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J.-H. Rosny Aîné A GUERRA DO FOGO
J.-H. Rosny Aîné A GUERRA DO FOGO
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
«O poeta da Pré-história», chamaram-lhe. A bravia idade do homem. Quando o Fogo era o poder.
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J.-H. Rosny Aîné
A GUERRA DO FOGO
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
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TÍTULO ORIGINAL: LA GUERRE DU FEU
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: GIUSEPPE ARCIMBOLDO, O FOGO, 1572 (PORMENOR) REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO DE 2015 ISBN 978-989-0000-00-0
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Um jornalista: Se a sua casa se incendiasse, o que é que salvava? Jean Cocteau: Creio que salvava o fogo.
Eram belgas com uma ascendência que coleccionava franceses, holandeses e espanhóis; eram dois irmãos separados por três anos na idade; e em 1886, quando surgiram em Paris fundidos num mesmo escritor, a todos pareceu que se chamavam Rosny. Mas a família deste sobrenome, pouco extensa e orgulhosa, onde havia quem conhecesse um a um os seus membros, reagiu. Estes Rosny não eram Rosny; o pseudónimo fora inspirado pela boa memória de um passeio do mais velho a Rosny-sous-Bois e deixava invisível um Boex belga, sonoridade pouco simpática quando colada a um escritor. Ao mais velho dos Boex dera o baptismo o nome Joseph-Henri (denunciado no J.-H. do nome literário) e ao mais novo um Séraphin-Justin-François que não lançava nenhum eco à capa dos seus livros. Durante vinte e um anos foram dois irmãos misturados, e dir-se-ia que aquele destino nas letras queria-os inseparáveis e siameses; por isto mesmo Georges Rodenbach afirmou num artigo de jornal: «Os irmãos Rosny são um grande escritor.» Tinham chegado da Bélgica, subúrbio cultural de Paris onde os escritores de expressão francesa tinham forte tendência para emigrar. De lá saíram Maeterlinck, Rodenbach, Michaux, numa lista
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de tantos… e para lá foram temporariamente, e apenas por estratégia, os que fugiam de dívidas e credores obstinados (Alexandre Dumas), os que se exilavam (Victor Hugo antes de compreender que a Bélgica, como subúrbio da França, estava muito perto da influência de Napoleão III). Mas Bruxelas também podia fazer um papel de recurso editorial; autores franceses reconheciam-lhe um lado prático quando previam aos seus livros dificuldades perante a censura de Paris. Entalada assim entre oportunidades de trânsitos opostos, a Bélgica funcionava no seu papel discreto de quarto traseiro da cultura. Muito mais tarde Jacques Brel chamar-lhe-ia plat pays numa canção onde este adjectivo ambíguo tanto podia ser «plano» como «chato»: era afinal a Pauvre Belgique que Baudelaire esteve para deixar no título de um livro em prosa, esquecido numa gaveta com outros papéis inconcluídos, e que apenas uma apreciação deficitária e póstuma permite hoje avaliar. Durante vinte e um anos os J.-H. Rosny escreveram com a autoria dupla de um irmão mais velho (o de maior talento) e de um mais novo que abandonara trabalhos de secretária e manga de alpaca, como baixo funcionário do Estado, para mergulhar na conjunta aventura de letras que deu às livrarias muitos títulos, como por exemplo Le Bilatéral, L’Immolation ou Les Xipéhus. Mas aos curiosos tinha Joseph-Henri o cuidado de não banalizar em excesso os mecanismos desta fraternidade; emprestava-lhe uma estranha regra, fazendo crer que os Rosny eram começados, ora por um, ora por outro, e em fase adiantada terminados pelo que não participara na redacção inicial. Quem melhor os conhecia não disfarçava porém uma dúvida, enunciando em voz baixa a sua suspeita: todas aquelas obras denunciavam a mão do mais velho. Tinham ecos iniludíveis, já soados na convivência dos salões
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— os que reuniam no final do século XIX, e em dias certos da semana, os melhores escritores de Paris — sentia-se neles a desenvoltura intelectual do Rosny J.-H., admirado como erudito e por uma muito sensível relação com as palavras; Séraphin-Justin-François, esse, não conseguia mostrar-lhes mais do que um menor brilho de satélite. Ambos apaixonados pela Pré-História e pelas civilizações menos conhecidas; ambos interessados em puxar até à boa literatura os temas que a convenção circunscrevia às margens de um entretenimento mais fácil; e até em ambos uma espantosa memória, uma curiosidade que parecia insaciável. Mas também se afirmava, a valorizar no duo o mais velho, que as suas qualidades de observação eram enormes; que ele chegara, durante o seu tempo de empregado dos telégrafos em Londres, a apoderar-se de pormenores e segredos da cidade cujo desconhecimento envergonharia Dickens e ignorados, poderia dizer-se, pelos que lá viviam; e mesmo em Paris eram de espantar as suas constantes «descobertas», iludidas à atenção de muitos escritores. A passagem destes vinte e um anos foi acrescentando singularidades físicas às suas figuras de homens públicos, conhecidas hoje por descrições dos que nesses dias, como Georges Casella, privaram com eles: «O mais velho tem o rosto estranho que as gravuras eslavas dão ao Cristo ortodoxo. É quase calvo, apesar dos cabelos castanhos que parecem fazer uma nobre coroa na sua prodigiosa testa. Fala com lentidão, com as pálpebras meio fechadas, a balançar a mão direita e numa voz cantarolada, um pouco monótona. Quando o ouvimos surpreende-nos a sua ciência. Não ignora nada. O menor facto é pretexto para dissertações, e termina-as com rapidez e verdades inesperadas sob a forma de extraordinários paradoxos. O seu irmão faz com ele um surpreendente contraste. Tem
