Alexandre Melo, Sistema da Arte Contemporânea

Page 1

K_Alexandre Melo_Sistema arte.qxp:lombada14

9/11/12

5:49 PM

Page 1

Alexandre Melo

Alexandre Melo SISTEMA DA ARTE CONTEMPORÂNEA

SISTEMA DA ARTE CONTEMPORÂNEA D O C U M E N TA

S I S T E M A D A A RT E CO N T E M P O R Â N E A Numa apresentação genérica e simplificada podemos distinguir três dimensões de funcionamento do sistema da arte contemporânea: uma dimensão económica, uma dimensão cultural e uma dimensão política. É a manifestação interligada destas diferentes dimensões que precisamente constitui o sistema. […] A natureza global deste sistema deve ainda ser situada no contexto mais amplo da dinâmica de um processo de globalização que constitui uma das dinâmicas fundamentais da evolução das sociedades e do mundo contemporâneo. […] O que é que vai determinar aquilo que é ou não é arte numa determinada sociedade? O que vai determinar se um objecto é ou não é arte e qual é o seu lugar no conjunto dos objectos artísticos é um consenso informal que surge no decurso de um processo em que a aceitação e divulgação de tal ou tal objecto como obra de arte e a correspondente valorização comparativa se vão alargando desde um pequeno círculo localizado ou especializado até abranger virtualmente o conjunto de uma sociedade ou mesmo, actualmente, de todas as sociedades, isto é, o mundo. Se um objecto é consensualmente comentado, transaccionado e exposto como se fosse uma obra de arte, então ele é, na sociedade e na situação dadas, uma obra de arte. Independentemente da sua conformidade em relação a uma qualquer definição do que seja obra de arte ou mesmo da própria existência de qualquer enunciado explícito dessa definição.


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Page 2


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Alexandre Melo

SISTEMA DA ARTE CONTEMPORÂNEA

D O C U M E N TA

Page 3


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

Agradecimentos a Eduardo Prado Coelho, Idalina Conde, Ivo AndrĂŠ Braz, Maria de Lourdes Lima dos Santos e Nuno Crespo

9:06 AM

Page 4


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

primeira parte

As trĂŞs dimensĂľes do sistema

9:06 AM

Page 5


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Page 6


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Numa apresentação genérica e simplificada podemos distinguir três dimensões de funcionamento do sistema da arte contemporânea: uma dimensão económica, uma dimensão cultural e uma dimensão política. É a manifestação interligada destas diferentes dimensões que precisamente constitui o sistema, mas isso não impede que a distinção seja operacional, para efeitos de descrição e análise. A maior parte dos agentes e eventos envolvidos não são exclusivos de uma das dimensões, embora possam ter um peso mais preponderante numa delas. Deste modo, vamos encontrar frequentemente os mesmos agentes em diferentes dimensões, desempenhando funções diferenciáveis mas complementares quanto à elucidação da sua eficácia específica.

Sistema da Arte Contemporânea

7

Page 7


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Dimensão económica ou a arte como mercadoria

A dimensão económica é aquela em que a obra de arte surge como produto, mercadoria, objecto de um processo económico de produção, circulação e valorização comparável ao processo económico de produção, circulação e valorização de qualquer outro produto mercantil. A cadeia de relações inerente à dimensão económica comporta três instâncias fundamentais: produção, distribuição e consumo. À instância de produção corresponde a actividade do artista ou autor considerado enquanto produtor. À instância de distribuição correspondem as actividades dos diferentes tipos de vendedores, designadamente galeristas ou comerciantes (marchands, dealers) que desempenham funções de intermediários, e eventos peculiares como sejam os leilões e as feiras de arte. À instância de consumo corresponde, no sentido estritamente económico que aqui lhe damos, a actividade dos compradores, coleccionadores particulares ou institucionais, privados ou públicos. Ao contrário do que é habitual, não consideramos aqui o público em sentido amplo como consumidor final, porque entendemos que o seu papel é mais significativo noutras dimensões. O triângulo produção-distribuição-consumo, a que corresponde, no que a agentes diz respeito, o triângulo autor-vendedor-comprador, dá conta das relações fundamentais que se desenrolam a este nível. No entanto, e a título de advertência contra inevitáveis necessidades de simplificação, convém desde já adiantar que, como adiante veremos

8

Alexandre Melo

Page 8


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

com maior detalhe ao analisarmos os diversos tipos de agentes, o real conteúdo de cada um destes três agregados não é tão simples e homogéneo como se pode supor. No que diz respeito ao lugar do autor, se pensarmos em questões como os custos de produção e o grau de auto-suficiência na execução das obras, facilmente nos apercebemos de que o processo de trabalho do artista é indissociável da actividade de um conjunto de agentes que podemos agrupar sob as designações de financiadores, fornecedores, ajudantes e executantes. No que diz respeito aos vendedores e compradores, e para além das diferenciações já enunciadas, bastará aqui chamar a atenção para as diferenças básicas entre as lógicas de funcionamento do mercado primário e do mercado secundário, ou especificamente das casas de leilões ou das feiras de arte, ou ainda para as óbvias diferenças de atitude entre, por exemplo, um pequeno, esporádico e caprichoso coleccionador particular e o responsável pelas aquisições de um grande museu estatal. Entre estes casos extremos, claramente diferenciáveis, situa-se uma ampla escala de variações e combinações intermédias — os diferentes tipos, por exemplo, de galeristas ou coleccionadores particulares — que mais adiante teremos a ocasião de comentar. Importa agora explicitar qual a lógica de funcionamento desta dimensão. Isto é, qual a base, a razão de ser, a motivação da existência de um mercado de arte e de uma dimensão económica da circulação das obras de arte. Porque se vendem obras de arte? Em termos muito simples, diríamos que se existe um mercado para as obras de arte é porque há quem as queira comprar e que isto nos Sistema da Arte Contemporânea

