A Sequência dos Dias – Escultura

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a sequência dos dias the sequence of the days

rui matos escultura

Tudo o que me vem à memória julgo que realmente existiu I believe that everything that comes to my mind really did exist

a sequência dos dias

Obras [ Plates ] 12

Lista de Obras [ List of Works ] 90

E VA M ENDES

As Figuras dos Sonhos Estão Mais Perto de Mim 93 The Figures of Dreams Are Closer to Me 94

A NDRÉ S ILVEIRA Corte e Continuidade 101 Cut and Continuity 102

Rui Matos, biografia [ biography ] 107

A escultura

Cada escultura é um ser individual, irrepetível e completo.

Interessam-me as relações que estabelecemos com os objectos que criamos, principalmente os mais simples e ancestrais que implicavam uma relação directa com a mão, o corpo e o gesto.

Interessa-me o momento efémero da trajectória do voo de um pássaro quando quebra e segue em frente.

Sculpture

Each sculpture is an individual, unrepeatable and complete being.

I am interested in the relationships we develop with the objects we create, particularly the most simple and ancestral ones, which implied a direct connection with one’s hand, body and gesture.

I am interested in that ephemeral moment in the trajectory of a bird’s flight when it breaks away and forges ahead.

O processo

Corto, desmonto, deformo, altero, para depois juntar e começar a construir.

Conceptualmente disseco e desmonto o que apreendi e com diferentes fragmentos construo um novo ser.

A ideia: desestabilizar, desestruturar, reorganizar.

Process

I cut, take apart, deform, change; then I assemble things and start building.

I conceptually dissect and dismantle what I have gathered and out of various fragments

I construct a new being.

The idea: destabilise, destructure, reorganise.

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A matéria

A escultura é sobre a relação ideia-matéria. Se as ideias condicionam a matéria, a matéria abre possibilidades na concretização das ideias.

Material

Sculpture concerns the relationship between ideas and materials. While the ideas condition the materials, the materials open up possibilities for the realisation of ideas

O espaço

Desde que comecei a usar o ferro como material de trabalho a minha escultura deixou de ser pensada como volume e massa, para ser pensada como superfície (que define um interior-exterior) e desenho no espaço tridimensional. Se a escultura em pedra era um processo subtractivo, a escultura em ferro é um processo aditivo. No entanto, em alguns dos meus trabalhos algo se mantém; as arestas do bloco inicial de onde a escultura em pedra partia foram substituídas pelas linhas desenhadas no espaço das arestas do volume dentro do qual se vai desenvolver a escultura em ferro.

Space

Ever since I began working with iron, I stopped looking at my sculpture in terms of volume and mass and started considering it as both surface (thus defining an interior and an exterior) and drawing in three-dimensional space. While sculpting in stone was a subtractive process, sculpting in iron is an additive one. However, something remains in some of my works: the edges of the block from which stone sculpture originally came have been replaced by the lines drawn within the edges of the volume within which the iron sculpture will develop.

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O corpo

Em relação a cada escultura o meu corpo define a proporção. Um pequeno utensílio de mão e uma montanha podem estar dentro da mesma escultura. Por vezes estabeleço limites e crio um campo de actuação.

Body

My body defines the proportions of each sculpture. Anything from a small hand tool to a mountain can be contained in the same sculpture. Sometimes I define limits, thus creating a field of action

O nome

Durante o processo de trabalho surge uma palavra ou uma frase que se cola à escultura. Não são verdadeiramente títulos explicativos, são indícios que estabelecem novas ligações. Outras vezes a escultura nunca ganha um nome e exibe um maravilhoso «sem título», como alguns índios do Brasil que não dizem o seu nome próprio por ser demasiado íntimo para ser revelado a um forasteiro.

Name

During the work process, a work or sentence comes up and sticks itself to the sculpture. These titles are not actually explicative: they are signs that define new connections. At other times, the sculpture is never given a name, displaying a wonderful “untitled”, like certain Brazilian tribespeople who refuse to say their names, because that is something too intimate to be revealed to strangers.

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A sequência

Algumas peças só têm pleno significado na relação que estabelecem com as outras que lhe estão próximas. Criam assim uma sequência de leitura.

Sequence

Some pieces only acquire their full meaning through the relationship they develop with other pieces near them, thereby creating a reading sequence.

O lugar

A escultura sofre sempre uma violenta interacção com o sítio em que se encontra. Por vezes acontece que a mesma escultura muda de nome quando muda de lugar.

Place

Sculptures always violently interact with the place where they stand. Sometimes, the same sculpture might change its name when it is moved from one place to another.

A cor

Durante séculos a pintura cobriu a matéria de que era feita a escultura. Depois veio «a verdade dos materiais». Hoje, em algumas das minhas esculturas, tenho a estranha sensação de que a escultura voltou a ser pintada, não apenas atribuir-lhe uma cor, mas pintá-la mesmo, de uma maneira «tradicional» através da pintura a óleo.

Colour

For centuries, the material of which sculptures were made was painted over. Then, a “truth to materials” approach began. Nowadays, some of my sculptures give me the strange impression that sculpture is being painted once again; it is not just a matter of ascribing it a colour, but of actually painting it in a “traditional” way, using oil paint.

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As esculturas em gesso, plácidas e caliginosas — primeiras na exposição e na linha cronológica —, apresentam vultos de grande escala e de aparente leveza, como sombras brancas. Revelam o interior dos corpos que edificam, num processo semelhante ao da abertura de um molde familiarmente industrial mas cuja função não conseguimos decifrar. São simultaneamente orgânicos — berços, ninhos, úteros — cascas abertas de um nascimento passado. As suas texturas, mansas e secas, reflectem a luz ao encontro com as suas formas ósseas — dissecadas da eteridade a que parecem ascender.

These placid and caliginous plaster sculptures — the first pieces to be seen at the exhibition and also the earliest creations on display here — combine large scale and apparent lightness, like white shadows. They reveal the interior of the bodies they construct, in a process akin to opening a mould that seems familiarly industrial, but whose function we are unable to decipher. Simultaneously, they are organic — cradles, nests, uteri — the open eggshells of a past birth. Their mild and dry textures reflect the light that strikes their osseous forms — dissected from the ethereality to which they appear to ascend.

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A passagem para o ferro marca no percurso do artista a concretização clara da presença do desenho no seu pensamento escultórico. São reunidos, como num cenário ou palco teatral, seres e objectos insólitos que deixam o seu rasto como num mapa, culminando em arenas de observação — simultaneamente privadas e transparentes ao ferro. Por vezes geométricas, por vezes antropomórficas, praticam entre si desenhos tridimensionais de habitats vertiginosos — formas anómalas (no limiar do enigma) ao peso da matéria.

