P_Cervantes_Colóquio dos Cães.indd 128
06/07/20 18:41
www.sistemasolar.pt
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 1
06/07/20 18:46
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 2
06/07/20 18:46
TÍTULO dO OrIGInaL: Aux Abois, journAl d’un meurtrier
© sIsTEMa sOLar, CrL (2020) rUa passOs ManUEL, 67B, 1150-258 LIsBOa tradução © anÍBaL FErnandEs na Capa: paUL raUd, retrAto (1900) rEVIsÃO: dIOGO FErrEIra 1.ª EdIÇÃO, JULHO dE 2020 IsBn 978-989-8833-50-1 dEpÓsITO LEGaL 000000/20 EsTE LIVrO FOI IMprEssO na EUrOprEss rUa JOÃO saraIVa, 10 a 1700-249 LIsBOa pOrTUGaL
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 4
06/07/20 18:46
Paul bernard nasceu no ano 1866 em besançon (na mesma rua onde tinha vindo ao mundo, sessenta e quatro anos antes, Victor Hugo: — ele no 138, diria mais tarde bernard, e eu com maior modéstia no 23). Como o seu pai (pertencente à comunidade judaica de Foussemagne) criava, vendia e alugava cavalos, teve sob esta sombra paterna uma infância com admirações hípicas; mas nesses provincianismos pendurados nas montanhas do jura, e tão a leste na França que eram quase suíça, também cedeu a precoces seduções literárias e teatrais. Contava-se que muito menino já soletrava, encantado, o que à frente lhe surgia em letra de forma; e aos seis anos de idade saíra transtornado — transtorno quase febril — de uma representação de La Fille de Madame angot, ópera-cómica de Charles lecocq que se fizera à aventura pelas lateralidades oitocentistas de bensançon. Paul bernard cumpriu parte do seu liceu na terra natal. mas viu-se aos treze anos de idade em Paris, instalado com a sua família na rua richer (essa mesmo, onde persistem as Folies bergère) porque monsieur bernard agora se interessava por negócios imobiliários. esgotados os estudos do parisiense liceu Fontanes, Paul passou ao direito da sorbonne; e em 1888, com vinte e dois anos de idade estava licenciado — embora sofresse, a par deste êxito académico, o contratempo de um casamento oficiado à pressa, não fosse a suzanne bomsel, que ele amava, fazê-lo antecipada-
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 5
06/07/20 18:46
6
A p r e s e n ta ç ã o
mente pai do que seria jean-jacques bernard, o futuro autor dramático (nesta vocação menos abençoado pelo êxito do que o seu pai). Paul, como advogado estagiário bem depressa se fartou da barra dos tribunais; e por causa disto o seu pai, também proprietário de uma fábrica de alumínios em Creil (no oise), pô-lo a gerir esses interesses da sua bem sucedida expansão industrial. mas… Paul bernard a interessar-se por alumínios? Com as elevadas responsabilidades de uma gerência no oise? Que prazer poderia dar-lhe a obrigatória visão daquela desmantelada vizinhança neolítica que diziam ser restos de uma necrópole da idade do Ferro? o que lhe importava um ermo onde chegavam com tão grande atraso, se chegassem, os ecos de Paris? o já tão parisiense Paul bernard não suportou uma convivência quase exclusiva com os alumínios que o seu pai fabricava nesse norte da França; tinha em Paris amigos ligados à literatura, uma audiência que ele fazia rir com o seu destemperado humor; tinha em Paris os teatros que lhe alimentavam o irreprimível fascínio pelas artes do palco. Paul, com suzanne já grávida de um segundo filho — o raymond bernard que viria a ser realizador de trinta e um filmes (citem-se apenas Croix de bois em 1932 e Les Misérables em 1934) — regressou a Paris porque lhe tinham oferecido a direcção do velódromo buffalo no auge de uma fama que congregava ciclismos e hipismos junto da Porte maillot de Paris. A capital e esse final de século propício a aventuras destabilizadoras pareceram-lhe ideais para uma revista «diferente» (mas efémera, hélas!), à qual deu o inesperado nome Le Chasseur de Chevelures (O Caçador de Cabeleiras, nome inspirado pelo título de um romance de mayne reid — em inglês The scalp Hun-
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 6
06/07/20 18:46
A p r e s e n ta ç ã o
7
