Joseph Roth, Judeus Errantes

Page 1


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 2


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 3

JUDEUS ERRANTES


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 4

Joseph Roth num cais durante uma viagem em França (1926).


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 5

Joseph Roth JUDEUS ERRANTES tradução do alemão, prefácio, introdução cronológica e notas ao texto de

Álvaro Gonçalves 2.ª edição


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 6

TÍTULO DO ORIGINAL: JUDEN AUF WANDERSCHAFT

© SISTEMA SOLAR CRL, 2013 RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ÁLVARO GONÇALVES NA CAPA: EMIGRANTES JUDEUS EM NOVA IORQUE, ca. 1920 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE ISBN 978-989-8566-23-2 1.ª EDIÇÃO, JANEIRO 2013 2.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO 2016


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 7

Prefácio

A presente edição toma como texto base para a tradução a primeira e única edição publicada em vida do autor em 1927: Joseph Roth, Juden auf Wanderschaft — Berichte aus der Wirklichkeit. Herausgegeben von Eduard Trautner — Band 4. Berlim, Verlag Die Schmiede, 1927. Como é óbvio, as sucessivas edições que foram aparecendo ao longo dos anos após a morte do autor, da responsabilidade da editora Kiepenheuer & Witsch, não apresentam alterações tanto a nível de conteúdo como a nível de forma, a não ser uma ou outra intervenção para corrigir gralhas tipográficas ou actualizar a ortografia. Contudo, estas edições incluem, em apêndice, dois textos encontrados no espólio do autor. A saber, um pequeno posfácio e um extenso prefácio destinados a uma 2.ª edição, prevista e acordada com a editora vienense Löwit, mas que, por razões políticas relacionadas com a ascensão do nazismo em Viena, não veio a concretizar-se. Os dois textos foram escritos em 1937, portanto dez anos após a publicação da 1.ª edição. O posfácio de 1937 faz referência à provável alteração da situação na Rússia Soviética, descrita por Roth no último capítulo denominado «A situação dos judeus na Rússia Soviética», enquanto o prefácio à 2.ª edição analisa pormenorizadamente a alteração profunda da situação dos judeus chamados ocidentais (de resto tão fortemente criticados por Roth neste ensaio) na Alemanha e, de uma forma insidiosa, na Áustria, mas também nos antigos territórios do Império Austro-Húngaro. Roth


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 8

8

Prefácio

chama também a atenção para a crescente discriminação de que estes judeus estavam a ser alvo nos países de acolhimento. Escrito na sua grande parte em França, um pequeno excerto de Judeus Errantes é publicado em Março de 1926 no jornal vienense Wiener Morgen e, oito meses depois, mais propriamente em 11 de Novembro do mesmo ano, o Frankfurter Zeitung, publica o capítulo «Os judeus na União Soviética». Posteriormente, em 13 de Março de 1927, sai, também neste jornal, o capítulo «Um judeu vai para a América», que constitui o penúltimo capítulo do livro. Finalmente, na Primavera de 1927, é publicada a versão completa em livro numa edição da editora Die Schmiede na sua colecção Berichte aus der Wirklichkeit (Relatos da Realidade). É justamente esta edição que aqui se apresenta em versão portuguesa. No entanto, foram igualmente traduzidos e incluídos em apêndice o prefácio e o posfácio escritos em 1937 e citados acima. Convém referir que as notas de rodapé incluídas na tradução portuguesa têm como objectivo explicar ao leitor comum o significado das inúmeras expressões de origem hebraica que vão surgindo ao longo do texto e cuja compreensão é, por sua vez, fundamental para a compreensão do texto. Recorri aqui a glossários contidos em vários livros de referência de introdução ao judaísmo tanto em português como em inglês e alemão. Refiro-me especialmente à Encyclopedia of Judaism, de Sara E. Karesh & Mitchell M. Hurvitz (Nova Iorque, Checkmark Books, 2008). No que respeita à transliteração para o alfabeto latino, a não existência de um dicionário sistemático de transliteração do alfabeto hebraico para o latino (variante portuguesa) fez com que optasse por utilizar expressões hebraicas transliteradas para o alfabeto latino mais próximo do inglês. Para este efeito, segui a transliteração proposta no glossário do


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 9

Prefácio

9

livro Introdução ao Judaísmo de Nicholas de Lange (tradução de Olga Bessa, Lisboa, Prefácio, 2004). Nas notas de rodapé são também dadas informações sumárias sobre locais, cidades e regiões históricas da Europa do século XIX, em geral, e da Europa Central, em particular. Refiro-me aqui especialmente ao vasto Império Austro-Húngaro habitado por milhões de judeus hassidim e judeus assimilados. Foram também inseridas explicações sobre algumas personalidades, obras e personagens citadas, que, sendo importantes para a compreensão do texto de Roth, podem não ser reconhecidos de imediato pelos leitores não familiarizados com o contexto histórico-cultural da época finissecular europeia. Finalmente, o texto O Carvalho de Goethe em Buchenwald (que significa literalmente «faial»), inserido nesta edição a seguir à «Introdução cronológica», é o derradeiro trabalho de Joseph Roth. Trata-se de um testemunho tragicamente premonitório, escrito com extrema lucidez, cuja importância justifica plenamente a sua inserção na edição portuguesa. Para terminar, uma palavra de gratidão à Doutora Gabrielle Kohlbauer-Fritz, curadora do Jüdisches Museum Wien (Museu Judaico de Viena, Áustria) pela ajuda na tradução das duas canções iídiche baseadas em poemas do poeta judeu de expressão hebraica e iídiche Chaim Nachman Bialik. Álvaro Gonçalves


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 10

Esta Introdução Cronológica de Joseph Roth recupera a Cronologia que elaborei para a novela O Leviatã, traduzida por mim e publicada na colecção «O Imaginário / 44» pela Assírio & Alvim em 2001. Foi, no entanto, revista, corrigida e alargada para esta edição. Recorri, essencialmente, às seguintes fontes: • David Brosen, Joseph Roth. Eine Biographie. Gekürzte Fassung von Katharina Ochse. Colónia, Kiepenheuer & Witsch, 1993. • Helmuth Nürnberger, Joseph Roth. Hamburgo, Rowohlt Taschenbuch Verlag, 1995. • Sidney Rosenfeld, Understanding Joseph Roth. University of South Carolina Press, 2001. • Wilhelm von Sternburg, Joseph Roth. Eine Biographie. Colónia, Kiepenheuer & Witsch, 2009.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 11

Introdução cronológica à vida e obra de Joseph Roth «… pelo menos na literatura, viveu até ao fim em estado de graça.» Pietro Citati

