Sousa Dias, «Teologia da Carne — A pintura de António Gonçalves»

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TEOLOGIA DA CARNE a pintura de Antรณnio Gonรงalves


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Sousa Dias

TEOLOGIA DA CARNE a pintura de Antรณnio Gonรงalves

D O C U M E N TA


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in memoriam Joaquim von Hafe Pérez


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1 a p i n t u r a , a e s c r i ta


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Escrever sobre esta pintura. Não. Não escrever «sobre». Fazer antes que seja ela, de certo modo, e tanto quanto possível, a escrever-se, a trans-escrever-se. Isto é: a transcrever o seu sentido ou Ideia da sua «linguagem» para a linguagem. Deixar que seja ela a «falar» aqui, a «dizer-se». Com o olhar escutar-lhe a silenciosa voz, e dar a essa voz, a esse silêncio, palavras que sejam mesmo as «suas», que ajudem outros olhos a ouvir essa voz, a ver esse silêncio. Modo de dizer, claro está. Metáfora, registo metafórico do «como se»: como se a pintura tivesse ou fosse voz, fosse, por imagem, na «sintaxe» e na «semântica» das suas imagens, uma fala, um dizer. Como se a pintura fosse uma linguagem de imagens traduzível na linguagem lógica, como se ela, como se uma obra de arte, fosse tudo o que, em essência, não é, mensagem, comunicação. É precisamente por não ter nada a comunicar, nada a dizer, que uma pintura, qualquer obra de arte, «diz» sempre, nunca recusa «dizer», tudo aquilo que todos os discursos contraditórios sobre ela, até os mais absurdos, dizem que ela «diz», a fazem «dizer». A arte, o seu domínio partilhado diferentemente, diferencialmente, pelas várias artes (artes literárias incluídas), situa-se para lá da linguagem, dos 11


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limites da linguagem. O que ela diz, nas suas «linguagens» próprias, é, em absoluto, da ordem do indizível. Mas de um indizível que, como pensamento álogon que é (arte é pensamento, forma alógica irredutível de pensamento), se deixa pensar, co-responder, por um logos que afirme essa autonomia, essa alogicidade ou exterioridade a si, desse indizível, do sentido assignificante, autorreferencial, «descomunicativo», da obra de arte. Que se deixa pensar, pois, por um pensamento discursivo, «teorético», que nada mais pretenda do que explicitar, nos recursos lógicos ou conceptuais da linguagem, mas assumindo-a no seu estatuto além-linguagem, a Ideia estética da obra, a Ideia extralinguística, extralógica, que aí se exprime. A pintura, por exemplo, enquanto pensamento por imagens, não é expressão imagética de ideias pré-pictóricas mas, de cada vez, Ideia-imagem, Ideia estética inexprimível de forma não estética. Dizer, mas respeitando-lhe a irredutibilidade ou excesso a todo o dizer, a todo o logos ou linguagem, a Ideia da obra. Tal é o significado das palavras iniciais deste texto: não escrever «sobre» esta pintura mas escrevê-la, transcrevê-la, permitir-lhe dizer-se nesse seu excesso a todo o dizer.

Nunca a pintura existiu para representar seja o que for. O seu espírito nunca foi esse. A grande pintura jamais teve por objecto objectos — corpos ou coisas, entidades visíveis para a 12