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aspecto de militar, a palavra sonora e alta, o gesto seco. A pêra larga e espessa, abaixo do lábio inferior ajuda este fugidio e duro aspecto.» A sua parceria, que chegou a parecer de firmeza indestrutível, desfez-se em 1908 para ficar subdividida em dois Rosny: o J.-H. Rosny Aîné, ou seja, «o mais velho», e o J.-H. Rosny Jeune, ou seja, «o mais novo», ambos de pena ágil e muitas horas diárias de escrita, a multiplicarem-se separados nas montras das livrarias. E se não foi possível descortinar-se nesta bifurcação um litígio, antes a vontade de caminhos que aspiravam a diferenças literárias nos temas e nas personalidades, houve mais tarde um serão com franquezas do mais velho, confessadas aos ouvidos (e depois ao diário) de Jules Renard: «Os meus melhores livros… fi-los sem o meu irmão.» Os melhores livros de J.-H. Rosny Aîné saíram, de facto, da sua aventura literária individual em dezassete romances (cinco pré-históricos) e dezassete novelas. São dela os quatro pontos altos que mais contribuem para mantê-lo literariamente vivo: La morte de la Terre (1910), La guerre du feu (1911), Les Navigateurs de l’infini (1925) e Les Compagnons de l’Universe (1934). Tinha começado por parecer que este Rosny dava um grande abraço à onda realista — aparência que o fez aproximar-se dos irmãos Goncourt e de Alphonse Daudet, não só em amizade mas «companheirismo de clã»; mas pouco depois mostrava-se com vontade de uma traição e fazia-lhes a surpresa — a eles, que o tinham visto sentado e encantado na sua escola — de preferir efabulações pré-históricas e outras, as que seriam catalogadas num género a que chamamos hoje Ficção Científica. Eram regiões literárias com domínio forte de Jules Verne e até das primeiras tentativas de H.G. Wells; mas Rosny afirmava-se com uma divergência que ainda hoje
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o singulariza; imaginava as suas mais surpreendentes ficções de aroma científico a partir de qualidades totalmente estranhas aos seres e aos mundos que conhecemos. Afastava assim para mais longe a má sensação de inverosímil que nos invade quando está em causa a comparação mental de um objecto nosso conhecido com esse mesmo objecto parcialmente alterado numa ciência regulada por hipóteses a que o tempo deu uma inabalável condição de quimera. Estes territórios de sonho em ficções puramente conjecturais, servidas por uma escrita com preocupações de forma pouco previsíveis nos praticantes do género, fez dele um escritor excêntrico olhado como ave rara, a quem se colavam invenções biográficas — «As minhas lendas», ele próprio lhes chamou assim numa conversa com Jules Renard. E explicava: «Sou um antigo príncipe para alguns, para outros um operário que está a aprender a escrever — já tenho vinte e cinco anos de aprendizagem — para outros um comunardo. […] Não chego a compreender é que um homem possa ser célebre […] sem vinte e cinco mil leitores capazes de lhe comprar os livros, e esses leitores dobrem, tripliquem para os Bazin [é evidente que se tratava de René, acrescenta-se aqui, e não de Hervé, seu sobrinho-neto e futuro grande escritor], os Bourget, etc. […] Não sei o que é um desencorajamento prolongado; mas sou triste e penso todas as noites na morte. Sou um apaixonado pela vida, e parece-me que a morte se aproxima. Não a temo, apesar de saber que põe fim a tudo e lamentar que tenhamos de morrer, ou seja, de fazê-lo antes de nos sentirmos velhos.» Jules Renard achava-o um homem novo, embora lhe reconhecesse um ar venerável e que vivia constantemente no espanto de os seus livros se venderem muito pouco. «Os que me pagam odeiam a literatura», queixava-se J.-H. Rosny; «e como não podem tratar-nos
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como empregados, operários ou criados, como não podem falar-nos alto, com receio de dizer asneiras, odeiam-nos.» Os «vinte e cinco anos» da sua aprendizagem tinham como isolado antecedente um anterior e longínquo sobressalto de 1867 — ia ele nos seus onze de idade — quando escreveu o texto «Association des Enfants libres» que o seu pai destruiu, escandalizado e enfurecido com a impertinente história de crianças retiradas numa região selvagem para se livrarem «da perseguição paterna». Mas aquilo a que podemos chamar «irrefreável criação» só começou em 1886 com Nell Horn, de título em título estendida pela que é hoje uma vasta bibliografia, incansável trabalho de nove ou dez horas de escrita diária. E assim foi que em 1911, ou seja, com cinquenta e cinco anos de idade e quase no final da sua carreira literária, sonhou a Pré-História arisca mas poética de A Guerra do Fogo, que viria a ficar como mais célebre momento na sua obra de escritor. * Nas duas mitologias que marcaram com grande força a civilização europeia, o fogo é elemento próximo e exclusivo dos deuses, e adequado à representação não icónica do deus único. Os Gregos pensaram-no como privilégio divino, e por isso puniram Prometeu quando ele, amigo dos homens e ao reconhecer o fogo como indispensável ao seu progresso, lho ofereceu. Agrilhoado a uma rocha para toda a eternidade, teve o seu fígado pacientemente comido por uma águia. O deus bíblico Iahvé, esse escolheu-o para o enorme fulgor da sarça ardente que entregou os seus Mandamentos a Moisés ou, por exemplo, para exprimir a transcendência divina da car-
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ruagem e dos cavalos de fogo que levaram Elias para o céu. Mais tarde, as Igrejas Católica e Ortodoxa lembraram-se dele nas velas, nas lamparinas que sujam obras de arte e ardem para honrar o caminho dos fiéis em direcção ao alto, a Católica também na chama do incêndio que nunca se apaga no Sagrado Coração de Jesus. É porém de admitir, com os historiadores da Pré-História, que os seus homens práticos não tinham deus e só reconheciam um fogo de lados úteis, associando-o a não mais do que aos calores da rudimentar comodidade, à defesa contra a aproximação excessiva de outros animais, à transformação da carne crua noutra mais amável, quando se confrontavam com ela nos momentos da alimentação. Detê-lo também teria sido prova de força no homem pouco seguro da sua racionalidade. As personagens humanas de A Guerra do Fogo são todas exemplos do homo faber preocupado com a posse do «seu» Fogo; encontrá-las-emos em diversos estados de progresso físico, e algumas com características distantes do que hoje aceitamos como produto final da Evolução. Dificilmente as imaginamos autores das figuras que a arte rupestre nos legou; capazes, quando muito, de imprimir na rocha aquelas mãos abertas de uma involuntária e inocente consciência de arte, as que continuam a enfeitar paredes de pedra nalgumas das suas cavernas. A horda que esta história nos pede para acompanhar vê o seu mundo ainda jovem com mistérios de enorme peso sobre aspectos essenciais à sua sobrevivência. Já dispõe de saberes extensos sobre os animais que partilham com ela o espaço, já domina as principais práticas de defesa, mas é frágil e desprotegida contra quase tudo o que viria a dar estabilidade à espécie humana. Com estas limitações e estas durezas, uma acidental extinção do «seu» Fogo dá razão
