Sousa Dias, «Anti-Doxa — A filosofia na era da comunicação»

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Sousa Dias

ANTI-DOXA a filosofia na era da comunicação

D O C U M E N TA


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ÍNDICE

SÓCRATES E OS SOFISTAS, VERSÃO CONTEMPORÂNEA

função da filosofia na era da comunicação ........................ LÓGICA E ESTÉTICA DO CONCEITO .................................. AS 4 IDADES DA FILOSOFIA ..................................................

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DA FENOMENOLOGIA À ONTOLOGIA

Heidegger crítico de Husserl ............................................

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SEIN UND EREIGNIS

o último Heidegger .......................................................... IDEIA E SUBJECTIVAÇÃO ......................................................

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O QUE É A CIÊNCIA?

René Thom e a epistemologia ..........................................

147

UMA FILOSOFIA DAS MULTIPLICIDADES

Michel Serres .................................................................... RENÉ SCHÉRER PESSOAL E INTRANSMISSÍVEL ..................

191 197

ENTREXPRESSÃO: A PINTURA E A FILOSOFIA

Álvaro Lapa ....................................................................

201

ESTRATÉGIA DO DESASSOSSEGO

a filosofia [da] retórica de Rui Grácio ................................

211

QUESTÃO DE ESTILO

da escrita filosófica ............................................................ O HARA KIRI DA FILOSOFIA ESCOLAR ................................

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223 247


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N O TA A presente colectânea reúne, com inúmeras modificações substanciais até por vezes do respectivo título, todos os textos de Estética do conceito (1998) e alguns de Questão de estilo (2004), ambos publicados pela extinta Pé de Página Editores, de Coimbra, e que não serão reeditados. Acrescenta-lhes novos textos, um dos quais, sobre as idades da filosofia, inédito.


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SÓCRATES E OS SOFISTAS, VERSÃO CONTEMPORÂNEA função da filosofia na era da comunicação

Primeiro os dados do problema, as condições históricas. Tudo muda, tudo está a mudar à nossa volta. Está a acabar, ou acabou entretanto, todo um estado de coisas. Vem aí, veio já, uma outra ordem, muito mais subtil na sua poderosa armação, muito mais cínica e alienante nos seus processos de dominação. Uma nova era social, uma nova época mundial, uma nova idade do homem. Já entrámos nela e, todavia, ainda só estamos a entrar: não, nós ainda não vimos nada… Uma revolução, já em marcha, mas de devir inimaginável, veio tudo alterar, afectar todos os aspectos da existência humana: a economia, o trabalho, as instituições políticas, os sistemas de ensino, as formas de cultura, os modos de vida. Por toda a parte instalaram-se já as irresistíveis forças da mudança, as potências do futuro, desse futuro já presente, e têm nome. Ou, antes, dois nomes familiares, conhecidos de todos na exigência com que nos cercam e nos intimam, imperativos. Informação. Comunicação. Tais são as palavras de ordem da nova realidade dominante. Anunciaram-nos a emergência da «sociedade de informação», do mundo da economia «digital», da civilização tecnocientífica global, da comunidade universal em que tudo comunica com tudo, continuamente, instantaneamente. E apresentaram-nos essa sociedade do futuro, e que é já a nossa, como a consequência inevitável do acelerado desenvolvimento das tecnologias informáticas e das extraordinárias possibilidades de comunicação e de interacção humana por elas introduzidas. E prometeram-nos que essa sociedade por vir, ou em processo de 7


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vinda, seria uma sociedade melhor: as novas tecnopossibilidades comunicacionais potenciariam uma evolução civilizacional universal e, segundo os mais optimistas, uma extensão dos valores liberais e da solidariedade nesse mundo «sem fronteiras» em vias de constituição. Mas as máquinas e as tecnologias, por si mesmas, nada explicam. Nunca determinam modelos de sociedade. Pelo contrário, elas exprimem sempre formas de sociedade, aparecem como componentes de sistemas sociais que as criam, solicitam ou delas se apropriam como sua parte ou equipamento necessário. O presente desenvolvimento das TIC (tecnologias da informação e da comunicação), a sua determinância na remodelação dos fundamentos materiais das sociedades, deve entender-se em função da mutação em curso do capitalismo mundial. Esta mutação não seria possível sem esse surto das TIC. Não porque esta evolução técnica induza uma transformação do sistema capitalista, mas, ao invés, porque a evolução actual do sistema exige as TIC como forma tecnológica correspondente. Tal como as máquinas energéticas eram a técnica adequada ao capitalismo industrial tradicional, as logomáquinas ou cibermáquinas são a tecnologia apropriada ao capitalismo pós-industrial, a que os economistas chamam já, significativamente, capitalismo informacional. É o capitalismo que, por força da sua lógica desenvolvimentista, desata a comunicar, a necessitar uma comunicabilidade imediata universal. É ele que, propriamente, comunica e faz comunicar, que pede cada vez mais comunicação, e cada vez mais veloz. Ele tende, de facto, a diluir as fronteiras, toda a espécie de fronteiras existentes (ainda que suscitando, entretanto, outras, mais terríveis), a constituir a Terra inteira como um espaço de circulação aberta ilimitada, e as tecnologias informáticas fornecem-lhe os instrumentos de gestão económico-política dos fluxos de todo o género nesse meio globalizado. Esse o sentido exacto em que se pode afirmar que a maquinaria cibernética exprime a nova idade do mundo: ela permite executar um controlo 8


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mercantil e social contínuo em espaço global «livre», ou tendendo para a liberalização total (mercado planetário integrado). Não que o capitalismo se tenha tornado universal. Ele não universaliza, longe disso. Antes segrega as mais gritantes disparidades e exclusões, entre povos e regiões, entre centro e periferia, e mesmo no interior dos países mais avançados. Mas ele estende um mercado universal, conquistando os mais heterogéneos quadros geográficos e culturais, o mercado é a forma de universalidade do capitalismo. E é a evolução desse mercado único mundial, para o qual concorrem até Estados ditos anticapitalistas como a China «comunista», e a reorganização estratégica do sistema à escala planetária, que determina a futura-presente sociedade de comunicação. Com efeito, o neocapitalismo procede por inclusão a essa escala de sectores económicos inteiros, num sistema de interdependências mundiais funcionando como uma unidade em tempo real. Procede portanto por sistema aberto, por meio aberto global, por dissipação das interioridades, das fronteiras, dos meios fechados tradicionais: não só a desregulação dos mercados nacionais mas também a desarticulação dos meios de «internamento», como por exemplo da fábrica (meio físico fechado), substituída pela empresa (entidade pós-industrial mais ou menos virtual, organizada em rede ou mesmo existente só «na rede», on line). Ora, um tal sistema aberto necessita de informação ultra-rápida, de controlo permanente do meio e da ilimitada mobilidade do meio. É toda uma reestruturação do poder que se instala, um regime inédito de dominação, particularmente cínico: um máximo de controlo, na proporção directa da máxima «liberdade». Um cinismo que se estende ao próprio conceito de democracia, à democracia liberal como ideal cosmopolítico do neocapitalismo, como «promessa» universal do capitalismo global, e à sua presente evolução, até já na Europa, para um mero formalismo eleitoral sem mais substância democrática, para uma forma de «pós--democracia» à asiática particularmente autoritária. 9


