Voltaire, Dicionário filosófico - excerto

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tradução e posfácio de

José Domingos Morais

Pessoas de todos os estados e condições encontrarão com que se instruir e, ao mesmo tempo, divertir. Este livro não exige uma leitura seguida, mas seja qual for a página em que se abrir, encontrar-se-á sempre matéria de reflexão. Os livros mais úteis são aqueles em que os leitores são os autores de uma das metades. Desenvolvem os pensamentos cujos germes lhes foram apresentados, corrigem o que lhes parecer defeituoso e, com as suas reflexões, dão solidez ao que se lhes afigura frágil. Voltaire

Voltaire DICIONÁRIO FILOSÓFICO

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Voltaire

DICIONÁRIO FILOSÓFICO tradução e posfácio de

José Domingos Morais


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TÍTULO ORIGINAL: DICTIONNAIRE PHILOSOPHIQUE

© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA NA CAPA: HIERONYMUS BOSCH, O JARDIM DAS DELÍCIAS TERRENAS, c. 1510 (PORMENOR) 1.ª EDIÇÃO, MAIO 2014 ISBN 978-989-8566-49-2


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Prefácio

Existem já quatro edições deste Dicionário, mas todas incompletas e grosseiras; não nos foi possível orientar por nenhuma delas. Apresentamos finalmente esta outra, que se distingue de todas as anteriores pela correcção, pela ordenação e pelo número de artigos. Foram todos retirados dos melhores autores da Europa e não tivemos o menor escrúpulo em copiar, por vezes, uma página de um livro conhecido, sempre que essa página se revelou necessária à nossa recolha. Há artigos inteiros da autoria de pessoas ainda vivas, entre as quais se contam distintos clérigos. Esses textos são de há muito conhecidos dos eruditos pelas designações de APOCALIPSE, CRISTIANISMO, MESSIAS, MOISÉS, MILAGRES, etc. Mas no artigo MILAGRES, acrescentámos uma página inteira do célebre doutor Middleton, bibliotecário de Cambridge. Encontram-se também diversas passagens do sábio bispo de Gloucester, Warburton. Os manuscritos de M. Dumarsais foram de grande utilidade, mas rejeitámos sem hesitações tudo o que nos pareceu favorecer o epicurismo. O dogma da Providência é tão sagrado, tão necessário à felicidade do género humano, que nenhum homem honesto deverá levar os seus leitores a duvidarem de uma verdade que em caso algum poderá causar qualquer mal e que, pelo contrário, poderá sempre fazer o bem. Nós não olhamos para este dogma da Providência universal como sendo um sistema, mas como uma coisa evidente e bem demonstrada a todos os espíritos dotados de razão. De modo inverso, os diferentes sistemas sobre a natureza da alma, sobre a graça, sobre as opiniões metafísicas, que em todas as comunhões são causadoras de divisões, podem ser submetidos a um exame. Com efeito, sofrem contestação


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desde há mil e setecentos anos e por isso é evidente que não carregam com eles o carácter da certeza. São enigmas que cada um pode desvendar segundo a capacidade do seu espírito. O artigo GÉNESIS é devido a um homem muito hábil, favorecido pela estima e pela confiança de um grande príncipe. Pedimos-lhe desculpa por termos encurtado esse artigo. Os limites a que nos obrigaram não permitiram imprimi-lo no seu todo, teria ocupado quase metade de um volume. Quanto às matérias de pura literatura, com facilidade se reconhecem as fontes onde fomos beber. Tivemos a preocupação de juntar o útil ao agradável, sem outro mérito e outra tarefa nesta obra que não fosse a escolha. Pessoas de todos os estados e condições encontrarão com que se instruir e, ao mesmo tempo, divertir. Este livro não exige uma leitura seguida, mas seja qual for a página em que se abrir, encontrar-se-á sempre matéria de reflexão. Os livros mais úteis são aqueles em que os leitores são os autores de uma das metades. Desenvolvem os pensamentos cujos germes lhes foram apresentados, corrigem o que lhes parecer defeituoso e, com as suas reflexões, dão solidez ao que se lhes afigura frágil. Todavia, só por pessoas esclarecidas pode este livro ser lido. Gente vulgar não é feita para tais conhecimentos, jamais a filosofia será o seu quinhão. Aqueles que dizem existirem verdades que devem ser escondidas do povo, não têm motivo para se alarmarem. O povo nada lê, trabalha seis dias por semana, no sétimo vai para a taberna. Numa palavra, as obras do filósofo não são feitas senão para filósofos, e todo o homem honesto deve procurar ser filósofo, sem se envaidecer de o ser. Terminamos apresentando as mais humildes desculpas àqueles por quem temos muita consideração e nos fizeram o favor de enviar alguns artigos novos, que não pudemos utilizar como desejaríamos por terem chegado demasiado tarde. Não estamos menos sensibilizados pela boa vontade e pelo seu interesse e o seu zelo inestimáveis. Voltaire


