Sérgio Dias Branco, Por dentro das imagens - excerto

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Sérgio Dias Branco

Sérgio Dias Branco POR DENTRO DAS IMAGENS obras de cinema ideias do cinema

A primeira parte inclui análises a obras de cinema, de filmes isolados a grupos de filmes de cineastas. A segunda parte contém reflexões sobre ideias do cinema, não aquelas desenvolvidas pelos artistas, mas aquelas que emergem da história e prática do cinema e do pensamento que as tenta acompanhar. As duas partes conjugam-se, demonstrando as cisões e intersecções entre a análise fílmica e a reflexão teórica. A experiência de uma obra no presente dá lugar, mais tarde, à consideração dessa experiência passada que se torna presente. De igual modo, as ideias do cinema estão antes e depois da percepção dos filmes e da reflexão sobre eles, num permanente durante.

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POR DENTRO DAS IMAGENS obras de cinema | ideias do cinema

Estas páginas demonstram bem o que sempre me fascinou e continua a fascinar nas imagens em movimento: o modo como pedem para ser analisadas e pensadas dentro do movimento que as anima.

Sérgio Dias Branco POR DENTRO DAS IMAGENS obras de cinema ideias do cinema D O C U M E N TA


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Sérgio Dias Branco é Professor Auxiliar Convidado de Estudos Fílmicos na Universidade de Coimbra, onde coordena os Estudos Fílmicos e da Imagem e dirige o Mestrado em Estudos Artísticos. Integra o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra e o grupo de análise fílmica da Universidade de Oxford, «The Magnifying Class». Leccionou na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Kent, onde lhe foi atribuído o grau de doutor em Estudos Fílmicos. Co-edita as revistas Cinema: Revista de Filosofia e da Imagem em Movimento (http://cjpmi.ifl.pt/) e Conversations: The Journal of Cavellian Studies (https://uottawa.scholarsportal.info/ojs/index.php/conversations). O seu trabalho de investigação sobre a estética das obras da imagem em movimento, nas suas relações com a filosofia, a história, o marxismo, e a religião tem sido apresentado em várias universidades portuguesas e estrangeiras e publicado em revistas com arbitragem científica como a Fata Morgana e a L’Atalante. Mais informações em: www.sdiasbranco.net


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POR DENTRO DAS IMAGENS obras de cinema ideias do cinema


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Sérgio Dias Branco

POR DENTRO DAS IMAGENS obras de cinema ideias do cinema

D O C U M E N TA


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© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © SÉRGIO DIAS BRANCO, 2016 REVISÃO: HELENA ROLDÃO JUNHO 2016 ISBN 978-989-8618-92-4


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Em memória da minha mãe, Maria Helena


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índice

agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . origem dos textos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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parte i: obras de cinema Il postino: A Linha que Fecha a Forma . . . . . . . . . . . . Ossos: Intensidade e Segredo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Morte a Venezia: Morrer Assombrado pela Beleza . . . . Office Killer: O Feminino Plural . . . . . . . . . . . . . . . . Party: Rituais do Indecifrável . . . . . . . . . . . . . . . . . . Boogie Nights: Dança Fúnebre . . . . . . . . . . . . . . . . . . Strange Days: Estranhos Dias . . . . . . . . . . . . . . . . . . Panic Room: A Casa Desabitada . . . . . . . . . . . . . . . . New Rose Hotel: Linhas sobre o Hiper-real . . . . . . . . . Tystnaden: Notas Silenciosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Akira Kurosawa: Entre o Sonho e a Morte . . . . . . . . . Stanley Kubrick: Labirintos e Olhares . . . . . . . . . . . . Michelangelo Antonioni: Il paesaggio. . . . . . . . . . . . .