The artist’s switch to iron marks the clear implementation of the drawing’s presence in his sculptural thought. Unusual beings and objects are gathered together, as though on a set or stage, leaving behind their traces as though on a map, culminating in observation arenas — simultaneously private and transparent to iron. Sometimes geometric, sometimes anthropomorphic, they engage with one another to create three-dimensional drawings of vertiginous habitats — anomalous (almost enigmatic) forms, as regards the weight of the material.

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Eva Mendes

Escondidas no recanto do salão, repousam imagens de aparentes maquetas — pequenas e intrigantes esculturas-pinturas. Desenvolvidas ao longo dos últimos anos, representam o interesse do artista numa investigação sobre o retorno da cor à pureza da matéria; e como essa se altera e se transforma conforme a aplicação cromática experimental. Apesar de a pintura ser transversal à exposição — por vezes surgindo silenciosamente em banhos monocromáticos de verdes pantanosos e azuis celestiais —, é nesta composição que encontramos o jogo da percepção levado ao limite do meio, abrindo portais para caminhos impossíveis — linhas rectas sinuosas, portas que não abrem por entre as escadas falsas, inadequadas à sua função. Ergue-se, assim, um novo — outro — lugar poético da escultura.

Concealed in a corner of the room, a number of apparent maquettes — small, intriguing painting-sculptures — repose. Developed over recent years, they represent the artist’s research into the return of colour to the raw material, and how the material is altered and transformed by the artist’s chromatic experiments. Even though painting runs throughout the exhibition — sometimes silently manifesting as monochrome expanses of marshy greens and celestial blues — in this composition we find a play in perception taken to the limits of the medium, opening doors to impossible paths — sinuous straight lines, doors that do not open among the false stairs, which do not fulfil their supposed purpose. Thus a new (another) poetic locus of sculpture emerges.

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Lista de Obras [List of Works]

pp. 12-13, 14

Mediterrâneo, 1989 Gesso [plaster], 195 × 230 × 95 cm

pp. 17, 18-19

Doze Pés, 1989 Gesso [plaster], 182 × 160 × 115 cm

pp. 20, 21

Atelier [studio], Janas, 1988 p. 22

Atelier [studio], Pêro Pinheiro, 1992 p. 23

Primeira Ilha, 1998 Bronze, 84 × 88 × 153 cm pp. 24-25

Vestígios de Presença Humana, 2011 Pedra de Lioz [Lioz stone], 140 × 45 × 25 cm

pp. 26, 27

Atelier na Chilreira [studio in Chilreira], Sintra, c. 2008

p. 29

Histórias Incompletas, 2008

Pedra vidraço de Ataíja [Ataíja stone], 25 × 25 × 15 cm – cada [each]

pp. 30-31

Atelier [studio], Pêro Pinheiro, c. 1995 p. 33

Órgãos e Artefactos, 1989

Pedra de ardósia sobre base de calcário [slate on limestone base], 140 × 110 × 20 cm

pp. 34-35

Atelier na Chilreira [studio in Chilreira], Sintra, c. 2000 p. 37

Oiço Cair o Tempo, 2018 Ferro oxidado [oxidised iron], 220 × 112 × 50 cm

pp. 38-39

Com um Dedo na Parede, 2019 Ferro pintado [ painted iron], 90 × 308 × 91 cm

pp. 40-41

Contra a Natureza, 2016 Ferro oxidado [oxidised iron], 128 × 315 × 100 cm

pp. 42-43

A Sequência dos Dias, 2019 Ferro oxidado [oxidised iron], 138 × 900 × 91 cm

pp. 44-45

Pesados Silêncios, 2021 Ferro oxidado [oxidised iron], 250 × 253 × 70 cm pp. 46-47

Cenas da Vida Privada, 2022 Ferro pintado [ painted iron], 120 × 55 × 65 cm – cada [each] pp. 48-49

As Mãos Habituaram-se a Fazer Todos os Dias os Mesmos Gestos, 2017 Ferro oxidado [oxidised iron], 200 × 170 × 90 cm pp. 50-51

Perdido na Viagem de Regresso, 2017 Ferro oxidado [oxidised iron], 195 × 310 × 59 cm pp. 52-53

Campo de Actuação, 2022 Ferro pintado [ painted iron], 158 × 250 × 165 cm p. 55

Sem título [Untitled ], 2016 Ferro pintado [painted iron], 215 × 145 × 17 cm pp. 56-57

Sem título [Untitled ], 2016 Ferro pintado [ painted iron], 140 × 216 × 16 cm p. 58

Sem título [Untitled ], 2019 Ferro pintado [ painted iron], 145 × 130 × 24 cm p. 61

Sem título [Untitled ], 2022 Ferro pintado [ painted iron], 120 × 123 × 19 cm

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p. 62

Sem título [Untitled ], 2017

Ferro pintado e grafite sobre a parede [ painted iron and graphite on the wall ], 32 × 46 × 9 cm p. 63

Sem título [Untitled ], 2019

Ferro pintado e grafite sobre a parede [ painted iron and graphite on the wall ], 113 × 100 × 13 cm

pp. 64-65

Virar à Esquina, 2022 Ferro pintado [ painted iron], 40 × 90 × 30 cm pp. 66-67

Shadow of a Doubt, 2022

Ferro pintado [ painted iron], 55 × 35 × 46 cm Sombra projectada de escultura em movimento [ projected shadow of moving sculpture] pp. 68-69

Profundo e Próximo, 2020 Ferro pintado [ painted iron], 80 × 150 × 58 cm p. 71

Sem título [Untitled ], 2022

Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 18 × 41 × 7 cm – cada [each] pp. 72-73

Vista da exposição na SNBA [view of the exhibition at the SNBA] p. 74

Relógio para Dias Cinzentos ou a Estranha Luz do Sol, 2020

Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 75 × 42 × 18 cm

p. 76

Sem título [Untitled ], 2019

Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 14 × 70 × 14 cm

p. 77

Cenário para uma Vida Privada, 2020

Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 42 × 76 × 39 cm

p. 78

Sem título [Untitled ], 2020 Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 25 × 30 × 20 cm

p. 79

Sem título [Untitled ], 2020 Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 53 × 76 × 10 cm

p. 80

Sombras Brancas, 2021 Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 50 × 43 × 12 cm

p. 81

Águas Profundas, 2022 Ferro com pintura a óleo [oil paint on iron], 80 × 100 × 26 cm

pp. 82-83

Sem título [Untitled ], 2016 Ferro pintado [ painted iron], 45 × 50 × 50 cm

pp. 84-85

Conta-me Histórias, 2022 Ferro pintado [ painted iron], 110 × 185 × 11 cm

pp. 86-87, 88-89

Palácio às Quatro da Manhã, 2022 Ferro pintado [ painted iron], 300 × 265 × 120 cm

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As Figuras dos Sonhos Estão Mais Perto de Mim

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Apenas a transparência convoca a verdade da obra. Não uma descodificação absoluta, nem tão-pouco uma impressão dissecada do objecto criado. Antes, uma verdade sensível e tão concreta como a evidência da água de um rio que lava as pedras que o acompanham — sempre diferente na sua permanência.