1894 Moses Joseph Roth nasce a 2 de Setembro em casa do seu avô materno, Jechiel Grübel, em Brody, uma pequena cidade situada na Galícia Oriental, no limite extremo do Império Austro-Húngaro. O pai, Nachum Roth, oriundo da Galícia Ocidental, era comerciante com negócios em Hamburgo, e a mãe, Maria Grübel, nascera e vivera toda a vida em Brody. De acordo com os depoimentos dos seus futuros amigos e companheiros, Roth altera o local de nascimento de forma sistemática. Todos os documentos emitidos nas várias cidades onde esteve indicam Schwaby ou Schwabendorf (uma aldeia vizinha de Brody) como o local de nascimento. Numa carta escrita à redacção de um jornal vienense, diz ter nascido em «Schwabendorf, numa colónia alemã de Volínia», e na nota biográfica redigida para a sua tradutora francesa, Blanche Gidon, relata … né… à Svaby, colonie allemande… Quanto mais ocidental for a origem do judeu, mais judeus há para os quais ele olha com desdém. O judeu de Frankfurt olha com desdém para o judeu de Berlim; o judeu de Berlim olha com desdém para o judeu de Viena; o judeu de Viena olha com desdém para o judeu de Varsóvia. Depois, vêm ainda os judeus da longínqua Galícia, que são desdenhados por todos eles, e eu sou de lá, o último de todos os judeus.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 12

12

Introdução Cronológica

1901 Começa a frequentar a escola primária Baron-Hirsch, na Pfarrgasse, em Brody, aí se mantendo até 1905. As escolas primárias Baron-Hirsch, frequentadas predominantemente pelas crianças judias, substituem as velhas Cheder, sendo reconhecidas e subsidiadas pelo Estado. Para além do iídiche e do alemão, aprende o polaco e o hebraico. É aqui que assimila os ritos e os costumes judaicos. Vejo que não se é judeu em vão há quatro mil anos, nada mais do que um judeu. Tem-se um destino antigo, um sangue antigo e igualmente experiente. 1910 Morte do pai, Nachum Roth, algures na Galícia Ocidental, após o seu estranho desaparecimento enquanto fazia uma viagem de negócios a Berlim, durante a qual foi acometido de uma súbita doença mental. Nunca chegará a conhecer o filho, cuja existência aliás ignorava. … meu pai… deixou-a (a mãe) só, em Katowice, e desapareceu para nunca mais ser visto. 1905/13 Frequenta o Liceu K.K. Kronprinz Rudolf-Gymnasium. O ambiente multiétnico da instituição, com alunos e professores oriundos das várias nações limítrofes pertencentes ao Império, abre-lhe novas perspectivas, permitindo-lhe desligar-se do ambiente estritamente judeo-eslavo em que vivia. É também a este Liceu que deve a formação cultural fortemente alemã que virá aliás a moldar a sua personalidade literária.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 13

Introdução Cronológica

13

Para o judeu oriental, a Alemanha… é a terra de Goethe e Schiller, dos poetas alemães, que todo o judeu ávido do saber… conhece… Durante todo este período, leva uma vida recatada e isolada, sem nenhum contacto com nenhuma das duas comunidades que frequentavam o liceu: a católica e a judaica. O professor de alemão considera-o o seu melhor aluno. Lê e escreve intensamente. Descobre Heinrich Heine. É capaz de recitar poesias inteiras deste poeta e prosador alemão, de origem também judia, e autor dos celebrados Buch der Lieder (Livro de Canções) e Die Harzreise (Viagem ao Harz). Heinrich Heine e Ludwig Börne, os precursores do feuilleton (crónica literária) alemão, constituirão o modelo da sua futura actividade jornalística e de cronista literário. Expressa ao seu antigo professor de alemão, Max Landau, o desejo secreto de ser escritor. — A vontade é o meu Deus — E com dedicação e perseverança atinge-se o maior dos objectivos. 1913 No verão de 1913, viaja para Lemberg (actualmente Lviv), a capital da Galícia, conhecida na altura como a «pequena Viena». Matricula-se na Universidade local. O facto de o polaco ser a língua oficial da Universidade leva Roth a desinteressar-se dos estudos. Viaja a Viena com o intuito de participar no XI Congresso Sionista, em que está presente também Franz Kafka. Aproveita a estada na cidade para conhecer o ambiente universitário vienense. A sua posição perante o movimento sionista é crítica. Defende antes a profunda religiosidade do judeu oriental.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 14

14

Introdução Cronológica

Este judeu não é um judeu «nacional», no sentido europeu da palavra. É um judeu de Deus… Um hassidim e um judeu ortodoxo oriental sentem-se mais próximos de um cristão do que de um sionista. É o ambiente crepuscular e, simultaneamente, florescente da Viena dos anos dez que acolhe Roth no ano de 1913. A vida cultural em Viena vive um apogeu tardio nas mais variadas artes que representam o Modernismo Vienense. Grande parte do contributo para esta prosperidade é dada pela comunidade de intelectuais judeus. Enquanto os pais se dedicam ao pequeno comércio, os filhos estudam, especulam, filosofam, escrevem, pintam e praticam a ciência. Roth inicia os seus estudos de Germanística na Universidade de Viena. Vive, juntamente com a mãe e uma tia, enfrentando grandes dificuldades financeiras, num apartamento humilde do distrito operário de Brigittenau. Mal tenho dinheiro para comprar sapatos, e os sapateiros são extremamente caros. O coração dum sapateiro destes é mais duro que a sola de sapato. Lê intensamente obras de Hugo von Hofmannsthal, Arthur Schnitzler, Karl Kraus, Sigmund Freud e Eduard Mörike. De entre os estrangeiros, prefere Stendhal e Joseph Conrad. Os livros de Conrad são turbulentos como o mar, serenos como o mar e profundos como o mar. 1915 Inicia a colaboração no jornal Österreichs Illustriete Zeitung, em que publica poemas, contos e ensaios. Começa a trabalhar como preceptor em casa da condessa Trautmannsdorf. O contacto com a nobreza dá-lhe acesso a um mundo de requinte e


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 25

O Carvalho de Goethe em Buchenwald 1

A verdade acima de tudo! Estão a espalhar notícias falsas sobre o campo de concentração de Buchenwald2; dir-se-ia: histórias de terror. Parece-me que é tempo de as reduzir à sua verdadeira dimensão… Primeiro, Buchenwald nem sempre se chamava assim, mas sim: Ettersberg. Foi com este nome que outrora este local se tornou famoso entre os conhecedores da história da literatura: Goethe costumava encontrar-se lá frequentemente com Frau von Stein; à sombra de um frondoso e velho carvalho. Este está protegido pela chamada «lei de protecção da natureza». Quando se começou a desbravar a floresta em Buchenwald, isto é, em Ettersberg, para se construir uma cozinha a sul e uma lavandaria a norte, destinada aos ocupantes do campo de concentração, deixaram ficar apenas o carvalho; o carvalho de Goethe; o carvalho de Frau von Stein. Nunca o simbolismo foi tão apropriado como hoje. Hoje em dia, qualquer um se põe a escrever as chamadas «glosas». Estas são-nos enviadas pela História Universal gratuitamente e com porte pago até ao nosso domicílio, até à ponta da caneta, até à máquina de escrever. Escrever uma glosa que diga respeito 1 2

Último trabalho de Joseph Roth. Buchenwald significa literalmente «faial».