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Garantem-nos, tanto à esquerda como à direita, que Marx, o pensamento de Marx, está morto e bem morto. Invoca-se a «evidente» caducidade dessa filosofia como teoria das revoluções anticapitalistas proletárias ou populares e do fim comunista da história, o seu trágico destino histórico como ideologia de Estados autoritários, absolutamente contra-revolucionários. Mas é para impedir de ver a parte de intempestividade, de vitalidade trans-histórica, irredutível à sua corporização dogmática no marxismo histórico, da Ideia comunista de Marx, e nos fazerem renunciar a todo o espírito revolucionário confrontando-nos com a «lição da história» da traição e do fracasso de todas as revoluções socialistas. E para assim nos convencerem da impossibilidade de uma saída excepto para pior para fora do capitalismo, de que a única alternativa «revolucionária» possível ao capitalismo é ele próprio, um capitalismo «civilizado», politicamente controlado, «corrigido» na sua espontânea barbárie, um capitalismo de «rosto humano» sensível às desigualdades sociais, às exclusões de toda a espécie, «social-democratizado», convertido a tecnologias «amigas do ambiente» e a relações racionais com os recursos naturais, e até mesmo, por sustentabilidade, a uma desaceleração do seu crescimento, a políticas de decrescimento. Como se a grande lição da história dos recentes séculos, e em especial do presente, não fosse, antes, a natureza incivilizável, incorrigível, do capitalismo, que ele não se civiliza relativamente num lugar sem barbarizar mais ainda algures. Ou como se tudo isso, essa exigência de um capitalismo «ético», não equivalesse a exigir ao capitalismo que deixasse de ser ele próprio e não fosse, pois, ela sim, uma exigência impraticável, irrealizável, a grande utopia conformista deste nosso tempo pré-apocalíptico. Marx ultrapassado, não: Marx inultrapassável. Pelo menos enquanto continuar válida a percepção essencial da sua crítica da economia política. Isto é: enquanto a análise do capitalismo e dos seus desenvolvimentos for (como nos parece) a condição decisiva da filosofia política como estudo 10


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dos mecanismos, instituições e modificações dos modernos regimes de poder e por isso também das hipóteses de resistência efectiva, das experiências contra-organizacionais mais ajustadas a cada reconfiguração do campo social. Como dizia o insuspeito (anticomunista) ex-presidente Soares, o que precisamos para compreender as mutações do mundo actual é de um novo Marx. Sem dúvida. Faz-nos falta um novo Capital capaz de tornar inteligível, como o fez esse genial tratado para o capitalismo «clássico», a lógica específica do neocapitalismo eminentemente abstracto, especulativo. A lógica de um estádio evolutivo do sistema em que este deixou de estar centrado, como no tempo de Marx, na actividade produtiva, na fábrica, na produção industrial. O neocapitalismo pós-industrial centra-se na actividade empresarial, no «espírito» de empresa ou na empresa como espírito, entidade volátil. A empresa substituiu, como atrás se disse, a antiga fábrica, a compra de acções a compra de matérias-primas, a venda de serviços a venda de produtos. A fábrica era um lugar de produção, de transformação de matérias-primas em produtos, de concentração de uma massa laboral, de uma força de trabalho massificada. Um meio local fechado. A empresa, essa, é uma entidade ilocalizada, dispersa, uma entidade descentralizada funcionando em rede, quer internamente, quer nas suas relações com outras empresas. Uma estrutura «leve» flexível actuando como operador de venda de serviços e trabalhando com quadros individualizados sujeitos a estímulos competitivos e a formação profissional incessante. Ela não produz, compra produtos acabados, ou então peças para ela montar, e oferece-se como serviço de vendas: os serviços são o seu «produto», o serviço de vendas o seu núcleo. O neocapitalismo periferizou a produção, relegou-a em grande parte para os países mais pobres, deslocou até para regiões tradicionalmente periféricas o centro industrial mundial (países da Ásia-Pacífico). O espírito empresarial e especulativo tornou-se o motor da economia, e invadiu entretanto todas as actividades, todas as áreas, mesmo 11


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o lazer, férias e tempos livres, mesmo as artes e a cultura, convertidas em «indústrias do espectáculo», mesmo o desporto, o futebol. As conquistas de mercado já não se fazem tanto por especialização industrial e por sucesso na concorrência de produtos, mas por controlo empresarial de «segmentos» do mercado (compra de acções). É esta nova estratégia de captura económica exercida em meio aberto global que exige um domínio permanente dos dados do meio, a circulação das informações a alta velocidade, comunicação universal instantânea. Recorde-se a tese de Deleuze-Guattari: o fundamental na análise de Marx do modo de produção capitalista é a descoberta da singularidade desse modo como «axiomática». Quer dizer: como um sistema ignorando códigos transcendentes limitativos da sua evolução, ignorando limites exteriores absolutos de desenvolvimento. Como um sistema antes procedendo por imanência, por mercado autónomo, por axiomatização de fluxos livres, ou seja, por coordenação como valores permutáveis, numa «equivalência generalizada», de toda a espécie de forças descodificadas: humanas e não humanas, naturais e «espirituais», de trabalho e da tecnologia, fluxos de moeda, de saber, de linguagem. E, assim, como um sistema de desenvolvimento virtualmente ilimitado, conjurando sempre para mais longe os seus limites imanentes, não conhecendo outras limitações senão internas a fazer recuar, porque o único verdadeiro limite do capitalismo é o próprio capital. O que abre para uma sociologia atenta, não às contradições, a uma pretensa pulsação dialéctica do sistema, mas aos dinamismos heterogéneos que o capitalismo não cessa de possibilitar, de libertar, de deixar fugir, para de cada vez os axiomatizar, tentar capturá-los segundo limites sempre móveis, relativos. Aquilo que torna a nossa época interessante é que quanto mais o neocapitalismo «globaliza» as suas axiomáticas e articula liberdades inéditas – mobilidades em meio aberto como, por exemplo, a cidadania europeia e os direitos alargados daí decor12


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rentes –, mais suscita movimentos descontrolados, resistências e fugas que não consegue colmatar, forças não tecnocratizáveis que não sabe como controlar. Desemprego «estrutural», excedentes de trabalhadores supérfluos definitivos. Violência suburbana, explosão da delinquência e da insegurança civil. Migrações da periferia, ou de outros continentes, por terra ou por mar, facilitadas pela livre circulação internacional ou só reprimíveis pelo levantamento de novos «muros» securitários. Terrorismo internacional, fundamentalismo islâmico, radicalismos nacionalistas, neofascismos. Pirataria informática, introdução de vírus nas redes cibernéticas, acesso a ficheiros secretos dos Estados, terrorismo por computador. Para não falar da pressão crescente da miséria do terceiro mundo, da marginalização de dois terços da população mundial das delícias da idade global. Será curioso ver como é que o sistema fará para lidar com as exclusões que produz e também que novas formas de resistência fará surgir, que contra-organizações e que contra-poderes adaptados às condições da sociedade comunicacional emergente. O sistema atinge, entretanto, com o admirável mundo novo, e como atrás se disse, um cinismo acrescido. Desde logo nos regimes de trabalho. Como mostrou a economista Viviane Forrester no seu ensaio sobre aquilo a que chamou o presente «horror económico», o neocapitalismo retirou às pessoas o único direito que o capitalismo tradicional lhes garantia: o direito a serem exploradas. Toda uma situação de chantagem objectiva, toda uma gestão tecnocrática dos homens e da vida dos homens como meros recursos: como «recursos humanos» convertíveis, recicláveis, ou então inúteis, «funcionalmente insignificantes». A sociedade industrial definia-se por um enquadramento económico e institucional que tanto individualizava os sujeitos como os inseria como elementos numa «massa» segundo um regime estável de níveis de formação estratificantes mas definitivos, ou de longa duração. Entramos agora na era do homem-recurso 13


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em sociedade aberta, ao mesmo tempo desmassificado e desindividualizado, do homem como «divíduo» (Deleuze). O homem-recurso é o homem «dividual», dividido em si mesmo, em estado de incessante autovariação, «entre» trabalho-e-formação. É o homem em constante mobilização entre os ciclos de uma interminável qualificação, não o homem sem qualidades mas o homem sempre em processo de requalificação. O homem-recurso é, em suma, a forma da vida humana sob o regime meta-estável da reciclagem contínua, da formação técnico-profissional permanente. Regime esse que todavia se apresenta, tem o despudor de se apresentar, como uma extensão da democraticidade e do mérito, como uma abertura do direito à educação, à informação e à cultura. Já a internet é apontada como um modelo de comunicação democrática sem fronteiras, como um modelo electrónico de democracia directa onde todos, sem distinção de classes sociais, têm acesso a toda a informação e idêntica possibilidade de se «exprimir» e «conversar» e até de difundir a sua «criação» e mesmo a sua «arte»: redes sociais, youtube, net arte, net culture. Ora, a nova gestão da vida humana não é uma questão de controlo económico sem ser já toda uma técnica de controlo social, de que o marketing se tornou um instrumento prioritário, mas também as sondagens de mercado, as sondagens de opinião, as medições das audiências televisivas. Controlo social, sociedade de controlo, é também a nova forma de Poder «biopolítico» entretanto instalada, determinante das reformas institucionais na ordem do dia (administração pública, direito, escolas, prisões, etc.), à espera das instituições futuras, substitutas. Um poder actuando já não por disciplina, ou por internação (territorial, escolar, fabril, carceral, etc.), mas por informação e comunicação: cf. as práticas de vigilância dos delinquentes por colar magnético ou «pulseira electrónica», em vez do encarceramento ou cadastragem disciplinar. Ou seja: um poder actuando por sinalização contínua em meio livre, por controlo 14