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ABADE Onde ides, senhor abade? etc. Não sabeis que abade significa pai? Se vos tornardes pai, tereis prestado um bom serviço ao Estado. Sem dúvida alguma tereis feito a melhor obra que um homem pode fazer, de vós nascerá um ser pensante. Há nesta acção qualquer coisa de divino. Mas se sois um senhor abade só por haverdes sido tonsurado, por usardes um pequeno cabeção e uma batina curta, e por aguardar que vos seja concedida uma simples mercê, então não sois merecedor do nome de abade. Os monges de antigamente deram este nome ao superior por eles eleito. O abade era o seu pai espiritual. Como os mesmos nomes significam, com o tempo, coisas diferentes! O abade espiritual era um pobre à cabeça de vários outros pobres, mas os pobres pais espirituais obtiveram depois duzentas, quatrocentas mil libras de rendimento e há hoje na Alemanha pais espirituais que têm um regimento de guardas às suas ordens. Um pobre que faz juramento de ser pobre e que, por isso mesmo, é um soberano! Já foi dito e redito e é tempo de o tornar a dizer mil vezes: é intolerável. As leis protestam contra este abuso, a religião indigna-se e os autênticos pobres, sem nada para vestir e nada para comer, soltam gritos aos céus à porta do senhor abade. Mas eu ouço os senhores abades da Itália, da Alemanha, da Flandres, da Borgonha, a dizer: «Por que não podemos acumular bens e honrarias? Por que não havemos de ser príncipes, se os bispos o são? De início eram pobres como nós, depois enriqueceram e tornaram-se importantes. Um de eles tem mesmo uma importância superior à dos reis, deixem-nos imitá-los tanto quanto pudermos.»


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abade

Tendes razão, meus senhores, invadi a terra. Ela pertence aos fortes e aos habilidosos que dela se apoderam, àqueles que se aproveitaram dos tempos de ignorância, de superstição, de demência, para nos despojar das nossas heranças e para nos espezinhar, para engordar à custa dos infelizes: acautelai-vos, que o dia da razão pode chegar. ABRAÃO Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os Egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin nas nações setentrionais e tantos outros, mais conhecidos pela sua celebridade do que por uma história bem averiguada. Eu aqui só falo da história profana, pois a dos Judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem acreditamos e que detestamos, foi com toda a evidência escrita pelo próprio Espírito Santo. Por isso temos pela história deste povo os sentimentos que devemos ter. Aqui apenas nos dirigimos aos Árabes. Vangloriam-se de descender de Abraão por intermédio de Ismael, crêem que este patriarca construiu Meca e que nesta cidade morreu. O facto é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus do que a raça de Jacob. Na verdade, tanto uma como a outra raça produziram ladrões, mas os ladrões árabes foram prodigiosamente superiores aos ladrões judeus. Os descendentes de Jacob limitaram-se a conquistar apenas um pequeno país, que perderam, enquanto os descendentes de Ismael conquistaram uma parte da Ásia, da Europa e da África, estabeleceram um império mais vasto que o dos Romanos e escorraçaram os Judeus das suas cavernas a que estes davam o nome de terra da promissão. A julgar as coisas segundo os exemplos das nossas histórias modernas, seria bastante difícil que Abrão fosse o pai de duas nações tão diferentes. Dizem-nos que nasceu na Caldeia e que era filho de um pobre oleiro que ganhava a vida a fazer pequenos ídolos de barro. Não é, de modo nenhum, verosímil que o filho do oleiro tenha ido fundar Meca