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 26

26

Joseph Roth

ao Terceiro Reich é, justamente para um escritor, uma questão de pudor. Os carvalhos alemães, à sombra dos quais Goethe se sentou com Frau von Stein, permanecem intactos entre a cozinha do campo de concentração e a sua lavandaria, unicamente graças a uma lei de protecção da natureza. Entre «a lei de protecção da natureza» que surgira há anos e a lei contranatura que irrompeu nestes últimos anos ou, por assim dizer, utilizando uma linguagem neogermânica, entre a lavandaria e a cozinha, fica o carvalho protegido de Frau von Stein e Goethe. Todos os dias, os ocupantes do campo de concentração passam ao lado deste carvalho ou contornam-no; isto é, deixam-se carrear ao lado dele. De verdade! Estão a espalhar falsas notícias sobre o campo de concentração de Buchenwald; dir-se-ia: histórias de terror. Parece-me que é tempo de as reduzir à sua verdadeira dimensão: que eu saiba, até agora, ainda nenhum dos ocupantes do campo de concentração foi amarrado ao carvalho, à sombra do qual se sentou Goethe com Frau von Stein e que, graças à lei de protecção da natureza, ainda cresce; pelo contrário, foram-no a outros carvalhos de que esta floresta não carece.


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 27

JU D E U S E RR A N T E S


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 28

Judeus da GalĂ­cia no bairro vienense de Leopoldstadt (1915).


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 29

Prefácio 1

Este livro prescinde do aplauso e da aprovação, mas também do protesto e até da crítica daqueles que menosprezam, desdenham, odeiam e perseguem os judeus orientais. O livro não se dirige aos europeus ocidentais que, pelo facto de terem crescido com elevadores e sanitas, inferem o direito de contar anedotas de mau gosto sobre os piolhos romenos, percevejos galicianos e pulgas russas. Este livro prescinde dos leitores «objectivos», que, com a benevolência barata e azeda, a partir das vacilantes torres da civilização ocidental, lançam olhares de soslaio para o Próximo Oriente e os seus habitantes; que, por pura humanidade, lamentam a deficiente canalização e, por medo de contágio, encerram em barracas emigrantes pobres, onde a solução de um problema social é deixado ao critério da morte em massa. Este livro não quer ser lido por aqueles que renegam os seus próprios pais ou antepassados, que, por um simples acaso, escaparam às barracas. Este livro não foi escrito para os leitores que levariam o autor a mal por tratar o objecto da sua exposição com paixão em vez de o fazer com a «objectividade científica», que pode ser designada também por entediante. A quem é então destinado este livro? O autor nutre esperanças insensatas de que existem ainda leitores perante os quais não é necessário defender os judeus 1

Prefácio do autor.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 30

30

Joseph Roth

orientais; leitores que sentem respeito pela dor, pela grandeza humana e pela imundície que acompanha o sofrimento em todo o lado; europeus ocidentais que não têm orgulho nos seus colchões limpos; que sentem que têm muito a receber do Leste e que talvez saibam que da Galícia, da Rússia, da Lituânia e da Roménia vêm grandes ideias; mas também ideias (na perspectiva deles) úteis, que ajudam a consolidar e ampliar a estrutura firme da civilização ocidental — e não apenas os carteiristas, a quem o mais infame produto da Europa Ocidental que é a imprensa local chama os «hóspedes do Leste». Este livro não estará em condições de tratar o problema do judaísmo oriental com a profundidade abrangente que este requer e merece. Procurará apenas descrever as pessoas que representam o problema e as circunstâncias que estão na sua origem. Fará apenas um relato sobre algumas partes do vasto tema, o qual, para ser tratado com toda a sua amplitude, exigiria do autor tantas migrações quantas aquelas a que foram sujeitas gerações inteiras de judeus orientais.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 31

Judeus orientais no Ocidente

O judeu oriental nada sabe acerca da injustiça social no Ocidente; nada, acerca do preconceito que impera sobre os modos de ser, actos, costumes e concepções do mundo do europeu ocidental médio; nada, sobre a estreiteza do horizonte ocidental, cercado pelas centrais eléctricas e recortado pelas chaminés das fábricas; nada, sobre o ódio, tão forte, que é cuidadosamente preservado como um meio de prolongamento (embora letal) da vida, como um fogo eterno, ao calor do qual se aquece o egoísmo de cada pessoa e cada país. O judeu oriental olha para o Ocidente com uma nostalgia que este de modo nenhum merece. Para o judeu oriental, o Ocidente representa a liberdade, a possibilidade de trabalhar e desenvolver o seu talento, representa a justiça e o domínio autónomo do espírito. A Europa ocidental envia para o Leste engenheiros, automóveis, livros e poesia. Envia sabonetes de propaganda e higiene, coisas úteis e edificantes e faz a toilette enganadora para o Leste ver. Para o judeu oriental a Alemanha é, por exemplo, ainda a terra de Goethe e Schiller, dos poetas alemães, que qualquer judeu jovem ávido, de aprender, conhece melhor do que o nosso aluno de liceu ostentando a cruz suástica. Na guerra, o judeu oriental conheceu apenas o general que mandou afixar um cartaz com uma saudação compassiva dirigida aos judeus1 1 No original alemão: Jidden. Expressão pejorativa utilizada para designar os judeus no espaço austro-húngaro.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 32

Joseph Roth

32

polacos, que fora redigida pelo departamento militar de imprensa, e não aquele general que, não obstante não ter lido uma única obra literária, perde a guerra. Contudo, o judeu oriental não reconhece as vantagens da sua terra natal; não vê a infinita vastidão do seu horizonte; não vê nada da qualidade deste material humano, no qual a loucura tanto pode produzir santos como assassinos, tanto melodias de uma grandeza melancólica como de uma paixão possessiva. Não vê a bondade do homem eslavo, cuja rudeza consegue ser mais decente do que a bestialidade domesticada do europeu ocidental, que encontra alívio em perversões e engana a lei com o chapéu delicado na sua tímida mão. O judeu oriental não vê a beleza do Leste. Foi proibido de viver em aldeias, mas também em grandes cidades. Os judeus vivem em ruas sujas, em casas arruinadas. O vizinho cristão ameaça-os. O proprietário bate-lhes. O funcionário público local manda prendê-los. O oficial de exército dispara impunemente contra eles. O cão ladra-lhes, porque andam trajados de tal forma que tanto provocam os animais como pessoas primitivas. A sua formação escolar é feita na escuridão dos cheders1. Travam conhecimento, desde a mais tenra idade, com a inutilidade dolorosa da oração judaica; com a luta apaixonada contra um Deus que pune mais do que ama e que condena o prazer como se fosse um pecado; com o dever rigoroso de aprender e de buscar o abstracto com os olhos tenros que ainda mal vêem. Palavra de origem hebraica para «quarto/habitação» e designa, por extensão, a escola tradicional judaica de carácter religioso onde se aprendem as bases do judaísmo e da língua hebraica, tanto no judaísmo ocidental (até fins do século XIX) como no oriental (até ao holocausto). 1


