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Wichels
Este livro resulta de uma versão resumida e editada da tese de doutoramento vencedora da 2.ª edição do Prémio Paquete de Oliveira — Prémio Nacional de Excelência para Teses de Doutoramento em Universidades Portuguesas atribuído pela SOPCOM — Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação.
apoio
© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA) , 2022 RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA
© SOPCOM – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO com SUSANA WICHELS, 2022 AV. DE CEUTA SUL, LT 2 – LOJA 2, 1300-254 LISBOA
1.ª EDIÇÃO: DEZEMBRO DE 2022 ISBN 978-989-568-021-4
REVISÃO: ANTÓNIO PEDRO MARQUES
DEPÓSITO LEGAL 508867/22 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ULZAMA
As carreiras nas redes sociais prometem autonomia criativa, horário flexível e a ideia glamorosa de fama e fortuna. […] Hoje, as aspirantes criativas acreditam estar apenas a um «post» de distância do seu #dreamjob. Duffy, 2018
Aos meus pais, Ângelo e Luísa, ao meu marido Ralf e à Doutora Maria João Silveirinha.
INTRODUÇÃO
O presente livro tem como pano de fundo a questão das subjetividades de género que dominam tanto a cultura mediática, como as práticas quotidianas contemporâneas, e as «novas feminilidades» presentes na blogosfera feminina portuguesa. Estas feminilidades são entendidas como construções que respondem a um (novo) contexto cultural em que o poder das mulheres é simultaneamente celebrado e contrariado de novas formas. Tal abordagem aprofunda a noção de que a blogosfera tem um importante potencial de articulação identitária das mulheres.
O estudo da blogosfera feminina é um fenómeno de forte pertinência de análise, quer pela sua relevância cultural contemporânea, quer porque ela se afirma como um novo meio que pode constituir-se como um locus de expressão que os «velhos» media parecem ter negado às mulheres (Silveirinha, 2007). De forma mais geral, o mapear da realidade da blogosfera portuguesa contemporânea é também necessário para analisar como a Web 2.0 e as novas tecnologias digitais estão a transformar as redes sociais reais, os significados associados às novas interações sociais e a construção das formas identitárias contemporâneas (Orton-Johnson et al., 2013).
A investigação propõe constituir-se como uma abordagem às novas subjetividades de género que dominam a cultura mediática, a política e as práticas quotidianas contemporâneas, analisando o que Rosalind Gill e Christina Scharff (2011) designam como «novas feminilidades», i.e., construções de género que respondem a um contexto cultural em que o poder das mulheres é simultaneamente celebrado e contrariado de novas formas. E situa-se no domínio do que Ragin (1994) designa como a «interpretação de fenómenos culturalmente significantes». A realidade e a natureza humana são complexas e caóticas, e o mundo digital acaba por ser um espelho desta realidade, recolhendo a pluralidade de vozes e os vestígios deixados pelo indivíduo, que
importa ordenar e entender. Por isso, o trabalho primordial do investigador social é, como nos sugere Charles Ragin (1994), ordenar esse caos, encontrar os padrões de comportamento e as grandes tendências do complexo mundo social. A investigação social, especialmente a online, é de natureza poliédrica, pois ela reflete a própria sociedade.
A finalidade é delinear o quadro geral das práticas bloggers, enquadrá-lo teoricamente na cibercultura e no pós-feminismo, demonstrar as forças que o compelem e ameaçam, mapeando também os interesses corporativos e as pressões da sociedade de consumo. Olhamos para a forma como as mulheres portuguesas realizam as suas práticas e representações digitais através dos media sociais, concretamente, através do seus blogues. Procuramos sublinhar as diferentes possibilidades oferecidas e as novas pressões sociais exercidas pelos media às mulheres, situando a corrente de investigação dentro das representações e práticas mediáticas digitais. Mais amplamente, pretende-se colmatar um evidente défice de investigação nacional no campo dos novos media e dos estudos feministas dos media, oferecendo uma análise capaz de responder simultaneamente aos imperativos de compreensão do fenómeno da blogosfera nacional e da sua articulação com os fenómenos globais que caracterizam a cultura mediática em geral.
