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TÍTULOS ORIGINAIS: MON FRÈRE FÉMININ (LETTRE À L’AMAZONE); NEUF LETTRES AVEC UNE DIZIÈME RETENUE ET UNE ONZIÈME REÇUE (»NUITS FLORENTINES»)
© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução e apresentação © ANÍBAL FERNANDES, 2017 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO DE 2020 ISBN 978-989-8833-36-5 REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE DEPÓSITO LEGAL 000000/20 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL
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a nos — factos
1892
1894 1902 1903 1904 1906 1909 1910 1911 1912
1913 1914
Marina Ivanovna Tsvietaieva nasce em Moscovo, a 26 de Setembro, filha de um filólogo e historiador da arte, professor na Universidade de Moscovo, e de uma pianista de origem polaca. Nascimento da sua irmã Anastassia. Viagem à Itália (acompanha a sua mãe, que fica internada num sanatório para tuberculosos). Em Lausana num colégio, com a sua irmã. Toda a família reunida na Floresta Negra; depois é internada num colégio, em Friburgo. Regresso à Rússia. Morte da sua mãe. Estada em Paris. Publicação de Álbum Vespertino, sua estreia como poeta. Encontra Serguei Efron, na Crimeia, rapaz de grande sensibilidade e beleza, de origem judaica, por quem se apaixona. Casa-se com Serguei Efron, contra a vontade do seu pai. A viagem de lua-de-mel inclui a Itália, a França, a Alemanha. Setembro: nascimento de Ariadna, sua primeira filha. Morte do seu pai. Início da sua ligação com Sofia Parnok, que a inicia no amor lésbico. Efron é tolerante: «só com ele posso viver como vivo», escreverá Marina numa carta, «ou seja, completamente livre».
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6 1916 1917
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A n o s — Fa c t o s
Conhece Ossip Mandelstam, em Petrogrado. Ciclo da Poesia Sobre Moscovo e Poesia Para Blok. Nasce Irina, sua segunda filha. Depois da Revolução de Outubro, Efron alista-se no exército branco. Marina trabalha no Comissariado Popular da Nacionalidade, mas decide afastar-se o mais possível do novo regime. Começa a escrever teatro. Escreve Indícios Terrestres, prosa. Irina morre de fome num asilo. Ciclo de poesia O Campo dos Cisnes, nunca publicado em vida da autora. Sai de Moscovo com Ariadna e vai ter com o seu marido, refugiado na Checoslováquia, bolseiro numa universidade. Permanece uns tempos em Berlim, onde conhece Biely e Ehrenburg. Início da correspondência com Boris Pasternak. Uma revista de Moscovo publica-lhe um poema. São editados em Berlim Poesia Para Blok e A Separação. Aventura amorosa com Konstantin Rodzevitch. Poema do Fim e Poema da Montanha. Trabalha na peça de teatro Ariadna. Nascimento do seu filho Gueorgui. Toda a família em Paris. Publica o ensaio Um Poeta a Propósito da Crítica. Escreve Tentativa de Habitação e A Escada. Começa a ser sistematicamente atacada pela crítica russa no exílio.
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A n o s — Fa c t o s
1927
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1929 1930 1931 1932
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Correspondência com Rainer Maria Rilke. Escreve o poema Carta de Ano Novo dedicado a Rilke. Trabalha na peça Fedra. Efron é acusado de manter contactos com os bolcheviques e de receber dinheiro da U.R.S.S. Publica Depois da Rússia, poemas, em Paris. Encontra Maiakovski em Paris. Cresce a hostilidade dos russos exilados contra a sua pessoa e a sua obra. Natália Gontcharova, ensaio. Versos de homenagem a Maiakovski, depois do seu suicídio. História de uma Dedicatória, ensaio; Poesia para Puskine; Ode à Caminhada a Pé. Instala-se em Clamart, perto de Paris. O Poeta e o Tempo, A Arte à Luz da Consciência, prosas. Uma Palavra Viva Sobre uma Pessoa Viva, Uma Tarde Não Terrestre, prosas. Um Espírito Prisioneiro e A Casa do Velho Pimone, prosas; Poema Sobre a Família do Czar (até hoje não localizado). O Diabo e A Minha Mãe e a Música, prosas autobiográficas; ciclo lírico O Epitáfio. Efron começa a trabalhar para os serviços secretos soviéticos, escondidos sob a designação «União dos Amigos da Pátria», com o objectivo de incentivar o regresso dos emigrados. Ariadna (como o seu pai, fervorosa seguidora da causa soviética) regressa a Moscovo.
