linhas de fuga / 22
Tomás Maia
VIDA A CRÉDITO arte contemporânea e capitalismo financeiro
D O C U M E N TA
Obrigado a Anabela Mota, Ana Mata, André Maranha, António Gonçalves, Boyan Manchev, Diogo Saldanha, Federico Ferrari, Federico Nicolao, João Seguro, Luís Filipe Cunha, Luís Guerra, Manuel Rosa, Maria João Mayer Branco, Marta Maranha, Paulo Pires do Vale, Paulo Sarmento, Pedro Maia, Pedro Tropa, Sara Maia, Sofia Cascalho, Teresa Santos, Escola Livre e Sousa Dias.
© TOMÁS MAIA, 2022 © SISTEMA SOLAR (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA 1.ª EDIÇÃO, ABRIL DE 2022 ISBN 978-989-568-013-9 NA CAPA: ANDY WARHOL, UM DÓLAR (GEORGE WASHINGTON), 1957, 66 × 156 mm REVISÃO: LUÍS GUERRA DEPÓSITO LEGAL: 499228/22 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ACD PRINT, SA RUA MARQUESA D’ALORNA, 25-19 2620-271 RAMADA
ÍNDICE
I. II. III. IV.
Nota liminar ...................................................
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O Fim ou a Persistência da Obra ...................... «O Capitalismo como Religião» do Crédito ...... A Metafísica do Capital Financeiro .................. O Sofista Contemporâneo ...............................
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À memória de António Martins Maia
Nota liminar
O crédito é o juízo que a economia política faz sobre a moralidade de um homem. Karl Marx, «Crédito e banca» (1844)
«Arte contemporânea» e «capitalismo financeiro»: se a primeira das duas designações tomará apenas o significado de índice histórico (pois interrogá-la em si mesma motivaria um outro livro), já a segunda será objecto de um prolongado exame (religioso e metafísico). Com efeito, trata-se sobretudo de tornar inteligível o modo como, na era «contemporânea» da história da arte (sobretudo a partir dos anos setenta do século passado), a criação artística começou a comprometer-se com a financeirização da economia (e o predomínio da finança coincide, precisamente, com o advento da dita era). Entre arte e capitalismo, à partida, tudo parece ser motivo de distinção e mesmo de antagonismo: se a primeira se define pela prática de um dom, o segundo rege-se pela apropriação da mais-valia. E se de um lado advém a partilha de uma dádiva, do outro é-nos imposta uma dívida. Ora, é todavia a uma convergência entre capital financeiro e parte significativa da «arte contemporânea» aquilo a que assistimos hoje — a um tal ponto que, pela
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primeira vez na história, é o próprio ser da arte que é atingido. Daí a necessidade, a urgência deste livro.
* Um livro que desconhecia em mim — e que surgiu do interior de outro livro. Esse outro livro, em torno de Marcel Duchamp, deixei-o aberto para ensaiar um aclaramento comum. Com efeito, nos dois textos, que formarão como que um díptico, parto da mesma premissa: a filosofia, na sua idade «contemporânea» (designação que não coincide, note-se, com a periodização da história da arte), confronta-se com a obra essencialmente respondendo à questão da necessidade: questão a que a própria arte chegou como se se tivesse reduzido ao seu resto. Duas respostas principais, e opostas entre si, foram avançadas acerca da arte: pronunciou-se o seu «fim» (Hegel), ou anunciou-se o seu reinício como «nova mitologia» (Schelling). O livro sobre Duchamp — por todas as razões, melhor será dizer a partir de Duchamp — indicará uma via distinta: um terceiro modo de responder à mesma e essencial questão, mostrando que a arte não depende nostalgicamente de nenhum passado, tal como não se projecta num futuro redentor. Este livro, provindo desse aclaramento, procura assumir todas as consequências do filosofema do «fim da arte» que paira sobre o Ocidente há cerca de dois séculos. Tal filosofema, importa surpreendê-lo na sua raiz, pois é ele, em última instância, que tem determinado o definhamento generalizado das artes. E se o dito «fim» nunca significou a cessação da produção dita «artística» — bem pelo contrário: a hiper-