A investigação aborda concretamente as práticas mediáticas e de autorrepresentação do género realizadas por mulheres na blogosfera portuguesa mais «influente» — isto é, com maior número de visitas e com maior repercussão comercial — através de uma abordagem que, certamente, não condena, nem defende as mulheres como produtoras de conteúdos que, numa atitude conscientemente feminista, se podem considerar «frívolos». Assim, tenta-se conduzir uma investigação sobre as práticas digitais bloggers, tendo por objetivo perceber as tensões, as complexidades e os diferentes jogos de poder que circulam na produção digital atual com grande visibilidade e concretamente na construção subjetiva de género na cultura digital portuguesa com maior extensão.
A escolha dos blogues recai no facto de que estes oferecem um novo fórum para a apresentação do «self» — como proposto por Erwin Goffman (2002) —, favorecendo uma cultura participativa (Jenkins, 2008) através do uso de uma tecnologia que congrega vários media numa só arena (Miller, 1995 apud van Doorn et al., 2007: 144). Deste modo, a investigação centra-se empiricamente na análise dos blogues femininos mais populares da
| Introdução
sociedade portuguesa, e na forma como as suas autoras se autorrepresentam nesses media sociais. Os seus blogues são considerados, na terminologia do marketing, como os mais «influentes», dada a sua repercussão na rede comercial de que fazem parte (Matsumura, Yamamoto e Tomozawa, 2001). As suas autoras são, nos mesmos termos, consideradas como as principais «influenciadoras» (digitais) dos campos do consumo, da moda, beleza e de outras áreas afins, e são, deste ponto de vista, mulheres com um grande poder de influência. Neste livro, essa dimensão de influência e de poder, não podendo deixar de estar presente, é, no entanto, apenas uma das questões em análise, já que nos centraremos, de forma mais ampla, nas práticas mediáticas e nas representações que não são (à partida, pelo menos) de «resistência» ou de «subversão» feminista, mas que são politicamente significantes, pois revelam a forma como as suas autoras renegoceiam as condições das suas feminilidades nos ambientes tecnológicos contemporâneos. Quer isto dizer que procura-se entender, e mesmo ir além, da dimensão de «influência» comercial que estes blogues, à partida, apresentam, situando-os num espectro social e político mais amplo que permite identificar, de um ponto de vista feminista, o seu grande poder cultural de definição das identidades das mulheres nas sociedades contemporâneas digitalmente mediadas.
Averigua-se, assim, de que modo essa articulação das (novas) identidades femininas nos (novos) media se faz por uma inscrição nas dinâmicas sociais, políticas e económicas que caraterizam as sociedades contemporâneas, ampliando o foco da discussão tanto para o contexto macro (político-económico), como para o da cultura feminina «situada» no espaço cultural e histórico nacional.
O que nos dirão os posts pessoais, as narrativas das vidas diárias, as sessões fotográficas sobre os outfits do dia, a partilha de receitas culinárias, de segredos de beleza, dicas para cuidar dos filhos ou da casa, sobre as condições culturais das mulheres da nossa sociedade? Como negoceiam as mulheres portuguesas o contexto pós-feminista na blogosfera por elas construída? Como funciona e quais são as dinâmicas e práticas que caraterizam a blogosfera feminina portuguesa contemporânea mais «influente»? Na análise das implicações sociopolíticas dos novos media para as mulheres será possível (ou desejável) ir além dos argumentos da falsa consciência e das discussões sobre representação? De que modo os novos media são um espaço político onde se entrelaçam ideias feministas e antifeministas? Como se articulam na blogosfera feminina as expe-
riências, desejos e expressões identitárias com questões de automonitorização, agência e empoderamento? Existe um potencial emancipatório nos discursos dos blogues femininos ou estes estão impregnados de ideais que se limitam a responder aos imperativos das dinâmicas neoliberais globais?