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parte ii: ideias do cinema A Política dos Autores, Pensar a Nossa Solidão . . . . . Verdade e Mentira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Índice |

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Cinema 1990-99 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cinco Detritos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Cinema Justo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os Sentidos da Cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Banalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Silêncio dos Olhares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Evocação do Medo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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obras mencionadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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| Índice


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agradecimentos

Estou agradecido a quem me convidou (ou levou) a escrever alguns destes textos ao longo dos anos: o João Lopes, a Marta Lança, o Miguel Valverde, a Paula Roque, o Ricardo Gross, e o Francisco Silva. Já passaram alguns anos sobre alguns destes escritos e tomar esse tempo como simples medida não permite medir tudo o que neles aconteceu. Tal como estes textos, tudo isso é, em simultâneo, passado e presente numa aprendizagem sem preço nem possível retribuição. Fica o registo da minha profunda gratidão pela disponibilidade para me irem conhecendo, para acompanharem o meu trabalho e, sobretudo, para a cumplicidade. Fica este livro. A minha esposa, Filipa, acompanhou a escrita de quase todos estes textos e foi muitas vezes a sua primeira leitora — como já se tornou hábito. Que tal prática se tenha tornado regular não quer dizer que eu tenha deixado de lhe dar apreço. Os verdadeiros hábitos são aqueles que permitem a descoberta e a transformação permanentes, são ocasiões para irmos habitando a passagem do tempo. Por isso, não é de estranhar que existam outros hábitos — por exemplo, o modo como ela me foi encorajando a continuar a escrever sobre cinema. Sem este empurrão é provável que aquilo que constitui o miolo deste livro tivesse ficado vagamente na minha cabeça, em vez de ter ganho forma no papel. Deixo a seguir uma lista dos escritos reunidos neste volume para que a sua origem não deixe de ficar registada. Agradecimentos |

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origem dos textos «A Linha que Fecha a Forma». Folha, n.º 7 (1997), p. 4. «Intensidade e Segredo». Folha, n.º 7 (1997), p. 4. «Morrer Assombrado pela Beleza». Xinema, n.º 3 (1998), p. 1. «O Feminino Plural». V-Ludo, n.º 1 (2000), pp. 18-21. «Rituais do Indecifrável». V-Ludo, n.º 3 (2000), pp. 61-65. «Dança Fúnebre». Para Festa V-Ludo. Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), 16 Fev. 2001. «Estranhos Dias». Para Festa V-Ludo. ISCTE, 16 Fev. 2001. «A Casa Desabitada». Para Arquitectura e Vida (2002). [inédito] «New Rose Hotel: Linhas sobre o Hiper-real». Para o ciclo «Os Sentidos da Cidade». Fnac Colombo, 2002. «Tystnaden: Notas Silenciosas». Para o ciclo «Ingmar Bergman». Fnac Colombo, 2006. «Akira Kurosawa (1910-98): Entre o Sonho e a Morte». Xinema, n.º 1 (1998), p. 1. «Stanley Kubrick (1928-99): Labirintos e Olhares». Boletim Informativo da Faculdade de Arquitectura 2000 (2000), pp. 16-17. «Il paesaggio». Zero Mag, n.º 5 (2003), pp. 11-12. «A Política dos Autores: Pensar a Nossa Solidão». V-Ludo, n.º 6 (2001), pp. 75-81. «Verdade e Mentira». Xinema, n.º 4 (1999), p. 3. «Cinema 1990-99». Noite 01, Universidade Técnica de Lisboa — Faculdade de Arquitectura (2000). «Cinco Detritos». V-Ludo, n.º 7 (2002), pp. 60-62. «O Cinema Justo». OA: Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 21 (2002), pp. 85-86. «Os Sentidos da Cidade». Para o ciclo «Os Sentidos da Cidade». FA-UTL e Fnac Colombo, 17 Abr. - 26 Jun. 2002. «A Banalidade». Registos, n.º 0 (2003), p. 6. «O Silêncio dos Olhares». Registos, n.º 0 (2003), pp. 30-31. «Evocação do Medo». Big Lens: The Kent Film Magazine, vol. 3, n.º 2 (2004), p. 2. [traduzido do inglês original]