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ininterrupto de fluxos e movimentos em espaço aberto. Poder-controlo, virtualmente ilimitado, ajustado à sociedade comunicacional global. Não que resistir se torne impossível no contexto deste sofisticado tecnopoder nascente. Certo que já a realidade presente estruturou impossibilidades incríveis e que estas tendem, tudo o indica, a consolidar-se. E que, por outro lado, as velhas formas de resistência organizada, como os sindicatos e os partidos políticos, perdem hoje muita da sua eficácia, ultrapassadas, até no seu carácter geralmente local (nacional), pelas novas condições, por um inimigo global. É o drama da luta anticapitalista actual: a sua insistência em modelos do passado, em formas organizacionais herdadas do século XIX, o seu atraso por polarização local frente a um inimigo global, a sua incapacidade de transversalização, de transnacionalização, de criação de uma nova (formalmente, estrategicamente) Internacional revolucionária. Mas, uma vez mais, as sociedades de controlo em processo de instalação não poderão evitar o afrontamento com forças não controláveis, a eventualização por elas mesmas de contracorrentes «selvagens», a sucessiva reinvenção, inantecipável nas suas formas concretas, da própria possibilidade de resistência. A qual, evidentemente, nada tem a ver com uma atitude reactiva face à técnica, ao mundo tecnicizado, nem com uma, igualmente inconsequente, contraposição de particularismos locais (nacionais, regionais ou, pior ainda, de ghetto) ao fenómeno irreversível da globalização. É no interior da rede global que se formarão, se poderão formar, exterioridades, resistências, frentes de resistência. É aí que se poderá dar a composição de novos frentismos revolucionários heterogéneos como movimentos transversais de descomunicação ou comunidades eventuais articulantes de «comunicações» alternativas. O problema é então: que relações entre esta comunicatividade generalizada e o pensamento, entre comunicar e pensar? Que consequências da cultura comunicacional na ordem da criação? Que efeitos sobre a 15


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mente humana, que espécie de solicitações cerebrais? Em suma, que humanidade em vias de se constituir? É claro que como resposta só podemos arriscar aqui indicações breves, pressentimentos vagos, tendo em conta algumas tendências actuais mais ou menos perceptíveis. Em todo o caso, não cremos que faça muito sentido a questão de saber se o futuro que nos espera no estádio do ainda incipiente neocapitalismo informacional será pior ou melhor que a realidade que conhecemos. Haverá decerto, como se disse, outras sujeições e outras libertações, outros modos de submissão e outras formas de resistência. Mas por isso mesmo parece-nos prudente desconfiar desde já da inocência ou da astúcia de certas esperanças liberais optimistas. Como, por exemplo, da expectativa da sociedade de comunicação que vem, que está já a vir, como sendo, segundo os seus arautos, uma democracia cultural realizada. Porque o interesse do capitalismo não é democratizar mas vender. Os Estados democráticos podem legislar direitos cada vez mais amplos, o mercado permanece o limite de facto da democracia. Os circuitos abertos da comunicação, as redes informáticas de livre acesso, não democratizam sem capitalizar, sem sobretudo globalizar o espaço em que se faz, por parte das indústrias da informação e da comunicação e das indústrias «culturais», a acumulação de capital. A cultura como mercadoria, as ideias, as criações e as artes como produtos vendáveis ou bens de «consumo cultural» segundo as leis de um mercado de rápida rotação, é tudo o que o capitalismo sabe de cultura. Por outro lado, devemos suspeitar também das motivações que se escondem atrás da entusiástica previsão da criatividade e do pensamento como os valores essenciais do futuro próximo. Todo um consenso já formado, todo um discurso unânime de gestores, economistas e governantes enfatizando essas capacidades como os verdadeiros «desafios» num mundo aberto global e as condições primeiras de sucesso nesse mundo. Daí a presente preocupação política e 16


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empresarial, em todos os países, com a educação como sector estratégico prioritário. Investe-se na modernização dos sistemas de ensino, na introdução pedagógica das novas tecnologias, na permuta das aprendizagens teóricas por aprendizagens aplicadas, do estudo e do saber «formativo» pelo saber «informativo» e pela investigação (tratamento de dados), na criterização técnico-profissional dos currículos, na formação contínua de «recursos», na qualidade do «capital humano» (nada a ver já com a antiga força de trabalho como componente variável do capital industrial). O que representa, não tenhamos dúvidas, uma definitiva liquidação das escolas e universidades e a sua entrega às empresas. É já a realidade presente, a mercadorização do ensino, a mercantilização das universidades. Uma rendição do ensino, em todos os níveis, ao mercado1. Nenhuma ilusão é possível, com efeito, sobre o que significa a referenciação da inteligência, da inovação e do conhecimento como os factores privilegiados do «homem comunicacional». Nenhuma, sobre que concepção de pensar e criar, adaptada às características da sociedade de informação, está aqui em causa. Não se trata, evidentemente, dos superiores poderes perceptivos, nooperceptivos, dessas faculdades do cérebro dos homens, tal como se exprimem nas artes, na filosofia, na ciência teórica. Ou seja. Não se trata nem, por um lado, do pensamento como força produtiva de esquemas conceptuais como simuladores hermenêuticos da realidade dada, visto que esse poder especulativo é desde já ostensivamente desvalorizado, desescolarizado, desfinanciado. Mesmo nas ciências, na investigação científica, onde a vertente da teoria cedeu entretanto o passo à tecnociência laboratorial, capitalizável nos seus resultados (cf., infra, texto «O que é a ciência?»). Nem também, por outro lado, da cria_________ 1 Toda a nossa análise tributa, sobretudo até aqui, de um visionário texto de GILLES DELEUZE, Pourparlers, Ed. de Minuit, Paris, 1990, pp. 240-247 (trata-se do texto «Post-scriptum sur les sociétés de contrôle»).

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tividade no sentido da criação «inútil» das artes e da filosofia, porque a filosofia é já hoje despromovida, relegada como tradição espiritual caduca em favor de uma cultura «pós-filosófica», e a criação artística depende cada vez mais de um constritivo mercado das artes. O assinalamento do «capital humano» como a principal riqueza de amanhã quer dizer outra coisa. Que a acumulação de capital propriamente dito, no quadro de desenvolvimento do neocapitalismo planetário ou de mercado aberto, exigirá sempre mais informação e imaginação «performativas». Ou seja, «recursos humanos» sempre mais qualificados, informados, ou preparados para lidar com complexos sistemas de informação. E que nesse quadro de intensificação da concorrência económica mundial e da própria competitividade nas relações de trabalho triunfará sobretudo a raça dos «criativos» capazes de antecipar cenários evolutivos do mercado, de imaginar novos produtos e estratégias comerciais, de inventar «conceitos» originais de publicidade ou formas revolucionárias de marketing. Conceito e informação, pensamento e comunicação, criatividade e mercadoria: começamos a familiarizar-nos com estas associações bizarras, com estes acasalamentos impúdicos, mesmo na filosofia, mesmo nas artes. É uma nova idade da criação e do pensamento, em que ainda só estamos a entrar, mas de que há desde já que temer o pior. Diz-se com frequência que assistimos actualmente à passagem de uma cultura logocêntrica para uma cultura imagocêntrica, ou de uma cultura literária para uma tecnocultura electrónica. À emergência, em suma, de uma nova ordem cultural, polarizada já não no livro e na leitura, mas na televisão e no computador. Sem dúvida que sim. Só que não é isso o fundamental, ou não é aí que está o perigo. Não cremos que faça muito sentido contrapor as «virtudes» da leitura, ou da cultura literária, aos «malefícios» da cultura audiovisual. As novas tecnologias computacionais e electrónicas, e a sua atractividade, não configuram por si mesmas nada 18


