Tomás Maia e André Maranha, «Scena»

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Desta edição única de Scena (para duas vozes), de Tomás Maia e André Maranha, fez-se uma tiragem especial de 100 exemplares numerados de 1/100 a 100/100, assinados pelos autores e acompanhados de um DVD que reproduz o filme.

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SCEN A PARA DUAS VOZES


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SCENA PARA DUAS VOZES

D O C U M E N TA


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Os textos e as imagens deste livro reportam-se a Scena (para duas vozes) cuja ficha tĂŠcnica figura no final.


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Ă?NDICE

Vozes Partitura Imagens Notas

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Vo z e s


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[…] — Não devia? Mas eu não o quis, filho, ainda que bastante cansada, sabes, e com tanta necessidade de descansar dos demasiados males desta minha vida demasiado longa, […] longa além de todas as previsões das minhas muitas dores… Aconteceu! Não a quis. Para ti não a quis e para todos os outros, mas mais para ti[,] que[, sei-o,] justamente pedias que o meu coração te acompanhasse nesta ânsia angustiante pelo teu filho que combate lá em cima… E acompanhou-te, filho, o meu coração, e talvez por isto, também… Não, não, que tens tu que ver com isto? Ele não pode, velho, correr demasiado como devia atrás da tua ânsia, e parou… Mas melhor para mim assim, melhor, acredita. Por ti o digo, para que tu encontres nisto um conforto para a dor da minha morte. Não podia descansar; vê o meu corpo ao que se reduziu? A alma, sim… essa! Mas também o coração, sabes?, ainda que tão cansado de bater… também esse, dentro, era aquele de antes, tendo dentro ainda toda, toda a sua vida, mas até a infância, sabes?, toda a minha vida, também com os jogos que fazíamos, pequena, com os meus irmãos mais pequenos, e todos os rostos e aspectos das coisas de então, tão vivas, mas tão vivas no sentido que tinha então a vida para mim, que tantas vezes esta vida depois me pareceu um sonho que ronda e não 11


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aquela já longínqua e no entanto tão presente aqui, no meu coração. [Ah!] Porque a vida, filho, tu sabes, nós damo-la aos filhos para que eles a vivam e contentamo-nos se algo, ainda que indirectamente, venha até nós; mas já não nos parece nossa; a nossa, para nós, dentro, mantém-se sempre aquela que não demos mas que nos foi dada, por sua vez; aquela que, por mais que no tempo se alongue, ainda mantém dentro sempre o primeiro sabor de infância e o rosto e os cuidados da nossa mãe e do nosso pai e a casa de então como eles a haviam feito para nós… Tu podes sabê-lo, que vida foi esta a minha, pois tantas vezes te falei dela; mas outra coisa é vivê-la, filho, uma vida… [Meneando a cabeça e os olhos brilhando vivos do frémito interno das recordações.] — E a minha!… Foi bem triste, primeiro… As tiranias… Os Bourbons… Aos treze anos, com a minha mãe, os meus irmãos, as minhas irmãs, uma ainda mais pequena do que eu e ainda dois irmãos mais pequenos, nós oito e no entanto tão sozinhos, por mar, numa grande barca de pesca, uma tartana, em direcção ao desconhecido. Malta… O meu pai […] estava lá, no exílio. E talvez então eu não pudesse entendê-lo, não entendia toda a dor do meu pai. O exílio — fazer chorar tanto uma mãe, e o pavor, e tirar a tantas crianças a casa, as brincadeiras, o conforto — queria dizer isto; mas também aquela viagem por mar queria dizer, com a grande vela branca da tartana que se agitava alegre ao vento, alta alta no céu, como que a apontar as estrelas, e nada senão mar à volta, de um azul tão escuro que quase parecia negro; e o pavor, ainda, de olhá-lo; mas também aquele infantil orgulho da desventura que faz dizer a uma criança vestida 12


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de preto: — «Eu estou de luto, sabes?» — como se fosse um privilégio sobre as outras crianças não vestidas de preto; e também a ânsia de tantas coisas novas para ver, que esperávamos ver com tais olhos fixos fixos que por ora não vêem nada, excepto a mãe que chora no meio dos dois filhos mais velhos que sabem e compreendem, eles sim… e então nós pequenos, as coisas para ver além, no desconhecido, pensamos que talvez não fossem belas. Mas a ilha de Gozo, primeiro… Malta depois… belas! […] Belas de ver as coisas, se não fosse a mãe que continuava a chorar. E depois em breve devíamos também compreender, nós os pequenos, deixar de ser pequenos em breve. […] Quando […] eu conheci pela primeira vez o vosso pai, […] tinha já vinte e sete anos e não queria mais casar-me; calhou-me casar porque ele o quis, ele que podia impor-se ao meu coração com a sua bela pessoa e além do mais, naqueles ardentes anos, com o ânimo que vocês filhos lhe conhecem, pelo qual ainda, velho, se regozija e se comove como uma criança por cada acto que faz aumentar a honra da pátria. Com este ânimo e com o meu, a vida que vos demos, meus filhos, nos tempos inertes e surdos que se seguiram, não podia ser alegre; bem o sei! E sei, agora, a tua pena, filho, que talvez seja a mesma que a mim, mulher, tanto me fez arder na alma: de não poder fazer e de ver fazer os outros aquilo que nós tínhamos querido fazer e que para nós teria sido nada, enquanto que nos parece muito e muito nos faz sofrer que sejam outros a fazê-lo… Mas olha, é por isso mesmo que vim, meu filho, para te dizer isto: que a tenhas querido, esta guerra, 13


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contra tantos que não a queriam, e sabias que se pouco te teria custado sacrificar nela a tua vida, tanto, demasiado pelo contrário te teria custado o único risco da vida do teu filho. [E quiseste-a.] Tu pagas, portanto, com sofrimentos mais do que se tivesses partido… Isso chega-te. E que Deus poupe o teu filho! Eu tinha querido, mesmo sofrendo, durar ainda até à vitória. Mas paciência! Não renunciei a uma dor; terei perdido uma alegria, pois a vitória é certa. Basta que para mim reste o teu pai a vê-la. Vocês, de resto, tu que estiveste sempre longe de mim, tão longe, pensem em mim ainda viva! Não estarei talvez sempre viva, para ti? — [Oh] Mãe, sim! — [digo-lhe.] — Viva, viva, sim… mas não é isso. Eu poderei ainda, se por piedade me tivesse sido escondido, poderei ainda ignorar o facto da tua morte e imaginar-te, como te imagino, viva ainda aí, sentada nesse cadeirão do teu habitual cantinho, pequena, com os netinhos à volta, ou ocupada ainda com alguns afazeres familiares. Poderei continuar a imaginar-te assim, com uma realidade de vida que não poderia ser maior: aquela mesma realidade de vida que durante tantos anos, de tão longe, te dei sabendo-te realmente sentada ali naquele teu cantinho. Mas eu choro por outra coisa, mãe! Eu choro porque tu, mãe, tu não podes mais dar-me uma realidade. Desabou para mim, para a minha realidade, um sustento, um conforto. Quando tu estavas sentada ali naquele teu cantinho, eu dizia: — «Se ela lá longe pensa em mim, eu estou vivo para ela.» [—] E isto sustentava-me, confortava-me. Agora que tu estás morta, eu não digo que não estás mais viva para mim; tu estás viva, viva como eras, com a mesma realidade que durante tantos anos te dei de longe, pensando-te, sem ver o teu corpo, e viva sempre estarás enquanto eu estiver vivo; mas vês? É isto, é isto, que eu, agora, não 14


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estou mais vivo, não estarei vivo para ti nunca mais! Porque tu não podes mais pensar-me como eu te penso, tu não podes mais ouvir-me como eu te ouço! É mesmo por isto, mãe, mesmo por isto que aqueles que se julgam vivos julgam também chorar os seus mortos e choram ao invés uma morte sua, uma realidade sua que já não existe no sentimento daqueles que partiram. Tu tê-la-ás sempre, sempre, no meu sentimento: eu, mãe, pelo contrário, nunca mais a terei em ti. Tu estás aqui; tu falaste-me: estás mesmo viva aqui, vejo-te, vejo a tua testa, os teus olhos, a tua boca, as tuas mãos; vejo o enrugar da tua testa, o bater dos teus olhos, o sorriso da tua boca, o gesto das tuas pobres pequenas mãos ofendidas, e ouço-te falar, falar verdadeiramente as tuas palavras, porque és diante de mim uma realidade verdadeira, viva e soprante; mas que sou eu, que sou ainda eu, agora, para ti? Nada. Tu és e serás para sempre a minha mãe; mas eu? Eu, filho, fui e não sou mais, não serei mais… […] [Ouço dentro, mas como que de longe, a sua voz que me suspira:] — Olha para as coisas também com os olhos daqueles que já não as vêem! Haverá aí uma mágoa, filho, que as tornará mais sagradas e mais belas. Extracto de Colloquio con la madre, de Luigi Pirandello (in Colloquii coi personaggi II, publicado pela primeira vez no Giornale di Sicilia, a 11-12 de Setembro de 1915). Os parênteses rectos indicam as mínimas alterações — em geral omissões — que fizemos ao texto.