Existe uma contraposição interna naquilo a que frequentemente chamamos de acto criativo, a simultaneidade de um processo de nascimento e decesso cujo interlúdio não detectamos, ou que nos ultrapassa. Algo que foge e que renasce, uma intimidade transformada no mundo — para o mundo — e que jamais regressará ao seu estado de inocência em união isolada. Tarkovsky chamá-lo-ia de sacrifício. Poderia igualmente convocá-lo: vislumbre impossível, enigma absoluto da única essência a decifrar.

O escultor é um artesão do tempo, ser cujas mãos conhecem a matéria que habita. A persistência na obra deixa-lhe marcas na pele, rastos invisíveis que preenchem os vazios do gesto até a intuição lhe invadir a cegueira e finalmente se tornar só, druida da sua própria aprendizagem. É possível encontrar neste processo de amadurecimento, que é tanto emocional como racional, uma relação com a transição de estados existenciais provocados por acontecimentos singulares na vida de um artista.

Em meados dos anos 80 do século passado, Rui Matos estava prestes a ter um desses acontecimentos singulares ao entrar no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, disponibilizando parte da sua atenção à observação de um documentário em película, mostrando uma África misteriosa e ritualista. No filme — e remarco o detalhe com que o artista conta esta história — é a claríssima relação entre o feiticeiro da tribo e o escultor que se revela decisiva para a concretização da escultura perfeita (afinal, o Pigmaleão não foi o último). Tratava-se de um ritual de passagem da puberdade para a idade adulta, composto por uma série de eventos solitários da parte de ambas as figuras e que culminava numa oferta à aldeia. Num primeiro momento, o feiticeiro embrenhava-se na floresta, vagueava e observava cada árvore em seu redor até encontrar aquela que seria a dele. De retorno à aldeia, explicava ao escultor onde se encontrava o lugar isolado da sua escolha. Após vislumbrar a árvore pro-

Realização de uma escultura Nimba, na região de Nalú, Guiné-Bissau. Registo filmado por um grupo de antropólogos alemães, 1960.

[A Nimba sculptor at work, in Nalú, Guinea-Bissau. Stills from a film made by German anthropologists, 1960.]

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The Figures of Dreams Are Closer to Me

E VA M ENDES

Only transparence can reveal the truth of the artwork. Not some sort of decoding or dissected impression of the created object, but rather a sensitive truth, as concrete as the evidence of a river’s water that washes the pebbles over which it flows — constantly different in its permanence.

There is an internal contraposition in what we frequently call the creative act, a process of simultaneous birth and decease whose interlude we are unable to detect or otherwise transcends us. Something that escapes and is reborn, an intimacy that is transformed in the world — for the world — and will never return to its state of innocence in isolated union. Tarkovsky would describe it as sacrifice. It could also summon it as: an impossible glimpse, the absolute enigma of the sole essence to be deciphered.

The sculptor is a craftsman of time, a being whose hands know the material he inhabits. His persistence in working has left marks on his skin, invisible traces that fill in the voids in his gesture until intuition takes over his blindness and he finally becomes one, a druid of his own learning. It is possible to find in this maturation process, which is both emotional and rational, a number of connections with the transition of existential states generated by singular events in the life of an artist.

In the mid-1980s, Rui Matos was about to experience one such singular event as he entered the Ethnology Museum, in Lisbon. There, he gave thoughtful attention to a documentary film concerning a mysterious, ritualistic Africa. In the film — and I wish to stress the fact that the artist has told me the following story in every detail —, a very powerful connection between the tribe’s sorcerer and the sculptor plays a decisive role in the creation of a perfect sculpture (Pygmalion was not the last one, it seems). The documentary was about a coming-of-age ritual, composed of a series of events concerning each figure separately, which culminated in an offering to the village. First, the sorcerer entered the forest, where he wandered for a while, looking at every tree around him until he found the one that was going to be his. After returning to the village, he explained to the sculptor where his chosen tree stood. After finding the tree announced by the sorcerer, the sculptor began his work, showing no hesitation in his actions and decisions. The sculpture was flawless and surprisingly respectful of the canons we are familiar with. The sculptor then returned to the village, and the villagers departed in search of his work, welcoming it to their hearts.

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clamada pelo feiticeiro, o escultor iniciava o seu processo escultórico, sem alguma vez mostrar hesitação no gesto, ou semelhante dúvida na direcção que tomava. A execução era perfeita e surpreendentemente obediente aos cânones que conhecemos. O escultor regressa então à tribo e os habitantes partem em busca da obra, acolhendo-a no seu íntimo.

A árvore outrora semelhante a todas as outras árvores da floresta era agora um novo ser, uma oferenda do escultor e do feiticeiro — uma natureza mágica, fruto da sensibilidade de ambos. Novamente o decesso e o nascimento — o sacrifício e a oferta.

O ferro é a árvore de Rui Matos, o volume primeiro sobre o qual se definem as superfícies que recebem o desenho escultórico e que o libertam enquanto corpo autónomo, ser energizado. A qualidade simbólica deste ritual concede ao escultor essa dupla face — o feiticeiro não é quem o ajuda, é quem se encontra dentro dele. É a união de ambos e das qualidades material e metafísica que procedem ao grifo da transformação, gerando o ambiente compatível à criação onde as mais surpreendentes presenças sobrevivem entre nós.

A serious house on serious earth it is,

In whose blent air all our compulsions meet, Are recognised, and robed as destinies.

And that much never can be obsolete, Since someone will forever be surprising

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Alberto Giacometti, O Palácio às Quatro da Manhã, 1932.

The tree, which once looked like all the other trees in the forest, was now a new being, an offering from the sculptor and the sorcerer — a magic nature, the fruit of their sensitivity. Again, decease and birth — sacrifice and offering.