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produção actual é o exacto reverso do seu estiolamento —, assumir todas as consequências daquele filosofema implica fazer, para começar, duas constatações sobre a nossa situação histórica: — estamos para além do horizonte em que Hegel projectara a arte (ou seja, para além da dilaceração entre o puro espírito e a pura forma); — e, simultaneamente, estamos perante uma mutação da própria ideia de «obra». Ora, esta mutação é tão profunda que atinge, como já aludi, o próprio ser da arte, de tal modo que está em curso uma efectiva falsificação, não deste ou daquele objecto, mas daquilo a que chamarei êthos artístico (maneira de ser, sentir e pensar do artista). Falsificação que não é pensável — e eis o programa deste livro — sem enfrentarmos (a um só tempo) a lógica do capital financeiro, a estrutura religiosa deste e o destino da obra de arte. «A um só tempo»: embora cada um destes aspectos seja abordado separadamente em extensão, convém apreender a sua unidade intensiva. Na verdade, após uma introdução crítica à nossa encruzilhada histórica (capítulo I: «O Fim ou a Persistência da Obra»), tentarei perseguir o fio civilizacional que une a religiosidade do capital à sua fundamentação metafísica (capítulos II e III, respectivamente), para culminar numa análise das principais consequências «artísticas» daí decorrentes (capítulo IV: «O Sofista Contemporâneo»). Tal fio chama-se «Ocidente» — quer dizer, há cerca de mais de um século, o mundo na sua totalidade.
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Uma palavra, ainda, sobre o título: Vida a Crédito. Este apareceu enquanto escrevia o segundo capítulo e, sobretudo, o seu décimo segundo parágrafo. De súbito, apercebi-me de que invertia um título de Céline: Mort à crédit, fazendo ressoar a extrema miséria que grassava no seio frenético de uma certa ideologia do progresso (no caso do romance céliniano, no âmago de uma época que se auto-intitulara Belle — mas que iria desvanecer-se com a deflagração da Primeira Guerra Mundial). Se Céline sugere que a própria morte passara a ser, também ela, objecto de crédito, o presente título procura assinalar que é a vida, na sua totalidade e, mais exactamente, o tempo humano que se encontra expropriado pelo capital financeiro. Porém, uma surpresa ainda me estava reservada a este propósito. Ao folhear as Notes de Marcel Duchamp, deparei com uma derradeira anotação do artista (nota 289, na edição de Paul Matisse): La vie à crédit. Sem mais: a frase figura aí sem qualquer explicação ou comentário. Independentemente do sentido duchampiano da expressão (supondo que, para ele, apenas houvesse um sentido), tudo indicava que eu não tinha escolha. Tudo me levava a aceder, simplesmente, a mais um rendez-vous.
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I O Fim ou a Persistência da Obra
— Há cem anos, havia alguns pintores, alguns comerciantes, alguns coleccionadores, e a produção de arte era uma forma esotérica de actividade. […] O esoterismo existe sempre, existirá sempre, mas pode ser obliterado por uma época — uma época como a nossa, por exemplo, que, desde há cem anos, na minha opinião, nada produziu no sentido forte da palavra, sobretudo devido à intromissão do comercialismo na questão. — Em que momento fixaria a crise? — Logo em 1900. A partir do momento em que os impressionistas, uns pobres tipos que não podiam vender as suas pinturas, se tornaram quase ricos […], a vaga começou e aumentou até hoje a um ponto assustador. Lamento aliás falar de uma forma tão material, mas trata-se ainda assim de um problema actual. Marcel Duchamp, in Georges Charbonnier, Entretiens avec Marcel Duchamp, Marselha, André Dimanche Éditeur, 1994 (entrevistas de Dezembro de 1960 a Janeiro de 1961).