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a trezentas léguas de distância, já sob o trópico e para lá de desertos impraticáveis. Se ele fosse um conquistador, teria sem dúvida escolhido o belo país da Assíria e se não foi mais do que um pobre homem, tal como nos é descrito, também não foi fundar reinos longe de casa. O Génesis refere que ele tinha setenta e cinco anos quando saiu do país de Harã, após a morte do seu pai Taré, o oleiro. Mas o mesmo Génesis diz também que Taré engendrou Abraão aos setenta anos de idade, que este mesmo Taré viveu duzentos e cinco anos e que Abraão só partiu de Harã após a morte do pai. Por estas contas, o Génesis torna claro que era de cento e trinta e cinco anos a idade de Abraão quando deixou a Mesopotâmia. Saiu de uma terra de idólatras para outra terra de idólatras chamada Siquém, na Palestina. Por que foi ele para ali? Por que terá trocado as margens férteis do Eufrates por uma região tão distante, tão estéril e pedregosa como Siquém? A língua da Caldeia devia ser muito diferente da falada em Siquém, que não era um lugar de comércio. Siquém está afastada da Caldeia mais de cem léguas e é preciso atravessar desertos para lá chegar. Mas Deus quis que ele fizesse esta viagem, queria mostrar-lhe a terra que os seus descendentes haveriam de ocupar vários séculos depois dele. O espírito humano a custo compreende as razões de uma tal viagem. Ainda mal chegara ao pequeno país montanhoso de Siquém e já a fome o obrigava a abandoná-lo. Ruma para o Egipto com a mulher, em busca daquilo com que viver. São duzentas léguas, de Siquém a Mênfis. Será coisa natural ir procurar trigo tão longe e em terras cuja língua não se entende? Eis uma estranha viagem para ser empreendida com uma idade de quase cento e quarenta anos. Conduziu a sua mulher Sara a Mênfis. Ela era extremamente jovem, quase uma criança em comparação com ele, pois não tinha mais de sessenta e cinco anos. Como era muito bela, ele resolveu tirar partido da sua formosura: «Finge que és minha irmã, para que por tua causa me tratem bem.» Ele devia antes ter dito: «Finge que és minha fi-


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lha.» O rei apaixonou-se pela jovem Sara e ofereceu ao pretenso irmão inúmeras ovelhas e muitos bois, jumentos e jumentas, camelos, servos e servas, o que prova que o Egipto de então era um reino de grande poder e muito civilizado, logo muito antigo e onde magnificamente se recompensavam os irmãos que viessem oferecer as irmãs ao rei de Mênfis. A jovem Sara tinha noventa anos, segundo a Escritura, quando Deus lhe prometeu que Abraão, então com cento e sessenta anos, lhe faria um filho nesse ano. Abraão, que gostava de viajar, dirigiu-se para o horrível deserto de Cades com a sua mulher grávida, sempre jovem e sempre bonita. Um rei deste deserto não perdeu tempo a apaixonar-se por Sara, tal como acontecera com o rei do Egipto. O pai dos crentes usou da mesma mentira de que se servira no Egipto. Apresentou a mulher como sua irmã e neste negócio de novo recebeu ovelhas, bois, servos e servas. Pode dizer-se que este Abraão se tornou num homem muito rico devido à sua mulher. Os comentadores produziram um número prodigioso de volumes para justificar a conduta de Abraão e conciliar a cronologia. Remeta-se portanto o leitor para esses comentários. Foram todos elaborados por gente de espírito fino e delicado, excelentes metafísicos, sem preconceitos e despidos de pedantismo. De resto, este nome Bram, Abram, foi famoso na Índia e na Pérsia. Diversos eruditos pretendem mesmo tratar-se do legislador a quem os Gregos chamaram Zoroastro. Outros dizem que era o Brama dos Indianos, o que não está demonstrado. Mas o que parece bastante razoável a muitos estudiosos é que este Abraão era Caldeu ou Persa. Os Judeus, com o andar dos tempos, gabaram-se de ser seus descendentes, tal como os Francos descendem de Heitor e os Bretões de Tubal. É ponto assente. É certo que a nação judaica era uma horda muito moderna que só muito tarde se estabeleceu nas terras da Fenícia, que se achava rodeada de povos antigos, que adoptou a sua língua, que a eles até o nome de Israel foi buscar, nome