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de negativo. Introduzem, pelo contrário, ao lado da forma-livro, outras formas de circulação e de acessibilidade da cultura, outras hipóteses de sensibilização cultural. Além de que a inteligência artificial, a imagem digital numérica, os cibermundos virtuais, etc., etc., abrem ao pensamento teórico e à criação estética, em todos os domínios, formidáveis possibilidades que há que aproveitar. De resto o livro, a palavra impressa, sobrevivem muito bem a todas as suas mortes anunciadas, até porque preservam, como medium, características insubstituíveis. Se de alguma coisa sofremos, aliás, não é do declínio do livro, ou da logocultura, mas antes da sua inflação ou, melhor, da enorme proporção de nulidade da sua produção, tanta como a da produção audiovisual e de imagens em geral. De facto, a mudança cultural em curso consiste essencialmente noutra coisa. Em desvalorizar o pensamento e a teoria, e não só a filosofia como crítica e criação conceptual mas também as artes, a criação sensível, toda a actividade criativa (desviada entretanto do seu sentido «vertical», como diz o escultor Rui Chafes, ou seja, da sua aristocrática vocação espiritual), promovendo em seu nome um regime «democrático» do pensamento e da arte, a sua reconversão como comunicação ou, pior ainda, a sua regulação pelo sentido da «actualidade» ou pela «sensibilidade» e «opiniões» do mercado. Isto é, consiste em filtrar toda a criação e produção de cultura, seja teórica, literária, nas artes plásticas ou audiovisual, por estritos critérios mercantis, severamente anticriativos, e legitimados na sua abafante «democraticidade» pelo controlo social exercido pelo marketing e pela máquina mediática. Já os debates televisivos e o jornalismo de «ideias» segregam todo um noo-modelo «democrático», reduzindo o pensamento a um seu simulacro comunicativo, como comunidade intersubjectiva universal por direito, ou poder dos consensos «razoáveis». Triste modelo mediático do pensamento como discussão de opiniões, formação de uma opinião 19


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pública informada, fixação de consensos. Mas mais triste ainda é que a própria filosofia se deixe tentar por esse modelo, ou pelo fascínio da publicidade, do marketing de ideias, da função social ou «moral» dos meios de comunicação de massas. Caso dos filósofos que propõem uma reconversão da filosofia em teoria da acção comunicativa, ou elaboração de uma moderna razão comunicacional: uma forma de pensamento adequada à civilização democrática cosmopolita, ou seja, à sociedade capitalista liberal do presente e do futuro, entretanto reconfigurada como «sociedade da informação». No que se fundem, ou confundem, ingenuidade dos filósofos «comunicadores» e cinismo do neocapitalismo liberal e informacional: fazer-nos crer que a comunicação nos liberta, que está nela, ou numa ideal «comunicação isenta de dominação», a libertação, quando, justamente, é dela que se trata de escapar, da comunicação como teia global da universal Aranha do capital. Nenhuma das auto-imagens recentes da filosofia, da função filosófica, é tão deprimente como esta: fornecer uma lógica à formação de opiniões «razoáveis», regras de «racionalidade» à opinião pública democrática, uma ética ao mercado e aos média. Não é a troca de um modelo científico por um modelo jurisprudencial de razão filosófica, de uma matriz lógico-demonstrativa por uma matriz retórico-argumentativa, que pode modernizar a filosofia e conceder-lhe pertinência no contexto da cultura contemporânea. Renuncia-se à verdade, às pretensões à verdade, mas para melhor entregar a filosofia à opinião, aos jogos de opiniões, à comunicação, em última análise aos debates dos média. Ora, a filosofia nada tem a ver com opiniões, com a prova dialéctica das opiniões, ela corporiza ao invés uma suspensão da Opinião, um combate ao pseudopensamento opinativo. Com essa equívoca sedução do pensamento pela comunicação a filosofia pode ganhar uma «actualidade», uma «intervenção», uma visibilidade pública, mas pelo preço da alienação da sua função específica. É o que se torna evidente 20


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sobretudo com essa outra variante americana da filosofia como comunicação, a filosofia como «conversa». Trata-se aí de reequacionar a tarefa da filosofia no quadro de uma concepção conversacional da cultura correspondente a uma sua nova condição «pós-filosófica», quer dizer, no quadro da cultura como «conversação democrática ocidental» em que entretanto a filosofia teria perdido a sua função privilegiada como instância normativa. Com efeito, as correntes analíticas e pós-analíticas americanas e os desconstrucionismos europeus teriam deslegitimado de vez a imagem metafísica tradicional da filosofia. Ou seja: a imagem de autofundada reflexividade (o Pensamento puro) com que ela se sobredeterminava e se permitia atribuir-se um direito de legislação sobre a cultura. Destituída por essas críticas de território cognitivo específico, esvaziada de método e de problemas próprios, a filosofia poderia enfim assumir-se como parceiro sem privilégios na «conversa» cultural. Como parte entre partes nesse jogo histórico contingente em que nenhuma delas, filosofia, ciência, literatura, arte, política, teologia, deteria qualquer preeminência quanto à verdade, ou à racionalidade, ou à cientificidade, etc. Ela poderia, em suma, reconhecer a sua contextualidade conversacional, a imanência da sua articulação com a cultura. A velha concepção transcendente, criterial, do pensamento cederia assim a vez a uma concepção imanente, contextualista. Ou, se se preferir, a noo-imagem epistemológica, fundacionalista, seria substituída por uma outra, pragmático-doxológica. Significando isto que a pertinência das propostas filosóficas já não se mediria pelo pretenso valor de verdade, ou de objectividade, das suas teorias como representações conceptuais da realidade. Antes dependeria das suas implicações práticas sobre a comunidade humana, sobre a conversação democrática da humanidade. Entendidas essas implicações como aptidão para promover por argumentação a liberdade, a realização de uma utopia liberal universal, acordos críticos intersubjectivos em torno da linguagem da 21


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solidariedade. Ou, melhor, essa seria a função «pública» das filosofias tematicamente preocupadas com a justiça social, com a construção de uma comunidade liberal. A que acresceria, como interesse pragmático de outro grupo de filosofias, uma função «privada» incomensurável, uma função edificante, a perfeição moral ou a autocriação. Só que, nesta troca da reflexão pela comunicação, ou conversa, ou da objectividade pela solidariedade, não vemos o que a filosofia tenha a ganhar. Pelo contrário. Sai absolutamente impotenciada, desmuniciada da sua única mas inconfundível competência e eficácia. Não espanta se Rorty pode defender que, na realização da sua missão pública progressista, a filosofia encontra rivais mais capazes como «a etnografia, o texto jornalístico, a banda desenhada, o docudrama e, especialmente, o romance». Certo que ela não possui privilégios reflexivos e que só poderia descredibilizar-se mais ainda ao continuar a propor-se como exercício de reflexão e a invocar uma pura razão. Mas ela detém sem dúvida um privilégio, que não lhe dá uma supremacia mas uma exclusividade, uma tarefa que só ela pode efectuar, ou de cuja efectuação ela é a designação apropriada: o privilégio dos conceitos, da criação conceptual, o poder do conceito como força paradoxal, anti-doxa. Ela é de facto o nome de uma faculdade inventiva, de um poder não superior ao de outras formas de invenção e evidentemente muito mais frágil que todos os Poderes, mas particular, específico. É esse poder que a dissolução rortiana da filosofia na cultura completamente neutraliza, degradando o pensamento em conversa, «ironização» dos conceitos, redução de todos os conceitos a opiniões na mesa redonda da «conversação democrática». Filosofia, não: sofística, espécie de pensamento light bom para colóquios, conferências, discussões públicas, debates «culturais» mediáticos. E, com efeito, a filosofia como conversa é talvez o exemplo mais expressivo da capitulação do pensamento perante a organização anticriativa da época, da desastrosa amálgama reinante con22