1 Chegámos a um momento inédito na história da arte ocidental. Uma história que conheceu continuidades e rupturas, mas sem semelhanças com o que está em curso (há — pelo menos — duzentos anos). É o momento em que se levanta, para essa história no seu todo, a questão que lhe resta: a questão da necessidade da arte. Tal «necessidade» é o resto do todo da arte, um «resto» que nos confronta com a alternativa — inédita, repito — entre o nascimento perpétuo ou o fim definitivo da arte. Uma tal questão, com efeito, enuncia-se hoje abruptamente: será a arte necessária? E se sim, para quê? E sobretudo: para quem? Em rigor, de um modo latente, essa mesma questão já constituía a pergunta inaugural da modernidade, a pergunta que advém da emancipação, da libertação ou da autonomia da obra (como se lhe queira chamar). Quando a arte não se encontra mais ao serviço de nada, de nenhuma crença ou ritual, por um lado, e de nenhuma finalidade ou autoridade política, por outro lado, então a sua própria autoridade advém unicamente do autor da obra; porém, na falência de qualquer autorização transcendente, o autor não pode autorizar-se a si mesmo, respondendo antes a uma necessidade — a um imperativo — que o excede.
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«Moderno» é o autor que, paradoxalmente, é precedido pela obra que o autoriza; «moderna» é a obra que se limita ao resto do todo (da arte). Essa é a arte que não reflecte a vontade de ninguém ou de nada — melhor: que responde ao «ninguém» ou ao «nada» que, no íntimo do «autor» (desautorizado), o apela misteriosamente. O responsabiliza pelo mistério de haver ser. 2 É no abismo da sua libertação, portanto, que a arte pode findar ou persistir. «Persistir» significa responder à necessidade de sempre da arte; a persistência é a insistência do resto que atravessa o todo da arte (um resto que se libertou do político e do religioso, e ao qual chamei «mística»). «Findar» significa responder a toda e a qualquer «necessidade» — excepto à da arte como tal; mas tal não significa que a arte — ou a sua aparência — desapareça objectivamente: prolonga-se e prolongar-se-á em sucedâneos de toda a ordem (comunicacionais, comerciais, retóricos, lógico-discursivos, publicitários, etc.). Ora, o pensamento filosófico indica-nos que, no início da libertação da obra, houve essencialmente duas maneiras cruciais — e antagónicas entre si — de abordar a questão da arte (quer dizer, identicamente, de abordar a arte como questão propriamente filosófica). A primeira afirma que a arte, enquanto expressão espiritual, não é mais necessária porque o seu conteúdo passou a requerer formas mais elevadas da consciência; a segunda sustenta, ao invés, que é no modelo da obra que todas as possibilidades redentoras poderão ser revitalizadas. Uma e outra, todavia, partem da mesma constatação moderna: do declínio da doutrina religiosa
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como fundamento da comunidade humana; do declínio, numa palavra, do «teológico-político». Que o próprio Deus seja mortal, e que o seu destino se deva identificar integralmente com a vida humana, eis um filosofema ocidental que existe desde o culto grego de Dioniso. Mas que a sua expressão seja dilacerante ao ponto de se confundir com a própria história humana (independente dos ciclos naturais ou agrários), eis o que só o cristianismo veio assumir plenamente. Na verdade, e seja qual for o grau de crença ou de descrença pessoais na Ressurreição, o cristianismo representa para a humanidade um vazio aberto na consciência histórica, uma fenda irreparável na espiritualidade do Ocidente. Num certo sentido, a modernidade apresenta-se como a lição de trevas da história humana — e é no decorrer desta «lição» (porventura interminável…) que podemos conceber e enunciar a possibilidade de uma arte pensada, doravante, como livre ou liberta. 3 Nas Lições de Estética, Hegel afirma que a «arte romântica» (compreendendo, nesta categoria, toda a arte cristã) já não reflecte as necessidades actuais do Espírito, tendo este entrado no momento histórico da reconciliação consigo mesmo. A arte seria, assim, uma manifestação ultrapassada do Absoluto ou, se posso condensar ao extremo, seria a religião do passado. Com uma tal afirmação, e ao contrário do que vulgarmente se afirma, Hegel não deixa de possibilitar uma afirmação absoluta do sujeito, na condição de este ultrapassar o elemento próprio da arte: no estádio de desenvolvimento em que se encontra o Espírito, o artista nega a sua própria forma ou figura-