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a um enorme desespero; vê-a como miséria só remediável pela reconquista da chama a outra horda onde ela esteja viva e em condições de ser multiplicada. Rosny confere a estes trabalhos o tradicional desenho das epopeias clássicas. O herói parte, sofre e enfrenta as dificuldades que a conquista do Fogo sucessivamente lhe levanta; e no seu vitorioso regresso tem por recompensa a posse física de uma das beldades da tribo, sobrinha do seu chefe máximo, e a honra de futuros poderes sobre os outros membros da comunidade. Às glórias desta aventura confere porém um sabor irónico; porque reserva ao herói a surpresa de perceber que a muitos perigos se teria poupado se já houvesse na sua horda um saber dominado por outras, capazes de fazê-lo nascer de um atrito entre duas pedras. Sobre tudo isto paira o Rosny que sonha um velhíssimo mundo de homens inocentes, sem a soberba de nenhum dos seus privilégios, elementos de uma Criação onde participam em plano de igualdade com os outros animais, vegetais e minerais, em equilíbrio primordial com um universo que os confronta, que lhes exige a luta-aprendizagem das angústias e dos terrores inerentes à racionalidade, que lhes pede todas as suas forças para não perecerem; os homens das «idades ariscas», como ele próprio lhes chamou, aquelas em que eles mostraram maior autenticidade na resposta ao seu destino no mundo. Em 1915 (tinha Charlie Chaplin acabado de ser pela primeira vez Charlot), o francês Georges Denola realizou o seu 84.º filme, e com ele uma rudimentar transposição para imagens deste Guerra do Fogo quatro anos antes publicado. Mas foi em 1981, depois de esquecido durante sessenta e seis anos pelo cinema, que ele teve o seu grande espectáculo realizado por Jean-Jacques Anneau. Foi um cometimento confrontado com insuperáveis dificul-
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O Naoh de Jean-Jacques Anneau.
dades de adaptação. Porque se a forma literária lhe permitia diálogos numa língua moderna, aceitando mentalmente o leitor que eles transpunham o sentido de outros, falados num idioma primitivo e do qual nenhum rasto existe, o cinema não conseguiria fazer aceitar sem ridículo que eles fossem ouvidos num qualquer dos idiomas actuais. Isto condicionou o argumento do filme de Anneau, teve de restringi-lo à história possível de ser entendida com sons articulados e gestos de uma expressividade que lhes conferisse um evidente sentido. Anthony Burguess foi o inventor do que poderia aceitar-se como linguagem nascente num homem de primitivos tempos, e Desmond Morris recorreu à sua familiaridade com o comportamento dos símios para definir uma gesticulação de meio caminho entre a do quadrúpede das árvores e a do homem.
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Com as limitações deste programa gutural e gestual, o filme de Anneau teve de resumir numas quantas frases prévias o que é nódulo do romance: «Há oitenta mil anos, a sobrevivência do homem numa terra vasta e inexplorada dependia da posse do fogo. Para estes primeiros homens, o fogo era um objecto de enorme mistério porque ninguém dominava a sua criação. O fogo tinha de ser roubado à natureza. Tinha de ser preservado vivo… mantido ao abrigo do vento e da chuva, do ataque das tribos rivais. Era um símbolo de poder e um meio de sobrevivência. A tribo que possuísse o fogo possuía a vida.» Tudo, a partir daqui, teria de ser apreendido através de sons e gestos primários, incompatíveis com a vontade de informações mais complexas, como a decisão tomada pela horda de oferecer ao vencedor a formosa Gammla, e de haver outro pretendente com um físico mais simiesco que iria disputá-la a Naoh. No filme, os três guerreiros do romance limitam-se a consumar a epopeia da conquista do Fogo motivados pelo que ele representa de essencial à vida da horda, e fazem-no servidos por imagens de uma beleza áspera, (transformados pela caracterização em seres humanos mais grotescos do que estes, soprados pelos ventos poéticos de H.-J. Rosny), e em muitos momentos da sua aventura sublinhados com grandes pompas orquestrais e corais da banda sonora de Philippe Jarre. O trabalho de Anneau foi um êxito reconhecido pelos espectadores e pela atribuição de vários prémios. * Esta versão cinematográfica deu uma segunda vida à obra literária de Rosny Ainé. Surgiu de imediato na programação oportu-
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nista de várias editoras francesas, foi relembrada por novas traduções em muitas outras línguas. O seu autor tinha morrido quarenta e um anos antes, e ainda havia quem o lembrasse pela frase «Nunca precisei de um médico», dita aos oitenta e seis anos de uma idade bem preservada pela disciplina homeopática e pelo exercício diário de ginásticas orientais, de repente partida no sobressalto de um mau momento cardíaco. Também ficava desocupada a presidência da Academia Goncourt, onde ele se tinha instalado desde 1926 (e onde foi, como nas sucessões dinásticas, substituído pelo seu irmão). Rosny Ainé tem hoje direito a rótulos — «pai da Ficção Científica» e «poeta da Pré-História» os mais repetidos — e à atenção de estudiosos das primeiras idades do homem, que já contrariaram algumas das «verdades literárias» de A Guerra do Fogo garantindo, por exemplo, que a palavra «guerra» é desajustada aos conflitos entre as primitivas hordas rivais; que não há prova da autenticidade dos seus anões-vermelhos ou os seus homens-de-pêlo-azul; que os primeiros humanos fizeram o seu fogo por atrito de uma vara vertical num furo da rocha, e não por atrito entre duas pedras… Mas o maior sonho de Rosny Ainé — saber-se escutado por um grande número de leitores — realizou-se; se sentido houver no que só é um sonho… póstumo. A.F.