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Pa r t i t u r a


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[Prelúdio]

Plano branco, mudo, 10 segundos. Lenta formação da imagem. Vindo do branco, o branco de um tecido. 10 segundos aproximadamente. Plano muito aproximado, cobrindo um campo de 30 por 40 centímetros de linho impregnado de água, sem pregas, apenas moderadamente tenso e quase translúcido, trespassado por uma luz intensa. Discreta oscilação do tecido por acção do vento que o enfuna. Por instantes mostra mesmo uma tensão côncava, para aí estabilizar. Mais ténue ainda uma vibração que, a espaços, se propaga como onda através da superfície, percutida algures por mãos que por ora nos são negadas. Mudo, 60 segundos. Desvanecimento até ao branco inicial. 10 segundos.

[Acto primeiro ou de montar a tenda]

Lenta formação da imagem, vinda do branco, 10 segundos, aproximadamente. Plano dito americano, fixo, tomado a uma 19


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distância não inferior a cinco metros (distância focal equivalente a 150 mm no formato 35 mm). Eixo do plano perfeitamente horizontal e à altura de um metro e vinte e cinco centímetros. Preto-e-branco. Do mesmo modo todos os sons deverão atingir a sua intensidade máxima ao fim de 15 segundos. Visível e preenchendo a totalidade do enquadramento, um estendal de roupa. Dois cabos de aço paralelos afastados um metro, aproximadamente, e dispostos perpendicularmente ao eixo da tomada de vista. Profundidade de campo aferida para um intervalo de um metro também como os cabos, mas deslocado cerca de 20 centímetros na direcção da tomada de vista. Os cabos deverão encontrar-se dispostos a um metro e setenta e cinco centímetros de altura e rasam o limite superior do enquadramento. Suspenso no cabo mais próximo e do lado esquerdo, ocupando um terço do enquadramento, um lençol branco ainda por esticar. No cabo mais distante, também do lado esquerdo, um lençol, branco também como o primeiro, já convenientemente estendido e visível apenas por detrás deste porque preenche a quase totalidade do lado esquerdo do enquadramento. Do lado direito e simetricamente outro lençol, como os demais branco e em pano de linho molhado, o que se torna perceptível na translucidez e no peso. Uma fresta de cinquenta centímetros entre os dois lençóis mais recuados deixa entrever a paisagem. Um descampado de orografia pouco assinalável, prolongando-se num céu densa20


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mente nublado que afecta as sombras de indefinição. Sombras cinza a cinza-escuro, aflorando o negro apenas. Presente desde que a imagem se começou a formar, de pé, as costas voltadas, uma figura de mulher ainda jovem. Inscrita entre os dois cabos do estendal, ocupada a esticar o lençol da direita, o braço direito elevando-se, com a mão à altura do cabo, um pouco acima da cabeça. O esquerdo, segurando entre o braço e o antebraço um volume de roupa branca, mantendo no entanto a mão esquerda livre para agarrar o bordo do lençol mais abaixo, à altura do colo. A fresta entre lençóis estará então no seu menor grau de abertura — não deve exceder os cinco centímetros — quando o pano se encontrar enfim perfeitamente estendido. Isto para que se entreabra doravante apenas pela acção do vento. 30 segundos. Discreto movimento descendente da cabeça, perceptível a partir da nuca, reorientando o eixo da sua atenção da mão sobre o cabo para um horizonte agora velado. Os braços também, movimento descendente, até encontrarem a posição de repouso junto ao corpo. Breve pausa, 5 segundos. Rotação do corpo, 180 graus. A cabeça antecipando sempre a rotação do corpo em cerca de 45 graus. Rosto de face, pela primeira vez. Os olhos convergem para um ponto situado sensivelmente a um metro e sessenta e cinco centímetros de altura e afastado não menos de cinco metros. Cinquenta centímetros 21


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medidos para a esquerda do lugar ocupado pela câmara. Breve pausa, 5 segundos. Movimento de rotação dos olhos, declinado verticalmente a partir do ponto anterior, doravante chamado ponto cego, detendo-se antes mesmo de intersectar o chão. Uns dez graus aproximadamente. A íris deve tanger agora a pálpebra inferior, como antes a superior. Cinco segundos. Imobilidade do rosto à excepção de uma discreta dilatação que se esboça nos lábios e da contracção ínfima das pálpebras — infinitamente aquém do sorriso —, enquanto, nas suas órbitas, os olhos retomam o horizonte próximo inicial. 10 segundos. Retoma o trabalho. Desta vez no cabo mais próximo, à frente, por onde faz passar o volume de roupa que até aí segurara no braço esquerdo, um lençol como os outros, junto ao limite direito do enquadramento. Por momentos está parcialmente oculta pelo pano que pende franzido. O terço direito sensivelmente. É daí, após afastar o lençol para a direita até ficar totalmente fora de campo, que voltando a dirigir o olhar para o ponto cego, profere «— Non dovevo? Ma io non l’ho voluto, figlio, benché tanto stanca, lo sai, e con tanto bisogno di riposare dal troppo male di questa mia vita troppo lunga, lunga oltre ogni previsione dei miei tanti dolori…»

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Breve pausa. Rotação do corpo em direcção ao lençol ainda por esticar, no lado esquerdo. Desdobra-o, com gestos fluentes, alternando a direcção do olhar entre a superfície do lençol, que estende minuciosamente, e o ponto cego, enquanto profere «… È venuta! Non la volevo. Per te non la volevo e per tutti gli altri, ma più per te che, lo so, giustamente domandavi che il mio cuore t’accompagnasse in quest’ansia angosciosa per il tuo figliuolo che combatte lassù… E t’ha accompagnato, figlio, il mio cuore, e forse per questo, anche… No, no, che c’entri tu? Non ha potuto lui, vecchio, correr troppo come doveva dietro alla tua ansia, e s’è fermato… Ma meglio per me così, meglio, credi. Per te lo dico, perché tu trovi in questo un conforto al dolore per la mia morte. Non potevo riposare; vedi il mio corpo com’era ridotto? L’anima, sì… quella! ma anche il cuore, sai? benché così stanco di battere… anch’esso, dentro, era quello di prima, con dentro ancora tutta, tutta la sua vita, ma pure l’infanzia, sai? tutta la mia vita, anche coi giuochi che facevo, piccola, coi miei piccoli fratelli, e tutti i visi e gli aspetti delle cose d’allora, così vivi, ma così vivi nel senso che aveva allora la vita per me, che tante volte questa vita di poi m’è sembrata un sogno d’attorno, e non quella già lontana e pur così presente qui, nel mio cuore.» Interrompe a tarefa para voltar a fixar o ponto cego e proferir «… Eh! perché la vita, figlio, tu lo sai, noi la diamo ai figli perché la vivano loro e ci contentiamo se qualche cosa ancora di riflesso ne venga a noi; ma non ci sembra più nostra; la nostra, per noi, dentro, resta sempre quella che non demmo ma che ci 23