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| Origem dos Textos


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A História decompõe-se em imagens, não em histórias. WALTER BENJAMIN , O Livro das Passagens


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prefácio

And the end of all our exploring Will be to arrive where we started And know the place for the first time. T. S . ELIOT,

«Four Quartets»

Reler estes textos é relembrar um passado aparentemente distante. Foram quase todos escritos antes de me ter dedicado profissionalmente ao estudo do cinema. Neste sentido, esta antologia arruma o essencial da minha escrita antes de me ter tornado investigador e professor universitário. Como é inevitável, a minha perspectiva mudou. O trabalho científico segue um conjunto de regras rigorosas de pesquisa, exposição, e argumentação — e, no entanto, alguns destes artigos seguem uma metodologia semelhante, ainda que tenham sido produzidos fora do quadro institucional da academia. A maior parte destes escritos foram publicados em revistas e jornais de divulgação restrita. Os restantes foram difundidos em ocasiões únicas. Cada um deles foi escrito com o intuito de interrogar e comunicar, com clareza, sendo exigente com a escrita — traços que reconheço no trabalho de críticos que admiro como João Mário Grilo, para me ficar apenas por um exemplo português. O trabalho académico que tenho desenvolvido no estrangeiro, especialmente no Reino Unido, sedimentou em mim a ideia de que os estudiosos devem tenPrefácio |

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tar dialogar com um grupo mais alargado do que o dos denominados «especialistas». Em retrospectiva, penso que estes textos são um exemplo desta vontade que agora vejo como responsabilidade. O contexto de escrita destes artigos variou. Alguns responderam às solicitações do presente, outros surgiram desde logo sem compromisso com a actualidade, e os restantes serviram de base para participações minhas em acontecimentos específicos. As anotações sobre New Rose Hotel (1998) foram produzidas para «Os Sentidos da Cidade», um ciclo de projecções e debates que organizei e apresentei em 2002. Em todas as sessões, o ciclo contou com a presença de alguém do campo da arquitectura em diálogo com alguém do âmbito do cinema como Luís Miguel Oliveira, João Lopes, José de Matos-Cruz, e Mário Jorge Torres. A sessão a que corresponde o texto foi comentada por mim e pelo arquitecto Diogo Seixas Lopes. As notas sobre o filme de Bergman destinaram-se a apresentar Tystnaden (O Silêncio, 1963) no contexto de um ciclo retrospectivo no qual me coube apresentá-lo tal como coube a Pedro Mexia, Anabela Mota Ribeiro, entre outros, apresentar outras obras do realizador sueco. Há ainda um inédito e uma tradução de um ensaio originalmente publicado em inglês. Deixo ao leitor a possibilidade de descoberta (através) das particularidades de cada texto. Na sua variedade de origem e intenção, estes escritos traçam a história de um espectador que foi descobrindo o cinema, não apenas através da experiência dos filmes, mas sobretudo através do pensamento sobre essa experiência e do registo desse pensamento. Decerto que muitos espectadores se reverão nesta história, ainda que possivelmente não em todas as palavras que a contam. Ainda bem. A nossa relação com os filmes e com o cinema deve ser francamente pessoal. 16