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 33

Judeus Errantes

33

Na maior parte das vezes, os judeus orientais percorrem as terras como mendigos e vendedores ambulantes. A grande maioria nem sequer conhece o solo que os alimenta. O judeu oriental tem medo de aldeias e florestas que lhe não são familiares. Ele é, em parte voluntariamente, em parte porque se vê forçado a isso, um excluído, que tem apenas deveres e nenhuns direitos, salvo os que estão no conhecido documento, que pouco ou nada garante. Através dos jornais e dos livros e ouvindo os emigrantes optimistas, inteira-se que o Ocidente é um paraíso. Na Europa ocidental há protecção legal contra os pogrons1. Na Europa ocidental, os judeus conseguem aceder a cargos de ministros e até de vice-reis. Em muitas casas de judeus orientais, vê-se a imagem do tal Moses Montefiore, que jantava regularmente sentado à mesa do Rei de Inglaterra. A grande riqueza dos Rotschilds é exagerada no Leste como num conto de fadas. De vez em quando, um emigrante escreve uma carta aos compatriotas que ficaram na sua terra, descrevendo as vantagens da terra estrangeira. A maior parte dos emigrantes judeus anseia por não escrever enquanto a vida lhes corre mal; e esforça-se por louvar a nova pátria adoptiva em detrimento da que deixaram. Tem o desejo pueril do provinciano que pretende impressionar os seus compatriotas. Numa pequena cidade do Leste, a chegada de uma carta dum emigrante torna-se um assunto sensacional. Todos os jovens — e até os mais velhos — da localidade ficam com a vontade de emigrar; de deiPogrom: Palavra de origem russa que designa investidas populares, de carácter violento, toleradas (e por vezes fomentadas) pelas autoridades locais e dirigidas contra as minorias sociais, nacionais e religiosas, neste caso, contra os judeus, sobretudo nos finais do século XIX e princípios do século XX na Rússia czarista. 1


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 34

34

Joseph Roth

xar esta terra, em que pode, dum ano para o outro, deflagrar uma guerra e, duma semana para a outra, um pogrom. E eles partem, a pé, de comboio e de barco para países ocidentais, onde um outro gueto, um pouco reformado, mas não menos cruel, prepara a sua tenebrosidade para receber os recém-chegados, que conseguiram livrar-se, quase moribundos, das trapaças dos campos de concentração. Quando nos referíamos aos judeus que não conheciam a terra que os alimentava — estávamos a falar da maioria dos judeus, isto é, dos que eram devotos e viviam respeitando os preceitos antigos. Naturalmente que existem judeus que não temem nem o dono nem o cão, nem a polícia nem os oficiais de exército, que não vivem no gueto, e que se apropriaram da cultura e da língua dos povos anfitriões — assemelham-se aos judeus ocidentais e gozam de mais igualdade social do que estes; contudo, são ainda privados de desenvolver livremente os seus talentos, enquanto não mudarem da sua confissão e até depois de o terem feito. Pois, é inevitável o aparecimento da parentela integralmente judaica do assimilado bem-sucedido, e raras vezes um juiz, um advogado, um delegado de saúde de origem judaica escapa ao destino de ter um tio, um primo, um avô, que, pela sua mera aparência, põe em perigo a carreira do judeu bem-sucedido e prejudica o seu prestígio social. Dificilmente se escapa a este destino. E, em vez de escapar, muitos decidem submeter-se a ele, não apenas não renegando as suas origens judaicas, mas sim reforçando-as e declarando-se partidários duma «nação judaica», sobre cuja existência não há, desde há algumas décadas, nenhuma dúvida, e cujo «direito de existir» dificilmente é passível de contestação, porque já a simples


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 49

A cidadezinha judia

A pequena cidade situa-se no meio da planície, sem estar delimitada por nenhuma montanha, nenhum bosque, nenhum rio. Estende-se pela planície. Começa com pequenas cabanas e com elas termina. As casas dão lugar às cabanas. Aqui começam as estradas. Uma corre de Sul para Norte, outra, de Este para Oeste. Na confluência, fica a praça de mercado. No extremo da estrada Norte-Sul, situa-se a estação de comboios. Uma vez por dia, vem um comboio de passageiros. Uma vez por dia, parte um comboio de passageiros. Ainda assim, há muita gente que tem muito que fazer o dia todo na estação. Pois são negociantes. Interessam-se também pelos comboios de mercadoria. Além disso, levam de bom grado cartas urgentes até à estação, porque os marcos de correio da cidade são esvaziados apenas uma vez por dia. O caminho até à estação percorre-se em 15 minutos a pé. Quando chove, tem de se levar uma carroça, porque a estrada está mal balastrada e fica coberta de água. Gente pobre junta-se e partilha em conjunto uma carroça, que, embora não permita que seis pessoas viagem sentadas, ao menos lhes dá lugar. O homem rico senta-se sozinho numa carroça e paga mais pela viagem do que seis pessoas pobres. Existem oito fiacres destinados ao transporte. Seis são carruagens puxadas por um único cavalo. As duas carruagens puxadas por dois cavalos destinam-se a hóspedes distintos, que, às


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 50

50

Joseph Roth

vezes, por um simples acaso, vêm parar a esta cidade. Os oito cocheiros são judeus. São judeus pios que não rapam a barba, mas que não usam os casacos demasiado longos como os seus correligionários. Conseguem exercer melhor a sua profissão usando jaquetões curtos. Não viajam no shabbat. No shabbat também não há nada que fazer na estação. A cidade tem dezoito mil habitantes, dos quais 15 mil são judeus. De entre 3000 cristãos, cerca de 100 são negociantes, 100 funcionários públicos, um notário, um médico de família e oito polícias. Há, de facto, dez polícias. Mas destes dez, dois são curiosamente judeus. Não sei exactamente o que fazem os restantes cristãos. Dos 15 000 judeus, 8000 vivem do comércio. São pequenos, médios e grandes negociantes. Os outros 7000 judeus são pequenos artesãos, operários, aguadeiros, eruditos, funcionários do culto religioso, servidores da sinagoga, professores, escrivães, escrivães da Torah, tecedores do talit1, médicos, advogados, funcionários públicos, mendigos e pobres envergonhados, que vivem de apoio social público, coveiros, circuncisadores e escultores de pedras tumulares. A cidade tem duas igrejas, uma sinagoga e cerca de 40 templos de oração. Os judeus oram três vezes por dia. Teriam de percorrer seis vezes o caminho para a sinagoga e de regresso para casa ou para as suas lojas, se não tivessem tantos templos de oração, onde, a propósito, não só se ora como também se estuda a ciência judaica. Há eruditos judeus que, à semelhança de eruditos europeus numa biblioteca, estudam nos templos de 1 Xaile com franjas, feito de seda, lã ou linho, usado como manto de oração por judeus ortodoxos.