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fu data, a nostra volta; quella che, per quanto nel tempo s’allunghi, serba dentro pur sempre il primo sapore d’infanzia e il volto e le cure della mamma nostra e di nostro padre e la casa d’allora com’essi la avevano fatta per noi…» O terceiro lençol encontra-se agora estendido. Rotação do corpo até ficar de perfil, dirige o olhar para o lado direito, indiciando o lençol fora de campo, enquanto pronuncia «Tu puoi saperlo, quale fu questa mia vita, perché tante volte io te ne parlai; ma altro è viverla, figlio, una vita…» Silêncio, 30 segundos, desloca o lençol da direita para dentro de campo. Começa a estendê-lo exactamente no mesmo instante em que a voz retoma. «— E la mia!… fu pur triste, dapprima… La tirannide… I Borboni…» — os mesmos gestos, como anteriormente alternando a direcção do olhar entre o lençol e o ponto cego — «A tredici anni, con mia madre, i miei fratelli, le mie sorelle, una anche più piccola di me ed anche due fratellini più piccoli, noi otto e pur così soli, per mare, in una grossa barca da pesca, una tartana, verso l’ignoto. Malta… Mio padre era là, in esilio. E forse allora io non potevo intenderlo, non l’intendevo tutto il dolore di mio padre. L’esilio — far piangere così una mamma, e lo sgomento, e togliere a tanti bambini la casa, i giuochi, l’agiatezza — voleva dir questo; ma anche quel viaggio per mare voleva dire, …» Aqui, a palavra quebra-se até ao limite afásico; «… con la gran vela bianca della tartana che sbatteva allegra nel vento, alta 24


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alta nel cielo, come a segnar con la punta le stelle, e nient’altro che mare intorno, così turchino che quasi pareva nero; …», lentamente proferida, nenhum gesto, visível apenas o lençol branco que oculta o corpo dela por completo. Ressurgimento do corpo por detrás do lençol retomando a fluidez inicial; «… e lo sgomento, ancora, a guardarlo; ma anche quell’infantile orgoglio della sventura che fa dire a un bimbo vestito di nero: — «Io sono a lutto, sai?» — come se fosse un privilegio sopra gli altri bimbi non vestiti di nero; e anche l’ansia di tante cose nuove da vedere, che ci aspettavamo di vedere con certi occhi fissi fissi che per ora non vedono nulla, fuorché la mamma là che piange tra i due figli maggiori che sanno e capiscono, loro sì… e allora noi piccoli, le cose da vedere di là, nell’ignoto, pensiamo che forse non saranno belle. Ma l’isola di Gozzo, prima… poi Malta… belle! Belle da vedere le cose, se non ci fosse la mamma qua che séguita a piangere. E poi presto dovemmo capire anche noi piccoli, non più piccoli presto.» Pausa, 30 segundos. Os dois lençóis dianteiros estarão agora estendidos, sendo visíveis ainda algumas pregas. Nova translação do corpo para o limite esquerdo do enquadramento, dando início aos cuidados com o desfazer das pregas. Gestos secos, de uma precisão quase mecânica, a partir do bordo do lençol, da esquerda para a direita, até ao respectivo limite de campo, para de novo retomar, 10 centímetros mais abaixo, sempre segundo linhas horizontais — é, a todos os títulos, de uma escrita ou, talvez melhor, de uma leitura 25


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que se trata —, deixando atrás de si um rasto branco liso que acompanha a proferição. «Quando io conobbi per la prima volta vostro padre, avevo già ventisette anni e non volevo più sposare; mi toccò sposare perché lui lo volle, lui che poteva imporsi al mio cuore con la bella persona e più, in quei fervidi anni, con l’animo che voi figliuoli gli conoscete, per cui ancora, vecchio, esulta e si commuove come un bambino per ogni atto che accresca onore alla patria. Con quest’animo e col mio, la vita che vi abbiamo data, figliuoli miei, nei tempi inerti e sordi che sono seguiti, non poteva esser lieta; lo so! E la so, ora, la tua pena, figlio, che forse è la stessa che a me, donna, mi bruciò tanto nell’anima: di non poter fare e di veder fare agli altri quello che avremmo voluto far noi e che per noi sarebbe stato niente, mentre ci par tanto e tanto ci fa soffrire, che lo facciano gli altri…» Pausa, 5 segundos. Roupa enfim perfeitamente estendida (a tenda montada). Não mais deverá ser tocada. A água que a embebe, essa, continuará a evaporar-se. Reposicionamento do corpo junto da fresta entre os lençóis dianteiros, antes de fazer ouvir — «Ma ecco, per questo appunto io sono venuta, figlio mio, per dirti questo: che tu l’hai voluta questa guerra, contro tanti che non la volevano, e lo sapevi che se poco ti sarebbe costato sacrificare in essa la tua vita, tanto, troppo invece ti sarebbe costato il solo rischio di quella del tuo figliuolo. E l’hai voluta. Tu paghi, dunque, di sofferenze più che se fossi andato… Ti basti. E Dio risparmi il tuo figliuolo! Avrei voluto, pur soffrendo, durare ancora fino alla vittoria. Ma pazienza! Non ho rinunziato a un dolore; avrò perduto una 26


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gioja, poiché la vittoria è certa. Mi basta che per me rimanga a vederla tuo padre. Voi, del resto, tu che mi sei stato sempre lontano, così da lontano, pensatemi ancora viva! Non sono forse viva sempre per te?»

[Entreacto]

Imobilidade, 20 segundos. Discreta rotação do corpo dela, uns 15 graus para a esquerda, a mão esquerda encontra apoio na anca. Breve pausa durante a qual uma inspiração mais profunda dá agora ao torso uma verticalidade quase hierática. A mão direita vem pender sobre o ventre, ligeiramente encurvada para o interior. Lenta rotação do rosto, os olhos, afectados por uma ínfima contracção das pálpebras, perscrutando o descampado num movimento panorâmico, sempre segundo a linha do horizonte e da esquerda para a direita. 20 segundos.

[Acto segundo ou da escuta do lamento]

É no instante em que o movimento panorâmico dos olhos cruza o ponto que foi até agora o eixo intermitente da sua atenção, que, vinda de fora de campo, se faz ouvir uma voz mascu27


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lina: «— Oh Mamma, sì! — Viva, viva, sì… ma non è questo!» A rotação panorâmica prossegue imperturbável até atingir o limite direito, anunciado pelo declinar das pálpebras superiores, para daí, lentamente, sem que a configuração das pálpebras se altere, mas dissipado qualquer vestígio de crispação, voltar a dirigir o olhar para a vertical do ponto cego, fazendo-o pousar desta vez mais abaixo, a 1 metro de altura apenas. «Io potrei ancora, se per pietà mi fosse stato nascosto, potrei ancora ignorare il fatto della tua morte e immaginarti, come t’immagino, viva ancora laggiù, seduta su codesto seggiolone nel tuo solito cantuccio, piccola, coi nipotini attorno, o intenta ancora a qualche cura familiare. Potrei seguitare a immaginarti così, con una realtà di vita che non potrebbe esser maggiore: quella stessa realtà di vita che per tanti anni, così da lontano, t’ho data sapendoti realmente seduta là in quel tuo cantuccio. Ma io piango per altro, Mamma! Io piango perché tu, Mamma, tu non puoi più dare a me una realtà. È caduto a me, alla mia realtà, un sostegno, un conforto. Quando tu stavi seduta laggiù in quel tuo cantuccio, io dicevo: — “Se Ella da lontano mi pensa, io sono vivo per lei”. — E questo mi sosteneva, mi confortava. Ora che tu sei morta, io non dico che non sei più viva per me; tu sei viva, viva com’eri, con la stessa realtà che per tanti anni t’ho data da lontano, pensandoti, senza vedere il tuo corpo, e viva sempre sarai finché io sarò vivo; ma vedi? è questo, è questo, che io, ora, non sono più vivo, e non sarò più vivo per te mai più!» A imobilidade que acompanha todo o lamento acentua-se, até o vento parece ter serenado. «Perché tu non puoi più pen28


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sarmi com’io ti penso, tu non puoi più sentirmi com’io ti sento! E ben per questo, Mamma, ben per questo quelli che ci credono vivi credono anche di piangere i loro morti e piangono invece una loro morte, una loro realtà che non è più nel sentimento di quelli che se ne sono andati. Tu l’avrai sempre, sempre, nel sentimento mio: io, Mamma, invece, non l’avrò più in te. Tu sei qui; tu m’hai parlato: sei proprio viva qui, ti vedo, vedo la tua fronte, i tuoi occhi, la tua bocca, le tue mani; vedo il corrugarsi della tua fronte, il battere dei tuoi occhi, il sorriso della tua bocca, il gesto delle tue povere piccole mani offese, e ti sento parlare, parlare veramente le parole tue, perché sei qui davanti a me una realtà vera, viva e spirante; ma che sono io, che sono più io, ora, per te? Nulla. Tu sei e sarai per sempre la Mamma mia; ma io? io, figlio, fui e non sono più, non sarò più…» Pausa, 15 segundos.