9

Page 9


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

obriga a ponderar as razões que poderão levar alguém a querer adquirir uma obra de arte. Porque nos circunscrevemos neste momento à dimensão económica, devemos então abordar a questão das motivações económicas da procura de obras de arte. Esta análise mostrar-nos-á a insuficiência de uma abordagem estritamente económica da questão, obrigando-nos a passar à consideração das outras dimensões de funcionamento do sistema. Em síntese, relativamente às motivações económicas que estão na base da atitude dos compradores — e aqui pode ser útil, a título comparativo, ter em mente o que se passa com os investimentos na Bolsa —, podemos distinguir três objectivos: a longo prazo, a reserva de valor; a médio prazo, o investimento; a curto prazo, a especulação. No que diz respeito aos objectivos de longo prazo, as obras de arte são encaradas como reserva de valor na medida em que são bens cujo valor se supõe poder resistir à passagem dos anos. O raciocínio, mais ainda do que à arte contemporânea, aplica-se a obras já consagradas pela história e em relação às quais funciona o factor de raridade — isto é, já não se podem produzir mais. Em todo o caso, existe sempre um risco. As próprias valorizações feitas pela história da arte estão sujeitas a flutuações, não só por causa das mudanças de gosto ou de perspectivas de análise, mas também devido à evolução das técnicas de autenticação que, por vezes, provocam pequenas, mas dramáticas, crises de atribuição de autoria e detecção de falsificações. Além disso, a importância que cada sociedade concede à arte varia muito de época para época, com as correspondentes repercussões nas oscilações dos preços das obras. O grau de risco e imprevisibilidade é ainda maior se nos deslocarmos para o médio prazo — três ou quatro décadas, grosso modo —, período no qual as variações de gosto, a lógica pendular dos movimentos

10

Alexandre Melo

Page 10


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

estéticos ou os ritmos das modas podem ditar alterações radicais e inesperadas. Os estudos que ponderam apenas factores de natureza estritamente económica e que se situam numa lógica de médio-longo prazo tendem, de resto, a desaconselhar o investimento em arte, porque o número de factores imponderáveis e o nível de risco são demasiado elevados quando comparados com investimentos alternativos. No curto prazo a situação é diferente e remete sobretudo para uma lógica especulativa, que só tem possibilidade de se manifestar em épocas de instabilidade do mercado: períodos de euforia ou de recessão, marcados por variações muito rápidas de preços. Neste caso, como se sabe, é possível registar ganhos ou perdas consideravelmente elevados num espaço de tempo relativamente curto. Tudo depende da qualidade, extensão e velocidade de actualização das informações de que se dispõe, de se ter acesso aos círculos artísticos mais dinâmicos e de se poderem obter a tempo as indicações relativas a quem, quando, onde e por quanto comprar e vender. Só que tais informações nunca são absolutamente seguras e há sempre uma larga margem de aposta, risco e intuição ou improvisação. Se assim não fosse, aliás, todos os agentes bem informados teriam sempre um êxito absoluto em todas as suas iniciativas, e sabe-se que isso não acontece. Entre a marca e a autoria Vale a pena introduzir agora a comparação entre a ideia de marca — no sentido económico corrente, comercial e publicitário — e a ideia de autoria, tal como tende a ser praticada no circuito da arte contemporânea. A hipótese pode ser desenvolvida de duas maneiras. Por um lado, podemos defender que o nome do autor funcione, em relação às suas Sistema da Arte Contemporânea

11

Page 11


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

obras, como uma marca comercial em relação aos seus produtos. Nesta medida, o artista, independentemente da sua vontade, tem o seu trabalho inserido numa lógica que é a da produção corrente das mercadorias. Mas, por outro lado, também se pode adiantar a hipótese de as estratégias de diferenciação e promoção social dos produtos de consumo assentarem em elementos de natureza estética, na modelação das sensibilidades e do gosto e na valorização retórica do nome da marca. Neste sentido, poderíamos dizer que são as marcas e as empresas que recorrem à lógica da criação artística, designadamente à noção de autoria, como signo distintivo. Limites de uma explicação económica Em conclusão, esta sucinta análise das motivações económicas da procura de obras de arte mostra-nos que uma lógica puramente económica ou, em termos mais simplistas, a simples busca do lucro, não bastaria, por si só, para justificar o coleccionismo e a existência e o funcionamento do mercado de arte. Antes de mais, porque há uma excessiva margem de risco e de imprevisibilidade neste tipo de investimentos quando comparado com outros. Por outro lado, os factores que nos aparecem como susceptíveis de induzir bons resultados económicos para o investimento em arte — designadamente a informação e a intuição — não podem ser obtidos segundo uma lógica estritamente económica. Assim, por exemplo, a obtenção de informações em condições ideais depende da possibilidade de acesso pessoal e convivial a um conjunto informal, mas bastante restrito e fechado, de agentes culturais, em que avultam os próprios artistas mais famosos e os coleccionadores, galeristas e responsáveis de museus de maior prestígio. A in-