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1938 1939
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A n o s — Fa c t o s
História de Soneshka, O Meu Puskine, Puskine e Pugatchov, prosas. Efron abandona clandestinamente a França quando o acusam de estar implicado no assassínio de Ignacio Reiss, desertor da GPU, polícia secreta russa. Poesia Para a Boémia. Depois de longas hesitações, Marina Tsvietaieva decide regressar à URSS, onde se junta ao seu marido e à sua filha. Ariadna e Efron são presos pela GPU. Marina Tsvietaieva vive na casa de repouso dos escritores, em Golicyno. Subsiste como tradutora literária de textos que lhe são propostos por Pasternak. Prepara uma antologia da sua obra poética, que não chegará a ver publicada. Efron morre no cárcere. A guerra com a Alemnha é pretexto para a enviarem, com um grupo de «trabalhadores da literatura», para Ielabuga, na República Tártara. Solicita, em vão, que a admitam como lavadoura de louça na cantina dos escritores. Aproveitando uma ausência do seu filho, a prestar uma jornada de «trabalho voluntário», enforca-se a 11 de Agosto.
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ma rina por el a própria ( ou qua se)
i. Marina Marina Tsvietaieva nasce em Moscovo (em Setembro ou Outubro de 1892, se optarmos pelo velho ou pelo novo calendário russo). O seu pai era professor na universidade e viria a fundar o museu de arte hoje conhecido como Museu Puskine. A sua segunda mulher foi Maria Meyn, de origem alemã e polaca, pianista. O viúvo levava consigo dois filhos, Valéria e Andrei, e ainda viria a ser pai de mais dois, Marina (1892) e Anastassia (1894). Maria Meyn morreu de tuberculose pulmonar em 1906. Aos 22 anos a minha mãe casou-se com o meu pai e tinha como evidente objectivo desempenhar o papel de mãe junto de dois órfãos, Valéria com oito anos e Andrei com um ano. O meu pai tinha 44 anos. Ela sentia pelo meu pai um infinito amor, mas foi ao princípio torturada pela paixão, ainda ardente, que ele alimentava por V.D. Ilovaiskaia [sua primeira mulher]. «Casámo-nos à frente de um túmulo», escreveu ela no seu diário íntimo. Teve dificuldade em cativar Valéria, menina de oito anos que lhe era totalmente estranha, que adorava a mãe defunta e repelia com dureza a «madrasta». Quantos desgostos! A minha mãe e o meu pai eram muito diferentes um
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do outro. Ambos transportavam uma ferida no coração. A minha mãe — música, poesia, a melancolia; o meu pai — a ciência1. A minha mãe inundou-nos com música. (E desta música, que se transformava em Lirismo, nunca pudemos subir até à luz do dia.) A minha mãe submergiu-nos como uma inundação. (…) A minha mãe inundou-nos com toda a amargura da sua vocação contrariada, da sua vida contrariada, inundou-nos de música como de sangue, o sangue de um segundo nascimento2. Uma mãe. Era mãe para o filho, para as filhas, (…) e nelas se vingou inconscientemente (vou sublinhá-lo três vezes) da sua vida estragada2. Dissessem as mães aos filhos muitas coisas incompreensíveis. Quando eles crescessem compreenderiam mais e procederiam, também, com mais segurança. Não devemos explicar nada a uma criança, devemos enfeitiçá-la. E quanto mais tenebroso for o sentido do encantamento enfeitiçador, mais ele penetra na sua consciência2. A minha mãe morre com a idade que eu agora tenho. Reconheço-a em mim: em tudo, em cada movimento da minha alma e da minha mão. (…) Tal como ela, tudo exijo de todos os meus próximos, e nada dos que me são estranhos2.