[Acto terceiro ou da expulsão]

Corte. Plano aproximado tomado do mesmo ponto de vista. Visível apenas a cabeça dela, entre o topo e as clavículas, na posição em que a havíamos deixado. Rotação do rosto, 10 graus medidos para a direita, até que se encontre perfeitamente frontal. Rotação síncrona dos olhos, 10 graus para a esquerda, de tal forma que o olhar nunca se chega a desviar do ponto que o faz convergir. 15 segundos. 29


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Ruído de passos arrastados sobre terra e vegetação rasteira e lento movimento de convergência do olhar acompanhando a translação do ponto na sua direcção, até se deter a apenas 50 centímetros. Declinação do olhar, parcialmente acompanhado por movimento da cabeça, para se interromper a apenas 50 centímetros do solo, junto aos seus pés. Pausa, 5 segundos. Movimento de câmara descendente, varrendo todo corpo. Rosto, colo, torso… Ao nível do ventre inicia gesto descendente da mão direita, que acompanha o movimento do plano. Ancas, coxas, pernas — ocultadas pelo pano da saia, única tenda visível agora — … Até se deter sobre um rosto de homem. Por terra, meia-idade aparente, a nuca apoiada contra as pernas dela, sensivelmente à altura do joelho. A face de escorço, voltada para o alto e os olhos fechados, descida sobre eles toda a extensão das pálpebras superiores. A mão dela detém-se finalmente sobre a fronte dele. Sobre os olhos, justamente, ainda que sem os tocar. Paira a uma distância de 5 centímetros, com a palma côncava voltada para baixo formando uma calote cuja sombra — a sombra mais densa que nos foi dado a ver até agora, a única sombra — se projecta sobre os olhos. Pausa, 5 segundos. A mão retoma o movimento, quase horizontal desta vez. Lento ao extremo, mas sem hesitação alguma. A sombra, natu30


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ralmente, acompanha-a destapando os olhos que do mesmo gesto se descerram, as pálpebras superiores seguindo rigorosamente o limite entre sombra e luz. Escutamos a voz dela, por uma última vez: «— Guarda le cose anche con gli occhi di quelli che non le vedono più! Ne avrai un rammarico, figlio, che te le renderà più sacre e più belle.» O movimento da mão prossegue até sair de campo. Discretíssimo reorientar da face no sentido da câmara, mas já a imagem se desvanece em direcção ao branco. 10 segundos.

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1. Ele disse à mãe: não choro por tu estares morta mas porque eu, filho, enquanto viver, estarei morto para ti. A mãe fê-lo ver que a vida é assim mesmo, sem sacrifício nem ressurreição: os mortos estão vivos para os vivos, e os vivos mortos para os mortos. É um diálogo irreconciliável — ao filho restava fazer-se à vida. Ela calou-se para sempre. 2. A menina dos seus olhos: a mãe vagando ao fundo. O filho vagindo à saída. É o êxodo, e o deserto: querer a alguém como à menina dos seus olhos — querê-lo sempre, não querê-lo nunca. Um vazio contornável em tudo o que se vê. «Mãe» é a ronda da tenda; o ponto cego do filho. 3. Chorar: diluir os contornos, transbordar esse vazio. 4. Cena absoluta: ela nunca entrou em cena. (Ela sai. Luz branca.) 49


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5. A Madonna del Parto, em Monterchi. A feição da passagem — antes de ter piedade, de conceder misericórdia, antes de dar alimento, ela é só «mãe». Sem atributos. Ténue, a sua feição indica: demorai-vos na passagem de virgem a mãe, acampai num descampado e esperai por alguém vindo fora de campo. E vede, vede o que é anterior a qualquer passado e posterior a qualquer futuro: está rente ao campo e está fora de campo — para onde os meus olhos convergem. É a feição da passagem: um ar arcaico e fresco, a macieza e o amortecimento de quem está a criar. Vede: eu mesma não sou ninguém, sou a reserva da dádiva, o que é impassível no que passa. Acabai com a personificação disto. Vivei antes de mim. (Antes de ter piedade, de conceder misericórdia, antes de dar alimento, ela é só «mãe». Talvez seja assim preferível o título contido numa antífona do século XVIII: Aspettazione del parto. Inexpressividade do antes, do ante partum.) 6. Viver, ouvi-la ainda dizer: depois de mim, vivei antes de mim. 7. A Madonna del Parto dá-nos o entreacto do filme: o plano em que a palavra passa — em silêncio — da mãe para o filho. No plano anterior, finda a montagem da tenda, a mãe perguntou: Non sono forse viva sempre per te? No plano seguinte, a mãe contemplando o descampado, responderá o filho: — Oh 50


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Mamma, sì! […] — Viva, viva, sì… Mas o plano em silêncio não os reconcilia (não a ressuscita e não o sacrifica). Entre um e outro acto está a Madonna del Parto: eis o instante da pintura, a insurreição luminosa de um corpo desaparecido. Eis o instante que o cinema retarda. (A pintura foi sempre um pensamento visual do entreacto, o cinema um pensamento visual da relação entre dois actos. O primeiro surgiu no intervalo das representações, o segundo na articulação do irrepresentável. Scena pensa a pintura como latência do cinema e o cinema como intermitência da pintura.) 8. A passagem de virgem a mãe é o “sujeito” da arte. (Que não é portanto um sujeito, alguém que se supõe, mas a passagem inidentificável em cada “alguém”.) E é assim que a arte não tem morada e interdita a idolatria: é uma tenda vazia que se monta e desmonta em qualquer lugar (subitamente tornado num descampado). É uma demora no deserto, um acampamento. «Cena», skene, significa tenda. O espaço anterior e posterior às representações; o espaço subtraído ao ver no âmago do lugar destinado ao acto de ver. O espaço onde se desnuda um sujeito que não representa, por um momento, nenhum papel. Antes da Madonna, profere-se a vida dela — que não se representa; depois da Madonna, ouve-se o lamento dele — que não se apresenta. Entre um e outro acto, a morta dá à luz (primeiro em silêncio, depois pela palavra). O artista é um enlutado da mãe: criou a skene porque a «cena primitiva» é realmente impossível — ou impossivelmente real. 51


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9. Scena é a «cena primitiva» enquanto derradeira. Os artistas são uma espécie de crianças apocalípticas: vêem tudo, indiferentemente, pela primeira e última vez. 10. Só há duas idades na vida: antes e depois da morte da mãe. (Todas as outras divisões etárias ou são sociáveis ou falsas.) Há quem viva só antes; é a criança de idade avançada. Há quem viva só depois; é o velho prematuro. Há quem viva antes e depois — com a vida dividida ao meio. É o filho da meia-idade parada. E há quem viva, enfim, quem tente viver nesse intervalo (no seio da cesura): é a «criança de cabelos cinza» (Hölderlin). (O artista. Aquele que aceita — e não aceita — a morte imemorial da mãe.) 11. Desde a epopeia que à mãe bastou um gesto com a mão — além do lamento e da cobertura de pó — para instituir o luto civilizado: fechar as pálpebras do filho que morre. Na tragédia, esse gesto não é simplesmente contado: é mostrado — e nas Fenícias precede-lhe a prece do filho: Polinices, moribundo, pede a Jocasta para que esta evite a morte natural (animal). Uma cena que mostre um tal gesto (além do lamento e da cobertura de pó) não é, em rigor, ou não é como outras, uma cena trágica: é, ela mesma, o pôr-em-cena que é o trágico (com a importância crescente da skene em detrimento da orchestra). Encenação da morte e da ressurreição da criança divina (Dio52