Iron is Rui Matos’ tree, the primal volume on which are defined the surfaces that receive the sculptural design and release it as an autonomous body, an energised being. Through the symbolic quality of this ritual, the sculptor is given a double face — now, the sorcerer is not an outside helper, but lives inside him. It is the union of the two with the material and metaphysical qualities that brings about the transforming mystery, generating the creative atmosphere in which the most amazing presences can survive among us.

A serious house on serious earth it is, In whose blent air all our compulsions meet, Are recognised, and robed as destinies. And that much never can be obsolete, Since someone will forever be surprising A hunger in himself to be more serious, And gravitating with it to this ground, Which, he once heard, was proper to grow wise in, If only that so many dead lie round.1

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2 UD-DIN ATTAR, Farid, A Conferência dos Pássaros, Marcador, 2013.

The temporality that runs through the exhibition now held at the Sociedade Nacional de Belas-Artes’ salon combines the time inside the artist’s body of work with the expanded time that accompanies each separate artwork. Three forms of temporal vectors invisibly transpierce the sculptures before our eyes — the moment in which they were conceived, the moment in which we receive them, and the convex moments that enriched them — Giacometti’s The Palace at 4 a.m. (1932) and The Nose (1947); a young Jasper Johns’ take on Duchamp and Cunningham in Walkaround Time (1968). We are surprised by an epigrammatic hybrid, in which sculpture defies the law of its time and through which light and wind dance, reflecting passionate shadows and momentary shivers. We are unable to grasp this world’s gravitational laws, or find out whether the formal and aesthetic qualities we observe are canonical or irreverent. Actually, they are both at once — spirit mingles with reason; previous and subsequent eternity is seen as one2. It is due to this undetectable (occult) quality that the artist’s work takes us by surprise. The antithesis of its whispering reveals itself in the glimpsing of the sculptural enigma, comes upon us as we turn the corner of each object — fabulating the myths that precede them and erecting utopian architectures between the body and the void. While on the one hand they proffer claims of scale and weight, on the other they trip us up with detail and lightness, thus protecting

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L ARKIN, Philip, from “Church Going”, Collected Poems, Faber and Faber, 1988.

A hunger in himself to be more serious, And gravitating with it to this ground, Which, he once heard, was proper to grow wise in, If only that so many dead lie round 1

A temporalidade transversal à exposição que o salão da Sociedade Nacional de Belas-Artes ora recebe convoca não somente o tempo dentro do corpo do trabalho do artista, como o tempo expandido que foi acompanhando cada trabalho na sua data. Três nuances de vectores temporais trespassam invisivelmente as esculturas que presenciamos — o momento em que foram concretizadas, o momento em que as recebemos e os momentos convexos que para elas contribuíram — Giacometti, O Palácio às Quatro da Manhã (1932) e O Nariz (1947), um jovem Jasper Johns a olhar para Duchamp e Cunningham em Walkaround Time (1968). Somos surpreendidos por um híbrido epigramático, onde a escultura desafia a lei do seu tempo e por onde a luz e o vento dançam, reflectindo impetuosas sombras e calafrios momentâneos. Não conseguimos colocar mão nas leis gravitacionais deste mundo, nem tão-pouco reconhecer se as qualidades formais e estéticas que detectamos se afirmam canónicas ou irreverentes. São-no simultaneamente — mistura o espírito à razão e vê a eternidade anterior e posterior como uma única2. É por consequência desta qualidade indetectável — oculta — que a obra do artista nos acontece de surpresa. A antítese do seu sussurro revela-se no vislumbre do enigma escultórico, encontra-nos ao dobrar a esquina de cada objecto — fabulando os mitos que os antecedem e erguendo arquitecturas utópicas entre o corpo e o vazio. Se, por um lado, nos proferem demandas de escala e peso, simultaneamente nos pregam rasteiras de pormenor e leveza, protegendo os momentos de tensão indómitos à sua natureza — como num fulgurante golpe de ilusionismo em que tentamos encontrar o segredo evidente para o equilíbrio e a luz.

A verdade é que detém em si a volatilidade de um apagão. Num momento abrem-se os olhos e existe um novo universo, microcosmos flutuantes em ambientes íntimos — ora na penumbra, ora sob a incidência lumínica — com caminhos impossíveis e passagens secretas que nos embalam por entre sequências narrativas de arabescos tridimensionais e danças geométricas de elementos aparentemente imóveis. Somos reduzidos à escala de habitantes das próprias esculturas, por elas percorrendo túneis, palcos de pequenos teatros e piscinas flutuantes, estranhos lagos e palácios desertos — de ferro, e cor e ar. Através das escadas que frequentemente nos desequilibram, sem lugar de partida ou de chegada, sonhamos como Jacob e viajamos para longe — nós dizemos «muito longe», mas o zulu profere uma palavra-frase que significa: «O lugar onde alguém grita: “Mãe, estou perdido!”»3 E a matéria responde-nos, apesar da sua mudez.

Alberto Giacometti, O Nariz, 1947.

1 LARKIN, Philip, última estrofe do poema «Church Going», Collected Poems, Faber and Faber, 1988.

2 UD-DIN ATTAR, Farid, A Conferência dos Pássaros, Marcador, 2013.

3 BUBER, Martin, Eu e Tu, Paulinas, 2014.

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Walkaraound Time, Merce Cunningham, 1968. Cenário com objectos construídos por Jasper Johns a partir de Marcel Duchamp. [Stage set with objects made by Jasper Johns and based on artworks by Marcel Duchamp.]

those moments of tension that are inherent to their nature — like a dazzling sleight of hand in which we try to find the evident secret for balance and light. In fact, it holds in itself the volatility of a blackout. Suddenly, the eyes open and there is a new universe, floating microcosms in intimate surroundings — now in semi-darkness, now under the light — with impossible paths and secret passages that carry us through narrative sequences of three-dimensional arabesques and geometric dances of seemingly immobile elements. We find ourselves reduced to the scale of inhabitants of the sculptures themselves: in them, we run through tunnels, stages of tiny theatres and floating pools, strange lakes and deserted palaces — of iron, colour and air. Through the flights of stairs that often cause us to lose our balance, without a place of departure or arrival, we dream like Jacob and travel far away — we say “far away”, but the Zulus have a word-sentence that means: “The place where someone shouts: ‘Mother, I am lost!’ ”3 And matter replies to us, in spite of its muteness.

Rui Matos’ sculptures are portals, silent maps of abysses and blind alleys that levitate gracefully in their immensity. They do not look for real paths or answers to the secret of their motion-thirsty ingeniousness. Rust and iron contemplate the whitewashed look of plaster and see their infancy — and the truth unveils! That sculptural transparence reveals itself before us and becomes one, evident, sensitive, concrete — like the river’s water that washes the pebbles over which it flows. They generously share their body with our own, and only on windy days whisper among themselves the weight of matter — the divine image4.