Todas estas problemáticas devem ser lidas a partir de novas abordagens, pois acontecem de forma participativa e interativa nas novas redes sociais (Banet-Weiser, 2012; Dobson, 2015; Findlay, 2017), sendo consideradas formas de expressão que tornam as suas produtoras populares e na moda (Turner, 2010). Mais do que apresentar um argumento para os significados de todos os blogues femininos, procura-se encontrar algumas respostas e reflexões para determinadas práticas e representações.
O standpoint desta investigação está associado às correntes feministas que se preocupam com a igualdade social do género e o empoderamento feminino (Harding e Hintikka, 2004). Parte-se do pressuposto de que quando uma mulher publica um post pessoal ou uma fotografia da sua roupa favorita não tem consciência de que pode estar a contribuir para uma certa representação das mulheres, nem que pode estar a reforçar ou a desafiar as convenções sociais binárias de género ou da objetificação sexual (Dobson, 2015). De um ponto de vista pessoal, esta investigação alicerça-se na forte vontade de compreender melhor como se constituem as subjetividades de género pelas práticas mediáticas digitais das mulheres na cultura mediática ocidental em geral e na portuguesa, em particular. O corpus em análise recobre formações discursivas digitais de mulheres «influentes», e, nesse sentido, com forte poder comercial, digital e, portanto, cultural. Mas esse poder é também identitário, na medida em que constitui, e é constituído por, relações sociais e culturais que articulam formas de «ser» mulher. Estas formas são «novas» na medida em que apresentam/constituem mulheres «empoderadas» e feminilidades contemporâneas num contexto de grande partilha e interação mediática.
As práticas discursivas e mediáticas que se conjugam para a construção de autorrepresentações de género em blogues femininos serão lidas neste trabalho dentro do contexto cultural das Novas Tecnologias, do Pós-feminismo e do marco da Pós-modernidade.
A blogosfera enquanto objeto de estudo é um fenómeno com fronteiras permeáveis e indefinidas, que requer uma abordagem cuidadosa que tome em conta as diferentes vozes, complexidades e interesses que nela coexistem.
| Introdução
Em termos gerais, a tese apresentada neste livro resulta de um processo flexível, sistemático, de contínua indagação, e tem por objetivo contribuir para a explanação e compreensão das tendências gerais e relações que caraterizam a blogosfera feminina portuguesa contemporânea mais visitada na delimitação temporal de 2015 a 2017. Utilizando o sistema de categorizações de Clara Coutinho (2014), a profundidade da investigação é de tipo exploratória-descritiva e com alcance temporal transversal. Tendo como referencial os paradigmas antipositivista e sociocrítico, adotámos o sistema de inferência abdutivo, que prevê a combinação de métodos qualitativos e quantitativos de forma sequencial (Morgan, 2007), onde os resultados indutivos de uma abordagem qualitativa podem servir como inputs dos objetivos dedutivos de uma abordagem quantitativa e vice-versa.
O objeto da investigação reside na Internet, que pode ser entendida como um conjunto de estruturas em constante mutação e evolução que apoia as ações humanas online, que manifesta, expressa e permite a produção, a inscrição e a experiência da cibercultura e é constituída por uma pluralidade de dimensões sociais, culturais e políticas, entre outras. Existem várias metodologias possíveis para estudar os fenómenos de comunicação e das interações humanas na Internet, neste caso escolheu-se como ponto de partida de reflexão o paradigma de análise de conteúdo Web (WebCA) proposto por vários investigadores, entre eles Susan Herring (2009: 11). Este paradigma encoraja o uso de métodos mistos, nomeadamente a conjugação de análise linguística, imagética, temática, de ferramentas de hiperligações, redes e esferas Web, como descrito no gráfico 1.
A natureza pluriautoral dos blogues, isto é, a coprodução de conteúdos partilhada entre vários atores, entre eles, o ator principal — o blogger — e os gráfico 1. O paradigma emergente de análise de conteúdo Web (Herring, 2009: 12).
atores secundários — os seguidores —, que criam textos e metatextos (leia-se comentários), também torna complexa a definição da unidade de análise. Por outro lado, a rápida evolução, transformação e volatilização dos conteúdos oferecidos online exige a adoção de métodos de pesquisa que permitam tanto a análise do fenómeno na atualidade, como numa perspetiva diacrónica (Schneider e Foot, 2005).