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 51

Um melamed (professor) e os seus alunos no cheder (Lublin 1924).


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:40 Page 52

52

Joseph Roth

oração das cinco da manhã até à meia-noite. Só no shabbat e nos feriados vêm comer a casa. Vivem, quando não têm bens próprios ou benfeitores, das pequenas dádivas da comunidade e, ocasionalmente, de tarefas piedosas, como p. ex. recitar ou leccionar ou tocar o shofar1 em grandes festividades. Quem se ocupa da família, da lida da casa e das crianças são as mulheres, que comercializam, em pequena escala, milho no Verão, nafta no Inverno, pepinos em vinagre, feijão e bolos. Os negociantes e os outros judeus que se encontram na vida activa rezam muito depressa e arranjam, aqui e ali, ainda tempo para discutir sobre as novidades e sobre a política do grande e do pequeno mundo. Fumam cigarros e tabaco de cachimbo de má qualidade no templo de oração. Comportam-se como se estivessem num casino. Não estão na casa de Deus como hóspedes raros, mas sim como se estivessem na sua própria casa. Não Lhe fazem visitas de Estado, mas sim reúnem-se diariamente três vezes por dia à volta das suas mesas ricas, pobres e sagradas. Ao rezar, indignam-se contra Ele, clamam ao céu, queixam-se do seu rigor e, na casa de Deus, procedem contra Deus, para depois reconhecerem que pecaram, que todos os castigos tinham sido justos e que querem ser melhores. Não há nenhum povo que tenha esta relação com Deus. É um povo antigo e conhece-O há já muito tempo! Experimentou a sua enorme bondade mas também a sua fria justiça, pecou fre1 Expressão de origem hebraica que designa o instrumento de sopro fabricado a partir do corno de carneiro, conhecido desde a Antiguidade. Era usado em ocasiões solenes (Rosh Ha-Shanah/Ano Novo do Outono e Yom Kippur/Dia da Expiação) e tem o dever de lembrar aos judeus as suas obrigações para com os serviços religiosos.


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 83

Os guetos ocidentais

Viena 1 Os judeus orientais, que vêm para Viena, estabelecem-se em Leopoldstadt, o segundo dos vinte bairros vienenses. Ali estão perto do Prater1 e da Estação do Norte. No Prater, os vendedores ambulantes podem viver da venda dos postais ilustrados aos forasteiros e da compaixão que costuma acompanhar o bom humor em toda a parte. É à Estação do Norte que todos eles chegaram e pelos seus átrios perpassa ainda o aroma da sua terra natal e constitui a porta aberta para o caminho de regresso. Leopoldstadt é um gueto voluntário. Muitas pontes ligam-na a outros bairros da cidade. Diariamente passam por estas pontes negociantes, vendedores ambulantes, corretores de 1 O parque de Prater é um vasto parque público situado no 2.º bairro do Município de Viena, denominado Leopoldstadt. Delimitado pelo Canal do Danúbio e pelo rio Danúbio, constitui uma ilha e era maioritariamente habitado por imigrantes judeus provenientes do Leste Europeu. Ainda hoje, a maioria da população judaica continua a viver neste bairro. No sentido restrito, Prater ou Volksprater ou ainda Wurstelprater é sinónimo do parque de diversões onde se encontra a Wiener Riesenrad (Roda Gigante), construída em 1896/97 pelo arquitecto inglês Walter B. Basset para celebrar o jubileu do trono do Imperador Francisco José I. Entre 1920 e 1985 foi a maior roda gigante do mundo, sendo neste momento a 2.ª maior da Europa. Tornou-se célebre graças ao filme The Third Man, realizado pelo realizador britânico Carol Reed e baseado numa história do escritor inglês Graham Greene.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 84

84

Joseph Roth

bolsa, negociantes, portanto todos os elementos improdutivos do judaísmo oriental imigrado. Mas pelas mesmas pontes passam, ao amanhecer, também os descendentes dos mesmos elementos improdutivos, os filhos e filhas dos negociantes, que trabalham nas fábricas, nos escritórios, nos bancos, nas redacções dos jornais e nas oficinas. Os filhos e as filhas dos judeus orientais são produtivos. Os pais podem regatear e vender de porta em porta. Os filhos contam-se entre os melhores advogados, médicos, funcionários bancários, jornalistas e actores. Leopoldstadt é um bairro pobre. Há casas pequenas em que vivem famílias de seis membros. Há pequenos albergues em que cinquenta, sessenta pessoas pernoitam dormindo no chão. No Prater dormem os sem-abrigo. Nas imediações das estações de caminhos-de-ferro vivem os mais pobres de todos os operários. Os judeus orientais não vivem melhor do que os habitantes cristãos desta parte da cidade. Têm muitos filhos, não estão habituados à higiene e à limpeza e são odiados. Ninguém cuida deles. Os seus primos e correligionários, que se instalaram nas redacções dos jornais no primeiro bairro, são «já» vienenses e não querem ser parentes dos judeus orientais ou sequer confundidos com eles. Os cristão-sociais e os alemães nacionalistas têm o anti-semitismo como um ponto importante no seu programa. Os social-democratas temem a fama de um «partido judeu». Os nacionalistas judeus sentem-se bastante impotentes. Além do mais, o partido nacionalista judeu é um partido burguês. No entanto, a grande massa dos judeus orientais é proletária.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 85

Judeus Errantes

85

Os judeus orientais estão dependentes do apoio das organizações de caridade burguesas. Há a tendência para atribuir à misericórdia judia um valor mais alto do que esta merece. A beneficência judia é uma organização tão imperfeita como qualquer outra. A beneficência satisfaz em primeiro lugar os benfeitores. Num local de atendimento duma organização de caridade judeu, um judeu oriental, na maior parte das vezes, não é tratado melhor que os cristãos por parte dos seus correligionários e até por parte dos seus conterrâneos. É extremamente difícil ser-se um judeu oriental; não há um destino mais duro do que o de um judeu oriental imigrante em Viena.