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caldeu, de acordo com o testemunho do judeu Flávio Josefo. É sabido que os nomes dos anjos encontrou-os nos Babilónios; enfim, que deu a Deus o nome de Eloí, ou Eloa, de Adonai, de Jeová ou Ihavé por os ter encontrado nos Fenícios. Provavelmente o nome de Abraão ou Ibraim conheceu-o por intermédio dos Babilónios. Com efeito, a antiga religião de todas as terras e países, desde o Eufrates até ao Oxus, era denominada Kis-Ibraim, Milat-Ibraim. Isto está confirmado por todas as pesquisas feitas naqueles locais pelo sábio Hyde. Os Judeus fizeram portanto da história e da fábula antiga o que os seus negociantes de velharias fazem da roupa velha: viram-na do avesso e vendem-na como nova pelo mais alto preço que conseguirem. É um exemplo singular da estupidez humana, termos nós olhado os Judeus, durante tanto tempo, como uma nação que aos outros tudo ensinou, enquanto o seu historiador Josefo afirma, ele próprio, o contrário. É difícil penetrar nas trevas da antiguidade; mas é evidente que todos os reinos da Ásia eram muito florescentes antes de a horda vagabunda dos Árabes chamados Judeus possuir um pequeno pedaço de terra sua, antes de ter uma cidade, leis e uma religião bem determinada. Assim sendo, quando se vê um rito antigo, uma opinião antiga estabelecidos no Egipto ou na Ásia, e também nos Judeus, é muito natural pensar-se que o novo e pequeno povo, ignorante, grosseiro, sempre privado das artes, tenha copiado, como pôde, a nação antiga, florescente e industriosa. É segundo este princípio que deve ser julgada a Judeia, a Biscaia, a Cornualha, Bérgamo, a terra de Arlequim, etc. Por certo a triunfante Roma não imitou ninguém da Biscaia ou da Cornualha, nem de Bérgamo e é necessário ser-se um grande intrujão, para dizer que os Judeus ensinaram os Gregos. (Artigo retirado de M. Fréret)


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ADÃO A piedosa Madame Bourignon estava certa de que Adão tinha sido hermafrodita, como os primeiros homens do divino Platão. Deus havia-lhe revelado este grande segredo, mas como eu não tive as mesmas revelações, não vou falar disso. Os rabinos judeus leram os livros de Adão e conheceram o nome do seu preceptor e da sua segunda mulher, mas como eu não li esses livros do nosso primeiro pai, não direi uma só palavra. Alguns espíritos ocos, muito sabedores, ficam todos espantados quando lêem os Vedas dos antigos brâmanes e descobrem que o primeiro homem foi criado nas Índias, etc., que se chamava Adimo, que significa aquele que engendra e que a sua mulher se chamava Procriti, que significa a vida. Dizem que a seita dos brâmanes é incontestavelmente mais antiga do que a dos Judeus, que os Judeus só muito tarde puderam escrever na língua cananeia, pois só muito tarde se estabeleceram na terra de Canaã. Dizem que os Indianos foram sempre inventores e os Judeus sempre imitadores, os Indianos sempre engenhosos e os Judeus sempre grosseiros. Dizem que é muito difícil que Adão, que era ruivo e tinha cabelo, seja o pai dos negros que são pretos como a tinta e que na cabeça têm uma lã preta. O que é que eles não dizem? Por mim não digo uma palavra, deixo estas averiguações ao reverendo padre Berruyer, da sociedade de Jesus. É o maior ingénuo que jamais conheci. Queimaram o seu livro como se fosse o de um homem que quisesse ridicularizar a Bíblia, mas posso assegurar que nada entende de subtilezas. (Retirado de uma carta do cavaleiro de R…)

ALMA Seria uma bela coisa cada um ver a sua própria alma. Conhece-te a ti mesmo é um preceito excelente, mas só a Deus pertence pô-lo em prática. Quem mais, além dele, pode conhecer a sua essência? Chamamos alma àquilo que anima. Nada mais sabemos, devido aos limites da nossa inteligência. Três quartas partes do género humano