Como fio condutor geral, consideraram-se os cinco passos do paradigma de análise de conteúdo Web (Herring, 2009), que consiste em articular as questões de investigação; selecionar a amostra online; aplicar os conceitos-chave em termos de ferramentas de discurso; empregar os métodos de análise na amostra escolhida; e finalmente interpretar os resultados. A análise realiza-se em dois âmbitos: num primeiro momento, efetua-se uma análise macro da amostra ampliada de blogues a fim de procurar uma tendência geral, o que ajuda a ordenar o difuso conhecimento sobre a blogosfera e a identificar um padrão entre esta e os fenómenos globais do pós-feminismo e do neoliberalismo, que caraterizam a cultura mediática ocidental contemporânea. E num segundo momento realiza-se a análise micro, em maior profundidade, de um grupo específico de blogues, para entender os fenómenos em análise de forma mais específica.
Para recolher, triangular e analisar os dados usou-se o percurso metodológico misto de análise de «esfera Web» (Schneider e Foot, 2005), que consiste numa atualização do referido paradigma WebCA (Herring, 2009) e inclui uma análise estrutural de redes de tipo quantitativa (Sanz Menendez, 2003; Cherven; 2015; Brath e Jonker, 2015), uma análise de conteúdo textual e imagética sistematizada com a ajuda de software tipo MaxQda (Bardin, 2014), etnografia virtual (Kozinets, 2013; Hine, 2015; Pink et al., 2015), e entrevistas semiestruturadas em profundidade (Patterson, 2015).
A escolha de métodos mistos para o estudo deste fenómeno justifica-se devido à necessidade de compreender a blogosfera desde distintas perspetivas e camadas, resultando cada método numa tentativa de compreensão do dinamismo e da complexidade da blogosfera. Cada método conduziu (e reconduziu) a outros numa espécie de círculo hermenêutico. O desenho do percurso metodológico apresentado no gráfico 2 é uma adaptação da metáfora metodológica de «esfera Web» proposta por Steven Schneider e Kristen Foot (2005).
Porque se optou por não desenvolver a metodologia no corpo de texto do livro, apresenta-se aqui um breve resumo sobre a aplicação do modelo: Análise de Redes Sociais: Devido ao número incalculável de blogues, recolhemos uma amostra de conveniência, a partir do relatório dos blogues femininos mais visitados em 2015 verificado pela empresa Cision. As direções online dos blogues foram tomadas como ponto de partida e o seu grau de proximidade a blogues vizinhos foi analisado através de um webcrawler. O processo de exploração de hiperligações semiautomático repetiu-se de forma recursiva utilizando como ponto de partida as hiperligações encontradas na geração de blogues anterior, até encontrar uma rede de blogues e hiperligações direcionados que permitiu uma posterior análise de dados e estudo da organização da rede, a sua estrutura, as influências, os grupos, as hierarquias, tendências temáticas e o domínio da sociedade de consumo. A partir dos vinte blogues centrais foram identificados 1.044 hiperligações de primeiro grau, excluindo as redes sociais (Facebook, Instagram, etc. por tratarem-se de meios de autopromoção do mesmo blogue). Na segunda fase da exploração, tomando como ponto de partida a primeira geração de hiperligações, o processo de crawling revelou 14.932 hiperligações em segundo grau.
Entrevistas em profundidade semiestruturadas: Realizaram-se 19 entrevistas em profundidade semiestruturadas que partiram de um guião de 40 perguntas organizado em seis blocos: história do blogue e motivações pessoais; estratégias de seleção de conteúdo e publicação; relações com as audiências e a comunidade blogger; estratégias de monetização; e a sensibilidade feminista. Os códigos da análise de conteúdo derivaram do guião de perguntas, dos campos e reportórios semânticos das «Novas Feminilidades». Uma vez codificados os discursos das entrevistas foi possível organizar o conteúdo por categorias e temas e analisá-lo qualitativamente.