2 Quando entra no segundo bairro, rostos familiares cumprimentam-no. Cumprimentam-no? Não, ele apenas os vê. Os que cá vieram há dez anos não gostam dos que vieram depois. Chegou ainda mais um. Ainda mais um quer ganhar dinheiro. Ainda mais um quer viver. O pior de tudo: não poder deixá-lo morrer. Ele não é nenhum estranho. É um judeu e um conterrâneo. Alguém o receberá. Um outro qualquer lhe adiantará um pequeno capital ou lhe arranjará um crédito. Um terceiro ceder-lhe-á ou preparar-lhe-á um «itinerário». O novato será um vendedor a prestações. O primeiro caminho difícil leva-o ao posto policial. Por trás do postigo está sentado um homem, que não pode suportar os judeus em geral e os judeus orientais em particular.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 86

86

Joseph Roth

Este homem irá exigir documentos. Documentos improváveis. Jamais se exigem documentos desses aos imigrantes cristãos. Além disso, os documentos cristãos estão em ordem. Todos os cristãos têm nomes europeus perceptíveis. Os judeus têm nomes imperceptíveis e judeus. Isto não é tudo: têm dois ou três apelidos associados a um «false» ou a um «recte». Nunca se sabe como se chamam. Os seus pais foram casados exclusivamente pelo rabi. Este matrimónio não tem nenhuma validade legal. Se o marido se chamasse Weinstock e a esposa Abramofsky, então os filhos deste casamento chamar-se-iam Weinstock recte Abramofsky ou também Abramofsky false Weinstock. O filho foi baptizado com os nomes de baptismo judeus Leib Nachman. Mas porque este nome era difícil de se pronunciar e poderia ter uma ressonância irritante, o filho chama-se Leo. Portanto, ele chama-se Leib Nachmann denominado Leo Abramofsky false Weinstock. Semelhantes nomes criam problemas à polícia. A polícia não gosta de complicações. Ao menos que fossem só os nomes. Mas também as datas de nascimento não estão correctas. Era frequente os documentos arderem. (Em pequenas localidades galicianas, lituanas e ucranianas houve sempre incêndios nas repartições do registo civil.) Todos os documentos desapareceram. A nacionalidade não está esclarecida. Depois da guerra e do Tratado de Versalhes ainda mais confusa está. Como é que esse senhor atravessou a fronteira? Sem o passaporte? Ou com um falso? Nesse caso, ele não se chama, portanto, como ele se chama, e embora diga tantos nomes, que em si denunciam que são falsos, provavelmente até o são falando em termos objectivos. O homem que figura nos documentos, no boletim de de-


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 109

Livraria-papelaria judaica H. Lewin em Berlim — Grenadierstrasse n.º 28 (cerca de 1925).


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 110

110

Joseph Roth

Este canto era entendido por todos os negociantes. Os homens já não bebiam cerveja nem comiam salsichas. Eram, desta forma, preparados para a bela, séria, até difícil e, por vezes, abstracta poesia do grande poeta de língua hebraica, Bialik1, cujas canções estão traduzidas em quase todas as línguas cultas, e que terá contribuído para a revitalização da língua escrita hebraica, canções essas que fazem desta uma língua definitivamente viva. Este poeta alia a ira dos velhos profetas à voz doce de uma criança exultante.

Paris 1 Para os judeus orientais não foi fácil encontrar o caminho para Paris. Vieram muito mais facilmente para Bruxelas e Amsterdão. O caminho directo do comércio de jóias judeu conduz a Amsterdão. Alguns joelheiros judeus empobrecidos e alguns a caminho de se tornarem ricos são obrigados a permanecerem no território de expressão francesa. O pequeno judeu oriental tem um medo exagerado de uma língua completamente estranha. O alemão é quase a sua língua materna. Prefere muito mais emigrar para a Alemanha do que para a França. O judeu oriental aprende facilmente a 1 Chaim Nachman Bialik (1873-1934). Poeta, tradutor e jornalista judeu originário da histórica região da Volínia (actualmente na Ucrânia), escreveu grande parte da sua obra em iídiche e hebraico, tendo assim contribuído significativamente para a revitalização da língua hebraica. É actualmente considerado o poeta nacional de Israel.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 111

Judeus Errantes

111

compreender línguas estrangeiras, mas a sua pronúncia nunca será perfeita. É sempre reconhecido. É o seu instinto saudável que o previne perante os países românicos. Também os instintos saudáveis falham. Os judeus orientais vivem em Paris quase à grande e à francesa1. Ninguém os impede de abrir aqui negócios e até de construir guetos. Há alguns bairros judeus próximos de Montmartre e da Bastilha. São as mais antigas zonas da cidade de Paris. São as mais antigas casas parisienses com as rendas mais baratas da cidade. Os judeus não gostam de gastar dinheiro em conforto «inútil» a não ser que sejam muito ricos. Há razões externas que, por si só, lhes facilitam a vida em Paris. A sua fisionomia não os denuncia. A sua vivacidade não dá nas vistas. O seu sentido de humor cruza-se com o dos franceses a meio caminho. Paris é uma verdadeira cidade cosmopolita. Viena já o foi no passado. Berlim sê-lo-á um dia. A verdadeira cidade cosmopolita é objectiva. Tem preconceitos como as outras, mas falta-lhe tempo para os pôr em prática. No Prater vienense quase não se fazem comentários anti-semitas, embora nem todos os visitantes sejam amigos dos judeus e embora circulem junto deles e à volta deles os mais orientais de entre os judeus orientais. E porquê? Porque no Prater as pessoas divertem-se. Na Taborstrasse que conduz ao Prater o anti-semita começa a comportar-se como um anti-semita. Na Taborstrasse as pessoas já não se divertem. Em Berlim as pessoas não se divertem. Mas em Paris reina a alegria. Em Paris, o anti-semitismo grosseiro limita-se aos france1 Jogo de palavras com a expressão idiomática alemã Leben wie Gott in Frankreich, «viver como Deus em França», correspondente à expressão idiomática portuguesa «viver à grande e à francesa» ou «viver como um lorde».


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 112

112

Joseph Roth

ses sem alegria. São os realistas, o grupo que gira à volta da Action Française. Não me admira que eles em França sejam impotentes e sê-lo-ão sempre. São demasiado pouco franceses. São demasiado patéticos e possuem demasiado pouco sentido de ironia. Paris é objectiva, embora a objectividade possa ser uma virtude alemã. Paris é democrática. O alemão é humano. Mas em Paris a humanidade prática possui uma grande e forte tradição. É justamente em Paris que os judeus orientais começam a tornar-se europeus ocidentais. Tornam-se franceses. Até se tornam patriotas.

2 A amarga luta existencial dos judeus orientais contra «os papéis» é suavizada em Paris. A polícia é de um desleixo humano. É mais acessível à individualidade e às circunstâncias pessoais de cada um. A polícia alemã obedece às categorias. A polícia parisiense deixa-se facilmente convencer. É possível registar-se em Paris sem ser rejeitado quatro vezes. Os judeus orientais podem viver sem nenhum constrangimento. Podem mandar os seus filhos para as escolas judias ou francesas. Os filhos de judeus orientais nascidos em Paris podem tornar-se cidadãos franceses. França precisa de gente. De facto, é decididamente a sua missão ser escassamente povoada e precisar sempre de gente e converter os estrangeiros em franceses. É a sua força e a sua fraqueza. Claro que há também anti-semitismo no meio dos não realistas. Mas não é um anti-semitismo a cem por cento. Os ju-


