiro: «Ela está a morrer! Ela morreu!» De facto, a pobre mulher tinha morrido, e luxuosamente: travesseiro de cenouras, mortalha de flores de pessegueiro. Na casa enlutada nunca mais deixou de retinir o ronrom do moinho de café nas mãos rudes da invisível cozinheira de avental azul; e nem o amante sem audácia nem o padre de mau augúrio voltaram impunemente a passar sob as janelas fechadas. 3.º gato-pingado: — Quando o Judeu-Errante recebeu um aumento, comprou uma bicicleta. Andava nas estradas, de preferência nas que seguem pelo cimo das colinas, e o sol projectava as rodas do velocípede ampliando-as em círculos de sombra móveis que se arrastavam sinistramente pelos campos e pelos lugarejos. A sua passagem fez espaços calmos nascerem. O sinal da linha do caminho-de-ferro move-se com lentidão. À hora do crepúsculo uma pastora longínqua levanta a saia
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xi. batei, tambores de santerre!
Estava o dia 21 de Janeiro a terminar, e Luís XVI subia os degraus do cadafalso. No momento em que o Corsário Soluço desembocava na praça pela rua Royale e notava com satisfação que tinham substituído o magnífico obelisco pela adorável guilhotina, uma companhia de tambores com brancos talabartes de pele alinhava-se contra a parede do terraço das Tulherias enquanto Jean Santerre, seu comandante montado num cavalo derrabado e provido de crina farta, contemplava o espectáculo da multidão que à volta da máquina justiceira se concentrava a olhar para Luís XVI quando ele subia os degraus como um autómato e espreitava os mais discretos gestos do carrasco e dos ajudantes que deviam, com um acto no entanto simples, transformar o 21 de Janeiro num dos mais memoráveis dias geradores de entusiasmos; dos que não celebram com aniversários a memória mas lembram aos vivos que existe nele um dos nomes para a eternidade e faz notar, apesar dos almanaques e de fictícias mudanças ao milésimo, que esse dia ainda não terminou. Um rufar de tambores anunciou ao Corsário Soluço que o rei quis falar mas encontrou um coração apaixonado para lhe tapar a voz com o ruído grave desses instrumentos primitivos1. 1 Desnos escreve Jean Santerre, mas trata-se de um erro. A personagem em causa é Antoine-Joseph Santerre, o general que assistiu à execução de Luís XVI e
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Corsário Soluço sabe como vai morrer. Tem esse dia e essa hora fixados numa madrugada de Junho, ele com trinta e nove anos menos um mês. Mas não; não sabe exactamente como vai morrer. Julga no entanto adivinhar que será das consequências de uma ferida, se não mesmo de morte violenta no Campo de Marte. Sob o céu de papel-prata que mal chega a mostrar a torre Eiffel, as sombras dos seus assassinos fogem para o Sena; e a sensação da agonia mistura-se nele com a lembrança de uma mulher adorada. Ao que lhe parece, vai morrer nesta paisagem que é uma das sete maravilhas do mundo moderno, ou então no dia seguinte numa cama áspera com vidraças de um estúdio a empalidecerem por cima da sua cabeça e os primeiros operários a dirigirem-se para o metro, martelando com secas passadas o passeio matinal. Neste momento talvez se esteja a executar no bulevar Diderot um assassino, entre um procurador de chapéu alto e um médico de cabeça descoberta. Para o condenado, o arrepio húmido das árvores será a última manifestação sentida; e para ele a última do universo material. Eles, irmãos que se desconhecem, serão sem dúvida, e no mesmo instante, presa do seu sonho. Que nesse instante supremo ninguém abra a boca, a não ser ele. Pertencer-lhe-á a tarefa de dar a ordem para o último rufar de tambores, e sobre um mistério integral fechar esta boca de carne sedutora, meiga e cruel, estes olhos ainda mais belos no momento do amor. Uma floresta de pinheiros ergue-se no pensamento de Corsário Soluço. Escondido pelos seus troncos e pelas suas agulhas assiste às guilhotinadas do Terror. E há a procissão dos admiráveis e dos desprezíveis. O carrasco, com um gesto mandou rufar os tambores quando percebeu que o rei queria falar. Por causa disto ficou conhecido como «o general rufador». (N. do T.)