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não vão mais longe e não se preocupam em pensar no assunto, outro quarto procura, mas ninguém encontrou nem encontrará. Pobre filósofo, tu vês uma planta que vegeta e dizes vegetação, ou mesmo alma vegetativa. Reparas que os corpos têm e transmitem movimento, e dizes força. Vês o teu cão de caça aprender o seu ofício com aquilo que lhe ensinas, e gritas instinto, alma sensitiva. Tu tens ideias articuladas, e tu dizes espírito. Mas, por favor, que entendes tu por essas palavras? Essa flor vegeta, mas haverá um ser real chamado vegetação? Esse corpo empurra outro, mas possuirá ele, em si, um ser distinto chamado força? Esse cão traz-te uma perdiz, mas haverá um ser chamado instinto? Será que não irias rir de um fala-barato (mesmo que tenha sido preceptor de Alexandre) que te dissesse: «Todos os animais vivem, portanto existe neles um ser, uma forma substancial que é a vida?» Se uma tulipa pudesse falar e te dissesse: «A minha vegetação e eu somos dois seres juntos, evidentemente reunidos», não zombarias da tulipa? Vejamos primeiro aquilo que sabes e de que tens a certeza: andas com os pés, fazes a digestão com o estômago, sentes com todo o teu corpo e pensas com a cabeça. Vejamos se a tua razão, apenas a tua razão, pôde iluminar-te o suficiente para concluíres, sem recurso ao sobrenatural, que tu tens uma alma. Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram: «É preciso que haja em nós qualquer coisa capaz de produzir os nossos pensamentos. Esta qualquer coisa deve ser muito subtil, pode ser um sopro, pode ser um fogo, pode ser o éter, uma quinta essência, um ligeiro simulacro, um número, uma hormona.» Enfim, segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do outro. «São átomos que pensam em nós», disse Epicuro depois de Demócrito. Mas, meu amigo, como é que um átomo pensa? Reconhece que não sabes responder. A opinião à qual, e sem dúvida, nos devemos cingir, é a de que a alma é um ser imaterial, mas por certo ninguém pode conceber o que é


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um ser imaterial. «Não, respondem os sábios, mas sabemos que a sua natureza é o pensamento.» E como o sabes? «Sabemos que é assim, porque ele pensa.» Oh sábios! Tenho muito receio de que sejais tão ignorantes como Epicuro quando disse que a natureza de uma pedra é cair, porque ela cai; mas eu pergunto-vos quem a faz cair. «Sabemos, continuaram eles, que uma pedra não tem alma.» De acordo, tal como vós creio que assim é. «Sabemos que uma negação e uma afirmação não são divisíveis, não são partes da matéria.» Tenho a mesma convicção. Mas a matéria, aliás uma desconhecida para nós, possui qualidades que não são materiais, que não são divisíveis; está sujeita a uma gravitação para um centro que Deus lhe deu. Ora esta gravitação não tem partes, não é, de modo nenhum, divisível. A força motriz dos corpos não é um ser composto por diversas partes. A vegetação dos corpos organizados, a sua vida, o seu instinto, também não são seres constituídos por partes, seres divisíveis. Não podeis cortar em dois a vegetação de uma rosa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, tal como não podeis cortar em dois uma sensação, uma negação, uma afirmação. O vosso brilhante argumento, tirado da indivisibilidade do pensamento, não prova portanto absolutamente nada. Então a que coisa chamais a vossa alma? Que ideia tendes? Não podeis, apenas por vós, sem revelação, aceitar que haja em vós outra coisa que não seja um poder, que vos é desconhecido, de sentir e de pensar. Agora dizei-me, de boa-fé, se este poder de sentir e de pensar é o mesmo que vos faz digerir e andar? Tereis de confessar que não, porque o vosso bom-senso pode muito bem dizer ao vosso estômago: Digere. Se estiver doente, este nada fará. Em vão o vosso ser imaterial dará ordem de andar aos vossos pés mas estes permanecerão imóveis, se tiverem gota. Os Gregos perceberam muito bem que, com frequência, o pensamento nada tinha a ver com a actividade dos nossos órgãos. Atribuíram a estes órgãos uma alma animal e aos pensamentos uma alma mais fina, mais subtil, um nou/j.