3 BUBER, Martin, Eu e Tu, Paulinas, 2014.

4 BLAKE, William, Canções de Inocência e de Experiência, Assírio & Alvim, 2009.

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Lisbon, October 2022

A DIVINA IMAGEM

Crueza traz um Cor Humano

E o Ciúme Humana Face Terror, Divina Forma Humana E o Segredo, Humano Traje

É Humano Traje, forjado Ferro É Humana Forma, ígnea Forja. É Humana Face, Forno selado É Humana Cor, faminta Gorja.

As esculturas de Rui Matos são portais, mapas silenciosos de precipícios e becos sem saída que levitam graciosamente na sua imensidão. Não procuram caminhos reais nem respostas para o segredo do seu engenho sedento de movimento. A ferrugem e o ferro olham para a cal do gesso e vêm a sua infância — e a verdade urge! Essa transparência escultórica revela-se ao nosso encontro e torna-se una, evidente, sensível, concreta — como a água do rio que lava as pedras que o acompanham. Partilham generosamente o seu corpo com o nosso e apenas em dias de vento murmuram entre si o peso da matéria — a imagem divina4.

Xilogravura de William Blake para Songs of Innocence and of Experience, 1789. [Print by William Blake for Songs of Innocence and of Experience, 1789.]

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Lisboa, Outubro de 2022 BLAKE, William, Canções de Inocência e de Experiência, Assírio & Alvim, 2009. William Blake, Canções de Inocência e de Experiência, tradução de Jorge Vaz de Carvalho, Assírio & Alvim, 2009
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Em «This New Art: to Draw in Space», texto em que Rosalind Krauss aborda o trabalho de Julio González, a autora escreve a dado trecho: «one’s feeling that ritual or other kinds of repeated forms have their source of meaning in some long since forgotten referent from which the forms derived but which they no longer in any way resemble, only adds to the suggestive resonance of these forms. Their quality as coded vehicles of repetition is what gives them their aesthetic authority. They have a purely formulaic rather than a mimetic relation to their referents».1

Este excerto inclui-se numa problematização da cópia no campo da produção artística, partindo de exemplos do recurso continuado a padrões já afastados de um qualquer referente natural. Através dos processos de cópia, demasiadas vezes relegados para segundo plano em favor de um discurso que valorizaria o original e irrepetível, R. Krauss aponta a uma negação simultânea da arte enquanto mimesis e enquanto «projecção da imaginação ou do espírito», ou seja, sustenta a possibilidade de uma produção artística nem representativa, nem abstracta. Neste texto, além de uma desmistificação da persistência romântica dos efeitos da arte, essa atenção serve também ao enquadramento da proposta de Julio González de «desenho no espaço», que a autora discute a partir da alusão às constelações. Defendendo então que apenas um adquirido cultural de longa duração, uma «repetição cultural», pode permitir a definição de uma figura que de modo algum é imediatamente identificável.

Ora, esta problematização em torno da prática escultórica de Julio González abre uma via para a discussão do trabalho de Rui Matos. Não como uma continuação ou jogo de influências a partir da genealogia de autores que aí apresenta, de González a Anthony Caro, passando por David Smith. De resto, mesmo o método de trabalho de Julio González descrito por R. Krauss, pela chegada a um grau de abstracção que resulta também da tradução do desenho à tridimensionalidade, não é verificável a partir desta exposição. Subsistem, no entanto, alguns pontos em comum. Em parte, da produção mais recente de Rui Matos pode apontar-se a um modo de abordagem ao trabalho em ferro enquanto desenho, tendencialmente planificado, o que é sugerido igualmente pela sua colocação no espaço expositivo, na vertical e na parede. Sendo que, nestes casos, diversas peças realizadas desde 2017 podem estabelecer esse contacto com o delinear de

1 Krauss, R., «This New Art: to Draw in Space», in The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge, Londres: The MIT Press, 1986, p. 125.

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Cut and Continuity

A NDRÉ S ILVEIRA

At a certain point in “This New Art: to Draw in Space”, a text on the work of Julio González, Rosalind Krauss writes: “one’s feeling that ritual or other kinds of repeated forms have their source of meaning in some long since forgotten referent from which the forms derived but which they no longer in any way resemble, only adds to the suggestive resonance of these forms. Their quality as coded vehicles of repetition is what gives them their aesthetic authority. They have a purely formulaic rather than a mimetic relation to their referents.”1

This excerpt is part of a reflection on copying in the artistic production field that takes its starting-point from a number of instances of the continued use of patterns that are already quite distant from any natural referent. Krauss uses the processes of copying, all too often relegated to the sidelines in order to favour a discourse supposedly focused on originality and uniqueness, to suggest a negation of art as both mimesis and “projection of imagination or spirit”; in other words, she supports the possibility of an artistic production that is neither representational nor abstract. In her text, besides demystifying the romantic persistence of art’s effects, that argument also acts as a framing device for Julio González’s concept of “drawing in space”, which Krauss approaches by referring to his “constellations”. According to her, only a long-term cultural given, a “cultural repetition”, can allow the definition of a figure that is in no way readily identifiable.

1 Krauss, R., “This New Art: to Draw in Space”, in The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths . Cambridge, Londo n: The MIT Press, 1986, p. 125.

Now, this reflection on Julio González’s sculpture can provide a standpoint from which to consider Rui Matos’ work, even though it is more than just an extension of, or play on, the influences it presents, such as González, Anthony Caro and David Smith, among others. Actually, not even Julio González’s working method, as described by Krauss, is observable in this exhibition, given its achievement of a degree of abstraction that also derives from the conversion of drawings into three-dimensional forms. Some common points do subsist, nonetheless. Certain of Rui Matos’ more recent works show signs of an approach to work in iron as drawing, somewhat by design, which is also suggested by their being vertically displayed on the wall. In such cases, several Untitled pieces, which began appearing in 2017, can be seen as manifestations of the tracing of figures from constellations via the demarcation of spaces or areas in the composition that either

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figuras a partir de constelações pela marcação de espaços ou zonas da composição que ajudam à sua delimitação ou as pontuam. Contudo, mais do que a esta proximidade, que aliás se poderia estender, por exemplo, à resolução de noções de profundidade e ao modo como estas evidenciam a diferença entre o desenho e a escultura, é talvez naquela ideia de «veículo codificado de repetição» que se pode encontrar uma das persistências ao longo do trabalho de Rui Matos. Discernível entre os diferentes materiais a que recorre, independentemente das soluções específicas que cada um suscita.