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No entanto, ficaria satisfeito se o meu nome desaparecesse destas páginas e fosse esquecido pelo leitor — desde que os pensamentos e as palavras ficassem, como marca inapagável de um contacto com estas obras e com estas ideias. É isso que pode permanecer e é esta convicção que justifica a reunião destes textos num volume: são uma partilha com quem os ler, uma oferta para quem se interessa pela discussão crítica do cinema. Hoje (se calhar) escolheria tópicos diferentes e escreveria de outra forma (ou talvez não). Volvidos alguns anos, estes escritos mantêm-se para mim pertinentes, iluminando em vez de ofuscarem. Ao editá-los, e reescrevê-los aqui e ali, procurei intensificar essa pertinência e preservar o seu tom. As páginas que se seguem demonstram bem o que sempre me fascinou e continua a fascinar nas imagens em movimento: o modo como pedem para ser analisadas e pensadas dentro do movimento que as anima. Na vitalidade do que os motiva, estes artigos não estão muito distantes do que escrevo agora, afirmando e interrogando, sabendo que toda a afirmação arrasta interrogações. Isto faz que sejam elementos de um percurso único, registos da forma como o cinema me foi obrigando a pensar e a escrever. Este livro fixa um percurso de mais ou menos uma década (o texto mais antigo data de 1997, o mais recente de 2006). A sua divisão em duas partes reflecte o modo como ainda hoje o meu trabalho se divide entre a análise e a reflexão — não sem muitas sobreposições e combinações, claro. A primeira parte inclui análises a obras de cinema, de filmes isolados a grupos de filmes de cineastas. A segunda parte contém reflexões sobre ideias do cinema, não aquelas desenvolvidas pelos artistas, mas aquelas que emergem da história e prática do cinema e do pensamento que as tenta acompanhar. As duas partes conjugam-se, demonstrando as Prefácio |

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cisões e intersecções entre a análise fílmica e a reflexão teórica. Como exemplo vivo do eterno retorno de que Friedrich Nietzsche fala, esta abordagem das obras de cinema e das ideias do cinema instaura uma espécie de passado presente. A experiência de uma obra no presente dá lugar, mais tarde, à consideração dessa experiência passada que se torna presente. De igual modo, as ideias do cinema estão antes e depois da percepção dos filmes e da reflexão sobre eles, num permanente durante. Em essência, estes escritos partem do interior do cinema e das suas imagens, sonoras e visuais. Quando decidimos ficar entre as imagens, e não a uma distância desinteressada como alguma crítica contemporânea de cinema faz, aceitamos envolvermo-nos nelas, dando-lhes um valor e um sentido mais intenso e próximo. Por isso, esta antologia é para mim menos um olhar sobre o passado e mais uma redescoberta de uma ética de estudo que persiste no presente. Estou onde sempre estive: por dentro das imagens.

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parte i

obras de cinema


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Il postino: A Linha que Fecha a Forma

A invulgar recepção por parte do público fez de Il postino (O Carteiro de Pablo Neruda, 1994) um caso singular de sucesso no cinema europeu, somente comparável ao êxito alcançado por Nuovo cinema Paradiso (Cinema Paraíso, 1988). A sua simplicidade luminosa e o seu olhar sensível sobre as relações humanas foram decerto características que permitiram que esta produção franco-italiana conseguisse várias nomeações para os Óscares1 e permanecesse dois anos em exibição no nosso país, sustentado por um culto quase sem paralelo na história da exibição cinematográfica em Portugal. A beleza do filme está inscrita nos olhares e nos gestos de Massimo Troisi, que faleceu um dia após terminarem as filmagens, vítima de uma doença cardíaca. A precária condição física do actor conduziu a algumas mudanças no projecto original. Depois de ter interpretado, escrito e realizado filmes como Scusate il ritardo [Desculpe o Atraso] (1982), Non ci resta che piangere [Só nos Resta Chorar] (1985), ou Pensavo fosse amore invece era un calesse [Pensava que era Amor, Em Vez Disso era uma Caleche] (1991), a equipa viu-se obrigada a chamar alguém para o substituir porque a dificuldade do actor em mover-se se tinha acentuado. Troisi escolheu então o britânico Michael Radford, realizador de Another Time, Another Place [Outra Vez, Outro Lugar] (1983), As nomeações incluíram algumas das categorias mais importantes: melhor filme, melhor realizador, e melhor actor. 1