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PRIMEIRA PARTE
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1. a morte do fogo
Os ulhamres fugiam na pavorosa noite. Loucos de sofrimento e fadiga, tudo lhes parecia inútil perante a calamidade suprema: o Fogo tinha morrido. Desde a origem da horda conservavam-no em três gaiolas; quatro mulheres e dois guerreiros alimentavam-no noite e dia. Nos tempos mais negros ele recebia a substância que o fazia viver; ao abrigo da chuva, das tempestades, da inundação, tinha transposto os rios e os pântanos sem deixar de ser azul de manhã e ensanguentar-se à noite. O seu poderoso rosto afastava o leão negro e o leão amarelo, o urso das cavernas e o urso cinzento, o mamute, o tigre e o leopardo; os seus dentes vermelhos protegiam o homem contra o vasto mundo. Toda a alegria habitava perto dele. Tirava das carnes um cheiro apetitoso, endurecia a ponta dos chuços, fazia estalar a pedra dura; os membros conseguiam trasfegar dele uma amenidade cheia de força; tranquilizava a horda nas florestas que estremeciam, na savana interminável, no fundo das cavernas. Era o Pai, o Guardião, o Salvador, no entanto mais bravio, mais terrível do que os mamutes quando fugia da gaiola e devorava as árvores. Tinha morrido! O inimigo destruíra duas gaiolas; durante a fuga tinha-no visto desfalecer na terceira gaiola, empalidecer e minguar. Tão fraco, não conseguia morder as ervas do pântano; arfava como um animal doente. Por fim ficou um insecto
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avermelhado que o vento magoava a cada sopro… Tinha desmaiado… E os ulhamres fugiam espoliados na noite de Outono. Não havia estrelas. O céu pesado tocava nas águas pesadas; as plantas esticavam as suas fibras frias; ouvia-se o chapinhar dos répteis; homens, mulheres, crianças sumiam-se, invisíveis. Orientados pela voz dos guias, os ulhamres seguiam conforme lhes era possível uma linha de terra mais alta e mais dura, ora a vau, ora por cima de pequenas ilhas. Três gerações tinham conhecido esse caminho, mas tinha-lhes sido necessária a luz dos astros. Era madrugada quando se aproximaram da savana. Um clarão enregelado filtrou-se entre as nuvens de gesso e xisto. O vento rodopiava sobre águas tão espessas como alcatrão; as algas inchavam-se com pústulas; os sáurios entorpecidos andavam entre os nenúfares e as sagitárias. Uma garça-real levantou voo de uma árvore de cinza, e a savana surgiu com as suas plantas a tiritarem sob um vapor arruivado, estendido até onde ela terminava. Menos extenuados, os homens endireitaram o porte, e depois de ultrapassarem os canaviais viram-se dentro de ervas em terra dura. Com a febre de morte a desaparecer, muitos transformaram-se em animais inertes; caíram no chão, sucumbiram ao repouso. As mulheres resistiam mais do que os homens; mas as que tinham perdido os seus filhos no pântano uivavam como lobas; todas sentiam de uma forma sinistra a decadência da raça e os dias seguintes pesados; algumas, que tinham salvo os seus filhos, levantavam-nos em direcção às nuvens. Naquela luz nova Fauhm fez com a ajuda de dedos e ramos a contagem da tribo. Cada ramo representava os dedos das mãos. Fazia mal a contagem; mas viu, ainda assim, que resta-
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vam quatro ramos de guerreiros mais seis ramos de mulheres, cerca de três ramos de crianças e alguns velhos. E o velho Goún, que contava melhor do que todos os outros, disse que faltava um homem em cinco, uma mulher em três e num ramo uma criança. Foi então que os de vigia sentiram a imensidade do desastre. Reconheceram que a sua descendência estava ameaçada na fonte, e as forças do mundo se tornavam ainda mais assombrosas: teriam de vaguear, franzinos e nus sobre a Terra. Apesar da sua força, Fauhm ficou desesperado. Já não confiava na sua estatura nem nos seus enormes braços; o grande rosto onde se aglomeravam pêlos duros, os olhos amarelos como os dos leopardos mostravam um esmagador cansaço; avaliava os ferimentos que a lança e a flecha inimigas lhe tinham feito; de vez em quando bebia o sangue que ainda lhe corria na ponta do braço. Como todos os vencidos, evocava o momento em que não tinha conseguido vencer. Os ulhamres atiravam-se à carnificina; ele, Fauhm, partia cabeças com a clava. Iam aniquilar os homens, raptar as mulheres, matar o Fogo inimigo, caçar em savanas novas e florestas abundantes. Que sopro tinha por eles passado? Por que razão os ulhamres tinham andado às voltas no terror? Por que razão os seus ossos se partiam, os seus ventres vomitavam as entranhas, os seus peitos uivavam a agonia enquanto o inimigo invadia o campo e fazia cair os Fogos Sagrados? Espessa e lenta, assim se interrogava a alma de Fauhm. Insistia nesta lembrança como a hiena na carcaça. Não queria sentir-se desacreditada, não se sentia com menos energia, coragem e ferocidade.