Ao longo da sua obra há um conjunto de recorrências formais que dão lugar a objectos situados algures naquele espaço conceptual definido por Krauss como não sendo nem mimético, nem abstracto. E se há casos em que um referente parece ser identificável, como o da barca solar de Primeira Ilha, um objecto reminiscente de um navio acaba por encontrar definições diferenciadas noutras esculturas, afastando-se progressivamente de um nexo imediato entre significante e significado. Trata-se portanto de objectos cuja familiaridade é suficiente para que se espolete um jogo de identificação, sem que seja possível fixá-la definitivamente. Esta abertura pode assim resultar de uma depuração formal enquadrável a partir de dois processos que não se excluem mutuamente. De um lado, aquela repetição cultural, a que se pode aludir eventualmente a partir da noção de síntese progressiva, conferindo-lhe uma historicidade que permite a chegada a formas que participem de algo como um arquivo ou memória visual colectiva capaz de estabelecer uma certa familiaridade com os objectos. De outro lado, partindo do título de uma peça de Rui Matos de 2017, As Mãos Habituaram-se a Fazer Todos os Dias os Mesmos Gestos, uma prática continuada, constante, em que esse nem mimético, nem abstracto resulta precisamente de uma repetição que permite a sucessiva decomposição e reelaboração das formas.

Porém, não é apenas aí que se verifica uma persistência ao longo de parte do trabalho de Rui Matos. Em casos como Histórias Incompletas, Cenas da Vida Privada ou mesmo as ardósias da série Órgãos e Artefactos, encontra-se uma continuidade que a passagem do trabalho em pedra para o ferro parece interromper numa primeira tomada de vistas. Tal tem que ver com o modo como diversas peças, independentemente do material ou da sua disposição final, parecem delimitar muito claramente o espaço de trabalho. É certo que, inicialmente, a contenção desse espaço resulta dos limites impostos pelos blocos de pedra. Todavia, a sua recomposição apenas é possível por estes se manterem sensíveis na conformação final de cada peça. Já no caso da escultura em ferro, como em Perdido na Viagem de Regresso, há como que um emolduramento ou definição exterior do volume onde serão depois dispostos os objectos ou notados os pontos de tensão. Aqui, os objectos apresentam-se geralmente numa escala em que figuras que sugeririam tamanhos diferenciados, do monumental ao microscópico, acabam por assumir uma mesma dimensão. De certo modo,

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help their spatial delimitation or punctuate them. However, rather than these proximities, which actually could extend to, for instance, to the way depth-related issues are solved and how they highlight the difference between drawing and sculpture, that notion of a “coded vehicle of repetition” is perhaps one of the main constants in Rui Matos’ work, recognisable in the various materials he employs, regardless of the specific approaches each one of them inspires.

Throughout his work, we find a set of formal recurrences that lead to the creation of objects placed somewhere in that conceptual space which Krauss defined as neither mimetic nor abstract. While there are cases in which a referent seems identifiable, like the solar barque of Primeira Ilha, this object, evocative of a ship, eventually finds different definitions in other sculptures, progressively distancing itself from an immediate connection between signifier and signified. These are, then, objects whose familiarity is enough to trigger an identification game, though one that will never have a definitive conclusion. This opening can, consequently, be the result of a formal depuration contained between two processes that are not mutually exclusive. On one side, there is that cultural repetition, which can eventually be suggested through the notion of progressive synthesis, lending it a historicity that allows it to arrive at forms that are a part of something like an archive or collective visual memory, and thus generate a level of familiarity with the objects. On the other, as it is apparently implied in the title of a 2017 piece by Rui Matos, As Mãos Habituaram-se a Fazer Todos os Dias os Mesmos Gestos [The Hands Have Grown Used to Making the Same Gestures Every Day], a continued and constant practice, in which the creation of something neither mimetic nor abstract is precisely due to a repetition that allows the decomposition and re-elaboration of forms.

However, that is not the sole moment in Rui Matos’ work in which a persistence is observed. Such pieces as Histórias Incompletas, Cenas da Vida Privada and even the slates in the Órgãos e Artefactos series display a continuity that the transition from stone to iron appears at first glance to interrupt. That has to do with the way several pieces, irrespective of their material or final arrangement, appear to quite clearly delimit the work space. Of course, that delimitation initially stems from the limits imposed by the stone blocks themselves. However, the recomposition of the work space brought about by the stone only occurs because those limits have remained noticeable. In the case of the iron sculptures, such as Perdido na Viagem de Regresso, there is a sort of framing or definition from the outside of the volume in which the objects will be arranged, or points of tension will be marked. As for the objects, they are generally presented in a scale in which figures that would suggest differentiated sizes, ranging from monumental to microscopic, end up taking on the same dimension. In a way, and resorting to another title of a piece by Rui Matos, to define a Campo de Actuação [Field of Action] also implies that everything found in

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recuperando o título de uma outra peça de Rui Matos, a determinação de um Campo de Actuação implica igualmente que tudo o que aí se encontra obedece ao estabelecimento de uma escala única, que, por sua vez, corresponde à demarcação de um espaço de trabalho capaz de ser abarcado pelo autor.

Mas essa organização interna do enquadramento de cada trabalho permite traçar ainda uma outra recorrência. Em Palácio às Quatro da Manhã, peça que remete para uma outra com o mesmo título, de Alberto Giacometti, datada de 1932, há um objecto pendurado na zona central em que o jogo entre o interior e exterior mostra de que modo este é composto. Ora, nas peças que vimos referindo, em que há uma definição clara da volumetria, em caixa, aquela disposição apenas é possível mostrando simultaneamente a estrutura que suporta os objectos. O que não implica que, noutros casos, obras como Contra a Natureza ou Oiço Cair o Tempo efectuem já um jogo de contradição entre o peso do metal e o seu equilíbrio, que apenas pode ser conseguido artificialmente. Algo que vai suceder também no conjunto de obras pintadas a óleo, em que a tinta perturba a percepção dos volumes, camuflando-os ou intensificando-os. Nestes últimos casos, o jogo com a envolvente é já menos determinante do que sucede com outras propostas elencadas, ainda que se encontre aí uma proximidade com a restante obra de Rui Matos. Uma das mais evidentes, podendo inclusivamente relacionar-se com a tal apetência para a delimitação, pode referir-se a partir de Águas Profundas, onde uma linha horizontal traça a divisão entre dois mundos ou espaços diferenciados. Mas esta fronteira não implica uma incomunicabilidade, como é bastante claro em Sequência dos Dias, pontuada por aberturas, passagens ou zonas de contacto apenas perceptíveis a partir da circulação em seu torno. Neste sentido, tanto Sequência dos Dias, como as restantes peças em ferro já mencionadas, mesmo as de parede, dependem de uma recomposição a que seria impossível aceder numa única tomada de vistas. O que permite estabelecer ainda uma outra relação com a ideia de uma linha do horizonte que não só define os limites espaciais a que podemos aceder visualmente, como é continuamente redefinida, implicando a reconstrução mental entre o espaço já percorrido e não mais visível e aquele a que se acede a cada momento. Assim, para lá daquela dissolução e reorganização decorrente do processo de repetição a que se procurou aludir no início deste texto, a aparência paradoxal do título da exposição, entre a continuidade implicada por uma temporalidade sequencial e os cortes de que depende o exercício da memória, acaba por ver confirmada a sua exactidão.