Análise de conteúdo textual e imagética: Operou-se a análise dos posts em formato de texto e imagem dos vinte blogues femininos mais visitados, publicados durante o mês de Março de 2017 — por incluir a celebração do «Dia da Mulher» — (257 unidades de análise [com url único] relativas aos posts, exportadas em 535 documentos pdf com um total 2.583 páginas A4, incluindo 1.389 fotografias e imagens), bem como as páginas de apresentação «Sobre Mim» (100 blogues femininos mais visitados a partir da lista fornecida pela empresa Cision [com url único], total de 275 páginas A4 de texto, incluindo 120 fotografias e imagens]). Devido à dimensão do corpus foi necessário recorrer a um software (MaxQDA) para realizar a análise qualitativa de conteúdo. Os dados foram sistematizados através dos filtros do MaxQDA, os resultados exportados em diferentes relatórios de Excel e posteriormente foram objeto de nova análise de conteúdo ou de representação gráfica. Etnografia virtual participante: Para conhecer as práticas bloggers desde «dentro» e interagir a um nível interpessoal com as outras bloggers, foi essencial criar e manter uma blogger-persona. Durante os três anos e meio de atividade etnográfica acumulou-se conhecimento sobre a doxa e habitus das práticas bloggers à medida que se ia realizando experiências de publicação, interatuando com agências de comunicação, marcas e outras bloggers através da atividade do blogue criado para o efeito; e participou-se ativamente em grupos de apoio virtuais em Facebook para bloggers, nacionais e internacionais, onde os membros esclarecem dúvidas relacionadas com as novas tecnologias, criam interações e se entreajudam. Na prática, a etnografia virtual participante foi acontecendo paralelamente aos outros métodos. A etnografia ao longo da investigação conduziu a uma imersão real e envolvente na blogosfera e a períodos de reflexão e distanciamento.
Interessa ainda fazer referência à estrutura do presente livro. Para contextualizar e teorizar sobre as questões supramencionadas, recorremos nas partes I e II a um enquadramento teórico por análise das principais referências bibliográficas do campo, e na parte III a uma análise empírica de uma amostra de blogues femininos portugueses. Esta divisão não é, porém, estanque, já que procurámos cruzar as reflexões teóricas com a apresentação de exemplos discursivos extraídos das entrevistas às bloggers e análise de conteúdo aos blogues, bem como de algumas conclusões preliminares, num esforço de conseguir um fluxo entre a teoria e os nossos dados empíricos.
Na Parte I, Comunicação Digital, Construções Identitárias e Feminismo, enfoca-se as questões teóricas relacionadas com as representações sociais e as construções identitárias, os feminismos de hoje e as novas feminilidades. Já na Parte II, Blogosfera, Comunicação e Género, contextualiza-se o fenómeno da blogosfera a partir de diversas perspetivas, áreas e prismas. Esta parte começa pela narrativa focada na blogosfera e nos blogues como parte dos novos media, faz-se uma reflexão da construção do self virtual da mulher, passando pela comunicação, consumo e empoderamento dos blogues, terminando com a perspetivação das bloggers como trabalhadoras do novo contrato sexual pós-fordista. Na Parte III, intitulada Aproximação empírica à Blogosfera Feminina Portuguesa, configura-se a apresentação e discussão de resultados. E, por fim, encerra-se com a conclusão que contempla uma reflexão crítica sobre os tipos de feminilidades que prevalecem nas representações digitais da cultura portuguesa da (e para a) mulher, e sobre as ambivalências e as crescentes preocupações sobre os ideais de visibilidade e exposição das mulheres na esfera pública. Para finalizar, impõe-se dizer que o presente trabalho não pretende, nem certamente conseguiria, descrever ou documentar todas as transformações e características que conformam a blogosfera portuguesa feminina. O desejo não é apresentar um tratado final sobre os estudos da blogosfera — o objetivo é bem mais modesto. Pretende-se, antes, dar conta de um fenómeno que nasceu e se desenvolveu durante as últimas décadas e que continua a evoluir enquanto se escrevem estas linhas.