12

Alexandre Melo

Page 12


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

clusão numa tal rede de relações implica uma disponibilidade, um empenhamento, uma solidariedade e uma cumplicidade nos planos social, convivial, humano e intelectual que só se pode verificar quando existe uma motivação pessoal e cultural autêntica e profunda. Sem ela, podem realizar-se ocasionalmente, em condições propícias, operações bem sucedidas, mas não se pode desempenhar qualquer papel consistente de forma continuada. Quanto à intuição ou sensibilidade, ou ainda o «olho» ou o «faro», como se lhe costuma chamar, é um factor sistematicamente evocado por galeristas ou coleccionadores famosos quando tentam explicar o que os levou a apostar em nomes desconhecidos que entretanto se tornaram famosos. Também este factor é insusceptível de redução a variáveis de um estudo de mercado ou de uma análise de estratégias de investimento, remetendo-nos uma vez mais para uma área de confluência entre a psicologia individual e uma rede de conexões socioculturais.

Sistema da Arte Contemporânea

13

Page 13


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Dimensão cultural ou os objectos de excepção

Se quisermos compreender o funcionamento global do sistema, não nos podemos ater exclusivamente a uma lógica económica como a que serve para explicar o funcionamento do mercado dos bens económicos correntes. O modo de inserção da arte contemporânea na sociedade assenta numa estreita articulação entre a dimensão económica e a dimensão cultural. «Tal como o mercado da arte antiga, o mercado internacional da arte contemporânea é um mercado na acepção económica do termo, mas a sua interacção com o campo cultural, onde se operam, sem o recuo do tempo, as avaliações estéticas e os reconhecimentos sociais, é ainda mais estreita. A internacionalização do mercado da arte contemporânea é, com efeito, rigorosamente indissociável da sua promoção cultural; ela assenta na articulação entre a rede internacional das galerias e dos coleccionadores privados e a rede internacional das instituições artísticas» (Raymonde Moulin, L’Artiste, l’institution et le marché, Flammarion, Paris, 1992, p. 45). Estamos perante uma manifestação desta dimensão do sistema da arte contemporânea quando as obras de arte se transformam em objecto de um discurso cultural. Entendemos aqui discurso cultural no seu sentido mais amplo, que vai da exclamação que um observador ocasional solta perante uma obra até à mais elaborada tese teórica. Alargando ainda mais a extensão desta noção, podemos mesmo incluir

14

Alexandre Melo

Page 14


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

no discurso cultural as reacções não formuladas, ou seja, as reflexões íntimas ou as experiências emocionais não partilhadas de um qualquer observador. A dimensão cultural da existência das obras de arte recobre assim o arco que vai das determinações psicológicas da sensibilidade e dos gostos pessoais até aos discursos teóricos, passando pelos diferentes níveis de elaboração e difusão discursiva através dos meios de comunicação social e da Internet. A dimensão cultural corresponde, no essencial, ao conjunto das actividades do grupo de agentes que designaremos por comentadores e exibidores. Nos comentadores incluem-se, em termos muito gerais, os curiosos, os jornalistas, os analistas e os editores. Por exibidores designamos o conjunto das pessoas que decidem sobre o que se mostra em espaços de exposição não comerciais. Estes agentes culturais manifestam-se socialmente quer através dos círculos normais de convívio e conversa informal, quer através da sua actuação nos meios de comunicação social, na Internet, nas editoras, no sistema de ensino e nas instituições culturais em geral. A sua principal função é contribuírem para a criação e elaboração discursiva dos consensos informais em que assentam os processos de valorização das obras. Porque têm certos objectos um valor cultural especial? Esta dimensão do sistema da arte contemporânea é o veículo de uma validação e legitimação cultural ao nível da sociedade global. A dimensão cultural, enquanto produção de discursos, mais ou menos formalizados e mais ou menos publicamente divulgados, sobre as obras de arte, constitui-as em objecto social particular, com modalidades de preSistema da Arte Contemporânea

15

Page 15


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

sença e protocolos de dignidade específicos e com um processo de valorização especial a que corresponde um grau e um tipo de consideração social diferentes do de qualquer outro conjunto de objectos. Daí a necessidade de ultrapassar os limites de uma análise económica estrita. Podemos agora voltar ao tópico da insuficiência das motivações económicas para explicarmos a procura de obras de arte e tudo o que dela decorre — isto é, o coleccionismo, e o próprio mercado de arte, em sentido amplo. À dimensão cultural da existência das obras de arte corresponde um outro tipo de motivações em que se incluem, por um lado, o acesso a uma relação privilegiada ou de excepção com um determinado conjunto de objectos e, por outro lado, a frequentemente correlativa aspiração a um prestígio social que pode ir desde o mero exibicionismo mundano até às mais elevadas noções de virtude cívica. Quando falamos de relação privilegiada com um objecto estamos a referir-nos ao elemento de prazer emocional ou intelectual que a maior parte dos coleccionadores aponta como principal motivação da sua actividade. Os objectos considerados artísticos ocupam, em cada sociedade, um lugar particular estabelecido e aferível pela natureza particular dos discursos que a eles se referem. Estes discursos, pelas suas características, dotam-nos de uma particular dimensão cultural. Tais objectos são o lugar de um investimento afectivo e intelectual diferente do que é votado aos objectos comuns da experiência quotidiana. Esse investimento corresponde a um vasto leque de sensações e reflexões específicas, incluindo as várias modalidades de prazer estético — desde a obsessão fetichista ou o êxtase místico até à simples sensação de bem-estar provocada por uma harmonia decorativa — e de especulação intelectual, que em regra geral estão ausentes das relações triviais com os objectos comuns.