ters), revista de apenas três números independentes, antes de surgir mais modesta como suplemento da revue Blanche. nesses dias de 1894, Paul bernard também passaria a escritor publicado em livro, um livro que se chamava Vous m’en direz tant! Mas o Paul… o Paul de todo aquele convívio, de todos aqueles amigos, era agora em letras impressas tristan. dever-se-ia o novo nome a uma irreprimível admiração por Wagner? não — ouviram-no dar como resposta. — devo a homenagem ao cavalo que mais dinheiro me fez ganhar. um dia, no buffalo, apostei no Tristan; e ele, mostrando um imenso brio de corredor, retribuiu com elevada soma a minha confiança. no ano seguinte, tristan bernard escreveu a sua primeira peça teatral: Les pieds nickelés, um assinalável êxito que o incitou a desdobrar-se por uma espantosa abundância de cometimentos teatrais e crónicas que o transformaram em autor de comédias célebre, em humorista de jornais célebre — nessa época só a sofrer comparações com Alphonse Allais. este bernard de pena diligente deixou atrás de si uma prolongada bibliografia: pelo menos trinta e nove títulos em prosa espalhados por crónicas e romances, pelo menos quarenta e cinco peças de teatro com uns quantos momentos de eleição — entre eles Langevin père et fils, Le sauvage, L’anglais tel qu’on le parle e Jeanne doré, os cinco actos que chegaram à Comédie Parisienne e aos gestos largos de sarah bernhardt. tristan bernard viveu até aos oitenta e um anos de idade. em 1897 apoiou fortemente Alfred dreyfus durante o processo que dividiu e pôs em litígio jornalístico uma França que se abalava com o descrédito da sua justiça;
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 7
06/07/20 18:46
8
A p r e s e n ta ç ã o
em 1915 fundou Le poil Civil, jornal que em plena guerra fazia suceder ao título um prolongamento esclarecedor: «órgão hebdomadário de alguns imobilizados mais ou menos cabeludos»; em 1922 fundou a société des Films tristan bernard, onde reinava o seu filho-realizador raymond bernard; em 1927, quando a Académie Française esteve para elegê-lo como membro (e não o elegeu), comentou: académico? não. O fato é muito caro. Fico à espera da morte de um que vista o mesmo número que eu; em 1929, viúvo recente de suzanne bomsel, não perdeu tempo e oficializou uma ligação com marcelle reiss, desde há tempos vivida numa sombra que já destemperava a sua relação conjugal; em 1930, o incansável criador de peças teatrais concedeu a si próprio a propriedade de uma sala de espectáculos — o théatre Albert — que o levava à cena sem sucumbir a cedências duramente negociáveis com outros empresários. mas este «teatral» tristan bernard também escreveu romances, na maior parte defendidos da sua fulgurante veia humorística; inesperadas ficções que saíam de outro tom — por vezes amargo e sem nada que o ligasse ao que pontualmente se lia, caucionado pelo seu nome em páginas de revistas e jornais. Foi a sobrevoar esta segunda onda que bernard, aos sessenta e sete anos de idade, publicou aux abois (Entre a Espada e a parede), o seu mais talentoso romance, como já é reconhecido por essa lucidez que a passagem do tempo — a grande varredora de glórias efémeras momento a momento construídas — concede ao
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 8
06/07/20 18:46
A p r e s e n ta ç ã o
9
julgamento desembaraçado dos compromissos e amiguismos que condicionam com tanta frequência a decisão crítica. tem-se dito que Entre a Espada e a parede é um inegável devedor do Crime e Castigo de dostoiévski, o mais célebre exemplo literário do acto assassino desmotivado (adjectivação, poderá achar-se, um tanto simplista); também se diz que foi inspirador do eixo central de L’Étranger de Albert Camus, embora não se conheça uma palavra deste autor que permita dar como firme uma tal filiação. no que toca a dostoiévski, depois de alguma semelhança entre os crimes frios do seu raskolnikov e o deste duméry, tudo é diferente porque o assassino russo se prolonga numa implacável peregrinação expiatória, enquanto o assassino de aux abois vive numa ausência de sensação de culpa, numa entrega passiva e com qualquer coisa de entediada aos prazeres que a sua desenvolta situação financeira lhe proporciona. duméry está bastante mais próximo do mersault de Camus; há nas duas narrativas uma história de tempo interior com sucessivas emoções a determinarem a forma como esse tempo se reflecte no tempo exterior; a personagem de Camus não sente, como a de bernard, remorsos que lhe alterem a energia dos actos de vida, apenas lamenta as consequências práticas — os incómodos da ocultação, a fuga à justiça — que lhe perturbam a comodidade do quotidiano. serei ou não uma criatura abominável?, é aqui a crucial interrogação. não é a pergunta que devo fazer. Verifico isto: não sinto remorsos. se tenho qualquer coisa contra mim, não é ter matado. O que eu sinto é pena por ter envenenado a minha vida com esta ameaça de prisão.