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ii. Poesia e Amor Álbum da Noite, o meu primeiro livro, apareceu quando eu tinha 17 anos. Eram versos dos 15, 16 e 17 anos. Publiquei-o por razões estranhas à literatura e muito próximas da poesia — para substituir a carta que devia ter escrito ao homem com quem não podia contactar de outra forma2. (Este homem era o poeta Maximilian Volochine.) Um artigo (…) que me era todo consagrado — o primeiro da minha vida (e também o mais longo, sem dúvida). Lembro-me de que dizia qualquer coisa sobre o romantismo essencial, exterior a toda a tradição romântica (…) e que fazia esta afirmação: «Nos seus poemas Tsvietaieva não pensa — mas vive.»2 1911. Tenho a cabeça rapada (depois do sarampo). Estou deitada na praia e vou escavando na areia. Ao meu lado Volochine, Max. A fazer o mesmo. — Max, só me caso com quem adivinhar que pedra em todo este litoral eu prefiro. — Marina (voz insidiosa de Max) — sabes, por certo, que os apaixonados se tornam estúpidos. Quando aquele a quem amas te entregar um calhau qualquer (a voz dele faz-se mais suave), vais honestamente pensar que é a tua pedra favorita. — Max! Tudo me faz inteligente, até o amor! Quanto à pedra preciosa, materializou-se na minha vida; porque S.Ya. Efron, com quem eu viria a casar-me seis meses mais tarde, depois de esperar que ele fizesse dezoito anos, desencantou
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um pedra raríssima e veio entregá-la, a bem dizer no nosso primeiro encontro — uma cornalina de Génova que ainda conservo2. Ariadna Efron: — Serioja e Marina casaram-se em Janeiro de 1912*, e o breve espaço de tempo entre o dia em que se encontraram e a Primeira Guerra Mundial foi o único, nas suas vidas, em que tiveram uma felicidade não perturbada por nuvens3.
iii. Sónia e Serguei Um amigo de infância descreve Marina aos 20 anos de idade: — De estatura média, com um rosto redondo e suave, grave e pensativo, olhos de um cinzento claro, marcados pela profundidade das suas dilatadas pupilas, tinha um físico autenticamente russo. Ao primeiro contacto podíamos não reparar no nariz levemente curvo e um tanto estreito na base. As sobrancelhas, com uma linha que se interrompia ao meio, estendiam-se até às têmporas4. 1913 é um ano significativo: nasceu Ariadna, morreu o meu pai, apareceu a minha recolha Extractos de Dois Livros5. Tudo isto existiu. Os meus versos são um diário íntimo. A minha poesia é uma poesia de nomes próprios. Todos nós vamos desaparecer. Daqui a cinquenta anos já estaremos debaixo da terra. Haverá novos rostos sob um céu eterno. Sinto vontade de gritar aos que ainda estão vivos: * Nove meses depois nasceu Ariadna, a primeira filha de Marina Tsvietaieva.
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Escrevam, escrevam mais! Fixem todos os momentos, todos os gestos, todos os suspiros! E não só os gestos da mão que os faz; e não só os suspiros — mas a forma dos lábios de onde eles voam com muita rapidez. Não desprezem o exterior. A cor dos olhos é tão importante como a sua expressão; a colcha da cama tão importante como as palavras que lá foram ditas. (…) Marina Efron, Tsvietaieva de nascimento Moscovo, 16 de Janeiro de 1913, quarta-feira2.
Assia Turguenieva*: — Quando alguém entrava na vida de Marina, ela rodeava-o de uma nuvem de traços imaginários; não só proibia a si mesma que a pessoa se aproximasse: a própria nuvem era objecto da sua adoração distante: Amor azul! Enquanto foi jovem, quantas pessoas não envolveu nesse amor azul! 6 Amo Serioja para sempre, é-me infinitamente próximo, nunca o deixarei por outra pessoa. Mas tento falar-lhe o menos possível da coisa mais triste. Trago o coração muito pesado. Todos os dias acordo com este peso. A Sónia** ama-me muito e eu amo-a — para sempre. Não conseguiria deixá-la. Este rasgão vem dos dias que temos de partilhar. Vele-me o coração, que concilia tudo5. O que eu sofri aos 22 anos por causa de Sónia Parnok (…) Repelia-me, fazia-se de pedra, espezinhava-me mas — amava-me5. * Sobrinha-neta de Ivan Turgueniev, primeira mulher do escritor Andrei Biely. ** O mais importante dos amores homossexuais de M.T. (Sónia Parnok era também poeta, e sete anos mais velha do que ela.)