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niso): assim se eleva a ideia de arte entre a mãe e o filho (que nasceu duas vezes). Retemos essa ideia de arte tentando arrancá-la do mito (dionisíaco). Resta-nos isto: é o filho que está enlutado da mãe, e esta intima-o a renascer. Simultaneamente com um longo gesto de mão, descerrando-lhe as pálpebras, e com a última palavra — a mais seca: — Guarda le cose anche con gli occhi di quelli che non le vedono più! Ne avrai un rammarico, figlio, che te le renderà più sacre e più belle. Depois, o filho não se levanta conquanto não esteja jacente (ele não está morto, mas apenas morto para ela). O filme termina secamente com as pálpebras descerradas do filho. 12. Ele sabe que está apenas de visita ao lugar impossível de habitar, ao lugar materno. É dele o lamento e não dela: … Perché tu non puoi più pensarmi com’io ti penso, tu non puoi più sentirmi com’io ti sento! Etc., etc. Ele sabe que não lhe pode tomar o lugar, e, diante da tenda, comparece para ouvir a declaração do seu segundo nascimento. Ele deveria portanto saber, ficar a saber, que esse lugar não existe — o lugar do regresso —, da mesma maneira que não se entra em nenhum lugar: apenas se sai do precedente. Que existir é sair (exire). Êxodo impermanente. 13. Quando se ouve dizer (suspirar): Olha para as coisas também com os olhos daqueles que já não as vêem!, não se pode ver si53


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multaneamente os olhos de quem o diz (o suspira). Não se pode mostrar a direcção desse olhar nem o objecto em que se fixa. Esses olhos já estão fora de campo. Ver também com os olhos de quem já não vê, é isso: deixar que a mão morta nos assombre: que ela passe sobre a nossa fronte e nos descerre as pálpebras. Mas o filho jamais vê, ou revê, com os olhos da mãe a vida desta (seria incestuoso — e mórbido). 14. Mãe morta, mãe morta vai abrir aquela porta (é a cantilena do filho toda a vida). 15. A mão que nos assombra não toca na fronte do filho. Apenas passa sobre, demoradamente sobre (enquanto a mãe profere a última palavra). Mas há um intervalo intransponível entre a mão morta e a fronte viva. É nesse intervalo que se desenha a única sombra, ela mesma difusa, de um filme todo difuso (sem fonte de luz dirigida, sem recorte de sombras projectadas). A mão mantém-se curva e tensa até ao descerrar das pálpebras, lembrando o gesto das duas Virgem dos Rochedos. Mas a mão não atrai nem retrai a fronte do filho. Ela simplesmente contém o intervalo de passagem. É assim que ela expulsa o filho definitivamente. Contém o intervalo e desaparece.

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16. O fim é seco porque irreparável. Apesar da tenda e do descampado, não pode haver identificação do filho com Moisés (o «sacado» das águas). Continuamente vemos os lençóis a secar. Se o primeiro acto é a montagem da tenda e o segundo a contemplação do descampado, há porém um acto contínuo do princípio ao fim: a secagem da roupa — interrompida pela secura da palavra materna. E da mesma maneira que ao primeiro e segundo actos corresponde uma só voz (respectivamente da mãe e do filho), ao acto contínuo corresponde um abafado baixo contínuo: o vento nos lençóis. As águas, aqui, evaporam-se com o ar; o nascimento transparece com a última palavra. É uma proferição contra o vento. É o corte. 17. O gesto de estender a roupa (distraído e mesmo mecânico) não se distingue do gesto, atento e meditado, de montar a tenda. É o mesmo gesto, o íntimo todo exterior, o segredo mantido secreto à vista de todos. Ela, intenta ancora a qualche cura familiare. 18. Quando concebemos que ela morre, nascemos pela segunda vez.

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19. Ela veio para lhe dar a senha dos mortos mais límpida e necessária — porque dita como se fora ninguém. Ela veio para lhe dar a palavra — e ele tornou-se escritor. 20. Doravante, ei-lo na posição de pedir a palavra. Em rigor, não se trata da palavra «que pode ressuscitar os mortos» (como é dito no filme Ordet) mas daquela que torna os mortos vivos para os vivos. É a palavra-passe entre mortos e vivos — que o geniu trespassa. 21. Todos os que ouviram uma cantilena e gaguejaram um pedido, todos os que obedeceram a um ditado e escreveram como quem escuta e escutaram como quem escreve, todos eles são escriturários de uma morta: transcreveram escrupulosamente a sua música, traduziram a sua voz morta para uma língua viva, a voz que se tornou morta quando acabaram de nascer, a que nos deixa a boca ardente, a boca angélica, uma chaga que não chega a falar, quando muito obrigando-nos a um gesto mecânico, reflexo inato da mão morta, procurando no escuro, tacteando a fronte caída sem lhe tocar — sem nunca lhe tocar mas, na iminência do toque, começando justamente a escrever. (Essa mesma voz morta vital, que cada escritor murmura, é a poesia — não necessariamente o género poético. A poesia faz ouvir numa língua viva a voz morta à nascença.) 56


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Só assim se pode começar: com uma palavra que não se possui, com a palavra que nos é dada e retirada no instante de ser escrita/escutada. Se Scena é também a cena do nascimento de um escritor, o corte designa o instante do respeito absoluto (a mãe dá-lhe e corta-lhe a palavra). A última palavra dela é a perpétua primeira palavra não dita por ele. O respeito elementar de Scena é então o de não acrescentar nada a essa palavra, é o de passar a palavra a quem a ouvirá em silêncio. 22. Escritura: escrita-escuta de uma palavra transmitida involuntariamente entre um morto e um vivo. Cessação do direito de escrever, início do dever-escrever. (Só neste sentido, que é o sentido mesmo da escritura [sagrada], o filho — o escritor — pode evocar Moisés.) 23. Os transmissores dessa palavra eram os anjos (proféticos), «esses seres que não possuem nem a linguagem humana nem o verbo divino, mas que, à maneira da criança póstuma esquecida em nós, cantam e choram mais do que falam. […] É isso uma língua de anjo: muda, anunciadora e siderante.» (Françoise Proust) Os dois anjos de Monterchi não abrem a boca: abrem a tenda, de par em par, da Madonna del Parto. Nós dispensámo-los; restam-nos dois lençóis para encenar a palavra alada.

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24. A poesia é a memória inata (Mnemósina) da criança póstuma esquecida em nós. (Vê também com os olhos dos que já não vêem: faz ver o que não se vê. Tal é a ideia da poesia.) 25. «A sombra é uma obscuridade infinita que pode ser reduzida ao infinito.» (Leonardo da Vinci) 26. «A sombra primitiva é aquela que está pegada aos corpos sombrios. »A sombra derivada é aquela que se separa dos corpos sombrios e viaja através do ar. »A sombra repercutida é aquela que envolve uma superfície iluminada. »A sombra simples é aquela que não vê nenhuma parte da luz que a produz.» (Leonardo da Vinci) A sombra da mão morta só pode ser «derivada» (com a palma voltada para o chão). 27. «As luzes que iluminam os corpos opacos são de quatro espécies: universais, como a da atmosfera contida no nosso horizonte; particulares como a do sol, de uma janela ou de uma porta, ou de qualquer outro espaço; a terceira é a luz reflectida. Há ainda uma quarta, que atravessa as matérias transparentes como a tela, o papel e outras semelhantes, excepto aquelas que 58


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têm a diafaneidade do vidro ou do cristal ou outros corpos similares, dando a impressão de que nada se interpõe entre o corpo na sombra e a luz que o ilumina.» (Leonardo da Vinci) A luz de Scena só pode ser «universal»: luz visível com «tempo nublado ou brumoso», «luz universal do ar» (idem). (O corpo que vai dar à luz, em Scena, já se retirou.) Vislumbra-se no entanto, em torno da tenda, um halo da «quarta» luz — coada, enquanto os lençóis não secam. 28. Só o preto-e-branco se ajusta infinitamente à obscuridade infinita, ao corpo opaco hierático, à tenda translúcida — à proferição contra o vento. Toda a gradação da certeza diáfana de ser ainda, de amar ainda e de escutar ainda os que já morreram. 29. O grito abafado de um anjo em cada escritura. 30. Três indicações mímicas. Em geral, a mímica materna define-se por uma indeterminação funcional (estender a roupa/montar a tenda) e uma fluidez gestual. Há, porém, três excepções em que os gestos são predeterminados pelas palavras — proferidas ou escutadas. Uma primeira vez, os seus braços tornam-se lânguidos e a proferição abranda, quando diz: L’esilio — far piangere così una mamma, e lo sgomento, e togliere a tanti bambini la casa, i giuochi, l’agiatezza — voleva dir questo… A partir daqui, as mãos 59