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renovado e sempre idêntico a si próprio levanta cabeças cortadas. Cabeças de aristocratas ridículos, cabeças de apaixonados cheias do seu amor, cabeças de mulheres que é heróico condenar. Mas elas teriam podido, por amor ou ódio, inspirar outros actos. Um aeróstato de papel passa ligeiro por cima do teatro revolucionário. O marquês de Sade põe perto do rosto de Robespierre o seu rosto. Os dois perfis destacam-se no círculo vermelho da abertura da guilhotina, e Corsário Soluço admira esta medalha de apenas um minuto. Charenton! Charenton! Tranquilo subúrbio às vezes perturbado pelas batalhas de proxenetas e pelos afogamentos solitários, agora albergas o pacífico pescador à linha; o que ainda usa, espécie quase desaparecida, o chapéu de palha com feitio de funil e uma pequena bandeira no topo. Os gritos dos loucos já não soam no teu asilo desocupado. O marquês de Sade já não usará ali a independência do seu espírito, ele, herói do amor e do coração e da liberdade, herói perfeito para quem a morte mais não era do que brandura. Deploramos a partida deste membro da section des piques, esclarecido e eloquente cidadão. Nas nossas memórias republicanas ainda soam as palavras que ele soube encontrar para exaltar entre nós a memória do Amigo do Povo1. Apesar de nascido nas fileiras dos aristocratas, o cidadão Sade sofreu pela liberdade! O já referido regime foi visto a perseguir este panfletário corajoso que não punha ao vício nenhum véu. Pintou os costumes corrompidos dos aristocratas, e estes perseguiram-no com o seu ódio. Vimo-lo, A Section des Piques foi uma organização revolucionária de cidadãos parisienses, severa inimiga dos tiranos e defensora das liberdades, que teve em 1792 o marquês de Sade como seu presidente. As palavras acima aludidas são, com evidência, a do seu Discurso aos Antepassados de Marat e de Le Pelletier. (N. do T.) 1
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enfim, nos primeiros dias de Julho suscitar a santa cólera do povo contra a Bastilha. Podemos, devemos por justiça reconhecê-lo como o instigador do dia 14 de Julho que fez nascer a liberdade! Não chegou, no entanto, a tirar proveito da obra em que trabalhou, e só três meses mais tarde foi libertado da prisão onde se manteve encarcerado pelo tirano que quis subtraí-lo ao reconhecimento popular. Foi então visto entregar-se ao bem público e à sua salvaguarda. Rufam agora por ele os impiedosos tambores de Santerre. Saudemos sem rancor esta morte que o subtrai à nossa admiração e ao serviço da Revolução. Encontrará nela, sem dúvida, o repouso que a inquietude, a angústia e a paixão nunca lhe teriam cá em baixo consentido. E que o Ser supremo, a deusa Razão em cujos braços adormece, o console das penas que sofreu na terra para a vitória da justiça. A República, daí em diante muito forte, transmitirá aos seus filhos o seu exemplo e em gloriosos anais acolherá a sua memória. Delírio, nunca saudaste a morte lúcida do marquês. A tirania recuperou o seu poder absoluto sobre o espírito, e durante catorze anos ele esteve morto para o monótono rufar dos tambores do Império. Túmulos, túmulos! Erguidos no meio da espuma, sobre um recife de Saint-Malo1 ou então escavados por crianças perdidas numa floresta virgem, túmulos de granito, túmulos enfeitados com buxo ou coroas de contas e arame, túmulos frios dos panteões, túmulos violados não longe das pirâmides e a estremecer de fé e almas, túmulos naturais modelados na lava ardente dos vulcões em erupção ou na água calma das profundezas 1 Por certo uma referência ao túmulo de François Chateaubriand, no rochedo marítimo Grand Bé em Saint-Malo. (N. do T.)
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do mar; túmulos, sois ridículas testemunhas da pequenez humana. Nada, além dos mortos, dos materialmente mortos, foi alguma vez posto nos túmulos, e tanto pior para esses que ligam de forma indissolúvel a sua desprezível alma a uma desprezível carcaça. Mas é a ti que eu enfim saúdo, a ti mulher com uma existência que dota de sobrenatural alegria os meus dias. Só pelo teu nome te amei. Segui o caminho que a tua sombra traçava num deserto melancólico onde deixei para trás todos os meus amigos. E agora, quando julgava ter-me afastado de ti, encontro-te e tens de novo iluminado o rosto e o corpo pelo opressivo sol da solidão moral. Adeus, mundo! Mas a ti, mulher, seguir-te-ei se for preciso seguir-te até ao abismo! Durante noites e noites vou contemplar os teus olhos brilhantes na escuridão, o teu rosto muito ao de leve iluminado mas visível na clara noite de Paris, graças ao reflexo dos candeeiros públicos nos quartos. Vou contemplar os teus olhos tão meigos, húmidos e enternecedores até à alvorada branca que acorda os condenados à morte com o dedo de um fantasma de chapéu alto, e nos fará lembrar que a hora das contemplações passou e é preciso rirmos, falarmos e suportarmos, não o opressivo sol consolador do meio-dia nas praias desertas, face ao assombroso céu que nuvens galhofeiras percorrem, mas a dura lei de constrangimento, o cárcere da elegância, a pseudo-disciplina das relações da vida e os inexprimíveis perigos da fragmentação do sonho pela existência utilitária. E a ti, se for preciso seguir-te, seguir-te-ei até ao abismo! Não és a que passa, mas a que fica. A noção de eternidade está ligada ao meu amor por ti. Não, não és a que passa nem o
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estranho piloto que guia o aventureiro através do dédalo do desejo. Abriste-me o verdadeiro país da paixão. Mais certo é perder-me no teu pensamento do que num deserto. E na altura em que escrevo estas linhas ainda não confrontei a tua imagem em mim com a tua «realidade». Não és a que passa mas, queiras ou não, a perpétua amante. Dolorosa alegria da paixão revelada pelo teu encontro. Sofro mas quero ao meu sofrimento; e se por mim eu qualquer estima tiver, é por ter chocado contigo na corrida às cegas para horizontes móveis.
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índice
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
7
«Os vigilantes» de Arthur Rimbaud . . . . . . . . . . . . . . I. Robert Desnos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II. As profundezas da noite . . . . . . . . . . . . . . . . . III. Tudo o que vemos é de ouro. . . . . . . . . . . . . . IV. A brigada dos jogos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . V. A baía da fome . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VI. Panfleto contra a morte . . . . . . . . . . . . . . . . . VII. Revelação do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VIII. A perder de vista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX. O palácio das miragens. . . . . . . . . . . . . . . . . . X. O colégio de Humming-Bird Garden. . . . . . . XI. Batei, tambores de Santerre! . . . . . . . . . . . . . . XII. Possessão do sonho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
21 30 31 38 52 62 73 80 102 110 117 125 131
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire
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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O capitão veneno, Pedro Antonio Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva
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REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 000000/16 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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Robert Desnos A LIBERDADE OU O AMOR
Robert Desnos A LIBERDADE OU O AMOR
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes Onírico e surrealista. Audaciosamente erótico. Irreprimivelmente subversivo.
www.sistemasolar.pt
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