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Não me lembro de a ter beijado para além do beijo vulgar, quase maquinal, do bom-dia e do adeus. (…) Mas envolvia-a muitas vezes com os braços, fraternalmente, protectoramente, para deixá-la um pouco escondida da vida, do frio, da noite. Era a Revolução e, logo assim para uma mulher, a vida, o frio, a noite7.
iv. Solitária na Revolução Serguei Efron alista-se no Exército Branco e parte para a Crimeia. Marina fica em Moscovo, grávida. Em Abril de 1917 dá à luz Irina, a sua segunda filha. Ariadna Efron: — A minha mãe: a minha mãe é muito estranha. A minha mãe não se parece com uma mãe. As mães admiram sempre os seus filhos, e os dos outros, e Marina não gosta de nenhum filho. Tem cabelos castanhos-claros, que aos lados são frisados. Tem olhos verdes, o nariz curvo e lábios rosados. É magra e alta, e gosto dos seus braços. O seu dia preferido é o da Anunciação. É triste, viva, gosta de Versos e de Música. Escreve versos. É paciente, suporta sempre tudo até ao fim. É arrebatada e apaixonada. Está sempre com pressa. Tem uma grande alma. Uma voz suave. Um andar ligeiro. Marina tem os dedos cheios de anéis. Marina passa as noites a ler. Os seus olhos são quase sempre trocistas. Não gosta que a aborreçam com perguntas tolas, e fica muito zangada. Às vezes anda de um lado para o outro, perdida, e depois parece que acorda de repente, e depois fica outra vez como se quisesse ir não sei para onde. Dezembro de 19183.
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Que estranho emprego!* Chegamos, pomos os cotovelos na mesa (as mãos nos queixos) e damos voltas à cabeça para encontrar qualquer coisa para fazer, e o tempo passar depressa. Quando peço trabalho ao chefe, vejo que fica zangado2. Há na vida algumas alegrias absolutas: não ir ao liceu, acordarmos noutro sítio que não seja esta Moscovo de 1919 — não ouvir o metrónomo2. Aconteceu-me uma grande desgraça. A Irina morreu no infantário a 3 de Fevereiro, faz quatro dias. E a culpa é minha. Eu andava obcecada com a doença da Ariadna (repetidas crises de paludismo), tinha medo de ir ao infantário (por recear aquilo que veio realmente a acontecer) e entreguei-me ao destino. (…) Vim a sabê-lo por acaso. (…) Nem sequer fui ao enterro — nesse dia a Ariadna tinha 40,7° de febre e — estarei a dizer a verdade? — eu não podia. — Ah, meus amigos! Quantas coisas não seria possível eu dizer! Mas só direi uma, que isto é um pesadelo e estou sempre a pensar que vou acordar. Esqueço por momentos tudo, alegro-me por a Ariadna estar com menos febre e fazer bom tempo — e de repente — meu Deus, meus Deus! Nem posso acreditar. Vivo de garganta apertada, à beira do abismo. Compreendo agora muitas coisas: tudo se explica com o meu gosto pela Aventura, uma espécie de desenvoltura perante as dificuldades e, vendo bem, uma saúde prodigiosa, uma resistência monstruosa. Quando não temos dificuldades, não acreditamos que elas possam existir para outros. E além disso — eu estava * No Outono de 1918 Andrei, o meio-irmão de Marina, arranjou-lhe um emprego no Comissariado das Menoridades, onde ela trabalhou durante alguns meses.