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Mas olhai para esta alma do pensamento que, em mil ocasiões, assume a direcção da alma animal. A alma pensante comanda, dá ordem às suas mãos para agarrar e estas agarram. Não diz ao coração para bater, ao seu sangue para circular, ao quilo da digestão para se formar, tudo isso é feito sem a sua intervenção. Eis aqui duas almas bem embaraçadas e muito pouco senhoras da sua casa. Ora esta primeira alma animal seguramente não existe, ela não é outra coisa senão o movimento dos vossos órgãos. Tende cuidado, oh homem! Pois a tua razão não te dá qualquer prova de que a tua outra alma exista. Só pela fé o poderás saber. Tu nasceste, tu vives, tu ages, tu pensas, tu permaneces acordado, tu dormes, sem saber porquê. Deus concedeu-te a faculdade de pensar, tal como te deu tudo o resto e se ele não tivesse vindo para te ensinar, nos tempos marcados pela sua providência, que tu tens uma alma imaterial e imortal, não terias disso nenhuma prova. Vejamos os belos sistemas que a tua filosofia construiu a propósito de estas almas. Um deles diz que a alma do homem é uma parte da substância do próprio Deus; um outro que ela faz parte do grande todo; um terceiro, que está criada desde toda a eternidade; um quarto, que ela é feita e não criada; outros asseguram que Deus a vai formando à medida das necessidades e que chega no instante da copulação. «Alojam-se nos animálculos seminais, proclama este. — Não, diz aquele, elas vão habitar nas trompas de Falópio. — Nenhum de vós tem razão, diz um recém-chegado. A alma espera seis semanas que o feto seja formado e só então toma posse da glândula pineal mas, se depara com um gene falso, retrocede e põe-se à espera de melhor ocasião.» A última opinião é que a sua morada se situa no corpo caloso. É este o poiso que lhe destina La Peyronie; é preciso ser-se primeiro cirurgião do rei da França para decidir assim do alojamento da alma. Contudo o seu corpo caloso não teve a mesma sorte deste cirurgião. São Tomás, na sua questão 75.ª e nas questões seguintes, diz que a alma é uma forma subsistante per se, que ela está toda em tudo, que a sua


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essência difere do seu poderio, que existem três almas vegetativas, a saber, a nutritiva, a aumentativa, a generativa. Diz que a memória das coisas espirituais é espiritual e a memória das corporais é corporal, que a alma racional é uma forma «imaterial quanto às operações e material quanto ao ser». São Tomás escreveu duas mil páginas com esta clareza, por isso ele é o anjo da escola. Não foram menos os sistemas que se construíram sobre a maneira como a alma irá sentir quando abandonar o seu corpo, com o qual sentia; como irá ela ouvir sem ouvidos, cheirar sem nariz e tocar sem as mãos, qual o corpo que em seguida irá retomar, se é aquele que ela tinha com dois anos ou com oitenta; como o eu, a identidade da mesma pessoa, irá subsistir; como a alma de um homem imbecil com a idade de quinze anos e morto imbecil aos oitenta anos, retomará o fio das ideias que tinha na sua puberdade; como foram as habilidades que levaram uma alma, cuja perna foi cortada na Europa e na América perdeu um braço, a reencontrar a perna e o braço que, entretanto transformados em legumes, passaram para o sangue de um qualquer outro animal. Nunca mais se chegaria ao fim se quiséssemos enumerar e dar conta de todas as extravagâncias que esta pobre alma humana imaginou sobre ela própria. O que é muito singular é que, nas leis do povo de Deus, não se diga uma palavra sobre a espiritualidade e a imortalidade da alma, nada se diga no Decálogo, nada no Levítico, nem no Deuteronómio. É bem certo, fora de qualquer dúvida, que nunca Moisés, em lado algum, haja proposto aos Judeus recompensas e castigos numa outra vida e que nunca lhes falou da imortalidade das suas almas, nunca as incitou a esperar o céu, nunca as ameaçou com os infernos: tudo é temporal. Antes de morrer, disse-lhes no seu Deuteronómio: «Se, após terdes filhos e netos, prevaricardes, sereis exterminados nesta terra e ficareis reduzidos a um pequeno número entre as nações. «Eu sou um Deus zeloso, que pune a iniquidade dos pais até à terceira e quarta gerações.