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paralisam-se, pousando sobre um dos lençóis, e a palavra quebra-se até ao limite afásico: … ma anche quel viaggio per mare voleva dire, con la gran vela bianca della tartana che sbatteva allegra nel vento, alta alta nel cielo, come a segnar con la punta le stelle, e nient’altro che mare intorno, così turchino che quasi pareva nero… Os gestos e as palavras só voltam à sua fluidez inicial quando se acrescenta, subitamente: … e lo sgomento, ancora, a guardarlo. Esta paralisia, esta afasia, embora passageiras, indiciam uma certa atopia que a tenda veio contornar e a palavra nomear: vela bianca della tartana che sbatteva nel vento/lençóis brancos secando ao vento. É a primeira vez que o som articulado converge para a imagem — mas o encontro é atópico; demora impermanente no deserto. Uma segunda vez, os seus olhos cessam de contemplar o descampado e dirigem-se, impassíveis, para o chão enquanto escuta: … vedo il corrugarsi della tua fronte, il battere dei tuoi occhi, il sorriso della tua bocca, il gesto delle tue povere piccole mani offese, e ti sento parlare, parlare veramente le parole tue, perché sei qui davanti a me una realtà vera, viva e spirante… Mas esta ekphrasis não legenda a figura: a mãe voltou a tomar, após o entreacto silencioso, a feição da passagem; e, pela segunda vez, o som articulado converge para a imagem — mas o encontro é diferido (o que vimos não foi descrito, o que se descreve já não vemos). Demora impermanente no deserto. Uma terceira vez (já anotada): a simultaneidade do descerrar as pálpebras e da última palavra materna. Quando o encontro entre som articulado e imagem se dá enfim no presente, aqui e agora, o presente dissipa-se, o filme acaba. 60


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31. Toda a passagem pelo deserto tem lugar na história, mas não pode ser sitiada: ela vem sempre fora de tempo. Só o que vem fora de tempo, o que é extemporâneo, faz história. Tal passagem designa a possibilidade da história. (No deserto do Mojave: «— Já me lembro. — De quê? — Da razão por que comprei o terreno. A mãe disse-me que foi ali que ela e o pai fizeram amor pela primeira vez. — Em Paris, Texas? Ela disse-te isso? — Sim. Então eu disse para comigo que foi ali que eu comecei. Eu, Travis Clay Henderson. Deram-me esse nome. Comecei ali.» Tragédia de Travis [«o mudo»]: sitiar a «cena primitiva». A sua catarse começa quando ele aceitar que o “seu” lote de terreno é inabitável — e mesmo inexistente: é um vazio que passa de geração em geração, um trespasse que cada criança vem encarnar.) 32. Quanto mais a história se aprofunda, mais o ecrã se aplana; quanto mais a vida da mãe se explana, mais a roupa se desdobra. Estendal de uma vida: lençol intermitente a cobrir todo o ecrã (encobrindo a feição da mãe, mas jamais a sua palavra); lençol latente a mostrar toda uma história, La tirannide… I Borboni… (uma vida familiar que se estende a partir de uma data, 1848: «a revolução»). O êxodo como exílio, a terra prometida como território ocupado. É assim que o estendal de uma vida se torna — imperceptivelmente — imaculadamente — no sudário dos republicanos da Sicília. 61


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Entretanto a mãe nunca toma a palavra do povo — mas dos mortos por quem o povo se insurge. 33. É quando vês a luz através do nevoeiro matinal. «Luz universal do ar». É quando ouves o Concerto à memória de um anjo. Lembras-te da anunciação siderante. É quando ficas cego e surdo e mudo. E levantas-te. 34. Não são as crianças que se parecem com os anjos: estes é que foram criados à memória da criança póstuma em nós. 35. Os poetas são anjos caídos, se não mesmo decaídos (demoníacos). Essa é a posição do filho, caído no chão (sem ser um jacente). Sabemo-lo primeiro pela direcção do olhar materno, que acompanha o rastejo do filho (atrás da câmara); confirmamo-lo depois pela trajectória desse mesmo olhar acompanhando o mesmo rastejo (à frente da câmara, até à entrada da tenda). O arrasto do filho só é portanto visto através do olhar da mãe, e a testemunha invisível desse rasto, o terceiro olhar, o da câmara, jamais se pode confundir com os outros dois (embora a testemunha se mantenha ao lado do filho: a câmara é o olhar de um outro filho). Mãe e filho ocupam posições de absoluta desigualdade: ela está em terra firme, a ele ninguém lhe aparou a queda; ela é tanto mais hierática quanto ele é rastejante. Ela podia passar por 62


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Mnemósina — ele lembra-se apenas do dia em que começou a escrever (no dia em que, humildemente, só recebeu a palavra). Mas ambos partilham uma posição de absoluta igualdade: nenhum deles pôde entrar em cena (ela porque já lá estava, ele porque jamais entrará). Scena mostra a retirada da mãe e a expulsão do filho. 36. Fui escrito sem ser escutado; escutei antes de escrever. Como toda a gente, era escriturário antes de nascer. Nunca pude perguntar-me: Quem sou eu? Onde é que comecei?, porque eu não havia decidido começar, porque eu já tinha começado antes de começar — e quando ia recomeçar, na hora da proferição contra o vento, nada escrevi. Quanto mais te escrevo mais me desconheço. 37. Scena esgota todas as declinações de velar (todas as inclinações da mãe). A cada acto corresponde uma veladura. A mãe vela-se (acto de montar a tenda/estender a roupa), vela pelo filho (acto de contemplar o descampado/escutar o lamento), vela o filho (acto de descerrar as pálpebras/proferir contra o vento). (A mãe desvela-se ou revela-se, momentaneamente, no entreacto silencioso da Madonna del Parto.) Parecem constituir os três actos da mãe — de qualquer mãe — mas é apenas um e o mesmo acto contínuo (a secagem da roupa interrompida pela secura da última palavra). Scena esgota-se ou seca-se. 63


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38. Porque é que se contam histórias? Porque à história de amor, donde cada um provém, só se acede por ouvir-dizer. 39. Ele escreve pelo ouvir-dizer (dela). Como no livro do Êxodo, a transmissão é eminentemente oral: ele jamais a pode ver mas acede à boca de cena. A boca eternamente anterior, angelical, autoriza-o a escrever. 40. Ele não é um quê, ele era uma vez… Ele era o que é por transmissão oral. E é disso que as crianças não se esquecem quando afirmam, no presente, aquilo que eram — sem as próprias o terem sido: eu agora era isto, eu agora era aquilo… (Em «era uma vez», o imperfeito do verbo ser adquire «sentido existencial», dizem os linguistas. Serve para situar, no presente, o que nunca teve lugar; reconhece a impossibilidade de sitiar, no presente, o que vem sempre fora de tempo. As crianças lembram-se desse sentido.) Eu agora era escriturário… O grito abafado de um anjo, a boca ardente do filho, o primeiro plano queimado de Scena em contínua, inacabada, “imperfeita” realização. 41. Não são as crianças que dormem como os anjos: estes é que foram criados à imagem da criança velada por nós. 64


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42. A mãe retira-se (recua) após descerrar-lhe as pálpebras. Branco, a pouco e pouco, sobre o corpo caído (decaído) em combustão lenta. A cabeça deste, um pouco soerguida, volta-se então vagarosamente para a testemunha — sem a ver. Branco total. Último plano de Scena (sentido da tragédia): eles não me fizeram; eles inacabaram comigo. 43. Cada escriturário (dos mortos) autentica o chamamento — a convocação moisaica: eu não sei falar disso nem posso; mas essa impossibilidade dita-me o que há a escrever. 44. Porque é que o amor é vocal? Porque o primeiro amor se transmite por ouvir-dizer. O amor é sempre o primeiro. 45. A vocação do filho é a convocação materna (inaudita). 46. Kore Kosmou (escrito hermético, talvez posterior ao século IV) designa Ísis, a deusa egípcia, como «pupila do olho do mundo» (ou a «virgem do mundo»). Do ponto de vista de Deus, se Ísis era a «pupila» do mundo, então o véu da Virgem Maria seria o obturador sobre ela pousado há dois mil anos. 65