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A luz ergueu-se com toda a sua força. Corria sobre o pântano, investigava as lamas e secava a savana. Havia nela a alegria da manhã, a carne fresca das plantas. A água pareceu mais leve, menos pérfida e menos turva. Agitava faces argentinas entre as ilhas cor de azebre; lançava demorados arrepios de malaquite e pérolas, espalhava enxofres claros, lâminas de mica, e o seu cheiro era mais doce através dos salgueiros e dos amieiros. De acordo com o jogo das adaptações e das circunstâncias as algas triunfavam, o lírio dos lagos ou o nenúfar amarelo brilhava, as flâmulas da água, os eufórbios palustres, as lisimáquias, as sagitárias apareciam, espalhavam-se golfos de ranúnculos com folhas de acónito, meandros de peluda erva-pinheira, linárias, espiguetas rosadas, cardaminas amargas, rosólios, selvas de canaviais e vimieiros onde pululavam as galinhas de água, as galinholas pretas, as cercetas, as tarambolas, os pavoncinhos com reflexos de jade, a pesada abetarda ou a marueta de dedos compridos. Garças-reais estavam de atalaia à beira das angras avermelhadas; num promontório, grous divertiam-se a dar estalos com os bicos; o lúcio dentado atirava-se às tencas, e as últimas libélulas corriam com rastos de fogo verde, em ziguezagues de lazulita. Fauhm avaliava a sua tribo. O desastre tinha caído nela como uma ninhada de répteis: com um amarelo de limão, um escarlate de sangue, um verde de algas, largava um cheiro a febre e carne podre. Havia homens enrolados sobre si próprios como pitãos, outros estendidos como sáurios e alguns soltavam ralos, apanhados pela morte. As feridas estavam a ficar negras, hediondas no ventre e ainda mais na cabeça, onde se alargavam com a esponja avermelhada dos cabelos. Quase todos deviam
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curar-se porque os mais atingidos tinham sucumbido na outra margem ou perecido nas águas. Afastando os olhos dos adormecidos, Fauhm examinou os que sentiam mais amargamente a derrota do que o cansaço. Muitos mostravam a bela estrutura dos ulhamres. Eram rostos pesados, crânios baixos, maxilares violentos. A sua pele era fulva, e não negra; quase todos vinham a ter torsos e membros peludos. A subtileza dos sentidos estendia-se ao olfacto, que pedia meças ao dos animais. Tinham olhos grandes, com frequência ferozes, às vezes desvairados, com uma beleza que se revelava viva nas crianças e nalgumas raparigas. Apesar de o seu tipo os aproximar das nossas raças menos desenvolvidas, qualquer comparação seria ilusória. As tribos paleolíticas viviam numa atmosfera profunda; a sua carne continha uma juventude que não voltará a existir, flor de uma vida com energia e veemência que imperfeitamente imaginamos.
Com um bramido longo, Fauhm ergueu os braços em direcção ao sol. — O que farão os ulhamres sem o Fogo? — gritou. — Como poderão viver na savana e na floresta? Quem os defenderá contra as trevas e o vento do Inverno? Terão de comer carne crua e a planta amarga; não mais aquecerão os membros; a ponta do chuço ficará mole. O leão, o animal com dentes que rasgam, o urso, o tigre, a grande hiena vão devorá-los vivos durante a noite. Quem recuperará o Fogo? Quem tal fizer será o irmão de Fauhm; caber-lhe-ão três partes da caça, quatro partes dos saques; receberá no seu quinhão Gammla, a filha da minha irmã, e se eu morrer ficará com o bastão do comando.
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Nesta altura Naoh, filho do Leopardo, levantou-se e disse: — Dêem-me dois guerreiros de pernas rápidas, e conquistarei o Fogo aos filhos do Mamute ou aos devoradores-de-homens que caçam nas margens do Rio Duplo. Fauhm não lhe deitou um olhar favorável. Naoh era, pela estatura, o maior dos ulhamres. Os ombros ainda lhe cresciam. Não havia guerreiro mais ágil nem com uma corrida que tão longos tempos aguentasse. Tinha derrubado Moúh, filho do Uru, com força quase tão grande como a de Fauhm. E Fauhm temia-o. Mandava-o executar tarefas desagradáveis, afastava-o da tribo, expunha-o à morte. Naoh não gostava do chefe mas exaltava-se quando via Gammla de corpo alongado, flexível e misteriosa, com uma cabeleira que parecia uma folhagem. Naoh espreitava-a por entre os vimieiros, atrás das árvores ou oculto pelas ondulações da terra, com a pele quente e as mãos a vibrarem. Tinha horas em que era agitado pela ternura ou pela cólera. Às vezes abria os braços para a apertar lentamente e com suavidade, às vezes imaginava que se atirava a ela como a uma rapariga das hordas inimigas, e a derrubava com um golpe de clava. Não lhe queria, porém, nenhum mal. Se a tivesse como sua mulher tratá-la-ia sem agressividade, pois não gostava de ver nos rostos o ar estranho que um temor crescente lhes provoca. Noutros tempos Fauhm teria recebido mal as palavras de Naoh. Mas agora vergava-se ao desastre. Talvez fosse boa a aliança com o filho do Leopardo; noutras circunstâncias saberia condená-lo à morte. Voltou-se para o jovem. — Fauhm tem apenas uma língua. Se trouxeres contigo o Fogo, terás Gammla sem ser preciso dares em troca qualquer resgate. Serás o filho de Fauhm.