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ção finita tornando ultrapassada a unidade concreta que é a obra. Hegel, por paradoxal que possa parecer, abriu caminho à infinitização do artista enquanto ser que transcende a dimensão sensível das obras. O artista — na sua segunda vida — é um teórico e um produtor de «ideias» (ou de «conceitos», como se diz inconscientemente hoje, sem se vislumbrar que assim se cumpre o programa hegeliano do «fim» ou do «depois» da arte). Tal infinitização subjectiva e subjectivante constitui o aspecto hegeliano da modernidade artística, tornando-se ao mesmo tempo um dos traços mais perversos do denominado artworld, do «mundo da arte» (perversão que não estava, decerto, nas intenções de quem forjou a palavra em 1964, o filósofo Arthur Danto — ainda que os seus pressupostos «analíticos» sejam profundamente hegelianos). E tal infinitização subjectiva, não sendo inicialmente apenas do artista, alargou-se sobremaneira ao espectador, que passou a encarar como que ilimitadamente as suas projecções psicológicas enquanto consumidor (tal como as analisará Adorno, agravando — e combatendo — o diagnóstico hegeliano). 4 Schelling — no sexto (e último) capítulo do Sistema do Idealismo Transcendental — sustenta que a arte é absolutamente necessária como derradeira possibilidade de manifestação do Absoluto. Se nem a metafísica nem as diversas religiões foram capazes de satisfazer o anseio espiritual da humanidade, eis que a arte — como religião do futuro, se me é permitido de novo condensar ao extremo — se propõe doravante efectuá-lo. Na obra de arte resolver-se-ia a oposição
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III A Metafísica do Capital Financeiro
— […] Julgo que os preços, em moeda, são inquietantes. Se a moeda aumenta, é preciso que eles continuem a aumentar. Será que uma coisa numérica pode aumentar sempre? É ainda um problema matemático, mais do que outra coisa. Se ela não aumentar, haverá um crash, uma derrocada súbita devido a uma catástrofe política ou a outra coisa. Em todo o caso, pode acontecer. Já aconteceu no passado. — Mas como é que se pode compreender que a noção de preço esteja colada à noção de obra de arte? — Impossível compreender. E completamente ridículo, justamente, colar uma etiqueta. É antinómico em si. A obra de arte não tem valor de ordem numérica ou mesmo de ordem moral. Nenhum. É uma coisa que se impõe pela sua presença, unicamente, e essa presença é tal que passa de século em século, conservando-se como uma coisa única que, portanto, não tem preço. Marcel Duchamp, in Georges Charbonnier, op. cit.
1 A palavra ousia (οὐσία) tem duas acepções distintas em grego antigo: na língua filosófica, significa «essência», «substância» ou o «ser» (a palavra deriva de ousa, particípio feminino do verbo einai: ser); mas, na língua corrente, significa «bens», «haveres», «riqueza»… Como é possível? Sim, como pode a mesma palavra apontar para o ser e para o ter? Como pode existir um termo que designe tanto a essência como a fortuna, tanto a substância como a riqueza — e mesmo, como veremos, a propriedade ? Haverá algo de comum entre tudo isto? Na verdade, os dois sentidos são contemporâneos e, por vezes, encontramo-los no mesmo autor (por exemplo — ainda que seja sempre mais do que um exemplo: em Platão, respectivamente no Fédon [«essência», 65d] e na República [«fortuna», 551b]). Louis Gernet também se referiu à ambivalência da palavra ousia, entre «algo de substancial» e um «património» (Anthropologie de la Grèce antique, «Choses visibles et choses invisibles»). Tratarei então de mostrar que esta dualidade significante nos esclarece acerca da lógica aqui perseguida: a Lógica ocidental, ou seja, a metafísica e, dentro desta, um certo método filosófico no qual o capitalismo se inscreve necessariamente (e não acidentalmente). Não entrarei, todavia, no