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 9
06/07/20 18:46
10
A p r e s e n ta ç ã o
em bernard e Camus, para além do percurso de uma escrita que em ambos combate a morte determinada por decisão judicial, notam-se outros paralelismos entre pontos essenciais das duas obras: pormenores do crime; a forma como ambas as personagens são presas; o anúncio da pena capital e até a possibilidade da entrevista com o capelão. e pode a tudo isto acrescentar-se que a leitura dos Carnets de Camus nos informa a sua hesitação, durante a escrita de L’Étranger, em fazer mersault suicidar-se (como acontece à personagem de bernard). mais importante do que levar a grandes considerações esta possível influência em Camus, esta possível dívida a dostoiévski, é notar-se a persistente «sabotagem» que bernard leva a cabo sobre o previsível numa trama policial. sabe-se, logo que a narrativa começa, quem é o assassino, qual é o disfarçado ou mal assumido móbil do crime, o lugar, o dia, a hora em que é cometido, desviando por completo o relato dos sucessivos passos que habitualmente conduzem à detectivesca descoberta do culpado. bernard decide isentar a sua narrativa de tudo o que poderia esperar-se como gerador de suspense. Há sempre, na sua escrita branca, a sensação de que a indiferença do assassino é acintosamente desproporcionada em relação à gravidade e à fria crueldade do seu acto. Até o termo do relato se constrói de forma a roubar ao leitor as esperanças de uma conclusão não poupada às derradeiras emoções do condenado à pena capital. o autor limita-se a conferir ao balanço das frases uma progressiva aceleração, a única transigência consentida à denúncia de um estado de alma amedrontada com a certeza de um corpo a poucos passos dos seus momentos finais. Há em secrets d’État (1908), outra obra de tristan bernard, uma réplica que reflete o julgamento que o autor poderia fazer, vinte e cinco anos mais tarde, sobre a sua personagem Paul
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 10
06/07/20 18:46
A p r e s e n ta ç ã o
11
duméry: O mais culpado não é o que começa, mas o que continua, e a sociedade é muito mais culpada do que o assassino porque ele é ignorante e corrompido, ao passo que ela é esclarecida e policiada. Mas enquanto esperamos que a sociedade se decida a civilizar-se, ela própria se rebaixa até ao nível daquele indivíduo bárbaro. Mesmo que a supressão da pena de morte viesse a aumentar, durante alguns anos, o número de crimes, isso não faria mal: tudo é melhor do que propagar por tempo infinito essa monstruosa ideia de que a sociedade inteligente tem o direito de matar. Para a época (1933) e para La revue des lectures, uma publicação moralista, dirigida pelo padre louis bethléem, hostil a todas as audácias da literatura, aux abois teve a honra de enfileirar nuns quantos nomes que exemplificavam os «maus romances, perigosos ou inúteis para a generalidade dos leitores». A lista incluía La Jument verte de marcel Aymé, La Chatte de Colette, La Condition Humaine de André malraux, Les Inconnus dans la cave de jean Cassou. e a respeito de Entre a Espada e a parede, podia ler-se: «muito pouca humanidade em aux abois, o último romance de tristan bernard. o herói é um fantoche, um pobre tipo em apuros e abúlico. este fantoche sinistro e sujo vive ofegante, entregue ao deboche com tudo quanto lhe aparece, arma ao divertido, e por aí se fica. monsieur tristan bernard ainda por cima insuflou o seu ódio étnico e filtrado aos padres católicos e à confissão.» o «ódio étnico» aludia à ascendência judaica do autor. dez anos depois, em 1943, tristan bernard e a sua mulher foram presos no hotel Windsor, de Cannes, pelo governo de Vichy. bernard tinha fugido de Paris invadida pelos nazis, pensando que um governo que tolerava os Alemães, mas era ainda assim francês, fecharia os olhos à sua maldição genética. enganou-se. o casal foi in-