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Falava com a mão levantada, com lentidão, aspereza e desprezo. Depois fez um sinal a Gammla. Ela aproximava-se a tremer, erguendo os olhos inquietos, cheios do fogo húmido dos rios. Sabia que Naoh a espiava no meio das ervas e nas trevas; e quando lhe aparecia numa sinuosidade de ervas, como se fosse atirar-se a ela, temia-o; mas havia ocasiões em que a sua imagem não lhe era desagradável; desejava, ao mesmo tempo, que ele perecesse sob os golpes dos devoradores-de-homens e também que lhes trouxesse o Fogo. A mão rude de Fauhm caiu pesadamente no ombro da rapariga. Com o seu orgulho selvagem, gritou: — Que rapariga tem melhor corpo entre as filhas dos homens? Pode transportar ao ombro uma corça; andar, sem desfalecer, desde o sol da manhã até ao sol da tarde, suportar a fome e a sede; preparar a pele dos animais, nadar para atravessar um lago. Dará filhos indestrutíveis. Se Naoh trouxer o Fogo, ficará com ela sem oferecer machados, cornos, conchas nem peles!… Aghoo, filho do Auroque e o mais peludo dos ulhamres, aproximou-se então, cheio de cobiça. — Aghoo quer conquistar o Fogo. Irá com os seus irmãos espreitar os inimigos para lá do rio. Morrerá pelo machado, pela lança, pelo dente do tigre, pela garra do leão gigante, ou devolverá aos ulhamres o Fogo, sem o qual eles são fracos como os cervos ou os saigas1. Nada se via na sua face, além de uma boca rodeada de carne crua e olhos homicidas. A sua estatura atarracada exage1
Antílopes asiáticos com os cornos curvos. (N. do T.)
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rava o comprimento dos braços e a enormidade dos ombros; todo o seu ser exprimia um poder tosco, infatigável e sem piedade. Ignorava-se até onde chegaria a sua força; não a tinha exercido contra Fauhm, nem contra Moúh, nem contra Naoh. Sabia-se que ela era enorme. Não a experimentava em nenhuma luta pacífica. Todos os que se levantavam no seu caminho tinham sucumbido porque se limitava a mutilar-lhes um membro ou a suprimi-los, juntando os crânios aos seus troféus. Vivia afastado dos outros ulhamres, com dois irmãos peludos como ele e várias mulheres reduzidas a uma pavorosa escravidão. Apesar de ser natural entre os ulhamres praticarem a dureza perante si próprios e a ferocidade perante os outros, entre os filhos do Auroque temiam o excesso destas virtudes. Levantava-se uma reprovação obscura, primeira aliança da multidão contra uma excessiva insegurança. Um grupo rodeava de perto Naoh, com a maior parte a censurar a sua pouca dureza na vingança. Mas como era um defeito que existia num temível guerreiro, agradava àqueles a quem não tinham calhado músculos fortes nem membros velozes. Fauhm não detestava menos Aghoo do que o filho do Leopardo. E ainda mais o temia. A força peluda e manhosa dos irmãos parecia invulnerável. Bastava que um dos três desejasse a morte de um homem, para os três também a desejarem; quem lhes declarasse guerra teria de exterminá-los ou perecer. O chefe procurava aliar-se a eles; mas eles furtavam-se com a desconfiança cercada por uma muralha, incapazes de acreditar na palavra e nos actos dos homens, irritados com a benevolência e sem compreenderem outras adulações que não as do terror. Embora tão desconfiado e impiedoso como eles, Fauhm
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tinha as qualidades de um chefe, e elas incluíam a indulgência para com os apaniguados, a necessidade do louvor, uma certa sociabilidade estreita e requintada, exclusiva e tenaz. Com brutal deferência respondeu: — Se o filho do Auroque restituir o Fogo aos ulhamres, ficará com Gammla sem tributo; será o segundo homem da tribo, obedecido por todos os guerreiros na ausência do chefe. Aghoo escutava com um ar selvagem, voltando a face rude para Gammla, a avaliá-la com cobiça; endureceu com ameaça os olhos redondos. — A filha do Pântano pertencerá ao filho do Auroque; e qualquer homem que lhe ponha a mão em cima será destruído. Estas palavras irritaram Naoh. Aceitando com violência a guerra, gritou: — Pertencerá ao que trouxer o Fogo! — Aghoo vai trazê-lo! Olharam-se mutuamente. Até àquele dia não tinha havido entre os dois nenhum motivo para lutas. Conscientes das respectivas forças, sem gostos comuns nem rivalidade imediata, não se encontravam nem caçavam juntos. Mas o discurso de Fauhm tinha criado o ódio. Aghoo, que ainda na véspera não olhava com muita atenção para Gammla se ela passasse furtiva na savana, sentiu a carne estremecer enquanto Fauhm a elogiava. Com uma constituição atreita a impulsos súbitos, desejou-a tão asperamente como se a quisesse desde há muitas estações. E passaria, a partir daqui, a condenar todos os seus rivais. Nem precisou, sequer, de tomar uma resolução; tinha-a instalada em cada uma das suas fibras.