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ceito/opinião, criação/cultura, pensamento/comunicação. Nada na prática distingue essa teoria neopragmática de uma ética neoliberal do Estado moderno, quer dizer, de uma ideologia do capitalismo «civilizado». Conversa, diálogo, discussão crítica, debate de ideias, promoção de consensos «razoáveis»: a filosofia não reconhece a sua razão de ser nestas atitudes, todas elas, aliás, profundamente antifilosóficas. Como a arte, ela define-se em essência pela sua dimensão afirmativa e criadora (novos problemas e novos conceitos), e toda a sua co-dimensão crítica, sejam as críticas por um filósofo de outros filósofos sejam as suas intervenções nos debates públicos, é sempre função dessa afirmatividade primeira. Filosofar nunca foi discutir, nunca conversar, dialogar. Já em Platão, a dialéctica, arte do filósofo, nada tem a ver com a arte sofística da controvérsia ou o conflito das opiniões, a que Platão chama depreciativamente «erística». A dialéctica platónica, como processo maiêutico (de acesso cognitivo ao ser das coisas), opõe-se à erística, processo meramente retórico de rivalidade entre teses (opiniões), método sofístico sem função cognitiva. O diálogo socrático tal como se apresenta nos textos platónicos, o diálogo dialéctico, não consiste nunca num confronto de opiniões rivais mas, antes, na sucessiva destruição das opiniões em jogo como condição de acesso ao Conceito ou Ideia. Não é outra a função pedagógica dos diálogos socrático-platónicos. Como escreve algures Deleuze, Sócrates praticava o diálogo mas para mostrar a inutilidade e mesmo a impossibilidade filosófica de todo o diálogo, para destacar o pensamento (dialéctica) da simples discussão de opiniões (erística). A famosa ironia de Sócrates era uma forma de reduzir as opiniões rivais, por autocontradição, ao seu ilogismo ou aporia, à sua nulidade como pensamento. Por sua vez a parte dita maiêutica dos diálogos socráticos é por excelência um não-diálogo, um pseudodiálogo no qual, como afirma com humor Žižek, Sócrates é o único que fala e o seu interlocutor se limita a dizer coisas como «de acordo, Sócrates», «sem dúvida, Sócrates», «como 23


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poderia ser de outro modo, Sócrates?». A maiêutica, que se eleva sempre sobre a impotência reflexiva ou, em termos platónicos, contemplativa das opiniões, sobre a conversa acabada com a Opinião, é o solitário monólogo do conceito, a dialéctica do conceito no movimento «ascensional» da sua contemplação. Toda uma vocação não dialógica, não comunicativa, da filosofia, já portanto manifesta, de forma irónica (a ironia como pedagogia, propedêutica negativa, anti-doxa, do pensamento), nos textos fundadores de Platão2. Fernando Gil: «a filosofia como “conversa” corresponde a uma pequena parte, porventura a mais pobre e certamente a mais fácil, do que passa hoje por filosofia». Exacto. Como exactas são também as palavras actualíssimas com que Gil explica o sucesso, à época, dessa filosofia tempestiva, demasiado tempestiva, e a ambienta numa invasora «ecologia» mental operada pelos média. «A filosofia como “conversa” é uma ideia fácil, predisposta a ser assimilada pela máquina mediática que se erigiu em ecologia do pensamento. Ela está programada para processar oposições espectaculares e artificiais mas capazes de provocar efeitos imediatos de excitação. Inevitavelmente, isto vai-se repercutir sobre o pensamento (…) Ao adaptar-se a estas novas condições, a filosofia condena-se a simplificar, a nivelar, a passar ao lado da complexidade, a seduzir em vez de _________ 2 Com Deleuze, Žižek foi o filósofo que mais insistiu nesta vocação não dialógica da filosofia, por exemplo no texto «La filosofía no es un diálogo», in ALAIN BADIOU/SLAVOJ ŽIŽEK , Filosofía y actualidad, 2005, tr. esp. Amorrortu, Buenos Aires, pp. 47-48: «Sempre considerei os diálogos tardios de Platão como os seus diálogos propriamente filosóficos. Neles, uma pessoa fala quase ininterruptamente; as intervenções dos outros, por exemplo no Sofista, mal poderiam encher meia página, e são do estilo «Tens toda a razão», «Absolutamente», «Assim é». Acaso deveria ser de outro modo? A filosofia não é um diálogo. Dêem-me um só exemplo de um diálogo filosófico bem-sucedido que não tenha sido um terrível malentendido. Isto é válido até para os casos mais salientes: Aristóteles não entendeu bem Platão; Hegel, obviamente, não entendeu bem Kant, embora talvez tivesse gostado de entendê-lo; e, pior ainda, Marx desentendeu Hegel, embora talvez pouco lhe importasse. E Heidegger, no fundo, desentendeu todos em tudo».

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convencer. Se a ecologia não muda, e ela invade tudo, aquilo a que se tem chamado filosofia vai atravessar, ou já atravessa, tempos difíceis»3. É esse, precisamente, o perigo: a sufocação pelo «pensamento» mediático da criação teórica, e a atracção fatal desta por aquele, a sua auto-regulação pelos critérios de cultura dos média. A saber: ideias facilmente assimiláveis e sempre «novas», reconduzíveis a dualismos simplistas, espectacularizáveis em debates de que os talk shows televisivos constituem o paradigma. Toda a actividade criadora sofre já este tratamento, este recondicionamento imposto pelos meios de comunicação, esta redução a uma produção de «acontecimentos» culturais susceptíveis de mediatização. É significativo o que se passa com a crítica de livros, de filmes, de música, etc., ou com o que cada vez mais se apresenta como tal nos jornais, nas revistas e nos programas culturais de TV. Satisfazendo as necessidades da engrenagem mediática, inventam-se uns atrás dos outros pseudo-acontecimentos literários, cinematográficos ou musicais que tão depressa são «descobertos» como esquecidos, ultrapassados pelas descobertas seguintes, numa rotação acelerada. Triste evidência: a crítica desapareceu, ou quase, soçobrou perante o mercado, tornou-se ela própria uma forma de marketing, de promoção comercial, um prolongamento da publicidade por outros meios. É ao mesmo tempo que o jornalismo e os média usurpam o pensamento e a crítica e se arrogam a função de descobridores de talentos e que promovem como nova figura do vedetismo mediático o «intelectual», ou seja, o pensador-comunicador, especialista de opinião e disc-jockey das ideias, grande animador da conversa democrática, agente comunicativo do Universal. Não podemos prever a evolução da situação, se este constringente regime ecológico do pensamento infundido pelo poder dos média está para durar. Mas tudo indica que _________ 3 FERNANDO GIL, entrevista, Expresso, 23/10/1993.