16

Alexandre Melo

Page 16


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

O prestígio social surge como motivação para a aquisição de obras de arte na medida em que estas, devido à sua particular dimensão cultural, se tornam susceptíveis de servir de suporte a um processo infinito de diferenciação social de luxo. A partir de certos níveis muito elevados de consumo, ter mais um carro ou mais uma moradia não produz nenhum acréscimo de prestígio. Mas a posse de uma obra rara, o acesso a um artista «difícil», um grupo de peças que em conjunto criam uma imagem de marca, em suma, os efeitos associados à posse de uma colecção, não só remetem para os valores do único e inimitável como deslocam o coleccionador para uma esfera em que o dinheiro não basta. É preciso o gosto pessoal, a formação cultural, a relação social com uma elite artística. O coleccionador pode ainda apostar numa deliberada rentabilização social da sua colecção. Abrir um museu, fazer a colecção circular, organizar exposições, editar livros e catálogos, publicitar as compras e vendas, transformar-se enfim numa personalidade cultural reconhecida e respeitada pela sociedade no seu conjunto. Leilões, jogos e salões Importa ainda referir o modo como o brilho mundano do coleccionismo introduz elementos que subvertem uma explicação puramente económica. A dimensão de despique, jogo, espectáculo e exibicionismo que está associada, por exemplo, a certos leilões pode fazer com que — como nos casinos — o grau exagerado de risco e o absurdo dos montantes postos em jogo funcionem não como um factor desmoralizador, mas como um factor que estimula e excita a procura. O tópico mundano sugere-nos alguns desenvolvimentos a partir, por exemplo, das comparações entre leilões e casinos ou entre inaugurações e «salões». Sistema da Arte Contemporânea

17

Page 17


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Os leilões, para além do significado económico, têm uma densidade emocional e espectacular que não deve ser subestimada, a que resulta, como acima referimos, da acumulação das dimensões de jogo, despique e exibição. Três dimensões que caracterizam exactamente o funcionamento dos casinos, para além de muitos coleccionadores declararem frequentemente que coleccionar se torna um vício. O elemento de jogo, associado à participação num leilão, permite explicar porque em determinadas circunstâncias excepcionais, associadas a períodos de euforia do mercado, obras de que se encontram equivalentes mais baratos ou que imediatamente antes do leilão estavam disponíveis a preços mais reduzidos chegam a atingir, no leilão, montantes extremamente elevados. Este fenómeno sugere que o valor das obras não está, nem é suposto estar, submetido a factores estritamente objectivos e racionais. No limite poderia dizer-se que aquilo que justifica o valor eventualmente exorbitante atingido por uma obra num leilão poderá ser precisamente, e apenas, o facto de ela ter atingido esse valor. Nesta medida, o pretenso absurdo do preço pode tornar-se um factor de atracção. A esta luz, o risco, exagerado ou incontrolável, funciona como um factor aliciante, contrariando a lógica económica estrita. O despique é a substância física do jogo, tem um efeito de exibicionismo espectacular que corresponde à afirmação de um status social, cultural e económico e à exibição mundana de uma imagem. Este efeito espectacular é reforçado pela pompa e circunstância que nos períodos de euforia económica rodeiam os grandes leilões: reservas, convites, paradas de estrelas, assalto da imprensa, roupas e acessórios. Mas o despique tem também uma dimensão psicológica que não pode ser escamoteada. O desejo, a dúvida, o confronto não são apenas exibição social, são experiências emocionais que marcam a relação do