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detalhe da história propriamente filosófica do conceito de Substância (na distinção, crucial a esse respeito, entre Aristóteles e Platão, ou nas determinações específicas que tanto Espinosa como Kant, por exemplo, traçaram); dessa história vou apenas privilegiar um traço marcante que nos importará para uma demonstração de natureza metafísico-financeira. Com efeito, em toda a história da conceptualização da substantia (tal é o termo que, desde o século IV, passa a traduzir ousia no contexto dos tratados latinos da teologia trinitária), encontraremos também, de forma mais ou menos latente, uma certa ideia de corpo, e é esta ideia que une o duplo sentido de «substância» e de «riqueza», a saber: a ideia de corpo subsistente, sólido ou estável — numa palavra, de corpo próprio. A substantia designa, antes de mais, a qualidade do próprio, do puro, do intacto, ou seja: de um corpo independente dos acidentes que o possam afectar. Não há Substância propriamente dita se não for própria; e inversamente: as propriedades — os bens, as terras, a fortuna e os fundos próprios —, na medida em que garantem a subsistência material, são por sua vez conceptualizadas como substanciais à vida humana. Substancialidade e subsistência formam o substrato significante da ousia. Na palavra «substância» está assim contido o que permite subsistir ontológica e economicamente. A Substância é o que sub-siste — mas a quê? Essencialmente, como seria de esperar, ao tempo. 2 Tais considerações linguísticas permitem-me, desde já, enunciar uma hipótese inicial sobre a metafísica do capitalismo: a lógica da ousia (isto é, do corpo próprio) exprime-se politicamente, de forma
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privilegiada, enquanto pensamento da propriedade. Significando isto que o pensamento do «ser próprio», da identidade e da identificação, exprime-se economicamente através da redução do ser ao ter. Dito de outro modo, a primazia dada à apropriação privada dos meios de produção é a consequência económico-política principal da lógica metafísica da substantia. 3 Trata-se, no entanto, de uma apropriação infinita — o que torna o movimento histórico do capitalismo a um só tempo jubiloso e desesperante. Com efeito, a propriedade não é, para o pensamento filosófico moderno (voltarei a este ponto), um objecto: é o movimento do sujeito que se deseja ou se quer a si mesmo — infinitamente. Na verdade, esta infinitude do sujeito (ou seja, a sua imortalidade) deixa de ser modernamente concebida como um estado ou uma entidade estável. Pelo contrário, e em particular em Hegel e em Schelling, ela é reelaborada como um ser lançado ao perigo, ao acidente, à contingência e, sobretudo, à história. Daí a centralidade da categoria da «história» para todo o pensamento pós-kantiano (com consequências evidentes, também, em Marx). A ousia, por outras palavras, repensada na metafísica moderna, será um movimento de apropriação: a vontade do sujeito de se possuir a si próprio, ou de se auto-apropriar de todas as formas que lhe sejam estranhas ou exteriores. Tal constituirá o estrato mais profundo da metafísica do capital, determinado como movimento de auto-apropriação infinita e totalizante. (O carácter infinito da acumulação merecia, por si mesmo, uma atenção à parte, tanto mais que
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Gérard Granel demonstrou, na sua tese sobre a génese do capitalismo, que este é um fenómeno moderno em virtude, justamente, daquilo a que ele chama infinidade e, em rigor, da conjunção entre duas infinidades: a do trabalho e a da riqueza. Aqui, irei pressupor sobretudo um estudo de Granel — «Les années trente sont devant nous» [publicado no livro Études, de 1995] — no qual o começo da lógica da «infinidade» é situado no subjectum egológico de Descartes e na matematização operada pela ciência moderna. Na verdade, a infinidade é inerente àquilo a que já chamei «automediação do dinheiro», uma vez que esta implica, como percebeu Marx, o primeiro regime histórico de produção infinitizada, quer dizer, do «valor abstracto» e, portanto, do capital como um fim em si mesmo.) 4 Sem dúvida, para pensar uma tal metafísica seria possível referir-me a uma genealogia conceptual distinta da da ousia. Aludo àquela que parte do termo grego hypokeimenon (literalmente, o «posto debaixo», o «suposto») vertido amiúde também para substantia, mas traduzido, na tradição escolástica, por subjectum. O que implica que o «sujeito» passa a ser determinado, metafisicamente, pela ideia de suposição (de si): Sujeito é aquele que se supõe, se pressupõe ou tem o seu fundamento em si próprio. Foi aliás atendendo a uma tal ideia de autoprecedência infinita, de pressuposição de si, que, no decorrer de um questionamento sobre o «sujeito ocidental», Jean-Luc Nancy enunciou a tese segundo a qual a história do Ocidente ou da filosofia é a história de uma suposição — «que torna ela própria possível a subjectividade» («Un sujet?», in Homme et sujet, volume colectivo diri-