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1984 (1984) e White Miscuief (Adeus, África, 1987), cuja obra admirava. A escrita do argumento prolongou-se com a entrada de Michael Radford para a equipa de argumentistas. No entanto, as alterações mais profundas na adaptação do romance de Antonio Skarmeta já tinham sido decididas e é interessante notar como tinham um propósito definido: a presença central de Massimo Troisi. A rápida mudança de cenário do Chile, país de origem de Pablo Neruda, para Nápoles, sul de Itália, e o aumento de protagonismo da personagem do carteiro começaram por ser estratégias de promoção, mas a segunda, extraordinariamente, acabou por se revelar um dos trunfos da obra. Pela expressão débil e marcada no rosto de Massimo Troisi passa a possibilidade de transfiguração da elementaridade das coisas através da poesia. Este aspecto que torna densa a história de amizade entre o poeta e Mario Ruopollo, o seu carteiro habitual, acaba por transformar o poeta interpretado por Philippe Noiret em algo «instrumental» — quer quando lhe proporciona a descoberta dos imensos segredos da criação poética e da força das metáforas, quer quando o ajuda na relação amorosa com Beatrice (Maria Grazia Cucinotta). Em relação à primeira opção, a forma justa como o realizador filma os lugares napolitanos não contorna as limitações do gesto, já que a justeza do olhar equivale a um exercício de comodismo e pragmatismo. Assim, como são seguidas quase sem desvios as experimentadas regras das comédias dramáticas, a eficácia na utilização do espaço e das situações é regida por um distanciamento em que os elementos dramáticos e poéticos ficam por explorar em maior profundidade. Por isso, este é um filme sobre a poesia, sobre as condições da sua possibilidade, não um filme poético — apesar de sequências tão bonitas 24

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como a do regresso à casa vazia, com a presença das memórias e a recordação através dos indícios do passado, a gravação a duas vozes e o tango a encher o espaço e a reanimar as imagens. Só no fim a poesia volta a contaminar o filme, com os planos em que, sucessivamente e em crescendo de escala, o poeta se confunde com natureza, mostrando como a poesia pode captar a energia silenciosa da natureza do real. Mas não é possível voltar a sentir o poder da metáfora do gesto terno do Mario de Massimo Troisi quando, em vez de escrever, desenha e fecha uma forma lunar na primeira página do caderno que Neruda lhe oferece (momento de excepção, já que o recurso estilístico às metáforas não abunda em quantidade e aqui atinge uma expressiva qualidade). Não é possível, porque com esses planos de Noiret na praia surgem imagens que juntam indistintamente o documental e o encenado, retirando toda a força aos primeiros, pela clivagem entre o político e o poético. Não que estes dois aspectos sejam inconciliáveis em si: qualquer acto que remeta para um entendimento do mundo propõe uma relação com ele, e nesse sentido existe como discurso potencialmente político ou poético. No entanto, a personagem do carteiro sempre distinguiu radicalmente estas duas vertentes, chamando a Pablo Neruda «poeta das mulheres» e não «poeta do povo». Perante tão clara distinção, a sobreposição parece inadequada. O contexto político ao longo da obra, quando não é um eco ou uma desfocada alusão, reduz-se às mais simplistas figuras, como a do político que depois de vencer as eleições falta ao prometido e manda suspender as obras. A busca de Mario guiada por Neruda revela-se sobretudo na relação encantada e amorosa pelas coisas do mundo, não a partir de convicções ideológicas. Estas duas dimensões são indissociáveis na obra do poeta, mas são dissociadas ao longo de todo o filme. Obras de Cinema |

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Ossos: Intensidade e Segredo

Há uma ideia infelizmente generalizada que proclama o cinema português como uma produção essencialmente intelectualizada. Importa afirmar que essa propriedade não constitui um mal em si, tratando-se apenas de uma hipótese de formulação cinematográfica que tem o seu expoente máximo no rigor, na austeridade, na ironia do cinema do Manoel de Oliveira. Essa característica é, não poucas vezes, confundida com uma atitude elitista por parte dos cineastas. Serve esta introdução para ajudar a concluir acerca das possíveis razões dos mais recentes sucessos do cinema português. É um erro tentar simplificar o universo do cinema feito em Portugal esquecendo como ele espelha a diversidade de propostas que caracteriza a arte contemporânea em geral e o cinema em particular. No caso de Adão e Eva (1995), Mortinho por Chegar a Casa (1996), e Cinco Dias, Cinco Noites (1996), qualquer um destes filmes mostrava uma qualidade industrial de produção e nas duas primeiras obras registava-se uma ligação a modelos de ficção de reconhecido êxito — o drama sentimental e a comédia fantástica. No último exemplo é reconhecível outro modo de contornar a suposta aversão do público português ao cinema do seu país: a relação próxima com a realidade portuguesa. Este foi também o motivo do sucesso de Corte de Cabelo (1995). A resistência e eficácia comerciais não são parâmetros da crítica artística. Portanto, estes pensamentos não servem para aferir o valor dos Obras de Cinema |