18

Alexandre Melo

Page 18


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

coleccionador com as obras que consegue, ou não, comprar e, nessa medida, dão uma espessura vivencial própria ao sentimento de colecção. Exibicionismo, emoção, frieza. Para completar a tríade faltava referir a frieza do anonimato das compras por telefone, que, por vezes, provocam grandes surpresas. À primeira vista são as regras geladas do mundo dos negócios, mas nada nos impede de inventar uma aura de mistério em torno desse comprador sem rosto que recusa a presença, o nome, o espectáculo. Há exemplos de ofertas desnecessariamente elevadas feitas exactamente para inviabilizar o despique. O espírito dos «salões» literários é difícil de evocar numa época de generalizada massificação e internacionalização cultural. Inaugurações, pré-inaugurações, os correspondentes jantares e cocktails cumprem porém funções que talvez se possam comparar com as dos «salões». Antes do mais, completam as funções mundanas de que já falámos a respeito dos leilões, mas fazem-no de uma forma mais fechada e sistemática, porque neles são introduzidos factores discriminatórios de intimidade — acontecimentos não públicos ou semipúblicos, jantares e festas particulares — e de personalização — não há público anónimo, cada um tem de ser conhecido de alguém para ali estar. Surge assim um novo efeito muito importante que é um efeito de definição e demarcação de um grupo, uma elite, se quiserem: art world, art people, art crowd, art VIPs. Neste sentido é elucidativo o facto de, ao longo do tempo, o grau de tipificação deste grupo chegar, por vezes, a expressar-se em marcas distintivas ao nível do próprio vestuário. O grupo, para além da sua expressão local ao nível de cada grande centro e da sua segmentação em múltiplas zonas de gosto e estratos sociais, hierarquiza-se, ao nível do «mundo da arte», segundo os diferentes graus de internacionalização. Podemos assim identificar um «núcleo duro», caracterizado pela presença nas inaugurações e consequentes Sistema da Arte Contemporânea

19

Page 19


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

festejos das grandes exposições internacionais. Neste sentido, a art people vive numa itinerância artístico-cultural comparável à tradição romântica das viagens. Nestas viagens e inaugurações, tal como outrora sucedia nos «salões», elabora-se efectivamente, de forma fragmentada e não sistemática mas continuada e articulada, um discurso cultural, ao sabor das conversas, perguntas, respostas, opiniões entrecortadas, trocadas, afastadas ou reunidas por semanas ou quilómetros de distância. Em conclusão, a dimensão cultural desloca as obras de arte dos terrenos estritos da psicologia individual ou da economia mercantil para o terreno da vida cultural da sociedade, considerada como um todo. Se as obras de arte existissem apenas como suportes de uma experiência emocional e intelectual privada, somente suscitariam uma análise de tipo psicológico. Se, para além disso, as obras de arte existissem apenas como mercadorias sujeitas à mesma lógica de funcionamento de todas as outras, bastaria acrescentar uma análise económica convencional. Se estas análises não bastam, e se se torna indispensável uma análise propriamente sociológica, no sentido lato da expressão, é porque existe um conjunto de discursos sobre as obras de arte que estabelece a intermediação entre as emoções e reflexões pessoais e o conjunto da sociedade, fazendo ao mesmo tempo com que estas obras tenham um modo de relacionamento específico quer com o conjunto da sociedade, quer com essa zona particular da sociedade constituída pelo Estado, ou pelo mundo da política, em sentido amplo.

20

Alexandre Melo

Page 20


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Dimensão política ou as verdades do Estado

A legitimação e validação social global que a sua dimensão cultural traz ao sistema da arte contemporânea faz com que a sua existência seja reconhecida e, até certo ponto, enquadrada pelas instituições públicas, dando assim lugar a uma dimensão política que se articula intimamente com as dimensões já referidas e produz efeitos significativos em termos de legitimação social, na medida em que introduz a representatividade do Estado como caução e garante da relevância social das obras de arte. Os agentes cuja acção dá corpo a esta dimensão política são, na sua face mais visível, os exibidores institucionais, dos quais depende a orientação das actividades dos espaços públicos de exposição e que são, na maior parte dos casos, os espaços mais importantes de consagração social. Mas a actividade destes exibidores, que tem o seu complemento na dos responsáveis pelas igualmente decisivas políticas de aquisições públicas de obras de arte, pelas políticas de apoios, subsídios e encomendas que as completam, só se compreende no interior de uma cadeia hierárquica. Esta toma a forma de uma pirâmide de funcionários culturais e decisores políticos cujo grau de especialização e vocação cultural vai diminuindo em favor de determinações especificamente políticas à medida que aumenta o nível de poder de decisão. Esta assimetria político-cultural entre funcionários que se querem assumir como agentes culturais e decisores que pretendem agir como responsáveis polítiSistema da Arte Contemporânea

21

Page 21


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

cos é a fonte dos permanentes equívocos e polémicas em que as questões de política cultural estão constantemente envolvidas. Estes fenómenos são mais visíveis no contexto europeu do que no mundo anglo-saxónico, uma vez que neste último as dinâmicas entre o público e o privado tendem a ser diversas. Academias e militâncias Recorrendo a uma breve digressão histórica não sistemática, podemos referir alguns cenários que são exemplo de diferentes modalidades de relacionamento entre a arte e as instituições oficiais, e a partir daí enunciar um hipotético princípio genérico explicativo das respectivas oscilações. Tais situações, mesmo quando se sucedem cronologicamente, não se substituem completamente, antes passando a coexistir no seio de uma rede cada vez mais complexa e com maiores contradições internas. Um primeiro cenário a considerar é, grosso modo, o da passagem do «academismo» à «arte moderna». Esta passagem é analisada por Pierre Bourdieu na França do século XIX, sendo descrita como um processo de «institucionalização da anomia». A Academia assegurava a consagração exclusiva da arte oficial, sendo que este poder de legitimação exercido em regime de monopólio não reconhecia estatuto artístico a nenhuma forma de expressão que se afastasse dos seus cânones. A arte moderna, ou mais tarde a arte de vanguarda, surge assim como uma arte não oficial, contra os académicos e a arte oficial, criando os seus mecanismos próprios de legitimação no seio da sociedade global, designadamente através da crítica e de uma clientela burguesa. Segundo o modelo académico, «a produção dos produtores de que o Estado, por meio das instituições encarregadas de controlar o acesso