Certamente, a blogosfera terá um tempo e um espaço específico na história da comunicação humana. Provavelmente, esta forma de comunicação evoluirá, convergirá ou transmediará para uma nova plataforma ou aplicação — talvez já não se chame «blogging» e tenha um nome mais futurístico. A história dos
media, em termos McLuhanianos, mostra-nos que nenhum medium se perde, apenas se transforma. E é isso, provavelmente, que acontecerá ao movimento blogger. De uma coisa pode-se ter a certeza: a necessidade de realizar e partilhar narrativas pessoais através de algum tipo de rede social continuará a existir, com esta ou outra forma.
parte i COMUNICAÇÃO DIGITAL, CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS, FEMINISMO
CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS, REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NA COMUNICAÇÃO DIGITAL
Os blogues são mais do que softwares que permitem a autopublicação, são espaços de construção identitária, territórios de apresentação do «Eu» e territórios discursivos com uma abrangente componente de poder comunicativo que se articula com diversos campos sociais (económico, cultural e mesmo político). É graças à sua robusta dimensão interacional que se destacam de outros meios de comunicação e se tornam especialmente valiosos como objetos de estudo nas Ciências da Comunicação.
As/os bloggers procuram equilibrar os seus interesses comunicativos com a necessidade de agradar às audiências e gerir as representações dos «territórios do Eu». As apresentações do «Eu» são muitas vezes representações diretas e conscientes através de textos com narrativas autobiográficas, fotografias ou vídeos, ou indiretas, onde apenas se revelam determinados aspetos da personalidade do blogger.
Nas formações discursivas bloggers a existência de reflexões do autor sobre si próprio e sobre os outros pode ser positivamente emancipador ou tornar-se um constrangimento e um risco. Em qualquer caso, cabe ao blogger a complexa tarefa de gerir as suas publicações, não apenas no sentido informativo, mas porque estas estão imbuídas de sentidos indiretos repletos de limitações e de potencialidades.
As formações discursivas presentes nos blogues podem, assim, ser lidas como formas de representação da identidade do autor ou autora. São uma forma do autor se relacionar com o mundo e de se afirmar/anunciar, identificar/diferenciar ou, por outras palavras, de sentir que pertence e que está ligado ao «Outro» e à sociedade.
Os conteúdos disponibilizados pela/o blogger fazem mais do que comunicar ou informar. A escrita de um blogue é, pois, um ato comunicativo complexo, que envolve a (re)descoberta, a apresentação e o aprofundamento do «Eu», sendo por vezes a publicação de informação apenas um ato secundário.
Comunicação Digital, Contruções Identitárias, Feminismo |
As narrativas digitais publicadas em formato post impõem uma nova experiência da identidade pessoal e uma nova experiência do «Outro», convidam à descoberta de novas fronteiras entre o privado e o público, o real e o ficcional, à exposição e ao escrutínio público (com os seus riscos e potencialidades), e sempre à negociação estratégica da informação divulgada consciente e inconscientemente. Os blogues são espaços de construção e representação identitárias e territórios de interação com o «Outro», do qual se espera algum tipo de reconhecimento.
O indivíduo e os binómios associados ao «Eu», nomeadamente, o Sujeito versus a Sociedade, «Eu» versus «Outro», Diferente versus Idêntico, entre outros, aparecem com crescente premência nos discursos da sociedade contemporânea. Hoje, e de forma mais intensa que em épocas anteriores, assiste-se a uma complexificação da vida pessoal e em grupo, e a um aprofundamento dos discursos do «Eu», do sentido da vida e da existência, como consequência das atuais mudanças na sociedade. Assiste-se progressivamente a uma complexificação das sociedades modernas e dos seus indivíduos, que se inquietam de forma crescente com perguntas relacionadas como «quem sou?» e «como cheguei a ser o que sou?». O sujeito passa a preocupar-se cada vez mais em encontrar respostas, indagando-se sobre o processo da formação de identidade.