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47. A inscrição no templo de Ísis: «Eu sou tudo o que é, que foi e que será, e nenhum mortal levantou o meu véu.» Mas ela mesma, a imortal, podia levantar o seu véu (algumas terracotas greco-egípcias testemunham de um tal culto isíaco). Ísis revela-se enunciando que é impossível ser desvelada por um mortal. Não se pode ver Ísis porque é a abertura que torna visível — abertura que não está portanto para além do visível, mas que o faz simplesmente transparecer. É o mundo a fazer-se luz, ou o mundo a dar-se como luz. (Ísis concebeu sozinha Hórus, o Sol.) 48. O olho de Deus é a vagina de Ísis a parir. (No instante de dar à luz, cada mulher abre o olho divino.) 49. O olho de Deus fecha-se quando um recém-nascido descerra as pálpebras. 50. A transparência do que aparece — a trans-parência —, eis a aparição. 51. Seria possível ver não isto ou aquilo que aparece — mas somente a pupila do mundo (a menina dos nossos olhos)? Claro que não: a pupila, como tal, não é visível: é o que nos permite ver. Mas ela pode tornar-se visível, com o que aparece, 66


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se renunciarmos à câmara “objectiva” e à câmara “subjectiva”. E então vê-se, ou entrevê-se, o que faz aparecer. A trans-parência. A luz que se dá a ver. Que precede e atravessa, suspendendo, toda a aparência. «Devemo-nos servir da câmara para suprimir a câmara.» (Carl Th. Dreyer) Seria possível uma câmara que só desse (à) luz? 52. De acordo com a orientação original da igreja de Santa Maria di Momentana, em Monterchi, o altar que acolhia a Madonna del Parto era iluminado por um óculo frontal (aberto na fachada). Um cone oblíquo de luz atravessava todo o espaço até ao ventre da Virgem. Sobre esse ventre, e à sua volta, não se via porém nenhum dos atributos canónicos do ante partum (a cinta marial e o livro aberto), mas apenas um gesto que mostra e esconde a «pupila do olho do mundo». É esse gesto — único, ao que parece, em toda a «arte cristã» — que suspende a Madonna no seu hieratismo inicial, na sua natureza egípcia (isíaca). O primeiro obturador (o véu do tabernáculo) é entreaberto pela mão direita da Virgem, o segundo (a cortina da tenda) é aberto pelos dois anjos guardiães, e estes são de tal modo simetricamente complementares entre si, quanto à postura e à cor, que se anulam brancamente sob o gesto único que suspende o conjunto. Mas, por fim, o que este gesto mostra/esconde é que o para lá do (duplo) véu se iguala ao para cá: um branco que deveria tornar-se ofuscante aquando da passagem do Sol em frente do óculo. 67


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Um só óculo, quatro paredes, a travessia da luz, um véu abrindo-se sem atributos. Momentaneamente, a câmara da transparência infinita. 53. Restam-nos dois lençóis brancos e a retirada definitiva da mãe. 54. Porque é que o amor é cego? Porque éramos uns escriturários cegos antes de nascer — escutávamos (sem ver) a música inaudita (que tentamos hoje escrever). Em Scena, ele jamais poderá ver a mãe. 55. O amor é anterior à visão, ou é a visão anterior (a menina dos seus olhos). 56. Nas traduções mais cuidadas do Êxodo, há uma nítida distinção entre quem faz o véu (do tabernáculo) e quem faz a cortina (da tenda), sendo o primeiro «obra de artista» (ou de «inventor») e a segunda somente «obra de bordador». O artista ocupar-se-ia da separação interior (a «separação entre o Santo e o Santo dos Santos») e o artífice protegeria a entrada da tenda. Entre as duas obras não há portanto distinção material (ambas são feitas «de púrpura violeta, vermelha e escarlate, e de linho fino retorcido»), embora na primeira devam ser «bordadas 68


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figuras de querubins». Mas mesmo esta diferença ornamental é uma consequência de uma distinção anterior (entre as duas separações): uma distinção meramente espacial — que, todavia, condiciona tudo. É que o véu delimita, interiormente, a exterioridade absoluta — é a «obra de artista»; e a cortina delimita, exteriormente, uma interioridade relativa — é a «obra de bordador». No Êxodo, artistas ou artífices, todos parecem ser homens. Mas a Madonna del Parto, no lugar do homem (do artista), coloca uma mulher, e, no lugar do véu, dispõe o longo vestido azul da Virgem — sem cinta nem livro. A mão de «obra de artista» despojou inteiramente o vestido da mulher (até os querubins dele se desprenderam) enquanto a mão de «obra de artífice» aplicou-se, com virtuosismo, nos motivos florais do pano exterior da tenda (em contraste com o interior vazio, sem placa de ouro, mesa ou candelabro). Ora, se nesse preciso lugar — onde um homem outrora escondeu uma arca — se encontra agora uma mulher que abre frontalmente o seu vestido, então Piero — porventura pela primeira e única vez na «arte cristã», passando do Antigo para o Novo Testamento — terá pintado o «recalcado do Ocidente» (a saber, segundo Pontévia, a Mulher). A arca, que os homens transportam, é o arcano de uma mulher. E não haverá outra «obra de artista» a fazer: não a de «forçar o arcano da natureza» (como escreveu Balzac), mas a de velar por ele — e de o revelar. 57. A arca está vazia e vazia transmite-se de geração em geração. Cada criança (cada «obra de artista») vem encarnar esse vazio. 69


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58. As duas mãos do artista: a materna, que espera apoiada na anca, e a paterna, que entreabre o véu e o resguarda. 59. A testemunha da arca (não a arca do testemunho). Testemunha um vazio e passa o testemunho que faz história (só existe história — tradição — porque existe essa transmissão). Foi assim que se inventou a cena (a teatralidade): não apresentando alguém (em cena) mas inventando a testemunha — «invisível», precisa Dreyer, porque situada fora de cena. É a testemunha que, presente fora de cena, delimita a cena — onde ninguém, em rigor, se apresenta ou se torna presente (a não ser sob o modo temporal do era uma vez…). É sempre um filho que imagina a skene — o lugar da penumbra onde os antepassados se desnudam. 60. Para o texto bíblico, o véu do tabernáculo rasga-se ao meio no instante da morte de Cristo. Para a Madonna del Parto, o véu da Virgem entreabre-se na expectativa do nascimento. Em Scena, a mãe deixa um intervalo entre os dois lençóis porque não sabemos distinguir a morte da nascença. Ou porque só experimentamos a nascença a partir da morte — mas sem qualquer rasgão, sem a mínima dilaceração. O que não significa que não haja dor e mesmo a mais pura das dores. O filho nasce como quem se abre, se entreabre à morte.