22

Alexandre Melo

Page 22


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

ao corpo, detém o monopólio toma a forma de um processo de certificação ou, se se prefere, de consagração pelo qual os produtores são instruídos, aos seus próprios olhos e aos olhos de todos os consumidores legítimos, como produtores legítimos, conhecidos e reconhecidos por todos. Deste modo, o Estado, à maneira de um banco central, cria os criadores, garantindo o crédito ou a moeda fiduciária que representa o título do pintor autorizado». Nesta conformidade, «a Academia deve realizar de modo contínuo (o trabalho simbólico) para impor o reconhecimento do seu próprio valor e do valor simbólico e económico dos produtos que ela garante». A afirmação independente do trabalho de artistas independentes vai conduzir a uma «espécie de bancarrota do banco central do capital simbólico em matéria de arte». Abre-se então uma nova situação, que nos seus traços gerais se prolonga até à actualidade. «O universo de produtores de obras de arte, deixando de funcionar como aparelho hierarquizado controlado por um corpo, institui-se pouco a pouco como campo de concorrência pelo monopólio da legitimidade artística: ninguém pode, para o futuro, arvorar-se em detentor absoluto do nomos, mesmo que todos tenham pretensões a tal título. A constituição de um campo é, no verdadeiro sentido, uma institucionalização da anomia. Revolução de grande alcance que, pelo menos na ordem da arte que se vai fazendo, elimina qualquer referência a uma autoridade suprema, capaz de resolver em última instância: o monoteísmo do nomoteta central cede o lugar à pluralidade dos cultos concorrentes dos múltiplos deuses incertos» (Pierre Bourdieu, «A institucionalização da anomia», in O Poder Simbólico, Difel, 1989, pp. 255-279). Considerando um outro cenário, correspondente sensivelmente às décadas de 1960 e 70, vamos encontrar uma situação quase simétrica. A arte de vanguarda, praticada nos extremos mais radicais, surge totalSistema da Arte Contemporânea

23

Page 23


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

mente dissociada dos gostos e da mentalidade dominantes na opinião pública — «as pessoas não percebem», «para as pessoas aquilo não é arte» — e incapaz de se afirmar e sobreviver no mercado. É uma altura em que frequentemente a prática artística assume atitudes fortemente contestatárias aos níveis político e social. Apesar disso, e algo paradoxalmente, é também o momento em que, sobretudo na Europa, a arte de vanguarda é apoiada e sustentada por algumas instituições oficiais nos casos em que os funcionários culturais gozam de autonomia económica e de gosto no quadro do aparelho de Estado. É o modelo em que o Estado — ou certos aparelhos autónomos no seu interior — considera seu dever apoiar as atitudes experimentais e a arte não comercial, que em grande parte sobrevive à custa de subsídios e dos museus. Podemos assim encontrar situações em que é o próprio Estado a subsidiar actividades que pretendem contestá-lo. Esta circunstância alimentou múltiplas reflexões sobre a capacidade do Estado para absorver e neutralizar contestações e bem assim sobre a ineficácia política da contestação artística. Para além disso, estamos perante um exemplo privilegiado das contradições culturais internas ao aparelho de Estado ou da autonomia relativa das diferentes componentes da área cultural do mesmo. «No decurso dos anos 60 e 70, os artistas do sector avançado do campo artístico procuraram explicitamente tornar o seu “trabalho” irrecuperável pelo mercado. […] Os museus europeus desempenharam um papel fundamental na apresentação e valorização dessa arte “sem obras” no sentido tradicional da palavra […]. O museu-mecenas, intervindo enquanto encomendador de obras ou de serviços artísticos, apoia a criação em estado emergente e suscita novas pesquisas. A sanção do museu precede a do mercado. […] A arte orientada para o museu é uma arte que possui as características sociológicas da arte de vanguarda: define-se por uma dupla contestação, da arte e do mercado.

24

Alexandre Melo

Page 24


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Intelectual e hermética, é apoiada antes de mais pela comunidade artística e pelo círculo restrito dos profissionais da arte. É uma arte cuja própria existência pressupõe o museu e os espaços públicos. Acima de tudo, é uma arte assistida, cujos preços directores são os preços-museu» (Moulin, pp. 68-70). A análise de Raymonde Moulin assenta numa oposição entre a «arte orientada para o museu», que caracterizaria as obras de vanguarda dos anos 1960 e 70, e a «arte objectivamente orientada para o mercado, que, no decurso dos anos 80, ocupou a ribalta da cena artística» (p. 70). A própria autora vê-se entretanto obrigada a moderar esta oposição obviamente apriorística, reconhecendo que «a arte objectivamente orientada para o museu não escapa ao mercado, e a arte objectivamente orientada para o mercado não pode prescindir do museu», uma vez que tendencialmente «os valores se constituem na intersecção dos dois universos e pela interacção de actores com papéis cada vez menos diferenciados» (p. 75). Um bom exemplo destas intersecções ocorre na fase eufórica da conjuntura artística dos anos 1980, correspondente a um boom do mercado e correlativo pico de popularidade das artes plásticas, gerando uma situação caracterizada por uma convergência entre o mundo da arte e as instituições oficiais, entre os museus e o mercado, que coincidem temporalmente, e à escala internacional, e se combinam e complementam harmoniosamente nas operações de divulgação e promoção artística. Em qualquer dos casos, estes cenários constituem esquemas genéricos e os seus equilíbrios relativos são passíveis de revisão ditada pelas modificações da situação política e económica. Uma posição «reactiva» defende que o Estado deve reduzir ao mínimo ou deve mesmo abster-se de qualquer intervenção na esfera cultural e deve pautar-se pelos consensos mais alargados da opinião pública. Sistema da Arte Contemporânea