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that same space obeys the establishment of a single scale, which in turn amounts to the establishment of a work space that can be encompassed by the artist.

But that internal organisation of the framing of each work also reveals another recurrence. In Palácio às Quatro da Manhã [The Palace at 4 a.m.], a piece evocative of another work with the same title, created by Alberto Giacometti in 1932, an object hangs at the centre, indicating how the play between the interior and the exterior evolves. Now, in some of the pieces we have so far referenced, more precisely those that have a clearly defined, box-like volumetry, that arrangement is only possible when the structure holding the objects is simultaneously displayed. However, that does not imply that, in other instances, such works as Contra a Natureza or Oiço Cair o Tempo are not already carrying out a contradictory play between the weight of the material and its balance, something that can only be achieved by artificial means. That is also observable in the set of oil-painted pieces, where the paint disturbs our perception of the volumes by either camouflaging or enhancing them.

In these instances, the interaction with the surroundings plays a less determinant role than is the case with other already listed pieces, even though they too share some similarities with the rest of Rui Matos’ œuvre. One of the most evident, which may even be connected to the aforementioned tendency to delimitation, can be found in Águas Profundas, where a horizontal line separates two differentiated worlds or spaces. However, this borderline does not imply incommunicability, as proved by Sequência dos Dias, a piece punctuated by openings, passages or contact zones that are only noticed when the viewer walks around it. In this sense, Sequência dos Dias and all the other already mentioned iron pieces, even the wall-mounted ones, rely on a recomposition process that can not be completed in a single view. This creates one further connection with the notion of a horizon line that not only defines the spatial limits to which visual access can be granted, but is also continually redefined, demanding a mental reconstruction between the already covered, no longer visible space and the one that is being progressively revealed to our eyes. Therefore, beyond a dissolution and reorganisation process resulting from the repetition process that was alluded to at the beginning of this text, the seemingly paradoxical title of this exhibition, somewhere between the continuity implied in sequential temporality and the cuts the exercise of memory entails, eventually has its exactitude vindicated.

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Rui Matos

Nasceu em Lisboa, em 1959. Vive e trabalha em Portugal, próximo de Sintra. Nos anos 1980 frequentou o curso de Escultura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian em 1993.

Born in Lisbon, in 1959. Lives and works in Portugal, near Sintra. Studied Sculpture at ESBAL, Lisbon, during the 1980s. Was a Calouste Gulbenkian Foundation grantee in 1993.

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1987

Órgãos e Artefactos, Galeria de São Bento, Lisboa.

Órgãos e Artefactos, Palácio da Cidadela, Cascais.

Uma Estranha Natureza, Lagar de Azeite do Marquês de Pombal, Oeiras.

1989

Mediterrâneo [com Isabel Augusta], Cooperativa Árvore, Porto.

Primeira Ilha, Galeria de Colares.

1991

Escultura [com Isabel Augusta], Centro Cultural de São Lourenço, Almancil.

Enormidade, Sequência e Naufrágio, Galeria Carvalho Araújo, Braga.

1992

Escultura, Arco – Galeria Municipal de Arte, Faro.

1993

1994

Simpósio de Escultura em Pedra, Chaves.

I Simpósio de Escultura em Pedra de Pêro Pinheiro, Espelho de Água, Lisboa.

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Atelier do Bom Sucesso, 1987. Enormidade, Sequência e Naufrágio, 1991. Máscara, 1992.

1995

Escultura, Giefarte, Lisboa. 1996

IV Simpósio Internacional de Escultura de Durbach, Alemanha.

1997

«O Jardim das Esculturas», I Simpósio de Escultura em Barro, Aveiro.

2000

Escultura, Galeria Enes, Lisboa. Escultura em Área de Serviço da SHELL na CREL – Norte. Fonte pública na Igreja do Mártir Santo, Vila Franca de Xira. Projecto do arquitecto Cândido Chuva Gomes.

2001

Novas Esculturas em Ardósia, Giefarte, Lisboa.

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Giefarte, 1995. Área de Serviço na CREL, 2000. Giefarte, 2001.

2002

Escultura Mural, Hotel Vila Rica, Lisboa.

Escultura, Escola Básica 2-3, Terrugem, Sintra.

I Simpósio de Escultura em Pedra, Alfândega da Fé.

IX Simpósio Internacional de Escultura em Pedra, Caldas da Rainha.

Escultura – Boca do Inferno, Boca do Inferno, Estrada do Guincho, Cascais.

2003

Monumento à Água, Escola Secundária de São Pedro do Sul.

Escultura ao Poeta João Roiz de Castelo-Branco, Parque dos Poetas, Oeiras.

Quatro Escultores, Caminho da Fonte Velha, Belver. Projecto dos arquitectos Vítor Mestre e Sofia Aleixo.

2004

III Simpósio de Escultura em Pedra, Alfândega da Fé.

2005

Objectos de Memória (esculturas em bronze), Giefarte, Lisboa.

Transformações – Relatos Incertos, Galeria Cubic, Lisboa.

Portão da Barbacã do Castelo de Portalegre. Projecto do arquitecto Cândido Chuva Gomes.

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Hotel Vila Rica, Lisboa, 2002. Boca do Inferno, Estrada do Guincho, Cascais, 2002. Portão da Barbacã do Castelo de Portalegre, 2005.

2006

Escultura, Colégio de São Sebastião – Câmara Municipal de Portalegre.

Escultura, FCT-UNL, Campus da Caparica.

2007

Histórias Incompletas, Galeria Cubic, Lisboa.

Escultura, Centro Cultural São Lourenço, Almancil.

Sequência, Galeria Arthobler, Porto.

Escultura, Hotel Crown Plaza, Macau.

Esculturas, Obrisol, Alverca.