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«artistas contemporâneos». Toda uma sofisticada rankingologia aplicada ao «artista», toda uma sofística numeral para classificar o inclassificável e vender o inequivalente! Sobre a complexidade e a especificidade deste sistema de ranking mundial, remeto para o segundo autor a que aludia, Alain Quemin, o qual passa ao crivo vários critérios de classificação dos «artistas contemporâneos» (refiro-me, em particular, ao seu estudo exaustivo datado de 2013, Les stars de l’art contemporain. Notoriété et consécration artistiques dans les arts visuels). E assinalo que seria suficiente observar dois dos sistemas internacionais de classificação analisados por Quemin — o mais antigo e um dos mais recentes: Kunstkompass, que classifica mundialmente, desde 1970, os artistas em função do número de exposições e do prestígio atribuído aos locais das mesmas; e o já citado Artprice, que classifica os artistas mais cotados segundo as vendas mundiais em leilões —, bastaria consultar estes dois índices para provar que o «valor da arte» não se baseia mais na articulação entre o museu e o mercado (segundo a conhecida tese de Raymonde Moulin), antes se radica tendencialmente e de um modo exclusivo no segundo termo. Quemin permite-nos pensar e comprovar que, face à autonomização integral do mercado relativamente às outras instâncias da «arte contemporânea» (passando a ser ele, esse mercado, a ditar a lei do valor), e face ao impressionante aparelho estatístico de mediatização das «obras», torna-se difícil um julgamento crítico isento por parte dos públicos, transfigurando estes, se não num real, pelo menos num hipotético especulador. É, de resto, a supremacia do mercado sobre as instituições museológicas que explica a programação e as aquisições feitas por museus do
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mundo inteiro (incluindo museus públicos) que passaram a ser totalmente dominados por coleccionadores e/ou patrocinadores privados (chegando a pertencer, por vezes, aos próprios conselhos de administração que adquirem as «obras»). A fórmula S — S’ declina-se assim, pela quarta vez, em mais uma modalidade: na circularidade especular e especulativa da rede de credores. No âmbito desta profunda debilitação crítica do museu, importa revisitar brevemente, por uma última vez, a emblemática operação Louvre-Vuitton-Koons. 32 Esta operação deve, com efeito, ser observada pelo ângulo do museu: é que ela patenteia que o fim último do êthos especulativo não é sequer a aquisição de mercadorias (objectos ou serviços vendáveis). Ou seja: o fim último da especulação é propriamente sem fim, uma vez que o conceito de infinito com o qual opera o capitalismo é meramente quantitativo. Mais cedo ou mais tarde, portanto, o capital fictício teria de se confrontar com um limite externo, um limite inapropriável e inobjectivável: na operação Louvre-Vuitton-Koons trata-se sobretudo de comprar o próprio tempo, reservando um lugar cativo na história. E «cativo» significa, aqui, irreversível: algo que vença, enfim, o tempo — a irreversibilidade temporal. Não se trata, pois, de um lugar vitalício: é um lugar póstumo a obter antecipadamente em vida (lugar «pré-póstumo», dir-se-ia, se o sentido apropriador que lhe dá o capitalismo não desvirtuasse a acepção conferida primeiramente por Musil). Por fim, toda esta encenação no Louvre — e a «sala da Mona Lisa» representa nada menos do