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«Honrai pai e mãe para que possais viver longo tempo. «Tereis de comer sem que jamais nada vos falte. «Se seguirdes deuses estrangeiros, sereis destruídos. «Se fordes obedientes, tereis chuva na Primavera e no Outono trigo, azeite e vinho, e feno para os vossos animais, para que possais comer e ficar saciados. «Guardai estas palavras nos vossos corações, nas vossas mãos, diante dos vossos olhos, escrevei-as nas vossas portas, para que os vossos dias se multipliquem. «Fazei aquilo que vos mando, sem nada acrescentar e nada esquecer. «Se vos aparecer um profeta a predizer estas coisas prodigiosas, se a sua predição for verdadeira e se acontecer aquilo que ele disse, e se ele vos disser: “Vinde, vamos seguir os deuses estrangeiros…”, matai-o sem perda de tempo, e que após vós todo o povo o castigue. «Assim que o Senhor vos tiver entregue as nações, a todos estrangulai sem poupar um só homem, e não tende piedade de ninguém. «Não comei aves impuras, como a águia, o grifo, o ixião, etc. «Não comei animais que ruminem e cujo casco não esteja fendido, como o camelo, a lebre e o porco-espinho, etc. «Se respeitardes todas as prescrições, sereis abençoados na cidade e nos campos. Os frutos do vosso ventre, da vossa terra, dos vossos animais, serão abençoados… «Se não respeitardes todas as prescrições e não observardes todas as cerimónias, sereis amaldiçoados na cidade e nos campos… experimentareis a fome e a pobreza, morrereis de miséria, de frio, de pobreza, sofrereis de sarna, ronha e fístulas… tereis úlceras nos joelhos e na barriga das pernas. «O estrangeiro será usurário quando vos emprestar dinheiro, e vós não podereis emprestar dinheiro e ser usurários… porque não servistes o Senhor. «E comereis o fruto do vosso ventre e a carne dos vossos filhos e das vossas filhas, etc.»


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É evidente que em todas estas promessas e em todas estas ameaças nada há que seja temporal e que não se encontra uma palavra sobre a imortalidade da alma e sobre a vida futura. Vários comentadores ilustres entenderam que Moisés estava perfeitamente ciente destes dois dogmas e provam-no pelas palavras de Jacob que, crendo que o seu filho fora devorado pelos animais ferozes, dizia na sua dor: «Eu descerei com o meu filho ao fosso, in infernum, ao inferno», isto é, eu morrerei porque o meu filho está morto. Provam-no ainda por passagens de Isaías e Ezequiel mas os Hebreus, a quem Moisés falava, não poderiam ter lido Ezequiel nem Isaías, que só vieram ao mundo séculos mais tarde. É totalmente inútil discutir sobre os sentimentos íntimos de Moisés. O facto é que, nas leis públicas, ele nunca falou de uma vida por vir, e cingiu todas as punições e todas as recompensas ao tempo presente. Se conhecia a vida futura, por que não expõe ele, expressamente, este grande dogma? E, se não conhecia, qual seria a finalidade da sua missão? É esta uma questão posta por diversas personalidades importantes, a que respondem dizendo que o Mestre de Moisés e de todos os homens reservava-se o direito de a seu tempo explicar aos Judeus uma doutrina que estes não estavam ainda em condições de entender quando se encontravam no deserto. Se Moisés tivesse anunciado o dogma da imortalidade da alma, nunca uma grande escola de Judeus o teria podido combater, como sempre fez, nunca esta grande escola, que é a dos saduceus, teria sido autorizada pelo Estado, nunca os saduceus teriam ocupado os primeiros cargos e nem dos seus membros teriam surgido grandes pontífices. Parece ter sido só após a fundação de Alexandria que os Judeus se dividiram em três seitas: os fariseus, os saduceus e os essénios. O historiador Josefo, que era fariseu, diz-nos, no livro XIII das suas Antiguidades, que os fariseus acreditavam na metempsicose. Os saduceus acreditavam que a alma perecia com o corpo e os essénios, diz ainda Josefo, tinham as