III Simpósio de Escultura de Penafiel

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Colégio de São Sebastião, Portalegre, 2006. Histórias Incompletas, Galeria Cubic, Lisboa, 2007. Histórias Incompletas, Galeria Cubic, Lisboa, 2007.

2008

2009

Simpósio de Escultura do Seixal

A Pele das Coisas, Teatro Camões, Lisboa.

I Simpósio de Escultura de Gaia Monumento à Revolta dos Marinheiros de 1936, Almada.

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Seixal, 2008. Teatro Camões, Lisboa, 2009. Teatro Camões, Lisboa, 2009.
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Monumento à Revolta dos Marinheiros de 1936, atelier, 2009. Monumento à Revolta dos Marinheiros de 1936, atelier, 2009. Monumento à Revolta dos Marinheiros de 1936, Almada, 2009.

2010

Transformo-me Naquilo que Toco, Giefarte, Lisboa.

2011

Escultura, Centro Cultural São Lourenço, Almancil.

2012

Escultura, Teatro das Figuras, Faro.

Escultura, Claustros do Museu de Alberto Sampaio, Guimarães.

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Giefarte, Lisboa, 2010. Museu de Alberto Sampaio, Guimarães, 2012. Museu de Alberto Sampaio, Guimarães, 2012.

(por dentro), Fundação Portuguesa das Comunicações, 2014.

(por dentro), Fundação Portuguesa das Comunicações, 2014.

(por dentro), Fundação Portuguesa das Comunicações, 2014.

2014

(por dentro), Fundação Portuguesa das Comunicações, Lisboa.

Por Dentro, Por Fora [com Vítor Ribeiro], Galeria Municipal de Matosinhos.

Pensar Outra Escala, FCT-UNL, Campus da Caparica.

O Visionário [com Rui Cunha Viana], Galeria Monumental, Lisboa.

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2015

Transmutações, Sá da Costa, Lisboa.

O Tempo, os Lugares, a Memória, a Fortuna dos Dias, MU.SA Sintra.

Transmutações, Sá da Costa, 2015.

Transmutações, Sá da Costa, 2015.

2016

Corpo e Escrita, Teatro-Cine, Pombal.

Corpo e Escrita, Pombal, 2016.

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Caminho de Expansão, MU.SA, Sintra, 2018.

2018

Ciclo Acções Estéticas Quase Instantâneas, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto. Caminho de Expansão, MU.SA, Sintra.

Qualquer saída da lógica da linguagem pode ser a entrada num dicionário revelador, Sá da Costa — Espaço Camões, Lisboa.

As figuras dos sonhos estão mais próximo de mim, Espaço T, Porto.

O Luar da Montanha / Suavemente Ilumina / O Ladrão de Flores, CAE, Figueira da Foz.

Suspensão e Dependência, Salão Belas Artes, Belém, Lisboa.

Perdido na Viagem de Regresso, Galeria Municipal, Torres Vedras.

Histórias de Outras Idades, Convento do Espírito Santo, Loulé.

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Sá da Costa — Espaço Camões, Lisboa, 2018. CAE, Figueira da Foz, 2018. Convento do Espírito Santo, Loulé, 2018.

Colégio das Artes, Coimbra, 2019.

Colégio das Artes, Coimbra, 2019.

Centro Cultural de Cascais, 2019.

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2019

Fora de um Mapa Conhecido, Colégio das Artes, Coimbra.

Através da Superfície, Centro Cultural de Cascais.

Art Meets Industry, Workshop de escultura na Ducker Company, Kunstverein [professor convidado].

2021

Simpósio de Escultura em Ardósia, Valongo.

2022

Caminho. A Reconstrução da Memória, Palácio da Galeria, Tavira.

Crisálida, Porta 14, Lisboa.

121
Palácio da Galeria, Tavira, 2022. O artista no seu atelier.

Para a Maria da Graça Carmona e Costa que acompanhou o meu trabalho desde sempre

To Maria da Graça Carmona e Costa who has accompanied my work from the beginning

EXPOSIÇÃO | EXHIBITION

Curadoria [ Curator ] Manuel Costa Cabral Apoio à curadoria [ Assistant curators ] Rui Matos, Teresa Costa Cabral

Coordenação executiva [ Executive coordinator ] Rui Penedo (SNBA) Secretariado [ Secretariat ] Fátima Carvalho, Helena Reynaud (SNBA)

Produção [ Production ] Teresa Costa Cabral, António Costa Cabral — arquitecto [ architect ] Marta Poppe — fotógrafa [ photographer ] Catarina Chaves, Maria Teixeira Simões, Matilde Sambado (SNBA) Sistema Solar — design gráfico [ graphic design ]

Montagem [ Setup ] Rui Matos, Lucrezia Bracci Ivo Geada, Júlio Geada, Paulo Vinagre (SNBA) Apoio à montagem [ Setup assistance ] Edite Gonçalves, Manuela Pinheiro (SNBA)

Patrocinadores

[ Sponsors ] Fundação Carmona e Costa Herdade do Monte da Ribeira SNBA

Este livro foi publicado por ocasião da exposição «A Sequência dos Dias», de Rui Matos, realizada na Sociedade Nacional de Belas-Artes (Rua Barata Salgueiro 36, Lisboa) com o apoio da Fundação Carmona e Costa, de 8 de Setembro a 15 de Outubro de 2022.

This book was published on the occasion of Rui Matos’ exhibition “A Sequência dos Dias”, held at Sociedade Nacional de Belas-Artes (Rua Barata Salgueiro 36, Lisbon), with the support of the Fundação Carmona e Costa, from September 8 to October 15, 2022 .

LIVRO | BOOK

textos e imagens [ texts and images ] © Rui Matos, 2022 textos [ texts ] © André Silveira, Eva Mendes

© Fundação Carmona e Costa Rua Soeiro Pereira Gomes 1, 1600-207 Lisboa

© Sistema Solar Crl (Documenta) Rua Passos Manuel 67 B, 1150-258 Lisboa

ISBN 978-989-568-048-1 Novembro | November, 2022

Fotografias [ Photograph s ]: Rui Matos, Marta Poppe [pp. 46-47, 50-51, 68-69, 72-73, 86-87] Tradução [ Translation ]: José Gabriel Flores Design gráfico [ Graphic design ]: Manuel Rosa Revisão [ Proofreadin g ]: Helena Roldão

Depósito legal [ Legal deposi t ]: 508109/22 Impressão e acabamento [ Printing and bindin g ]: ACDPrint, SA Rua Marquesa d’Alorna, 25-19 2620-271 Ramada

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