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Naoh sabia-o. A sua mão esquerda prendeu com mais força o machado, e a sua direita o chuço. Perante o desafio de Aghoo, os seus irmãos surgiram em silêncio, ardilosos e temíveis. Pareceram-lhe estranhos, e ainda mais bravios com as suas ilhas de pêlo ruivo, os olhos cambiantes como élitros de carochas. Tinham uma flexibilidade tão inquietante como a sua força. Todos três prontos para assassinar, espiavam Naoh. Mas levantou-se entre os guerreiros um rumor. Mesmo os que lamentavam em Naoh a fraqueza dos seus ódios, não queriam vê-lo perecer depois da destruição de tantos ulhamres e numa altura em que ele prometia trazer-lhes o Fogo. Sabiam-no rico em estratagemas, infatigável, hábil na arte de alimentar a mais débil chama e fazê-la ressurgir das cinzas; muitos acreditavam no seu êxito. Para dizer a verdade, Aghoo também tinha a paciência e a astúcia que fazem os cometimentos resultar; e os ulhamres compreendiam a utilidade de uma tentativa dupla. Por isso se levantaram em tumulto; os partidários de Naoh encorajaram-se a clamar e a tomarem posições de batalha. Embora estranho ao medo, o filho do Auroque não desprezava a prudência. Deixou a querela para mais tarde. E Goún dos Ossos Secos fez um apanhado das nebulosas ideias do grupo. — Os ulhamres querem desaparecer do mundo? Esquecem-se de que os seus inimigos e as águas lhes destruíram tantos guerreiros? Só resta um em cada quatro! Todos os que podem usar o machado, o chuço e a clava devem viver. Naoh e Aghoo são fortes entre os homens que caçam na floresta e na savana, e bastará um deles morrer para a fraqueza dos ulhamres aumentar
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mais do que se perecessem quatro … A Filha do Pântano servirá o que nos trouxer o Fogo; a horda quer que assim seja. — Que assim seja! — apoiaram vozes ásperas. E as mulheres, temíveis pelo número e pela sua força quase intacta, pela unanimidade do seu sentimento, gritaram: — Gammla pertencerá àquele que arrebatar o Fogo! Aghoo encolheu os ombros peludos. Execrou o grupo, mas não lhe pareceu útil hostilizá-lo. Com a certeza de se antecipar a Naoh, resolveu aproveitar as oportunidades de um encontro para combater o rival e fazê-lo desaparecer. E uma sensação de confiança inchou-lhe o peito.
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2. os mamutes e os auroques
Era a alvorada seguinte. O vento do alto soprava a nuvem enquanto o ar pesava amolecedor, cheiroso e quente ao rés da terra e do pântano. Todo o céu vibrava como um lago, agitando algas, nenúfares e claros canaviais. A aurora fazia correr ali as suas espumas. Dilatava-se, transbordava em lagoas de enxofre, em golfos de berilo, em rios de nácar rosado. Voltados para este fogo imenso, os ulhamres sentiam crescer no fundo da alma qualquer coisa que era quase um culto e também avolumava as pequenas gaitas-de-foles dos pássaros na erva da savana e os vimieiros do pântano. Mas os feridos gemiam de sede; um guerreiro morto estendia membros azuis; um animal nocturno tinha-lhe comido o rosto. Goún balbuciou vagos e quase ritmados lamentos, e Fauhm mandou atirar às águas o cadáver. Depois, a atenção da tribo ficou presa aos peludos Aghoo e Naoh, os conquistadores do Fogo prestes a partir. Eles transportavam a clava, o machado, o chuço, a zagaia com ponta de sílex ou de nefrite. Mais fiado na astúcia do que na força, a guerreiros robustos Naoh tinha preferido dois homens novos, ágeis e capazes de garantir uma longa caminhada. Tinha cada um deles um machado, o chuço e zagaias. E Naoh acrescentou-lhes a clava de carvalho, ramo só ao de leve desbastado e endurecido pelo fogo. Preferia esta arma a qualquer outra, e com ela até os grandes carnívoros enfrentava.
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Fauhm começou por se dirigir aos Auroque: — Aghoo chegou à luz antes do filho do Leopardo. Escolherá o seu caminho. Se for em direcção aos Dois Rios, a poente Naoh dará a volta aos pântanos… e se ele se voltar para os pântanos, Naoh irá em direcção aos Dois Rios. — Aghoo ainda não conhece o seu caminho! — protestou o peludo. — Procura o Fogo; de manhã pode ir em direcção ao rio, e à noite em direcção ao pântano. O caçador que persegue o javali sabe aonde vai matá-lo? — Só mais tarde Aghoo mudará de caminho — interveio Goún, que se orientava pelos murmúrios da horda. — Não pode partir ao mesmo tempo para o sol poente e para os Dois Rios. Terá de escolher! A alma obscura do filho do Auroque compreendeu que faria mal em afrontar o chefe, e melhor seria suscitar a desconfiança de Naoh. Voltando o seu olhar de lobo para o grupo, exclamou: — Aghoo irá em direcção ao sol poente! E com um sinal brusco, feito aos seus irmãos, pôs-se a caminho ao longo do pântano. Naoh não se decidiu tão depressa. Desejava que os seus olhos sentissem de novo a imagem de Gammla, que estava debaixo de um freixo, atrás do grupo do chefe, de Goún e dos velhos. Naoh aproximou-se dela; viu-a imóvel, com o rosto voltado para a savana. Tinha posto no cabelo flores sagitárias e um nenúfar cor de lua; parecia sair-lhe da pele um clarão mais vivo que o dos rios frescos e o da carne verde das árvores. Naoh respirou a ardência de quem estava vivo, o inquieto e inextinguível desejo, o temível voto que refaz animais e plantas. O seu coração inchou tanto, que ele sufocava cheio de ternura
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11. na noite das idades
Todos os dias, ao entardecer, os ulhamres esperavam angustiados que o sol desaparecesse. E depois de só haver estrelas no firmamento ou a lua mergulhar nas nuvens, sentiam-se estranhamente frágeis e miseráveis. Agachados na sombra de uma caverna ou sob a pendente de um rochedo, perante o frio e as trevas pensavam naquele Fogo com um calor que os alimentava e que afastava os temíveis animais. Os de vigia não deixavam de ter as armas prontas a disparar; o esforço da atenção e o temor extenuavam-lhe as cabeças e os membros; sabiam que podiam ser apanhados de imprevisto, antes de ripostar. O urso tinha devorado um guerreiro e duas mulheres; os lobos e os leopardos tinham raptado crianças; muitos homens tinham as cicatrizes de combates nocturnos. O Inverno estava prestes a chegar. O vento do norte lançava as suas zagaias; sob céus puros o gelo mordia com dentes agudos. E Fauhm, o chefe, ao lutar uma noite com o leão tinha perdido o uso do braço direito. Ficou fraco de mais para impor o seu comando; e a desordem cresceu na horda. Hoúm não queria obedecer-lhe. Moúh achava-se o primeiro entre os ulhamres. Qualquer deles tinha partidários, e só um pequeno número se mantinha fiel a Fauhm. Mas não chegou a haver luta armada porque todos estavam cansados. O velho Goún falava-lhes da sua fraqueza e do perigo de se matarem uns aos