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percepção humana natural — mas «objectidades» inobjectivas, perceptos ou sensações ópticas que transcendem, como puras visões estéticas, toda a objectividade, toda a percepção de objecto. Não há pintura, não há arte, sem essa transcendência. É mesmo essa transcendência que define a essência, o espírito ou a espiritualidade, de toda a arte. Tudo o que a pintura «representativa», figurativa, representa está lá para apresentar um irrepresentável, para figurar um sem-figura, só pela pintura figurável, apresentável. O que vale também, e por maioria de razão, quer para a pintura antifigurativa, abstraccionista, quer para uma pintura como esta de António Gonçalves, nem figurativa nem abstracta, mas, de forma assumida, entre uma coisa e outra. Objecto ou objectivo deste pintor: pintar Eros, pintar o desejo erótico. Mas pintá-lo por si, pintar o desejo «ele mesmo». Nada a ver com representar corpos entregues à consumação desse desejo, com uma corporificação e, nessa medida, com uma subjectivação, uma atribuição a corpos-sujeitos, do desejo. Isso, essa atribuição, é muito exactamente o que esta pintura não quer mostrar. Trata-se, pelo contrário, de mostrar, de fazer ver, através da representação ou figuração pictórica, a própria pulsão erótica, em si mesma irrepresentável. Em suma, trata-se de pintar o corpo sob o sujeito, a carne sob o corpo, a força do erotismo sob a forma da carne, o invisível dessa força sob o representável da sua fisiologia.

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O que nos remete para um outro aspecto fundamental da pintura, manifesto nesta obra. Referimo-nos àquilo que poderia designar-se como o vínculo ontológico da arte. Não há pintura fora deste vínculo, desta vinculação aparente ou inaparente, próxima ou remota, da imagem pictural, isto é, da sua correlação expressiva com a ordem do ser. É esse vínculo que autentica as Ideias estéticas de pintura. Por mais «imaginária», «informal» ou abstracta que seja a imagem de pintura, por mais autorreferencial que se apresente o «mundo» da imagem, essa imagem permanece um ponto de vista sobre o ser, «um» mundo perspectivo «do» mundo, a expressão visível de uma faceta imanente invisível, ou de um sentido «espiritual» transcendente, do mundo sensível. Permanece, em síntese, a imagem de uma possibilidade do ser, de uma «possibilidade de mundo», de um mundo possível. Como diz Adorno, a imagem de pintura não pode escapar, ainda que o pretendesse, ao seu destino de «aparência». Ainda que absurda, por hipótese, essa imagem traz sempre consigo, nos termos daquele filósofo, uma «sugestão de sentido». Há, no entanto, dois equívocos a evitar. O vínculo ontológico da imagem não tem nada a ver com realismo. O realismo, como concepção estética, é a denegação absoluta da arte, do próprio espírito da criação artística, e já vimos que a grande pintura figurativa não se define pela «objectividade» da imagem mas pelo que, de inobjectivo, se abre e se faz visível no representado, pela abstracticidade para que tende, aí, a figuratividade. Por outro lado, o vínculo ontológico, enquanto garante de sentido, não é um vínculo significante, 14


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a expressão estética não é, não se deixa reduzir a, uma significação. Nunca será de mais insistir neste ponto: a obra de arte e, em particular, a imagem de pintura não significa nada, não existe para significar, para comunicar, na sua «linguagem», um significado. Existe, pelo contrário, para criar um mundo de sentidos possíveis como tal irredutíveis a toda a significação, para produzir sentidos «ontológicos» sempre em excesso sobre qualquer significação lógica, Ideias estéticas intraduzíveis em proposições. Pensar é sempre isso, em todos os domínios, saltar do plano da significação para o do sentido, abrir sentido para lá do significável, e a arte é uma forma, em nada inferior às outras, de pensamento. E é por ter abdicado desse espírito criador ou sugestivo de sentido, dessa função de criação ontológica, por ter, pois, assumido uma «perda de mundo» e um pessimismo generalizado sobre a expressividade ontológica das imagens nesta época em que tudo é imagem, que a arte contemporânea pôde declarar a pintura como coisa do passado, sem mais futuro, anunciar o fim da pintura e até mesmo o fim da arte.