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tão só! Todos têm alguém: um marido, um pai, um irmão — eu só tinha a Ariadna, e a Ariadna estava doente, e deixei-me absorver por completo pela sua doença — então Deus castigou-me. (…) Meus amigos! Digam-me qualquer coisa. Expliquem-me. Há mulheres que abandonam os seus filhos para ir a bailes — pelo amor — por vestidos — pela festa da vida. A minha festa na vida são os versos, mas não foi por causa dos versos que não dei atenção à Irina — há dois meses que não escrevo nada! E o pior é que eu não me esquecia, não, não esquecia, andava inquieta e estava constantemente a perguntar à Ariadna: «O que é que achas?…» Todos os dias tencionava ir buscá-la, e pensava: «Mal a Ariadna melhore, vou dar atenção à Irina!» Agora é tarde de mais6. Pavel Antokolski: — Havia de tudo — uma miséria horrível e sem saída, falta de notícias do marido, que andava pelo Don com o Exército Branco, a doença incurável da filha mais velha*. Noutro momento da vida, Marina teria contado isto com pormenor e orgulho, mas também com distância e frieza. Vejo porém agora que anda por ali infelicidade e medo, apesar de não lhe ouvir lamentos. Estão todos, de facto, duramente atingidos8. Um crítico no jornal A Profissão: — Que atitude podemos ter na U.R.S.S. perante este versos onde sopra um vento de incompreensível ódio, misturado com soluços cheios de compaixão? (…) Mas não devemos levar Marina a mal. Esperemos que não reincida nestes requiens pelo Exército Branco9. * Paludismo crónico.
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v. O Exílio Serguei Efron vê-se obrigado a abandonar a Rússia e a refugiar-se na Europa. Marina vai ter com ele em 1922. O seu exílio de dezasseis anos dividir-se-á pela Alemanha, pela Checoslováquia e pela França. Maria Grineva-Keiznecova, amiga de infância: — Nos últimos dias, antes de partir, Marina andava particularmente agitada e angustiada. Ora lamentava os que ia deixar, ora não acreditava na felicidade que era poder juntar-se ao seu marido. (…) No quarto de Ariadna reinava uma monstruosa desordem. — «Vem para o meu quarto», disse-me ela. Quando abriu a porta fiquei estupefacta. O cenário material, que ela tanto detestava, como que tinha sido devastado por um incêndio. As estantes estavam vazias e abertas de par em par. As cadeiras amontoadas num canto. Não se via o soalho, coberto com pilhas de livros, partituras de música, manuscritos, uma enorme quantidade de retratos e fotografias de parentes e amigos, molduras partidas com vidros partidos, quadros tirados das paredes e atirados para o chão. Não conseguíamos andar, tínhamos a sensação de entrar num pantanal, os pés calcavam uma superfície mole e vidros estalavam. Tudo aquilo tinha sido uma casa, e naquele momento estava virada do avesso. Dei um passo e tropecei numa coisa dura. Debaixo dos pés — uma fotografia. Quis apanhá-la. «Não, não, não vale a pena», disse Marina, «vai tudo para o fogo. Amanhã de manhã vai tudo ser queimado na chaminé.» Na mesa estavam algumas roupas cuidadosamente dobradas. Poucas. Era o que Marina ia levar com ela. Ariadna deambulava por ali em silêncio. Momentos havia em que deitava à sua mãe olhares preocupados10.
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Ariadna: — De repente sentimos o calor sufocante da cidade*, as pernas a falhar, o imenso vazio dentro de nós por causa daquele não-reencontro. Marina começou a procurar às cegas cigarros dentro da carteira; a mexer ruidosamente nos fósforos. E nessa altura ouvimos a voz de Serioja: «Marina, Marinotchka!» Do outro lado da praça um homem corria em direcção a nós, a agitar os braços, grande, magro — eu sabia que era o meu pai, mas ainda não estava a reconhecê-lo porque era pequena quando nos separámos; lembrava-me dele com outro aspecto — totalmente diferente — e naquele momento a imagem da minha infância esforçava-se por se ajustar ao homem que vinha a correr para se juntar a nós. Serioja já ali estava. Com o rosto iluminado de felicidade abraçou Marina, que tinha aberto os braços. (…) Serioja ia fazer 29 anos, e continuava a ter o aspecto de um rapaz que estivesse a recompor-se de uma doença grave: muito magro, com olhos muito grandes que lançavam a Marina, sentada ao seu lado, olhares de órfão. Pelo contrário, ela parecia adulta e decidida, ao ponto de já ter fios brancos, precoces, a brilhar no cabelo3. Serguei Efron: — Vivemos os três (…) perto de Praga. Marina passa os dias como um eremita. Trabalha muito, vagueia sozinha na floresta depois do trabalho, horas a fio, a murmurar fragmentos de poemas. Em Berlim apareceram quatro livros seus, e pouco faltará para aparecer o quinto**. Eu preparo o meu doutoramento na Universidade de Praga; contra vontade minha, vou ser doutorado * Berlim. ** Não se trata de «livros», mas textos incluídos em livros ou revistas: Car’-devica. Poema-skazka (O czar virgem. Conto poético); Stihi k Bloku (Poema para Blok); Razluka (Separação); Remeslo (A Profissão); Psiheja (Romantika), todos de 1922 e 1923.