A complexidade dos processos de formação da identidade
Definir o que é a identidade revela-se um processo complexo, pois estamos perante um objeto polissémico, intangível e dinâmico e cuja definição tem sido objeto de transformação ao longo da História Humana em geral e das Ciências Sociais, em particular.
A discussão sobre a identidade não é nova e, na verdade, tem vindo a acompanhar o ser humano, desde a Antiguidade até ao despontar do novo mundo Cibernético. A necessidade humana de categorizar e reconhecer seres e grupos a partir de um determinado atributo está presente desde o início da humanidade. A categorização pela semelhança acaba por contribuir para a afirmação desse ser e desse grupo, ao mesmo tempo que consente a diferenciação em relação aos demais. É nesta base social que os sujeitos encontram
um sentido, à medida que vão observando os efeitos das suas ações refletidas nas ações, comportamentos e respostas dos outros interlocutores e vice-versa, num movimento contínuo.
Este caminho de construção identitárias está repleto de labirintos. Homens e mulheres preocupam-se, ao longo da sua vida, com a «construção de si», participando em múltiplas identidades. A oscilação pendular e contínua entre semelhança e diferença é uma das marcas fundamentais dos processos de construção identitário tanto de ontem como de hoje.
A identidade individual está relacionada com a autoperceção, a interioridade do sujeito, a forma como este se define, se percebe, se avalia. A identidade pessoal está inextricavelmente relacionada com a história e valores do indivíduo e com o seu contexto social, cultural e económico. De forma dialética mobiliza-se entre o passado — o que foi —; um presente — o que é —; e um futuro — o que se almeja ser —, constituindo assim o «eu dinâmico». Já a identidade social situa-se no domínio da exterioridade e da representação, constituindo-se como uma espécie de definição externa, a personagem ou personagens (roles) que a sociedade espera que representemos (Goffman, 2002). É um jogo duplo, uma reflexão de espelhos que flutua entre polos antagónicos, entre a mesmidade («sameness») e a alteridade («otherness»), a semelhança e a diferença, entre o ser «parecido a» ou «diferente de», entre aquelas caraterísticas que nos tornam parecidos a nós mesmos ou a um grupo e, por oposição, às caraterísticas que nos tornam diferentes e que nos convertem em sujeitos singulares.
É no processo de exposição e interação que um indivíduo encontra ferramentas de sustentação e de identificação na sociedade (a consciência da posse de um «Eu»), ao mesmo tempo que origina vários processos de divisão e a criação de uma identidade social (por exemplo: de género, ou de classe).
No processo de construção identitária o sujeito enfrenta diversas situações de interação social e cultural com o «Outro», adaptando e condicionando o seu comportamento, mediante situações de identificação ou de rejeição. A oscilação entre a identificação ou a oposição com o «Outro» permite ao sujeito identificar-se a si próprio, tomando consciência e reconhecendo o seu «Eu», apresentar-se e ser reconhecido, como um igual ou como um diferente. É através das identidades sociais que os sujeitos se identificam e associam aos outros, produzindo laços de pertença ou, em oposição, deles se di-
Comunicação Digital, Contruções Identitárias, Feminismo |
Introdução ................................................................... 9
Parte I
Comunicação Digital, Contruçôes Identitárias, Feminismo
Construções Identitárias, Representações sociais na comunicação digital ......... 21
A complexidade dos processos de formação da identidade .................. 22
O papel da comunicação no processo da construção da identidade .......... 24
As identidades na Pós-modernidade e na Modernidade reflexiva 25
Cibercultura e o sujeito na era digital ...................................... 33
Os feminismos de hoje ....................................................... 39 O(s) feminismo(s) de «terceira vaga»....................................... 40
Pós-Feminismo ........................................................... 43 «Terceira vaga» versus Pós-feminismo ...................................... 48 As novas feminilidades 50
Parte II Blogosfera, Comunicação E Género
Os novos media: blogues...................................................... 59 Blogosfera de «primeira» e «segunda» vaga 63
Construção do self virtual ..................................................... 68 «Eu» Blogger e o «Outro» .................................................. 71 Autocensura e autenticidade .............................................. 75