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outros. Eles compreendiam-no; e à hora das trevas lamentavam com amargura os guerreiros desaparecidos. Depois de tantas luas passadas afligiam-se com a ideia de não voltar a ver Naoh, Gaw e Nam, ou os filhos do Auroque. Foram várias vezes destacados batedores que regressavam sem ter descoberto nenhum rasto. A desconfiança começou então a pesar-lhes nas cabeças; os seis guerreiros tinham tombado sob a garra das feras, sob os machados dos homens ou perecido pela fome. Os ulhamres nunca mais veriam vivo o Fogo que tanta ajuda lhes dava! Só as mulheres, apesar de terem mais fortes sofrimentos do que os machos, não perdiam uma obscura confiança. Subsistia nelas a paciente resistência que salva as raças. Gammla estava entre as mais enérgicas. Nem frio nem fome tinham arranhado a sua juventude. O Inverno fazia-lhe crescer uma cabeleira que ondulava à volta dos ombros como a juba dos leões. Esta sobrinha de Fahum tinha um profundo sentido no que toca a vegetais. Na pradaria ou na mata, dentro do bosque ou entre os juncos, sabia discernir a raiz, o fruto e o cogumelo comestíveis. Sem ela o grande Fahum teria perecido na semana em que o ferimento o manteve deitado no fundo de uma caverna, esgotado com a perda de sangue. Embora ela não achasse, tanto como os outros, que o Fogo fosse indispensável, desejava-o apaixonadamente; e quando começava a fazer noite perguntava a si própria qual deles, Aghoo ou Naoh, iria trazê-lo. Estava preparada para se submeter porque tinha nas profundezas da carne um respeito pelo mais forte, e nem lhe passava pela cabeça recusar-se a ser a mulher do vencedor, soubesse embora que teria com Aghoo vida mais dura. Ora, uma das noites anunciou-se temível. O vento escorraçara as nuvens e passava com um uivo prolongado pelas ervas
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murchas e pelas árvores negras. Um sol vermelho, tão grande como a colina erguida a poente, ainda iluminava o local. E com o crepúsculo a perder-se no fundo de incontáveis tempos a horda reunia-se, dominada por um enorme sobressalto. Ela estava fraca, estava triste. Quando voltariam os dias em que a chama soltava rugidos a devorar lenhas? Havia nessas alturas um cheiro a carne assada que subia no crepúsculo, uma alegria quente a entrar nos torsos, lobos queixosos a rondarem, o urso, o leão e o leopardo a afastarem-se daquela vida cintilante. O sol sucumbiu e a luz morreu sem brilho no ocidente despido. Sobre a terra, os animais que vivem da sombra começaram a vaguear. O velho Goún, com vários anos acrescentados pela miséria à idade, soltou um gemido sinistro. — Goún viu os seus filhos e os filhos dos seus filhos, sem alguma vez o Fogo se ausentar da horda dos ulhamres. Mas já não há Fogo… e Goún vai morrer sem voltar a vê-lo. A cavidade da rocha onde a tribo se abrigava era quase uma caverna. Com tempo ameno teria sido um bom abrigo, mas agora a brisa flagelava os peitos. Goún ainda disse: — Dia a dia os lobos e os cães vão tornar-se mais afoitos. Mostrava os vultos furtivos que a queda das trevas multiplicava. Os uivos faziam-se mais longos e ameaçadores; e a noite não parava de deixar cair ali os seus animais famélicos. Só os últimos clarões crepusculares os mantinham afastados. Inquietos, os vigilantes caminhavam ao ar duro, sob estrelas frias… De repente um deles parou e esticou o pescoço. Dois outros imitaram-no. E o primeiro declarou:
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índic e
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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primeira parte 1. A morte do fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Os mamutes e os auroques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Na caverna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. O leão gigante e a fêmea do tigre . . . . . . . . . . . . . . . 5. Sob as rochas erráticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. A fuga na noite. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
21 32 49 56 77 88
segunda parte 1. As cinzas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. De atalaia perante o fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Nas margens do grande rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. A aliança entre o homem e o mamute. . . . . . . . . . . . 5. Pelo fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. A procura de Gaw . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7. A vida com os mamutes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
97 100 111 119 125 132 144
terceira parte 1. Os anões-vermelhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. A espinha de granito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. A noite no pântano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. O combate entre os salgueiros . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. Os homens que morrem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
163 173 183 190 195
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250 6. 7. 8. 9. 10. 11.
Índice
Através da terra das águas. . . . . . . . . . . . . . . . . . Os homens-de-pêlo-azul . . . . . . . . . . . . . . . . . . «O urso gigante está no desfiladeiro» . . . . . . . . . O rochedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Aghoo o peludo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Na noite das idades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
200 204 210 219 228 239
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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire
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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès
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DEPÓSITO LEGAL 000000/15 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA
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J.-H. Rosny Aîné A GUERRA DO FOGO
J.-H. Rosny Aîné A GUERRA DO FOGO
tradução e apresentação de
Aníbal Fernandes
«O poeta da Pré-história», chamaram-lhe. A bravia idade do homem. Quando o Fogo era o poder.
www.sistemasolar.pt
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