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uma memória
«Principiemos pelo mais importante. Não fazemos a mais pequena ideia do que sejam os tormentos de um coração na véspera de um suicídio. Na polé, com a tortura física, uma pessoa a cada passo perde os sentidos, pois os sofrimentos do suplício são tão grandes que o supliciado por si próprio precipita o desfecho dessa intolerância. Mas o homem submetido à execução do carrasco não está esmagado; perdendo embora a consciência da dor, assiste ao seu próprio fim: o passado pertence-lhe, as suas recordações estão com ele; querendo, pode servir-se delas diante da morte, podem ajudá-lo. «Quando a ideia do suicídio se nos impõe, é como se fôssemos nós próprios a pegar na cruz e afastamo-nos do passado, declaramo-nos a nós mesmos falhados e dizemos sem valor as nossas recordações. O passado já não pode atingir o homem, salvá-lo e ampará-lo. A continuidade da existência anterior foi quebrada, a personalidade está morta. É, em verdade, muito possível que ninguém se mate por fidelidade à decisão tomada, mas por não poder suportar mais tempo essa angústia que já não sabemos a quem pertence, esse sofrimento desligado da criatura que sofre, essa espera vã que não preenche a continuidade de uma vida. Estou em crer que Maiakovski disparou contra si por orgulho, porque em si ou à sua volta condenara qualquer coisa a que o seu amor-próprio não podia resignar-se; que Essenine se enforcou sem pensar
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Uma Memória
nas consequências, dizendo para si mesmo; «e daí talvez isto não seja o fim; quem saberá dizê-lo, talvez a velha tenha dado cartas com duplo sentido…»; que Marina Tsvietaieva toda a vida se defendeu da banalidade quotidiana, graças ao trabalho, e no dia em que isto lhe pareceu um luxo inadmissível, e teve temporariamente, por causa do filho, que sacrificar uma agradável paixão e lançar à sua roda um olhar sensato, descobriu o caos imóvel, insólito, entorpecido que a sua criação repelira e, afastando-se assustada e sem saber onde meter-se, cheia de horror foi esconder-se apressadamente na morte, pousando a cabeça numa corda como se fosse uma almofada.» Boris Pasternak (Ensaio de Autobiografia)
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índ ic e
Anos — Factos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Marina por ela própria (ou quase) . . . . . . . . . . . . . . . Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Meu Irmão Feminino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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«Noites Florentinas» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Relato do último encontro . . . . . . . . . . . . . . . . . . Posfácio ou face póstuma das coisas . . . . . . . . . . . .
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Uma Memória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson Gaspar da Noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal O rato da América, Jacques Lanzmann As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan Derborence, Charles Ferdinand Ramuz O farol de amor, Rachilde Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière A minha vida, Isadora Duncan Rakhil, Isabelle Eberhardt Fuga sem fim, Joseph Roth O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans Tufão, Joseph Conrad Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud Eu, Antonin Artaud A morte difícil, René Crevel A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn As Portas do Paraíso, Jerzy Andrzejewski Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry Balkis (A Lenda num Café), Gérard de Nerval Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud Riso vermelho — fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes Entre a espada e a parede, Tristan Bernard A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dogen Contos bravios, Emilia Pardo Bazán
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