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61. Restam-nos dois lençóis (brancos) não porque um corresponda ao pano do tabernáculo e outro ao da tenda — nem porque ambos correspondam aos dois pedaços rasgados do véu. Resta-nos o mínimo necessário para delimitar um espaço oco: um interior aberto à nascença/à morte (uma exterioridade íntima). Bastam dois lençóis, um descampado, uma mãe (que nunca pôde entrar em cena) e um filho (que, no início, está fora de cena). Seguem-se os três actos que põem a mãe (morta) em cena — compondo a invenção da cena: a mãe vela-se, depois vela pelo filho e — por fim — vela o filho (que renasce fora de cena). Acto contínuo de Scena. 62. Como é que os filhos renascem fora de cena? Vendo-se em cena fora de cena (é o theatron, a invenção da arte). 63. «Se nenhuma forma fosse oferecida à sensibilidade, seria pelo menos necessário dar à meditação, à adoração de um objecto invisível uma direcção [Richtung] e uma delimitação [Umgrenzung] cingindo esse objecto — Moisés deu-lhes sob a forma do Santo dos Santos, do Tabernáculo, e ulteriormente do Templo. Pompeio foi apanhado de surpresa quando se aproximou do lugar mais interior do Templo, do centro da adoração e, nele, da raiz do espírito nacional, com a esperança de reconhecer a alma viva desse povo excepcional no seu centro e de aperceber um ser [ou uma essência: Wesen] oferecido à sua meditação, algo que fosse pleno de sentido para ser proposto ao seu respeito: entrando no 71


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segredo [Geheimnis], diante do espectáculo último, sentiu-se mistificado e encontrou o que procurava num espaço vazio. »[…] »O próprio segredo [Das Geheimnis selbst] era inteiramente um estrangeiro, ao qual nenhum homem era iniciado e do qual podia somente depender; e o recolhimento [a clandestinidade ou mesmo o segredo: Verborgenheit] de Deus no Santo dos Santos tem um sentido bem diferente do segredo [Geheimnis] dos deuses de Elêusis. Das imagens, dos sentimentos, do entusiasmo e da adoração em Elêusis, destas manifestações do deus ninguém estava excluído, sendo apenas proibido falar delas pois os deuses seriam profanados pelas palavras; enquanto os Judeus podiam tagarelar à vontade sobre os seus assuntos, as suas actividades ou regras do seu serviço (Deuteronómio, 30) pois isso nada tem de sagrado: o sagrado está eternamente fora deles, eles não o vêem nem o sentem.» (Hegel) 64. A imagem (idolatrada) é essencialmente crística; a palavra (escutada) é essencialmente moisaica. Mas é a proferição: Olha para as coisas também com os olhos daqueles que já não as vêem! — é esta proferição feminina que enuncia a possibilidade da imagem, a impossibilidade da idolatria. 65. O segredo (Geheimnis) da tenda — o segredo que se revela como tenda entreaberta — é inabitual/inabitável (Unheimlich), sem permanência no tempo e sem permanência no espaço. É o primeiro templo (nómada). 72


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66. O segredo é inato: foi-me transmitido antes de eu nascer. O segredo mais interior é-me absolutamente exterior, e é por isso que eu só o revelo quando o meu corpo é absolutamente exterior a mim mesmo. Cada vez que cai sobre mim um voto de silêncio e me desnudo: cada vez que me retiro para a tenda (para a penumbra). 67. O que é que se faz na tenda (entreaberta)? Amor (poesia com alguém), poesia (amor com ninguém). São as duas maneiras de passar o silêncio a outrem, são as duas maneiras de fazer fazer. 68. A mãe é literalmente a boca de cena. O filho, impossibilitado de a ver e tentando dizer o segredo boca-a-boca, é todo ouvidos (é um escriturário). Todo o amor procura a tenda porque o primeiro amor é invisível. 69. O segredo é o esquecido inato (Un-heimlich), e o artista lembra-se disso ou pensa isso quando é convocado por Mnemósina (a mãe das musas). 70. É como se ela vivesse aquém do viver, amasse aquém do amar 73


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e rondasse imóvel a tenda. — É como se tu a visses passar e ligeira fosse o vazio em pessoa. 71. Oh madre! Oh madre… L’aria è quella cosa leggera che ti gira intorno alla testa e diventa più chiara quando ride. (São as derradeiras palavras do santo — do poeta santificado — no filme que Tarkovsky, sob a invocação da Madona del Parto, dedicou à memória de sua mãe. Quando ela se aparta, «luz universal do ar».) 72. O artista (o pintor) ocupa a posição — a deposição — de Ísis: dá à luz (antes de iluminar seja o que for). 73. Ele não acede à primeira imagem. Ele não acede ao que nele mesmo é mais antigo do que ele: o buraco que lhe permite aceder a qualquer imagem. 74. É a mãe que é nado-morta ao ser mãe. A sua morte (biológica) não alteraria nem alterará a necessidade de criação sentida pelo filho (alterando no entanto, decerto, a vida desse mesmo filho). Quando o filho pede a palavra, ela já estava morta, ela sempre esteve e estará morta na palavra do filho. 74


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E ela já estava morta porque com o nascimento do filho (que é simultaneamente o nascimento e a morte da mãe), do filho para o qual toda a sua presença era sonora, nunca mais será possível ouvi-la de viva voz. Daí, talvez, a invenção da máscara: da personagem ressurgindo do Hades; daí, sem dúvida, a invenção da tenda ou da cena: da sombra antepassada que pode tomar a palavra. E passar a palavra a um vivo (por definição, fora de cena). 75. Seria isso a poesia (o fazer nascente, o fazer da arte): a transcrição de uma voz morta. Seria isso o poeta (o fazedor): o escriturário da voz ditada. Mesmo na arte dita muda: o gesto obedecendo a uma intimação inaudita, à convocação materna. Esse é o limite para o qual tende qualquer escriturário. Para lá desse limite, porém, está o ventriloquismo materno: o som da voz antiquíssima surgindo (ressurgindo) agora como que do ventre filial. Para lá desse limite está uma manifestação da psicose: a incorporação sem distância da mãe. Está a voz morta sem máscara, em uníssono, em ventre próprio e em corpo uno impossibilitando a palavra criadora, a escrita (a escritura) de outra história (de algo que faça história). O ventriloquismo materno, como manifestação psicótica, pode conduzir o filho à negação de um outro corpo — isto é, à recusa de ser expulso pelo outro que ele mesmo era — e pode até consumar-se (como no filme de Hitchcock justamente intitulado Psycho) no assassinato de outra mulher. Por isso, a tenda mantém-se inabitável: nem o filho nela entra, nem a mãe permanece no seu interior. A palavra criadora 75


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não se confunde nem com a voz natural do filho, nem com a do ventríloquo materno. Está entre uma e outra, e ecoa na tenda e erra no descampado. 76. O subtítulo de Scena: para duas vozes. (A palavra forma-se, sempre, entre duas vozes.) 77. O artista é simplesmente aquele que recua, à medida que o tempo nele avança, até ao instante nado-morto da mãe. Nem antes nem depois da morte desta (se é verdade que só há duas idades na vida). O artista fica em estado nascente quando a mãe (morta) o intima a renascer. É a verdade do amor, e a ideia da arte.

[durante as filmagens:]

78. Quando renunciámos a filmar no areal do Guincho ou em qualquer descampado, recusámos, no fundo, qualquer identificação do deserto. O lugar materno não existe: finisterra. Ou então: o que é o mar — visto daqui — senão um deserto instante e movediço? 79. Chorar: transbordar o lugar que não existe ou que só existe atravessando o mar. (A mãe vagando ao fundo.) 76


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80. Mas onde foram molhados estes lençóis senão no mar infindo? Acto contínuo de Scena, a secagem da roupa. O ser que se tornou materno — o artista — deixou de chorar como chora uma mãe. [durante a montagem:]

81. O baixo contínuo do mar. Só o emudecimento da mãe — a voz da mãe votada ao silêncio — o pode interromper.

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Obrigado a António Bolota, Edgar Massul, Federico Nicolao, Francisco Tropa, Helena Tavares, Júlia Maranha, Paula Jardim, Pedro Morais, Pedro Tropa e a Rui Gonçalves na edição do DVD.


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SCENA PARA DUAS VOZES

André Maranha e Tomás Maia, 2007-2009 (2.a versão) Mãe Alessandra Salvini Filho Lúcio Lima Voz da mãe Alessandra Salvini Voz do filho Federico Ferrari Texto Extracto de Colloquio con la madre (in Colloquii coi personaggi II) de Luigi Pirandello Suporte HDV, preto-e-branco, 28’ Projecto apoiado por Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, Bazar do Vídeo


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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © TOMÁS MAIA, ANDRÉ MARANHA (2012) NOVEMBRO 2012 ISBN 978-989-8618-24-5 DESENHO DO LIVRO: ANDRÉ MARANHA, MANUEL ROSA REVISÃO: HELENA ROLDÃO DEPÓSITO LEGAL 350611/12 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: DPI CROMOTIPO – ARTES GRÁFICAS, LDA RUA PASSOS MANUEL, 78A-B, 1150-260 LISBOA


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