25

Page 25


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

É uma posição de raiz liberal ao nível económico e de raiz conservadora ao nível estético, na medida em que o gosto médio ao nível artístico é necessariamente conservador. Trata-se de, ao mesmo tempo, poupar dinheiro no orçamento e reforçar a opinião pública conservadora, sacrificando uma minoria intelectual menosprezável devido à sua falta de popularidade e peso eleitoral. Uma outra posição «reactiva», de pendor nacionalista ou mesmo regionalista, denuncia a submissão do Estado ao consenso de uma elite internacional e defende «as nossas coisas» e «os nossos artistas» contra os «fenómenos importados», que «não têm nada que ver com a nossa cultura nem com a nossa realidade». Reencontramos aqui, com grande acuidade, tópicos fulcrais das polémicas político-culturais, como sejam as oposições nacionalismo versus internacionalismo, regionalismo versus globalização, provincianismo versus cosmopolitismo ou populismo versus elitismo. Posições reactivas deste tipo abrem caminho a movimentos favoráveis à imposição de censura às obras e aos artistas susceptíveis de serem apoiados pelo Estado. No sentido inverso encontram-se as práticas e iniciativas artísticas explicitamente articuladas com movimentos cívicos e atitudes militantes relativas a questões de grande impacto político e social, como sejam as questões da sida, do racismo e da luta contra a discriminação. Como os políticos apreciam os artistas Em conclusão, e sintetizando a análise dos diferentes cenários históricos evocados, encontramos, na relação de forças e circulação de interesses entre o mundo da arte e o mundo da política, um conjunto de situações bem diferenciadas.

26

Alexandre Melo

Page 26


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Em primeiro lugar, referimos um cenário em que a arte moderna em estado nascente aposta na oposição cultural ao Estado apoiada em dinâmicas da sociedade civil e do mercado privado. Evocámos depois um cenário em que a arte de vanguarda aposta na oposição cultural a esse mesmo mercado privado e sociedade civil, e capitaliza o apoio do Estado, mesmo quando ideologicamente o contesta. A seguir encontramos exemplos de uma situação em que a arte contemporânea volta a entrar em consonância com as valorizações do mercado privado, sendo este positivamente complementado e confirmado pelo Estado. Neste caso é, pois, o Estado que tenta capitalizar culturalmente o prestígio do mundo da arte. Finalmente referimos situações em que, pelo contrário, algumas correntes dentro do aparelho de Estado fazem apelo à opinião pública, em sentido amplo, e procuram capitalizar política e eleitoralmente não já o apoio mas a oposição ao mundo da arte e às suas supostas elites. Isto enquanto algumas práticas artísticas manifestam um renovado empenhamento cívico e político de pendor contestatário. Em síntese, podemos concluir que as relações entre o mundo da arte e a política cultural dependem da conjuntura político-ideológica e do tipo de efeitos e de imagem cultural que o Estado prioritariamente quer produzir junto da opinião pública nacional ou internacional. Em períodos de conjuntura ascensional, positiva, a cultura tende a ser um pólo de investimento público com vista à promoção de uma imagem próspera e progressiva. Em períodos de conjuntura recessiva, negativa, a cultura pode ser fácil e rapidamente sacrificada e mesmo transformada em bode expiatório no contexto de um retorno aos valores básicos — a economia, a defesa, a família —, servindo propósitos conservadores e moralizantes contra os devaneios supérfluos e a boémia viciosa dos artistas. Sistema da Arte Contemporânea

27

Page 27


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

O mundo da arte e o mundo da política mantêm assim relações de grande ambivalência e volubilidade, sobredeterminadas pelas oscilações da conjuntura político-ideológica e sobretudo pelas prioridades e fixações ideológicas conjunturais da opinião pública e do governo. As elites e as massas Como pano de fundo destas oscilações perfila-se uma contradição de base relativa ao lugar e à leitura da arte contemporânea no conjunto da sociedade. A terminar este capítulo, gostaríamos de a equacionar mais detalhadamente, tomando como ponto de partida os tópicos «cultura de massas» versus «cultura erudita», ou, se quisermos, «democratização» versus «elitismo». No domínio das artes plásticas, estas contradições têm a sua expressão mais evidente na observação corrente segundo a qual «o cidadão comum não percebe a arte contemporânea». Em rigor, seria preciso discutir o que é «perceber» arte, «contemporânea» ou não, porém, o que importa aqui é reconhecer que, efectivamente, as linhas de força dominantes da evolução da arte contemporânea assentam em especulações, experiências e sofisticações, intelectuais e emocionais, que não são reconhecíveis, de forma directa e evidente, na experiência quotidiana nem no património cultural do cidadão comum. No entanto, também em relação a esta contradição, assistimos, sobretudo desde a arte pop nos anos 1960, a um movimento biunívoco de import-export de valores entre a «cultura de massas» e a «cultura erudita». Trata-se de um duplo movimento pleno de implicações e ambiguidades. Por um lado, a «cultura erudita» apropria-se de sinais, imagens ou, literalmente, objectos da «cultura de massas» e recicla-os no interior do seu próprio circuito.