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sim, que esse regime tenderá até a endurecer, e que na sociedade aberta global em que estamos a entrar o pensamento e a criação enfrentarão uma catastrófica impossibilitação objectiva, substituídos pela informação e pela comunicação, pela cultura democrática comunicacional, quer dizer, pelo mercado e pelos média. É já a característica da nossa época, ou de uma era em que a comunicação se tornou tanto um imperativo do mercado como uma forma de cultura: excluir tudo o que não comunica, não informa, não vende. Caso, por excelência, da filosofia. Como a arte, como toda a criação, ela não é informativa nem comunicativa, não é de ordem cultural. O pensamento não é cultura, ou só o é o pensamento já pensado, não o pensamento em vias de se fazer, como corpo-a-corpo com um impensado, ou sempre como experiência nos limites do pensável. Pensa-se contra a cultura, contra o já pensado, o já sabido, contra as noções estabelecidas, as posições correntes dos problemas, os valores predominantes: crítica e criação, actos de contra-cultura, são as faces de Janus do pensamento. A cultura designa o conjunto das condições históricas, por mais recentes que sejam, de que há que desviar para pensar, criar, inovar (identidade destes termos). Por isso, nenhuma inovação, na filosofia como na arte, se diz do seu tempo histórico, mas de um tempo inactual, não histórico, supra-histórico, tempo da contemporaneidade, ou da comum «parte de eternidade», de todas as inovações de todas as épocas. Também por isso, a história só pode reter, integrar e explicar a desviante inovação por reencadeamento retroactivo, por retroacção do efeito sobre as causas (o inactual, o acontecimento não histórico, cria, como afirmava Jorge Luis Borges dos grandes escritores e dos seus precursores, as suas próprias condições históricas de possibilidade). De cada vez as ideias inovadoras, na arte e na filosofia, são verdadeiros acontecimentos, mas acontecimentos inactuais, imperceptíveis para a cultura mercantil-mediática ou só perceptíveis quando já conquista26


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ram por si uma visibilidade, nunca coincidentes com as «actualidades», com os acontecimentos imediatamente visíveis dos média, ou da informação. É o que ante nós se perfila, é já a nossa realidade presente, com a sociedade globalizada de comunicação como idade do triunfo absoluto do mercado: um mundo saturado de informação, de todo o género de eventos interessantes na perspectiva da informação, mas recessivo nas condições de produção de genuínos acontecimentos. Um mundo inibindo por controlo comercial e social a emergência de imaginários alternativos, de vontades descomunicantes, de hipóteses de heterogénese espiritual, social, humana. Espécie de maquinação mediocrática universal promotora de um novo tipo de homem ou de humanidade, não um homem massificado mas um homem por toda a parte homogeneizado, infectando a Terra inteira com a sua homogeneidade, mediocrizando as possibilidades de vida com a sua banalidade. Banalidade do mundo, mediocridade geral dos modos de vida, vulgaridade dos valores reinantes, nulidade da cultura mediática, perda pelas artes do sentido do espiritual em favor de uma concepção «democrática» da arte, os próprios inconformismos políticos convertidos à política conformista do possível, etc., etc.: a realidade como um insulto objectivo ao pensamento. Mas, como se infere das palavras de Fernando Gil, é o próprio pensamento, e a filosofia, que interiorizou já essa universal maquinação, que se deixou atrair por ela e se transfigurou numa moderna sofística ao trocar por opiniões razoáveis a paixão do conceito, a monológica criação pela conversa demoliberal, e ao descobrir na comunicação uma vocação e na cultura e nos média uma realização. A banalidade, a sedução do logos comunicacional, da banalizante ecologia mental referida por aquele filósofo: sem dúvida o principal obstáculo, externo e interno, do pensamento na era da informação e do marketing. A força impossibilitante que, mais do que qualquer outra, o pensamento terá que advertir primeiro em si mesmo, o seu combate genésico, o seu íntimo negativo. Já não o erro, ou a supers27


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tição, ou as ilusões da razão, ou ainda a razão mesma (que Heidegger, nas vésperas da sobrevinda do mundo da comunicação, considerava ser «a mais obstinada opositora do pensar»4 ), como impossibilidade filosófica, como a figura por excelência da antifilosofia, mas pior, muito pior: mil vezes preferíveis à doxa razoável da comunicabilidade democrática (imagem mediática do pensamento) os riscos paradoxais da filosofia, até mesmo os seus erros grandiosos e ilusões sublimes. Resistir à banalidade, ao controlo, aos poderes da comunicação e do mercado, promover linhas de fuga a tudo isso e, com elas, forças incontroláveis, por menores que sejam, forças descomunicantes, toda uma contra-comunicação activa: essa, desde já, a urgência da filosofia como também das artes, a sua revolta necessária, e a sua tácita «comunicação» com todas as formas sociopolíticas de resistência. Toda a criação é um acto de fé. Não há pensamento, não há filosofia, sem fé: na inteligência, nas forças inteligentes do cérebro humano, no poder dessas forças. Fé no homem, em suma, mas não no homem existente, antes no homem como possibilidade, no advento futuro do homem. O homem, para o pensador e para o criador, é sempre um devir-homem. Sempre um homem futuro, um homem por vir, só presente ainda na criação e no pensamento, antecipado por eles, por eles exigido. A realidade humana prevalecente, a ignóbil gestão da miséria dos povos no interesse de minorias, as violências infames, os preconceitos e as intolerâncias absurdos, a mercantilização de todos os valores, a baixeza das opiniões correntes, os programas televisivos de maior audiência, tudo, enfim, evidencia que o homem permanece aquém de si, uma sombra de si, uma hipótese apenas, utopia pura. Toda a criação se destina, intenções subjectivas do criador à parte, a essa humanidade utópica, e como sua invocação. _________ 4 MARTIN HEIDEGGER, Caminhos de floresta (Holzwege), 1949, tr. port. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 305.

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A filosofia também: faz-se filosofia por o homem não existir, porque o homem não existe ainda, simples possibilidade inscrita no cérebro inteligente, e para que esse possível possa advir. Nesse sentido a filosofia é inseparável, não de um humanismo (antes de uma dessolidarização do homem tal como existe), mas de um optimismo mesmo se desesperado. E não parece que seja a comunicação, o «mundo comunicacional», a apressar a realização dessa possibilidade, pelo contrário. Não por virtude de uma qualquer oposição entre a tecnologia e o homem, entre as forças da técnica e as do devir-homem. Mas sim de uma outra oposição a que esse mundo neocapitalista tende a dar um extremo de cinismo: oposição «interior» do homem a si mesmo, à afirmação dessas forças de devir-humano, das forças criadoras do espírito como infinito poder de devir, rebeldes a tudo o que no homem prende a vida. Nunca será de mais insistir na identidade do pensamento e da criação, e nenhuma insistência será hoje tão necessária. Insistir, entenda-se, na intimidade do pensamento não com um sentido da realidade, mas com um sentido do possível. Ou, mais exactamente, com um sentido do impossível, pois que pensar, e criar, no seu superior exercício, é sempre, e de cada vez, confrontar-se com uma impossibilidade, «fazer» o impossível. Nada a ver com comunicação, nada a ver com cultura, mas antes com actos de descomunicação, de traição à cultura, à época, à história. A criação é inovação, é o novo, e o novo, por definição, não pode ser derivado do já feito, do já existente. Como diz o cineasta Godard, a cultura é a regra e a criação a excepção, e é próprio da regra ser anti-excepção. A criação só pode aparecer contra as forças históricas dominantes, como força não histórica em correspondência com um horizonte ontológico virtual, horizonte da vida, de uma comunidade sempre futura, de uma humanidade mais afirmativa ausente, impossibilidade presente, horizonte de toda a criação. É por isso, e não por superioridade ou por trans29


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cendência do seu estatuto, que não compete à filosofia comunicar, participar na edificação de uma cultura comunicacional ou de uma nova Atenas universal fundada nos valores das democracias liberais e nos modos de dominação que eles legitimam. Outra é a vocação da filosofia, outras as suas competências e tarefas. Tarefa crítica prioritária: conceptualizar, desde já, a lógica da assim chamada sociedade de comunicação como a realidade já presente que nos captura corpo e alma, conceptualizar essa novidade. Tornar assim inteligíveis os novos processos e poderes que se apropriam já da vida humana e as suas implicações sobre essa vida e o pensamento dos homens. Estar alerta às auto-exclusões ou devires revolucionários que possam formar-se, às resistências à biopolítica instalada que, de dentro, o sistema possa suscitar. E contribuir com os seus meios conceptivos particulares para a afirmação dessas resistências, de forças alternativas sociopolíticas, espirituais ou existenciais «descomunicantes», ainda que frágeis, e assim para possibilidades vitais mais abertas, mais livres, escapando à captura comunicacional, esquivando o controlo.