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filmes citados, mas simplesmente para concluir como esta evolução e a via seguida para a divulgação de Ossos (1997) podem condicionar a sua fruição. Talvez a dimensão sociológico-documental construa a mais ampla porta de entrada para este filme. No entanto, apesar da legitimidade dessa leitura, devemos pensar na sua essência e complexidade, admitindo que essa é apenas uma das vertentes deste objecto. No segundo volume que dedicou ao cinema, Gilles Deleuze afirma: «A diversidade de narrações não pode explicar-se pelos avatares do significante, pelos estados de uma estrutura linguística supostamente subjacente às imagens em geral. Ela remete unicamente para formas sensíveis de imagens e para signos sensitivos correspondentes que não pressupõem nenhuma narração mas dos quais decorre tal ou tal narração em vez de outra.»1 Deleuze sublinha assim a importância da experiência sensível. O realismo específico de Ossos é sobretudo um segredo de ordem fenomenológica. A falsa inocência do cinema confronta-se assim com a intensidade que habita as imagens. A depuração deste filme é o culminar de um percurso que começou em O Sangue (1990). Essa foi uma primeira longa-metragem escrita à luz da lua, sobre a violência da infância, onde a circulação de afectos que caracteriza o cinema de Pedro Costa já estava presente entre as imagens a preto-e-branco. Volvidos dois anos, o cineasta partia para Cabo Verde onde rodou a maior parte de Casa de Lava (1994), um filme telúrico, emocionante, na relação entre a materialidade e o imaginário do cinema. A deambulação ficcional desse filme deu origem à radical proposta de organização da realidade em Ossos, em que Gilles Deleuze, A Imagem-Tempo: Cinema 2 [1985], trad. Sousa Dias (Lisboa: Documenta, 2015), p. 216. 1

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a visão é orgânica, os corpos são filmados como fronteiras, e os sons anónimos são indícios. É nessa troca incessante que as personagens revelam o medo de entender que alguém é parte delas, processo simples e sem palavras, como o próprio cineasta disse. Neste silêncio se constrói Ossos: a montagem afasta as personagens, os rituais são repetidos — a viagem de autocarro, as chegadas a casa, a limpeza do apartamento, a abertura do gás, a recusa do miúdo — e acentuam a semelhança física e de vivência, lançando o horizonte da morte. A narrativa força cada imagem a ser uma prova de interioridade, cada olhar a integrar uma verdade íntima, votando as personagens à solidão partilhada mesmo quando um plano as une. A noção do plano como unidade é comum à última geração de realizadores portugueses. É um conceito que cineastas como Pedro Costa, Joaquim Sapinho, Teresa Villaverde, e, por exemplo, João Pedro Rodrigues — autor da curta-metragem Parabéns! (1997), exibida em complemento de Ossos — herdaram de António Reis. Ele foi o autor, junto com a mulher, Margarida Cordeiro, de experiências tão fascinantes como Trás-os-Montes (1976), Ana (1982), e o pouco visto Rosa de Areia (1989), e foi também um carismático professor de cinema. Basta observar como a rigorosa ordem narrativa de Parabéns! é rasgada pela desordem que estrutura as suas imagens. Vê-se isso quando, no início, um braço masculino invade o plano. Sentimos isso quando os dois amantes homossexuais fogem para o chão da cozinha, na última cena. A identificação do plano como limite pode ser relacionado com a sua vocação para a escrita. Normalmente um plano estático corresponde a um campo fechado e um travelling abre o espaço, mas se aplicarmos esta noção unitária à estrutura geral de um filme, em que Obras de Cinema |