28

Alexandre Melo

Page 28


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:06 AM

Page 30


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:07 AM

Page 94


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:07 AM

ÍNDICE

primeira parte As três dimensões do sistema Dimensão económica ou a arte como mercadoria .................. Porque se vendem obras de arte? ...................................... Entre a marca e a autoria ................................................. Limites de uma explicação económica ............................. Dimensão cultural ou os objectos de excepção ....................... Porque têm certos objectos um valor cultural especial? .... Leilões, jogos e salões ...................................................... Dimensão política ou as verdades do Estado .......................... Academias e militâncias ................................................... Como os políticos apreciam os artistas ............................ As elites e as massas .........................................................

8 9 11 12 14 15 17 21 22 26 28

segunda parte Os agentes e os eventos O processo de trabalho dos artistas ......................................... Os financiadores .............................................................. Os ajudantes ................................................................... Os vendedores ....................................................................... Índice

157

33 33 35 38

Page 157


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:07 AM

Os leilões ......................................................................... Os comerciantes .............................................................. Os galeristas .................................................................... Contratos e contactos ................................................. Continuidade ou volubilidade .................................... As feiras ........................................................................... Os compradores ..................................................................... Os comentadores ................................................................... Os curiosos ...................................................................... Os jornalistas .................................................................. Os críticos ....................................................................... O que fazem os críticos? ............................................. Os investigadores ............................................................ As escolas ................................................................... Os editores ...................................................................... Das capas aos destaques .............................................. As revistas ....................................................................... Os catálogos .................................................................... Suportes virtuais .............................................................. Os exibidores ......................................................................... Os decisores institucionais ............................................... Exposições para todos os gostos ....................................... Qual é o poder dos diversos agentes no sistema da arte contemporânea? ..............................................................

38 39 42 44 46 49 52 55 56 57 58 61 65 67 70 71 73 75 77 79 82 85 91

terceira parte Uma caracterização geral Um sistema global .................................................................. 95 O cidadão planetário ....................................................... 96

158

Índice

Page 158


P_Alexandre Melo_Sistema da arte contempora?nea.qxp:diotima

9/9/12

9:07 AM

Um sistema segmentado ......................................................... A geografia das artes ........................................................ A diferenciação das tendências ......................................... As distinções técnicas ...................................................... Os tempos das modas e das histórias ............................... Grupos sociais e zonas de gosto ....................................... Zona tradicional ......................................................... Zona mundana ........................................................... Zona especializada ...................................................... Zona mediana ............................................................ Zona popular ............................................................. Um sistema hierarquizado ...................................................... A pirâmide dos preços ..................................................... O sucesso, a fama ou o prestígio ...................................... Um sistema macroscópico ......................................................

100 101 102 104 106 109 110 111 112 113 113 116 116 118 123

apêndice Dificuldade, impossibilidade ou inutilidade de uma definição de arte ........................................... 125 Referências bibliográficas .................................................... 153

Índice

159

Page 159


K_Alexandre Melo_Sistema arte.qxp:lombada14

9/11/12

5:49 PM

Page 1

Alexandre Melo

Alexandre Melo SISTEMA DA ARTE CONTEMPORÂNEA

SISTEMA DA ARTE CONTEMPORÂNEA D O C U M E N TA

S I S T E M A D A A RT E CO N T E M P O R Â N E A Numa apresentação genérica e simplificada podemos distinguir três dimensões de funcionamento do sistema da arte contemporânea: uma dimensão económica, uma dimensão cultural e uma dimensão política. É a manifestação interligada destas diferentes dimensões que precisamente constitui o sistema. […] A natureza global deste sistema deve ainda ser situada no contexto mais amplo da dinâmica de um processo de globalização que constitui uma das dinâmicas fundamentais da evolução das sociedades e do mundo contemporâneo. […] O que é que vai determinar aquilo que é ou não é arte numa determinada sociedade? O que vai determinar se um objecto é ou não é arte e qual é o seu lugar no conjunto dos objectos artísticos é um consenso informal que surge no decurso de um processo em que a aceitação e divulgação de tal ou tal objecto como obra de arte e a correspondente valorização comparativa se vão alargando desde um pequeno círculo localizado ou especializado até abranger virtualmente o conjunto de uma sociedade ou mesmo, actualmente, de todas as sociedades, isto é, o mundo. Se um objecto é consensualmente comentado, transaccionado e exposto como se fosse uma obra de arte, então ele é, na sociedade e na situação dadas, uma obra de arte. Independentemente da sua conformidade em relação a uma qualquer definição do que seja obra de arte ou mesmo da própria existência de qualquer enunciado explícito dessa definição.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.