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O HARA KIRI DA FILOSOFIA ESCOLAR

1. Filosofia tout court e filosofia escolar. A filosofia e o seu ensino. A ensinabilidade do filosófico. A questão é velha, e lá fora suscita estudos, bibliografias, grupos de investigação. Por cá quase nunca se ouve, nunca é uma questão em cima da mesa, mesmo entre os professores da disciplina. Praticamente só aquando das reformas do sistema de ensino e, com elas, dos programas disciplinares. O que é, no mínimo, esquisito. Desde logo porque a filosofia, entre nós, está intimamente vinculada, em termos institucionais, ao seu ensino, e na sua visibilidade quase inteiramente se reduz à sua existência como matéria escolar. E porque, por outro lado, nunca como hoje foi tão controversa a legitimidade sociocultural do filosófico, a permanência de uma «necessidade» da filosofia e por isso também, ou mais ainda, do seu ensino. A ponto de aqueles que continuam a fazer filosofia, e não meramente a ensiná-la, cedo ou tarde se confrontarem com o sentido dessa sua prática, quer dizer, com a problemática justificabilidade contemporânea da filosofia e, explicitamente ou não, da sua pedagogia. Tudo se passa, porém, como se para a comunidade filosófica portuguesa, na sua efectiva composição uma imensa colectividade de ensinantes de filosofia, essa questão estivesse desde sempre, e de uma vez por todas, resolvida. Como se o simples reconhecimento oficial da filosofia como disciplina «universal e obrigatória» do ensino secundário e portanto como parte fundamental da cultura de Estado corporizada nos currículos escolares representasse a tácita prova de perseidade (noção da escolástica 247


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medieval para o que tem a qualidade de existir por si, de em si achar a sua causa ou razão) quer da filosofia quer da sua transmissão pedagógica. O que se nos afigura, em especial face ao contexto global presente e ao modo como ele tende a transformar as funções e estruturas da cultura, da escola e dos sistemas de aprendizagem, uma perigosa ilusão hipnótica, auto-hipnótica. Para se ter uma ideia desta ilusão em toda a sua latitude, tentaremos perspectivá-la, em traços esquemáticos, a partir daquela que nos parece ser a questão de fundo da filosofia escolar. 2. O que faz a filosofia no ensino secundário? Qual o interesse dessa disciplina? Como actividade teórica, promotora de inteligibilidades, a filosofia mantém afinidades com as ciências. Mas, diferentemente delas, não possui processos, quer empíricos quer formais, de validação das suas especulações. Ela nada mais pode, enquanto prática de problemas e de conceitos, do que explicar os seus problemas, propor conceitos adequados a essas explicações e argumentar a pertinência, em si mesma indemonstrável, tanto destas como daqueles. A filosofia é, pois, por natureza «aporética» e desse modo uma forma de cognição sempre deceptiva, não «performativa», uma coisa socialmente inútil, ineficiente. Pelo que o ensino da filosofia carece de justificação social. Vê-se muito mal, por exemplo, o que a filosofia possa ter para oferecer, ou para se preservar como disciplina curricular, na óptica da escola-empresa, ou da entrega em curso das escolas, em todos os níveis, ao «mercado». Restaria, porém, uma outra razão de ser justificativa, uma justificação propriamente espiritual, uma função «formativa» da filosofia como expressão privilegiada da pura razão, fundamento da autonomia humana. Foi, aliás, essa função «emancipadora», tanto teórica (síntese reflexiva dos saberes) como prático-moral (educação para os ideais universais da cidadania), que determinou a inclusão da filosofia nos planos de estudos da escola pública republicana e a sua posição 248


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nesses planos, à saída do secundário como «abóbada» crítica e, entre nós, ineximível componente da «formação geral» dos alunos. Mas também essa justificação da filosofia escolar parece difícil, para não dizer impossível, de aceitar, sobretudo se se tiver em conta os destinatários concretos desse ensino: alunos adolescentes situados na faixa etária dos 15 aos 17 anos. Porquê? Fernando Gil, num lúcido texto de circunstância assumidamente «marginal», defendeu, antes de nós, esta mesma tese. Com ele interveio no debate provocado pela frustrada intenção da última reforma nacional do ensino em substituir a disciplina de filosofia por uma outra de história da cultura e das ideias. Aí explicou os motivos da injustificabilidade da escolarização da filosofia e mostrou como essa explicação tinha já sido dada, em termos definitivos, por Platão. Referia-se ao célebre discurso de Diotima no Banquete, onde o Eros filosófico é apresentado como filho da Miséria e do Expediente e herdeiro de ambos, «entre os dois». Comentava F. Gil: «pela mãe, a Filosofia é um saber inensinável, pelo pai, um saber inensinado. Pelos dois lados é exterior ao sistema escolar. A decisão filosófica é imotivada, a-histórica, desinvestida»1. Exactamente: como prática não cultural de pensamento, como pensamento irredutível a um «conhecimento», a filosofia é estranha por essência ao sistema de ensino. A vontade de filosofar, o Eros filosófico, na infinita «irrazoabilidade» da sua emergência, na absoluta inensinabilidade da sua pulsão, não é interiorizável numa relação pedagógica. Foi o que também Kant vincou, no capítulo sobre a «arquitectónica da razão pura» da primeira Crítica e de novo na Lógica, esta impossibilidade de escolarizar a filosofia, de aprendê-la (e de ensiná-la). Porque – e esse é, justamente, o equívoco fundamental – em rigor a filosofia não é, não constitui, um saber. Não forma um «corpus» _________ 1 FERNANDO GIL, «Eros maltrapilho: na margem de um debate», Expresso, 05/03/1988.

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discursivo informativo que, como tal, pudesse ser objecto de comunicação, de transmissão, de aprendizagem, de socialização pelo ensino (a filosofia como filha da Miséria). O único «saber» que a filosofia pode oferecer, a sua «parte» de cultura, é a sua própria história. Mas, em si mesma, e diversamente das ciências e das técnicas, a filosofia não é cultura, não é uma formação de cultura. É uma paixão especulativa sempre improvável, fundada em experiências, perplexidades, sensações e «visões» inderiváveis da história (dos saberes constituídos), e para a exploração problemático-conceptual das quais, de cada vez, ela não encontra «método» disponível (a filosofia como filha do Expediente). De resto, nunca a vitalidade da filosofia dependeu da sua implantação escolar ou foi afectada pela sua eventual desescolarização. De outro modo seria inexplicável que a inexistência de ensino secundário de filosofia na Alemanha ou na Inglaterra, por exemplo, não tenha impedido o estabelecimento nesses países de fortíssimas tradições de pensamento filosófico, cuja fecundidade se mantém no presente. Como seria inexplicável, em contrapartida, que sendo Portugal, desde há muito, o país europeu onde mais se ensina filosofia, a ausência de prática filosófica viva e regular seja uma das características tradicionais da cultura portuguesa. O caso português é, aliás, particularmente curioso, e não só por essa imensa desproporção entre a existência escolar da filosofia e a sua inexistência como movimento de criação e de crítica. Mas, mais ainda, por ser um caso em que, com toda a evidência, o ensino da filosofia tomou o lugar da própria filosofia, em que esta foi completamente substituída pela menos nobre e profícua das suas possibilidades. Com efeito, entre nós, e não apenas na sua realidade efectiva visível como também na sua concepção profissional corrente, mesmo nas universidades, a filosofia esgota-se numa esfarrapada imagem «pedagógica». Voltemos ao texto de F. Gil, que fornece alguns exemplos clássicos de experiências filosóficas: a exploração metódica dos limites do pensamento, 250