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índice

1. a pintura, a escrita 2. anacronismos 3. a sagração de Eros 4. a carne e o corpo 5. a imagem para lá da imagem

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obras reproduzidas

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obras do autor ensaio & poesia Mil experimentações — o pensamento e o mundo, Livraria Civilização Editora, Porto, 1980 Razão e Império, Livraria Civilização Editora, Porto, 1981 Arte, verdade, sensação, Livraria Civilização Editora, Porto, 1983 Lógica do acontecimento — introdução à filosofia de Deleuze, Edições Afrontamento, Porto, 1995, 2.ª ed. aumentada Documenta, Lisboa, 2012, reimp. 2018 Estética do conceito, Pé de Página Editores, Coimbra, 1998 Questão de estilo — arte e filosofia, Pé de Página Editores, Coimbra, 2004, 2.ª ed. (e-book) Grácio Editor, Coimbra, 2012 E Ítaca eras tu (poesia), Pé de Página Editores, Coimbra, 2005 Vocação vegetal (poesia), Pé de Página Editores, Coimbra, 2006 O que é poesia?, Pé de Página Editores, Coimbra, 2008 2.ª ed. (e-book), Grácio Editor, Coimbra, 2011 3.ª ed. modificada, Documenta, Lisboa, 2014 Rizologias — nota sobre Heidegger e a Tirania (e-book), LusoSofia, Covilhã, 2010 Grandeza de Marx — por uma política do impossível, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011 Žižek, Marx & Beckett — e a democracia por vir, Documenta, Lisboa, 2014, reimp. 2016, 2018 O Riso de Mozart — música pintura cinema literatura, Documenta, Lisboa, 2016 Pre-Apocalypse Now, Documenta, Lisboa, 2016 Teologia da carne — a pintura de António Gonçalves, Documenta, Lisboa, 2018 antologias Manuel António Pina, Dito em voz alta, Pé de Página Editores, Coimbra, 2007, 2.ª ed. aumentada, Documenta, Lisboa, 2016 Manuel António Pina, Por outras palavras & mais crónicas de jornal, Modo de Ler, Porto, 2010 Manuel António Pina, Crónica, saudade da literatura, Assírio & Alvim, Lisboa, 2013 traduções François Châtelet, Platão, Rés, Porto, 1977 Gilles Deleuze, Cinema 1. A imagem-movimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009, reed. Documenta, Lisboa, 2016 Gilles Deleuze, Cinema 2. A imagem-tempo, Documenta, Lisboa, 2015 Gilles Deleuze / Félix Guattari, Rizoma, Documenta, Lisboa, 2016


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linhas de fuga Lógica do Acontecimento — Introdução à filosofia de Deleuze, Sousa Dias O Cinema da Poesia, Rosa Maria Martelo O que é Poesia?, Sousa Dias Geografia Imaterial, João Barrento Žižek, Marx & Beckett — e a democracia por vir, Sousa Dias Crónicas: Imagens Proféticas e Outras — 3.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz A Imagem-Tempo — Cinema II, Gilles Deleuze Tradução de Sousa Dias Crónicas: Imagens Proféticas e Outras — 4.º volume, João Bénard da Costa Edição de Lúcia Guedes Vaz O Riso de Mozart — música pintura cinema literatura, Sousa Dias Os Nomes da Obra — Herberto Helder ou O Poema Contínuo, Rosa Maria Martelo Dito em Voz Alta — Entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo, Manuel António Pina O Olho Divino — Beckett e o cinema, Tomás Maia A Imagem-Movimento — Cinema I, Gilles Deleuze Pre-Apocalypse Now — Diálogo com Maria João Cantinho sobre política estética e filosofia, Sousa Dias Manuel António Pina — Uma pedagogia do literário, Rita Basílio Teologia da Carne — A pintura de António Gonçalves, Sousa Dias


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© SOUSA DIAS, 2018 imagens ©ANTÓNIO GONÇALVES © SISTEMA SOLAR (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA 1.ª EDIÇÃO, MAIO DE 2018 ISBN 978-989-8902-11-5 CAPA: ZELO DA FORMA (PORMENOR), ANTÓNIO GONÇALVES FOTOGRAFIAS: GUILHERME CARMELO (PP. 57-61), PEDRO LOBO (PP. 62-71) PAGINAÇÃO: GRAÇA MANTA REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE

DEPÓSITO LEGAL: 440939/18 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA RAINHO & NEVES, LDA. RUA DO SOUTO, 8 4520-612 SÃO JOÃO DE VER PORTUGAL



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