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 11
06/07/20 18:46
12
A p r e s e n ta ç ã o
ternado durante três semanas num campo de concentração em drancy. bernard disse mais tarde «que tinha até ali vivido com medo e passaria a viver com esperança». e a esperança surgiu-lhe, de facto, com a diligência dos colaboradores sacha Guitry e Arletty, que fizeram uma eficiente intervenção a seu favor. depois da libertação, tristan bernard regressou a Paris e viveu os seus quatro últimos anos (num edifício perto da torre eiffel, que hoje assinala a sua presença com uma placa) ferido por uma mágoa que não o abandonou até ao fim. bernard não conseguiu superar o desgosto que lhe causou a morte de um neto acusado de resistente e morto em mauthausen. ouviam-lhe com frequência uma frase irónica, que se referia ao êxodo de abastados para a nova nação judaica: não sou apenas judeu; até tenho meios que me permitiriam ser admitido em Israel. aux abois esteve durante muitos anos por reeditar; o que levou olivier merlin, em 1989, a escrever no seu livro Tristan Bernard ou le temps de vivre: «Que este livro magistral não tenha tido nenhum êxito quando saiu em Abril de 1933, nenhum eco na imprensa, nenhuma citação dos críticos, nenhum eco na correspondência de tristan, e que ele próprio tenha mostrado, logo a seguir à publicação, tanto desinteresse a seu respeito, mais extravagante ainda é.» ora, ora… bernard teria por certo consciência de que tudo isto não acontecia apenas lá. era vulgar e largamente difundido; não fazê-lo era resistir a pressões, ao persuasivo encanto de editoras, era enfraquecer a sobrevalorização pública de algumas vulgaridades de grupo. Que outra atitude levaria a sua cansada indiferença a fazê-lo tomar? A.F.
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 12
06/07/20 18:46
O quarto onde escrevo é no terceiro andar de um hotel do Havre. Tem vista para uma das docas. Mas de que servirá descrever o que vejo? não foi para isso que agarrei na caneta. Escrevo só para mim. Escrevo porque não tenho com quem falar. E como não quero que estas páginas andem à deriva, vou mandá-las com iniciais para uma estação de correios de paris; sempre a mesma, para não me enganar. Olho-me ao espelho; não sou bonito nem feio, nem grande nem pequeno. Tenho trinta e quatro anos. Há pessoas que me dão menos, e outras mais. Mas quando digo a minha idade, não insistem porque não é uma avaliação que muito lhes interesse. O meu nariz tem um ar um tanto bicudo, desde que não uso bigode. Tenho cabelo castanho-claro, não muito dócil. Quando me penteio com uma risca, não se aguenta. Tenho alguma instrução, fiz o exame final dos liceus. não causei lá sensação. Havia professores que me achavam interessante, mas a maior parte não dava por mim. Casei-me cedo, com vinte e quatro anos, e há três anos divorciei-me. a minha mulher enganava-me. assumi todas as culpas. Ela não era má criatura. reflectia pouco, só isso. dava facilmente ouvidos às pessoas, quando lhe agradavam. não me escutou, a mim, durante muito tempo.