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que o reduto sagrado (o santo dos santos) da História da Arte —, tudo isto (que se replica um pouco por museus e fundações em todo o mundo: à escala portuguesa, por exemplo, em Outubro de 2018, algo de semelhante ocorreu no Museu Nacional de Arte Antiga, transmutado em cenário fashion com os modelos fincados à frente do mais relevante do acervo); sim, tudo isto e o que ainda está para vir não deixa de ser supremamente patético: é a burguesia bolsista a imitar — a macaquear — a aristocracia culta. Agora a «arte» é um cenário diante do qual os ultra-high net worth individual ostentam o seu life style (tal como certas cidades — de Miami ou de Xangai, por exemplo — foram estrategicamente escolhidas para encenar poderosas feiras internacionais de «arte»). Espectáculo patético porque essa imitação não esconde que é fake — melhor: tal imitação ostenta em cada gesto a sua falsidade, assim como o Discurso exibe em cada palavra a sua sofística. Quer isto ainda dizer que o novo Discurso de verdade tem a função inédita de nos convencer que já não existe outra arte — ou que já não existe verdade na arte. Tal é, aliás, uma das conclusões do colérico ensaio de Annie Le Brun sobre «arte» e «cultura contemporânea» (ainda que não possa subscrever todas as suas análises): «Sem dúvida que o inapreensível sempre fascinou os poderosos. No entanto, as somas colossais recentemente investidas, que visam claramente apropriar-se de toda a herança cultural, anunciam uma exploração descarada da mesma, não tanto para substituir o falso pelo verdadeiro, mas para legitimar o falso ao ponto de fazer esquecer o verdadeiro» (Ce qui n’a pas de prix. Beauté, laideur et politique, III). É por isso mesmo que o Discurso sofístico passa a ser o fundamento da «obra»:
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quando não há mais réstia de verdade nesta, não se trata de fazer crer numa suposta verdade, trata-se antes de creditar no falso e de acreditar que tudo é verdadeiramente falso. Reino consumado da contrafacção da arte. O jantar do Louvre simula um banquete da realeza, onde a corte real (a oligarquia financeira) se autoglorifica pela mediação de um «artista» oficial. Mas esse banquete — ocorrido na Salle des États — não deixa de adquirir o significado de um verdadeiro assalto ao poder: este não se radica em nenhum Estado ou regime parlamentar (seja este supranacional). O poder mundial está concentrado num grupo diminuto de instituições financeiras que exibem o espectáculo do seu poder político, confiscando progressivamente todo o espaço público (instituições escolares incluídas). Cavalo de Tróia da História: se ninguém travar a auto-reprodução suicidária do capital fictício, então é a própria História (e a história da arte) que será destruída nas três frentes ilustradas por esta operação emblemática: ocupação real, colonização imaginária e (segundo a expressão de Goux) «corrupção simbólica». 33 À luz da relação entre especularidade e especulação, por um lado, e entre crença e crédito, por outro, podemos entrever, por fim, as consequências sobre todo o círculo de credores que gira em torno da «arte contemporânea». Aludo à lista — não exaustiva — das instâncias mencionadas desde o início (no § 6 do primeiro capítulo). Desde logo porque foi devido ao funcionamento especular/especulativo de todas essas instâncias, funcionamento baseado numa crença-crédito, que o mercado da «arte contemporânea» so-
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breviveu relativamente bem à crise mundial aberta com o crash do banco Lehman Brothers (tendo as principais casas de leilões retomado as suas vendas a partir de Março de 2009). É que não só esse mercado é dominado por poucos coleccionadores extremamente ricos, como estes determinam, em circuito fechado e quase secreto, a cotação de uma determinada «obra». Trata-se, portanto, de uma rede de credores que actua concertadamente e de forma tanto mais eficaz quanto ela não se encontra sujeita a nenhuma entidade reguladora exterior nem reprime, no seu interior, o chamado insider trading (o uso de informações privilegiadas e confidenciais). Porém, como já assinala o referido Art & Finance Report (de 2021), a opacidade que paira globalmente sobre o mercado da arte começa a ser um obstáculo para a sua contínua expansão: «Quase metade dos coleccionadores inquiridos este ano (contra 28% em 2016) mostraram uma forte preferência por mais regulamentação governamental para restaurar a confiança no mercado de arte. Para fazer crescer o mercado de arte para além dos seus limites actuais, é fundamental atrair novos públicos — e a confiança e a transparência desempenham um papel essencial neste processo» (ibid.). Esta passagem evidencia a consciência de que o mercado, em pura auto-regulação, atingirá em breve o seu limite interno. Mas a especularidade da alta especulação continua por ora a imperar, como se verifica também nos sistemas de classificação analisados por Quemin; só para ilustrar com mais um exemplo: a nacionalidade do júri coincide, amiúde, com a dos jurados (com um claro predomínio dos Estados Unidos e da Alemanha, onde a grande maioria dos museus são privados, com coleccionadores, insisto, a pertencer aos conselhos de adminis-