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 113

Judeus Errantes

113

deus orientais habituados a um anti-semitismo muito mais forte, rude e brutal contentam-se com o francês. Eles podem dar-se ao luxo de se contentar. Gozam da liberdade religiosa, cultural e nacional. É-lhes permitido falar iídiche tanto e tão alto quanto quiserem. Até lhes é permitido falar mal francês, sem que sejam alvo de suspeição. A consequência desta boa vontade é que eles aprendem a falar francês e que os seus filhos já não falam iídiche. Quando muito entendem-no ainda. Foi divertido para mim, nas ruas do bairro judeu parisiense, ouvir falar os pais em iídiche e os filhos em francês. Às perguntas em iídiche reagem em francês. Estas crianças são dotadas. Se Deus quiser, hão-de conseguir singrar na vida em França. E, como me parece, Deus há-de querer. As tabernas judias na Hirtenstrasse são tristes, frias e silenciosas. Os restaurantes judeus em Paris são divertidos, acolhedores e ruidosos. Todos eles fazem bons negócios. Comi uma vez no restaurante do senhor Weingrod. Come-se lá excelentes assados de ganso. Ele prepara uma aguardente muito boa e forte. Ele diverte os clientes. Diz à sua mulher: «dá-me o deve e haver, s’il vous plait.» E a mulher diz: «Vá buscá-lo ao balcão, si vous voulez!». Falam numa algaravia verdadeiramente alegre. Perguntei ao senhor Weingrod: Como é que veio parar a Paris? Ao que o senhor Weingrod respondeu: Excusez, monsieur, pourquoi não para Paris? Da Rússia, expulsam-me, na Polónia, metem-me na prisão, e se quiser ir para a Alemanha, não me dão o visto. Pourquoi não haveria de vir para Paris? O senhor Weingrod é um homem valente, perdeu uma perna, tem uma prótese e está sempre bem disposto. Em França, apresentou-se voluntariamente ao serviço militar. Mui-


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 114

Bairro judeu em Paris: em amena cavaqueira na rua (cerca de 1930).


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 126

Emigrante polaco a caminho do Novo Mundo (1907).


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 127

Um judeu vai para a América

1 Embora a quota de imigração para os imigrantes de Leste tenha sido ultrapassada mais que uma vez e embora os consulados americanos exijam tantos papéis como nenhum outro consulado no mundo, muitos judeus orientais continuam a emigrar para a América. A América representa a lonjura. A América significa a Liberdade. Na América vive sempre um parente qualquer. É difícil encontrar uma família judia no Leste que não tenha um qualquer primo, um qualquer tio na América. Há um que tenha emigrado um dia há vinte anos. Fugiu do serviço militar. Ou desertou depois de ter sido considerado apto. Se os judeus orientais não tivessem tanto medo, poderiam, com razão, vangloriar-se de ser o povo mais antimilitar do mundo. Durante muito tempo, não foram considerados dignos de cumprir o serviço militar pelas suas pátrias, a Rússia e a Áustria. Só quando foi concedida a igualdade de direitos cívicos aos judeus é que tiveram de se alistar. Na realidade, tratava-se de uma igualdade de deveres e não de direitos. Se até esse momento apenas as autoridades civis os chicaneavam, a partir de agora passavam a estar à mercê também da chicana das autoridades militares. Os judeus suportavam o insulto de não te-


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 128

128

Joseph Roth

rem de prestar serviço militar com grande alegria. Quando se lhes comunicou a grande honra de poderem lutar, treinar e cair no campo de batalha, apoderou-se deles o pesar. Quem se aproximava dos 20 anos e era tão saudável que tinha de supor que seria declarado apto, fugia para a Améria. Quem não tivesse dinheiro, automutilava-se. A automutilação alastrou-se entre os judeus orientais uns anos antes da guerra. Aqueles que se atemorizavam da vida de soldado deixavam que lhes cortassem um dedo à machadada, os tendões dos pés e derramar veneno nos olhos. Transformaram-se em aleijados, cegos, paralíticos e deficientes heróicos, submetendo-se ao mais moroso e feio dos sofrimentos. Não queriam servir. Não queriam ir à guerra e cair no combate. A sua razão estava sempre alerta e calculista. A sua razão lúcida calculava que era sempre mais útil viver paralítico do que morrer saudável. A sua devoção sustentava a reflexão. Não era apenas estúpido morrer por um imperador ou por um czar, era também um pecado viver longe da Torah e contra os seus preceitos. Um pecado, comer carne de porco. Trazer uma arma no shabbat. Submeter-se ao treino militar. Levantar a mão, muito menos uma espada, contra uma pessoa inocente e estranha. Os judeus orientais eram os pacifistas mais heróicos de todos. Sofreram pelo pacifismo. Tornaram-se aleijados voluntariamente. Ainda ninguém se deu ao trabalho de escrever uma epopeia dedicada a estes judeus. «A Comissão vem a caminho!» Era um grito de terror. Referia-se à inspecção médica militar, que percorria todas as pequenas cidades para recrutar soldados. Semanas antes começavam os «tormentos». Os jovens judeus atormentavam-se de tal modo para que desfalecessem, para que tivessem falhas cardía-


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 139

A situação dos judeus na Rússia Soviética

Também na antiga Rússia os judeus eram uma «minoria nacional»; mas uma minoria maltratada. Os judeus eram caracterizados como uma nação própria através do desprezo, da repressão e do pogrom. Não se empenhava em assimilá-los através da violação. Empenhava-se em delimitá-los. Os meios que se utilizavam contra eles pareciam ser uma tentativa de os exterminar. Nos países ocidentais o anti-semitismo era talvez um instinto primitivo de defesa. Na Idade Média cristã, um fanatismo religioso. Na Rússia, o anti-semitismo era um meio para governar. O simples «mujique»1 não era uma anti-semita. O judeu não era para ele um amigo mas sim um estrangeiro. A Rússia, que tinha espaço para tantos estrangeiros, estava também livre para este. O pseudo-intelectual e o burguês eram anti-semitas — porque a nobreza também o era. A nobreza era-o, porque a corte também o era. A corte era-o, porque o Czar, para quem não era conveniente temer os seus próprios «filhos da terra» ortodoxos, alegava temer só os judeus. Consequentemente, eram-lhes atribuídas qualidades que os tornavam perigosos perante todas as classes sociais: Para «o homem simples do povo» tornaram-se assassinos rituais; para o pequeno pro1 Expressão de origem russa, que denomina o camponês pobre na Rússia czarista.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 140

140

Joseph Roth

prietário, destruidores de propriedade; para o funcionário superior, vigaristas plebeus, para a nobreza, perigosos escravos devido à sua esperteza; finalmente, para o pequeno funcionário, que o é de todas as classes sociais, os judeus eram todas estas coisas juntas: assassinos rituais, interesseiros, revolucionários e populaça. Nos países ocidentais, o século XVIII trouxe a emancipação dos judeus. Na Rússia, o anti-semitismo oficial e legítimo começou nos anos 80 do século dezanove. Nos anos 1881-82, Plehwe1, o futuro ministro, organizou os primeiros pogrons no sul da Rússia. A intenção era intimidar os jovens revolucionários judeus. Mas a populaça contratada, que não se vinga dos atentados e quer apenas saquear, assaltou as casas dos judeus conservadores ricos que não era suposto serem alvo de ataques. Passou-se então para os chamados «pogrons silenciosos», criaram-se as conhecidas «colónias», expulsaram-se os artesãos judeus das grandes cidades, criou-se um numerus clausus para as escolas judaicas (3:100) e reprimiu-se a intelligentsia judia nas universidades. Mas como simultaneamente o milionário judeu e empresário de caminhos-de-ferro Poliakov era amigo íntimo da corte czarista e como se tinha de autorizar a residência dos seus funcionários nas grandes cidades, milhares de judeus russos tornaram-se «funcionários» de Poliakov. Este tipo de escapatórias havia-as muitas. À esperteza dos judeus correspondia a subornabilidade dos funcionários. Por isso, nos primeiros anos

1 Vyacheslav Konstantionvich von Plehve (1846-1904) foi Ministro do Interior do Reino da Rússia, tendo sido assassinado num atentado praticado pelos membros do Partido Socialista Revolucionário.