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 13
06/07/20 18:46
14
Tr i s ta n B e r n a r d
Vive com o seu amante, que também não é mau tipo. sei que não são muito felizes sob o ponto de vista material. até agora tenho-lhe mandado com regularidade a pensão. Mas começa a ser uma coisa dura. Tenho muitas dificuldades de dinheiro. Eu era segurador com bastante boa clientela, mas fui obrigado a entregá-la. Tenho credores a quem me vejo obrigado a fazer esperar… Talvez precisem de esperar durante muito tempo. não por serem fáceis, mas porque não sou muito solvente. Eles sabem-no, e vêem-se como eu obrigados a esperar por melhores dias. acabei por suportar sem grandes dores este passivo. Mas vou ser muito infeliz se não puder mandar dinheiro à minha ex-mulher. O homem com quem negociei a entrega da minha clientela era o antigo amanuense de um oficial de diligências. Fui-lhe apresentado por um camarada chamado daubelle. O antigo amanuense chamava-se sarrebry. Logo à primeira vez que o vi desagradou-me, e até agora continua a fazê-lo. Era um homenzinho roliço, mal barbeado, já muito grisalho. Tinha maus olhos que dançavam e uma dentadura postiça que se mexia na boca torcida. Que inútil rebuliço naquela desagradável cara! Tinha uma inegável focinheira de inimigo… O nosso caso resolveu-se como um odioso combate. Era-lhe favorável, embora me não soubesse dar mostras de nenhuma das vantagens que ele lhe proporcionava. deve ter ficado furiosamente arrependido por não me ter extorquido mais do que extorquiu. Já não nos víamos desde há um ano, quando o encontrei na esplanada de um café perto da porta saint-denis. E dava-se o caso de eu ter há poucos dias pensado nele. precisava muito
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 14
06/07/20 18:46
E n t r e a E s p a d a e a Pa r e d e
15
de três mil francos. Tinha dito de mim para mim que seria absurdo pedir-lhos; não iria dar-mos, uma vez que eu nada possuía com solidez bastante para oferecer como garantia. na manhã em que o encontrei nesse café, eu tinha estado com o daubelle, o amigo que me tinha apresentado o sarrebry. ao que parece, o antigo amanuense fizera-se muitíssimo agarrado depois da crise. não arriscava os seus fundos, e o daubelle julgava que havia na casa dele uma grande reserva de notas. — Tenho a certeza de que tem muitas, porque há dias vendeu valores que não sofreram uma grande baixa. nesta esplanada de café, o sarrebry fez um esforço para ser amável e pôs a funcionar um sorriso mais ou menos logrado. Fez-me um sinal, para eu me sentar, e disse-me para mandar vir qualquer coisa. Julgo que se sentiu satisfeito com a minha recusa. se eu pensar bem no assunto, o que tinha para propor como negócio era modesto; nada tinha de bom negócio, bem entendido, só era qualquer coisa que eu podia apresentar exagerando um pouco. Era uma dívida de quatro mil francos que eu considerava perdida, embora seja sempre possível enganarmo-nos… Volto a repetir que era sobretudo um pretexto para reatar relações com ele. Eu sabia que ele tinha dinheiro. Eu contava com a providência para algumas dessas notas virem parar-me às mãos. Eu era como um homem que se aproximava de uma mina de ouro sem levar consigo nenhum utensílio, sem autorização para a explorar mas sem arredar pé porque tinha ouro perto de mim.