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a tentativa de pensar o negativo e o indeterminado, as aporias da auto-afecção e da liberdade, etc. O que serve ao autor para sublinhar o facto de essas experiências serem quase tão afastadas da experiência natural, quase tão antinaturais e abstractas, como as da matemática e da física sem, todavia, produzirem um «saber», sem participarem do carácter «conclusivo», objectivável, socializável das experiências científicas. Sobrepondo este facto à já referida injustificabilidade social do ensino filosófico, conclui F. Gil pela improcedência e até perversidade da destinação escolar da filosofia aos adolescentes (ou dos adolescentes à filosofia). Como ele próprio diz, é «querer criar apetite em quem não tem fome: e os muito jovens não têm, Deus seja louvado, fome de metafísica. Tê-la-ão talvez de absoluto e de salvação e têm-na com certeza de poético. Mas a metafísica, sobretudo a de boa qualidade, é insusceptível de tomar à sua conta as perguntas a que as religiões não sabem responder». Precisamente. A resistência dos alunos do secundário à filosofia, o pouco prestígio e interesse que, de uma maneira geral, lhe atribuem, não é culpa nem de alunos irrazoavelmente não motivados nem de professores incapazes de transmitir essa motivação. Os professores fazem prodígios diários para tornar «interessantes» as suas aulas e os alunos, esses, nunca são falhos de motivações vinculadas às suas experiências vividas. O verdadeiro desfasamento é entre essas experiências adolescentes e as experiências filosóficas sérias, rigorosamente inensináveis e de «interesse» intransmissível, pelo menos a tão jovens destinatários. Certo que, como admitia Kant, se pode aprender a filosofar. Só que essa aprendizagem nunca se poderá fundar, excepto como simulacro, numa «oferta» escolar, mas, pelo contrário, num «pedido» de filosofia, numa compulsão especulativa involuntária implicada nas experiências subjectivas do improvável «aprendiz». Separada desta necessidade imotivada e imotivável, de experiências não filosóficas (cognitivas, estéticas, políticas, etc.) que a «necessitem», que de si mesmas 251


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a solicitem, a filosofia está condenada a ser uma coisa absolutamente desinteressante. É o caso no seu ensino a adolescentes, para a generalidade dos quais é cedo de mais para poderem sentir esse «ímpeto» especulativo. 3. O programa vigente da disciplina escolar de filosofia foi elaborado no âmbito da última reforma curricular do ensino secundário (1993). Substituiu a proposta inicial de novo programa, o chamado projecto Carrilho, que tanta contestação suscitou por parte da comunidade filosófica portuguesa. E, como era de prever depois dessa enorme vaga contestatária, assumiu pacificadoramente uma continuidade de pressupostos, contrariada por aquele projecto, com o programa anterior. A versão definitiva aprovada, da responsabilidade de uma equipa de cinzentas eminências universitárias, sobreexcedeu aliás a expectativa. Consistiu pura e simplesmente em fazer o programa revogado suceder-se a si mesmo. Em figurino reajustado de maneira a parecer menos arbitrário nas suas articulações e modernizado com referências a correntes contemporâneas, e escondendo a operação de cosmética com uma permuta do estudo de «autores» pelo estudo de «temas», o programa actual é, com efeito, na sua fundamental imagem da filosofia escolar, uma reposição do programa antigo. A ponto de não só lhe confirmar a rapsódica escolha das unidades temáticas – copiando-lhe até, no essencial, a distribuição dos temas pelos 10.º e 11.º anos da escolaridade – como de a completar no sentido de um enciclopedismo filosófico «clássico». Assim, por exemplo, a Antropologia e a Axiologia (teoria da acção e dos valores) saíram confirmadas como unidades programáticas nucleares do 10.º ano, tal como a Epistemologia (teoria do conhecimento e da ciência) como unidade nuclear do 11.º ano. Mas, por outro lado, a Epistemologia passou a estar «introduzida» pela Lógica e a preparar o acesso à problemática da Ontologia, que por sua vez prepara uma unidade «integradora» final, de mal disfarçada ressonância teológica, 252


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sobre «o sentido da existência». Em resumo, o programa actual consolida uma caracterização da filosofia escolar pela sua conciliadora abrangência, pela sua «brancura» ideológica e pela pretensa perenidade dos seus «grandes» temas e problemas: numa palavra, pelo seu eclectismo. Decididamente, Victor Cousin está vivo e recomenda-se, pelo menos entre nós. Mas por força disto mesmo, desta não-ruptura com os pressupostos, hoje perfeitamente caducos, responsáveis pelo ensino da disciplina e pela matriz tradicional desse ensino, este programa «reformado» parece-nos representar, virtualmente, um absurdo acto de «hara kiri» da filosofia escolar. Tanto mais evidente quanto mais se tiver em conta o presente contexto de problematização da escola e das suas funções, de mercantilização do ensino, de tecnicização dos saberes e das aprendizagens, de redefinição dos sistemas escolares segundo critérios comerciais e profissionais de formação de «recursos humanos». Contexto em que esse programa, pairando anacronicamente sobre todo esse circunstancialismo como se a filosofia e a sua instituição pedagógica fossem o mais inabalável pilar do espírito, só pode ter por principal consequência prática, a prazo, a condenação da disciplina ao suicídio. Tal como está, a disciplina filosófica do secundário só serve, no fundo, para garantir um mercado de trabalho, um escoamento profissional para os licenciados em filosofia. Não haveria nada, então, a fazer com essa disciplina? Haveria, talvez, isto: tentar transformá-la num «espaço» pedagógico com pretensões sem dúvida mais modestas do que as actuais mas, em troca, produtivo, dotado de uma tarefa positiva inapropriável, justificativa de facto. Como? Repensando-a em função das formas experienciais vocacionais dos alunos, por exemplo das suas experiências estéticas e cognitivas, como prática de inteligibilização (problematização/conceptualização) dessas formas, a partir delas «induzindo» a filosofia, a razão de ser do filosófico. A última reforma do sistema escolar terá sido muito provavelmente a derradeira oportunidade, desgraçadamente perdida, 253


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para operar esta reconversão 2. Porque, agravando até ao intolerável o mencionado desfasamento natural da disciplina e dos seus destinatários, o modelo, basicamente o mesmo, dos últimos programas da disciplina tem tido por mais óbvio efeito o desmuniciamento e a descredibilização, junto desses destinatários sobretudo, do ensino secundário da filosofia. Como se disse, o programa em curso reinvestiu esse estafado modelo, realizou uma pseudo-reforma, adiou o inadiável, a legitimação de uma disciplina hoje completamente deslegitimada. Assim se terá aberto a porta, de maneira patética, a uma definitiva eliminação da disciplina em próxima reorganização mais severamente tecnocrática do sistema escolar. O que decerto, além dos respectivos docentes, ninguém lamentará.

_________ 2 O presente texto foi publicado no Expresso em 15/06/1991, no âmbito da discussão pública então havida sobre a reforma dos programas da filosofia escolar, e aqui republicado, com escassas alterações, pela sua actualidade.

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obras do autor ensaio (selecção) Lógica do acontecimento — introdução à filosofia de Deleuze, Edições Afrontamento, Porto, 1995, 2.ª ed. aumentada Documenta, Lisboa, 2012, reimp. 2018 O que é poesia?, Pé de Página Editores, Coimbra, 2008 2.ª ed. (e-book), Grácio Editor, Coimbra, 2011 3.ª ed. modificada, Documenta, Lisboa, 2014 Grandeza de Marx — por uma política do impossível, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011 Žižek, Marx & Beckett — e a democracia por vir, Documenta, Lisboa, 2014, reimp. 2016, 2018 O Riso de Mozart — música pintura cinema literatura, Documenta, Lisboa, 2016 Pre-Apocalypse Now, Documenta, Lisboa, 2016 Teologia da carne — a pintura de António Gonçalves, Documenta, Lisboa, 2018 Anti-Doxa — a filosofia na era da comunicação, Documenta, Lisboa, 2019

antologias Manuel António Pina, Dito em voz alta, Pé de Página Editores, Coimbra, 2007, 2.ª ed. aumentada, Documenta, Lisboa, 2016 Manuel António Pina, Por outras palavras & mais crónicas de jornal, Modo de Ler, Porto, 2010 Manuel António Pina, Crónica, saudade da literatura, Assírio & Alvim, Lisboa, 2013

traduções François Châtelet, Platão, Rés, Porto, 1977 Gilles Deleuze, Cinema 1. A imagem-movimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009, reed. Documenta, Lisboa, 2016 Gilles Deleuze, Cinema 2. A imagem-tempo, Documenta, Lisboa, 2015 Gilles Deleuze / Félix Guattari, Rizoma, Documenta, Lisboa, 2016



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