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 151

Posfácio 1

É para mim um dever profundamente grato chamar, por fim, a atenção do prezado leitor para o facto de a situação dos judeus na Rússia Soviética, tal como a tentei descrever no último capítulo, se ter talvez alterado. Não disponho de números e dados estatísticos. As informações transmitidas no presente livro tinha-as trazido de uma viagem de estudo efectuada à Rússia. Não posso utilizar os dados certamente pouco credíveis, justamente por serem tendenciosos, que poderia obter de Moscovo, se quiser dar testemunho em toda a consciência. Mas tenho a certeza que nada se alterou na posição de princípio da Rússia Soviética em relação aos judeus. É este princípio que conta e não os números. Talvez me seja permitido neste ponto fazer referência ao mais terrível acontecimento do último ano, relativamente às minhas informações sobre o anátema judeu que foi lançado pelos rabinos sobre a Espanha na sequência da expulsão dos judeus: a guerra civil espanhola. Poucos serão provavelmente os leitores que tenham conhecimento da versão segundo a qual o Cherem, o grande anátema, deveria expirar nestes anos. Não posso obviamente arrogar o direito de estabelecer uma relação nítida entre o metafísico e a tão cruel realidade. Mas quero as1

Posfácio escrito por Roth dez anos após a publicação da 1.ª edição em 1927.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 152

152

Joseph Roth

sumir a responsabilidade por chamar a atenção para estes factos que são, ao fim e ao cabo, surpreendentes. Não quero que se deixe passar a conclusão: justamente quando o anátema expira, começa a grande catástrofe que a Espanha alguma vez conheceu. Pretendo apenas que se refira esta coincidência, que é certamente mais do que uma simples curiosidade; que se refira ainda o dito dos antepassados, que é o seguinte: «O tribunal do Senhor está em sessão a toda a hora, aqui em baixo e lá em cima.» Às vezes, passam-se séculos — mas a sentença é inevitável. Junho de 1937

Joseph Roth


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 153

Prefácio à segunda edição, programada mas não concretizada 1 i

Quando há muitos anos escrevi este livro, que agora gostaria de apresentar de novo aos leitores em versão modificada, não existia ainda nenhum problema agudo relacionado com os judeus ocidentais. Tratava-se na altura essencialmente apenas de fazer com que houvesse compreensão do infortúnio dos judeus orientais por parte dos que não eram judeus e dos judeus ocidentais: especialmente no país de possibilidades ilimitadas, que por acaso não se chama América, mas sim Alemanha. Obviamente que houve lá sempre (como há em todo o lado) um anti-semitismo latente. Na tentativa compreensível de ou não tomar consciência do anti-semitismo ou ignorá-lo e naquela trágica cegueira, que em muitos se não na maioria dos judeus parece substituir a fé perdida ou diluída dos antepassados, a que chamo uma crença supersticiosa no progresso, a maioria dos judeus alemães, não obstante os sintomas ameaçadores de todo tipo, sentiam-se como alemães pares; nas festividades religiosas, na melhor das hipóteses, alemães judeus. Muitos deles sentiam-se infelizmente tentados a responsabilizar os judeus orientais imigrantes pela exteriorização do instinto anti-semítico. É um facto — frequentemente ignorado — que também os judeus podem possuir instintos anti-semíticos. Não se quer que um estrangeiro, que 1

Prefácio escrito em 1937 e destinado à segunda edição, não concretizada.


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 154

154

Joseph Roth

acabou de chegar de Lodz, o faça lembrar no seu próprio avô, que é originário de Posen ou Kattowitz. É uma postura ignóbil, embora compreensível, de um pequeno-burguês ameaçado, que está prestes a subir a escada bem íngreme para o terraço da grande burguesia, ao ar livre e vista panorâmica. Ao ver um primo de Lodz, pode-se facilmente perder o equilíbrio e cair. Na tentativa de alcançar o terraço onde os nobres, os industriais cristãos e os financeiros judeus se sentiam inclinados, em determinadas circunstâncias, a alegar que todos eles eram iguais, sublinhando de tal modo com veemência a sua igualdade que qualquer pessoa sensível poderia ter ouvido nitidamente que o que eles estavam de facto a sublinhar era a sua desigualdade, o judeu alemão atirava muito apressadamente uma esmola ao seu correligionário de modo a não ser impedido na sua ascensão. Dar esmolas a um estrangeiro é a forma mais insultuosa de hospitalidade; mas é sempre ainda hospitalidade. Mas havia muitos judeus alemães — e um dos seus representantes expia hoje a sua culpa no campo de concentração — que não só imaginavam que sem a afluência dos judeus orientais correria tudo sobre rodas, como até instigavam os lacaios plebeus contra o estrangeiro desamparado, como quem instiga os cães contra os vagabundos. Mas quando o lacaio chegou ao poder, o porteiro ocupou a «casa senhorial» e todos os cães de guarda se soltaram, o judeu alemão reparou que perdera a pátria e ficara desprotegido ainda mais do que estava o seu primo de Lodz há alguns anos. Tornara-se arrogante, perdera o Deus dos seus antepassados e adquirira um ídolo, o patriotismo civilizacional. Mas Deus não se tinha esquecido dele. Enviou-o em errância: uma pena que é apropriada aos judeus… e tam-


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 176


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 169

ÍNDICE


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 170


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 171

Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução cronológica à vida e obra de Joseph Roth . .

7 11

O Carvalho de Goethe em Buchenwald . . . . . . . . .

25

JUDEUS ERRANTES

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Judeus orientais no Ocidente . . . . . . . . . . . . . . . 31 A cidadezinha judia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Os guetos ocidentais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 Viena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 Berlim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 Paris. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 Um judeu vai para a América . . . . . . . . . . . . . . . 127 A situação dos judeus na Rússia Soviética . . . . . . 139 Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Prefácio à segunda edição, programada mas não concretizada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153


P_2ÂŞed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 172


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 173

Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 174

Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné Messalina — romance da antiga Roma, Alfred Jarry O capitão veneno, Pedro Antonio Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle


P_2ªed Roth_Judeus errantes.qxp:sistema solar 20/10/16 20:41 Page 175

DEPÓSITO LEGAL 000000/16 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.