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 15
06/07/20 18:46
16
Tr i s ta n B e r n a r d
— Venha lá a casa para podermos conversar melhor. Ele morava ali ao lado na rua Meslay, num terceiro andar que dava para o pátio, num pequeno apartamento onde vivia sozinho. Examinei a acanhada sala de jantar, o escritório um pouco maior, mobilado com móveis díspares que provinham, sem dúvida, de pagamentos por conta relativos a diversos empréstimos. dei-lhe algumas informações sobre a dívida que queria ceder-lhe, e cheguei ao ponto de contar-lhe que estava à espera de um pormenor interessante, relativo a esse credor, e de que iam dar-me o seu novo endereço. Era tudo mentira. Eu queria sobretudo garantir que teria uma nova ocasião para me encontrar com ele. disse-me que nunca saía à noite, e eu podia vir falar com ele até às vinte e duas horas. Às vinte e duas horas, à noite naquele pequeno apartamento… Entendamo-nos. Eu sentia-me incapaz de um assassínio ou de um roubo. durante toda a minha vida isso me parecera um passo impossível de ser dado. Eu nunca tinha cometido um acto delituoso, pequeno que fosse. … Fui nessa noite jantar ao estabelecimento de um comerciante de vinhos do bairro saint-Martin. Enquanto comia, repeti dez vezes a mim próprio que era completamente incapaz de matar ou roubar. nada havia a resolver sobre esse assunto. Tratava-se de uma coisa absolutamente impossível. Esta consciência da minha incapacidade de tornar-me um malfeitor deixava-me com a maior calma de espírito para ima-
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 16
06/07/20 18:46
E n t r e a E s p a d a e a Pa r e d e
17
ginar um assassínio que se apresentava, de facto, com favoráveis condições. para começar, eu nada tinha no registo criminal. na minha casa, no meu bairro, ninguém daria a meu respeito informações incómodas. para resumir, nenhum cúmplice, nenhuma tagarelice a temer. Com a coisa executada, eu não ia meter-me estupidamente numa casa de raparigas que me denunciassem à polícia. não actuaria como esses criminosos imbecis, esses ingénuos que nada conhecem do mundo. Consideramo-los matreiros enquanto não os tivermos à vista. Mal tenham algumas moedas consigo, deixam de saber o que fazem. Vão divertir-se como crianças. passemos à maneira de actuar. as armas de fogo fazem muito ruído. a ideia de usar uma navalha dava-me vómitos. Eu nunca conseguiria furar a pele de um ser vivo. além do mais, teria de comprar uma navalha ou uma browning. O que é uma boa forma de repararem em nós. Mal lêem a notícia de um crime, os que vendem armas ficam muito satisfeitos se tiverem nele um papel, dando uma informação à polícia de investigação! … para sermos precisos, eu não seria capaz de dar umas bordoadas com um cacete… Olha! Um martelo… Tenho numa gaveta um martelo muito sólido. Comprei-o há muito tempo para pregar caixotes, quando fiz a minha última mudança de domicílio. agora vou para casa. E ainda esta noite voltarei à rua Meslay com o martelo no bolso. só farei isto para dar continuação à história que imaginei.
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 17
06/07/20 18:46
18
Tr i s ta n B e r n a r d
Eu seria lá capaz, tendo na ideia matar alguém, de agarrar simplesmente no martelo e levá-lo comigo? poderia, sequer, transpor a porta de uma casa onde houvesse alguém prestes a ser morto? — rapaz, a conta! E acrescente-lhe um copo de aguardente. Eu sentia-me um pouco frouxo. não quero estar frouxo. ponho-me a andar muito depressa, desde o restaurante até à minha casa… Mas é muito longe… Tomo um táxi. não tem nenhuma importância eu ir de carro para casa. Quando for para a rua Meslay, o caso é diferente. nada de táxis, nada de condutores tagarelas. Bem sei que estas precauções nenhum significado têm, porque não vou fazer seja o que for. Mas o meu jogo é actuar como se tivesse uma precisa intenção… Lembro-me de que me sentia no táxi muito animado. E foi com impaciência que subi os meus quatro andares. não encontrei logo o martelo. Julguei que estivesse naquela gaveta da cómoda… ah! Como sou um despistado! Mas no pequeno gabinete onde tenho a minha roupa passei a mão por uma prateleira muito alta, onde ponho os sapatos, e de repente deitei a mão a esse martelo, a esse bom martelo. não é grande. Tem boas proporções, é sólido. agarra-se bem no cabo, e a madeira deste cabo está muito bem presa ao ferro. não é para brincadeiras, a sua cabeça de aço fundido. Oh! Esse aço, como é duro! O porteiro está na porta a dar à língua. Viu-me entrar. O aborrecido é que vai ver-me sair. Espero um instante. Estará ali, prestes a sair e a dar alguns passos lá fora, para acompanhar alguém?
P_Tristan Bernard_Entre a espada e a parede_160.indd 18
06/07/20 18:46
P_Cervantes_Colóquio dos Cães.indd 128
06/07/20 18:41
P_Cervantes_Colóquio dos Cães.indd 128
06/07/20 18:41