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tração respectivos…). Assim, pouco importa a instância da «arte contemporânea» que se analise doravante: cada leitor poderá fazer agora o seu quadro de inteligibilidade a partir da visão sistémica aqui proposta sumariamente em quatro traços. O que verdadeiramente importa é compreender que estes traços configuram um sistema: depois de ser posto em circulação um sofisma visual, quantas vezes pré-determinado pela garantia de um coleccionador, seguido da valorização acrescida por um local de exposição, da legitimação sancionada por um Discurso e, se possível, da ratificação fixada por um ranking internacional, segue-se um constante reenvio mútuo de créditos num jogo especular de autovalorização crescente entre galeristas, dealers, patrocinadores, programadores, advisors, financiadores, leiloeiros, corretores, etc. — frequentemente secundados por um representante oficial da «política cultural». 34 O êthos especulativo explica a correlação lógica entre os quatro traços apontados: sofista visual, marca autoral-comercial, Discurso de verdade, círculo especular de credores. Tal é a razão pela qual o sistema de «arte contemporânea» não vacilará com mudanças locais ou regionais, nem com um desvio pontual dos seus traços. Esse sistema só será abalado com o abandono da última religião ocidental, ou seja, se formos capazes de romper radicalmente com o capitalismo, com a religião do crédito e com a metafísica financeira: em suma, com o êthos especulativo — o qual deriva da inversão (da perversão) da «fórmula» da criação artística (supra, IV, § 9). De resto, compreende-se talvez agora que a redução dessa fórmula invertida
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(S — S’), suprimindo ou esvaziando por completo a obra de arte, propicie toda uma galeria de sujeitos que, em alta rotação, trabalham com afã para a sua própria valorização. As posições S e S’ são ocupadas — sucessiva ou contemporaneamente — por todos os agentes da «arte contemporânea». Todos figuram o «sujeito automático»: todos tomam o lugar de todos (especularmente) — mas ninguém dá lugar à obra. 35 Desaparecerá o humano com o fim da obra? Seremos testemunhas do fim — ou da persistência da obra? Nem o humano nem a arte desaparecerão enquanto não desaparecer a morte. O dom da morte dá-nos a possibilidade da arte — de um outro nascimento. Porém, enquanto houver morte, também não desaparecerá a religião. O nosso futuro (o futuro humano) dependerá então da crítica — provavelmente interminável — a toda e qualquer forma religiosa. Entretanto, como anteviu Duchamp, os artistas (alguns artistas) irão passando à clandestinidade.
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colecção linhas de fuga Lógica do Acontecimento. Introdução à filosofia de Deleuze, Sousa Dias O Cinema da Poesia, Rosa Maria Martelo O Que É Poesia?, Sousa Dias Geografia Imaterial, João Barrento Žižek, Marx & Beckett. E a democracia por vir, Sousa Dias Crónicas: Imagens Proféticas e Outras. 3.º volume, João Bénard da Costa A Imagem-Tempo. Cinema II, Gilles Deleuze Crónicas: Imagens Proféticas e Outras. 4.º volume, João Bénard da Costa O Riso de Mozart. Música pintura cinema literatura, Sousa Dias Os Nomes da Obra. Herberto Helder ou O Poema Contínuo, Rosa Maria Martelo Dito em Voz Alta. Entrevistas sobre literatura, isto é, sobre tudo, Manuel António Pina A Imagem-Movimento. Cinema I, Gilles Deleuze O Olho Divino. Beckett e o Cinema, Tomás Maia (seguido de Filme, de Samuel Beckett) Pre-Apocalypse Now. Diálogo com Maria João Cantinho sobre política, estética e filosofia, Sousa Dias Manuel António Pina. Uma pedagogia do literário, Rita Basílio Teologia da Carne. A pintura de António Gonçalves, Sousa Dias Grandeza de Marx. Por uma política do impossível, Sousa Dias Anti-Doxa. A filosofia na era da comunicação, Sousa Dias Língua Bífida. Ensaio sobre Ecce Corpus, uma performance de António Gonçalves, Pedro Eiras O Mito Nazi, Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy Devagar, a Poesia, Rosa Maria Martelo Vida a Crédito. Arte contemporânea e capitalismo financeiro, Tomás Maia