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todas as partes se relacionam e a narrativa é a sua comunicação, estes significados podem ser subvertidos. Deste modo, a imobilidade da câmara em Ossos é um sinal de fechamento, de interdição, e o único e longo travelling lateral que acompanha o pai (Nuno Vaz) quando este sai do bairro sublinha a ausência de saída, esvazia o movimento que se vê no ecrã. Por essa razão é que todos os recomeços e tentativas de reconstituição acentuam o encerramento. Neste mundo, neste filme, quem não tem lugar é rejeitado — como a mulher prostituída sem nome interpretada por Inês de Medeiros. Ela é exterior às convulsões interiores daqueles lugares. Vem buscar o que é necessário transportar para o outro mundo, a criança, para depois desaparecer. O desajuste desta personagem confirma a solidez daquela realidade, em que há um poder intenso em cada pessoa e em cada gesto — um segredo permanente. Quem quiser sentir isso não pode querer ver cinema neste filme, porque em Ossos só é possível viver cinema.

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Morte a Venezia: Morrer Assombrado pela Beleza

Morrer em Veneza. Falecer consumido pela beleza mais convulsa. Gustav Aschenbach (Dirk Bogarde) parte para Itália porque está débil. Atormentado pela decadência física, desequilibrado pela emergência do fim, observa uma ampulheta. É um relógio que se faz espelho: os grãos de areia parecem nunca mais cair, mas quando os últimos fogem, o tempo sem horizonte muda, prestes a esgotar-se. Não há tempo para pensar, nem tempo para o que não se viveu. Émulo de Gustav Mahler, Aschenbach percorre um caminho assombrado. Ao chegar a Veneza, um histriónico e estranho homem fala-lhe na sua esposa, excede-se nos cumprimentos, e ri-se. O compositor veio procurar o apaziguamento à cidade inundada, veio tentar encontrar o equilíbrio, mas não há nada mais instável do que o desejo, não há nada mais visceral, nada mais vital ou mais vivo. Alfred (Mark Burns), um amigo seu, também compositor, povoa a sua memória. Explica-lhe os erros, comenta-lhe que a beleza nasce inadvertidamente e é reconhecida pelos sentidos, não pela razão. Gustav não quer acreditar — aspira ao sobre-humano, ao «inumano» como Alfred aponta, à perfeição. Ao encontrar Tadzio (Björn Andrésen), um adolescente de quinze anos, Aschenbach sente o contacto com a beleza mais sublime e mais indiferente à sua moral particular. Belo como uma escultura grega, Tadzio confronta-o com o medo do envolvimento, com o receio do Obras de Cinema |

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Sérgio Dias Branco

Sérgio Dias Branco POR DENTRO DAS IMAGENS obras de cinema ideias do cinema

A primeira parte inclui análises a obras de cinema, de filmes isolados a grupos de filmes de cineastas. A segunda parte contém reflexões sobre ideias do cinema, não aquelas desenvolvidas pelos artistas, mas aquelas que emergem da história e prática do cinema e do pensamento que as tenta acompanhar. As duas partes conjugam-se, demonstrando as cisões e intersecções entre a análise fílmica e a reflexão teórica. A experiência de uma obra no presente dá lugar, mais tarde, à consideração dessa experiência passada que se torna presente. De igual modo, as ideias do cinema estão antes e depois da percepção dos filmes e da reflexão sobre eles, num permanente durante.

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POR DENTRO DAS IMAGENS obras de cinema | ideias do cinema

Estas páginas demonstram bem o que sempre me fascinou e continua a fascinar nas imagens em movimento: o modo como pedem para ser analisadas e pensadas dentro do movimento que as anima.

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