Blogues como novos espaços de comunicação .................................. 78
Blogues como espaços de sociabilidade: Comunidades virtuais .............. 78
Blogues: Espaços de memórias mediadas 80
Os blogues: Enquanto narrativas existenciais ............................... 81
Blogue: O mundo Hiperreal .............................................. 83
Blogues: A Hipertextualidade ............................................. 84
Blogues: Espaços de hierarquias de poder 87
Bloggers: enquanto líderes de opinião ...................................... 88
Blogues: Independência de opinião ........................................ 89
Tipos e categorias de Blogues: os Lifeblogs ................................. 90
Blogues: Consumo, Rentabilização e Empreendadorismo 94 Consumo virtual digital .................................................. 94
Blogues de moda e beleza: os paraísos do consumo ......................... 98
Blogger: trabalhadora do novo contrato sexual pós-fordista ..................... 102
Trabalho freelancer e a partir de casa....................................... 109 Representações sociais da mulher nos media e na blogosfera 114
Parte III
Blogosfera Feminina Portuguesa
Análise de Redes Sociais: 20 blogues Femininos mais visitados em Portugal 133 A Blogger Portuguesa ......................................................... 145 Perfil das Bloggers ......................................................... 145 Formação das Bloggers .................................................... 146 Motivações para blogar ................................................... 148
As bloggers portuguesas e o empreendedorismo 151 Bloggers de Primeira ou segunda vaga? ..................................... 153 A Blogger e o «Outro» ......................................................... 155 Transferência de comentários ............................................. 155 Reações negativas e Haters ................................................ 156 Grau de coesão da blogosfera 159
Audiência: A disjunção entre o/a leitor/a imaginado/a e real ................ 161 «Eu Real» ou «Eu Virtual» ................................................ 165 Produção e manutenção dos Blogues Femininos Portugueses.................... 166
A existência de estratégia: A importância do Search Engine Optimization — SEO . 166 Blogar é uma atividade que «exige» esforço 168 Imersão emocional ....................................................... 170 Frequência de publicações ................................................ 171 Planificação das publicações / postagens ................................... 172 Tempo de preparação de um post 173 Escolha dos temas ........................................................ 174 Temáticas dominantes abordadas .......................................... 177
270 | Índice
Tipologias de posts nos blogues femininos Portugueses
...................... 178
Redes Sociais como meio de promoção do blogue .......................... 179
Continuidade como blogger ............................................... 181 Blogues, consumo, empoderamento e rentabilização ........................... 183
Consumidores digitais e associação da imagem ao produto ................. 183 Rentabilização económica................................................. 190
Media-kit e valor por post / Manutenção ................................... 191
Capital social das/dos bloggers 192
Uso de agências de gestão comercial de blogues, publicitária ou de comunicação 193
Profissionalização das bloggers 198 «Novas feminilidades» 201
Reforço de Caraterísticas Associadas ao Estereótipo Tradicional do Feminino 203 Hiperdomesticidade 204
Automonitorização e Autotransformação 205 Mito da Rapariga da Porta ao lado 206
Imagem projetada enquanto fonte de inspiração 207 «Feminino sim, feminista não» 208 Ser ou Não Ser Feminista 210
Consciência feminista ou de defesa dos direitos das mulheres 215
O «poder» negligenciado dos blogues: Dar voz à mulher 220 Blogar: Experiência da prática virtual 225
Criação de uma «blogger persona» 225
Grupos de apoio e interações entre bloggers 227 Feedback 231
Grupos de apoio a Bloggers — práticas legítimas de engagement e criação de audiências estáveis 232
Comentários e feedback da audiência 232
Imersão e Pressão da Publicação 233
A pressão dos números: o crescimento artificial versus orgânico 234
Crescente monetização das plataformas de publicação 235
Conclusão 237
Glossário 243 Bibliografia 245
271 Índice |