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almas como imortais. As almas, segundo estes, desciam para os corpos numa forma aérea, vindas da mais alta região do ar transportadas por uma atracção violenta e, depois da morte, aquelas que pertenceram a gente de bem ficavam a residir para além do Oceano, num país onde não há calor nem frio, nem vento e nem chuva. As almas dos maus iam para um clima inteiramente contrário. Tal era a teologia dos Judeus. Aquele que só e sem auxílio devia instruir todos os homens veio condenar estas três seitas e sem ele jamais nós teríamos podido conhecer a menor coisa sobre a nossa alma, pois nunca os filósofos tiveram qualquer ideia bem determinada e Moisés, o único verdadeiro legislador do mundo anterior ao nosso, Moisés, aquele que falava com Deus face a face e só o via de costas, deixou os homens numa profunda ignorância sobre esta importante questão. Foi portanto após mil e setecentos anos que se adquiriu a certeza da existência da alma e da sua imortalidade. Cícero só tinha dúvidas, mas o seu neto e a sua neta puderam aprender a verdade com os primeiros Galileus que chegaram a Roma. Antes desse tempo e, em seguida, em todos os cantos da terra onde os apóstolos não penetraram, cada um devia dizer à sua alma: «Quem és tu? De onde vens? Que fazes tu? Para onde vais? Tu és não sei o quê, tu pensas e sentes, e ainda que continues a sentir e a pensar durante cem mil milhões de anos, jamais virás a saber, pela tua própria inteligência, mais do que aquilo que agora sabes, sem o auxílio de um Deus.» Oh homem! Este Deus deu-te o entendimento para bem te conduzires e não para penetrares na essência das coisas que ele criou. Assim pensou Locke e, antes de Locke, Gassendi e antes de Gassendi uma multidão de sábios, mas nós temos bacharéis que sabem tudo o que estes grandes homens ignoravam. Inimigos cruéis da razão ousaram levantar-se contra estas verdades reconhecidas por todos os sábios. Levaram a má-fé e a impudência ao ponto de imputar ao autor desta obra ter assegurado que a alma era matéria. Vós bem sabeis, perseguidores da inocência, que nós dissemos


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exactamente o contrário. Vós bem sabeis que aí se encontram estas exactas palavras contra Epicuro, Demócrito e Lucrécio: «Meu amigo, como é que um átomo pensa? Reconhece que sobre isso nada sabes.» Vós sois evidentemente uns caluniadores. Ninguém sabe o que é o ser chamado espírito, ao qual dais esse nome material de espírito, que significa vento. Todos os primeiros padres da Igreja acreditavam ser a alma corporal. É impossível a nós, seres limitados, saber se a nossa alma é uma substância ou uma faculdade. Nós não podemos conhecer a fundo nem o ser visível, nem o ser pensante ou o mecanismo do pensamento. É-vos proclamado, pelos respeitáveis Gassendi e Locke que, por nós próprios, nada sabemos dos segredos do Criador. Vós sois portanto uns deuses que tudo sabem? Repete-se-vos que nós não podemos conhecer a natureza e o destino da alma senão pela revelação. Que dizeis? Não vos basta esta revelação? Se assim é, então vós sois inimigos desta revelação que nós reclamamos, pois sois os perseguidores daqueles que tudo esperam dela, e que não crêem senão nela. Nós reportamo-nos, dizemos, à palavra de Deus e vós, inimigos da razão e de Deus, vós que blasfemais contra um e outro, vós tratais a dúvida humilde e a humilde submissão do filósofo como o lobo tratou o cordeiro nas palavras de Esopo. Vós dizeis: «Tu disseste mal de mim no ano passado, agora tenho de sugar o teu sangue.» Eis a vossa conduta! Sabeis que assim é e perseguistes a sabedoria, porque vos convencestes de que o sábio vos desprezava. Vós o dissestes, é sabido, e vos apercebestes daquilo que merecíeis e quisestes-vos vingar. A filosofia não se vinga, ri, em paz, dos vossos esforços vãos, alumia suavemente os homens que tentastes embrutecer para os tornar semelhantes a vós. AMIZADE É um contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Digo sensíveis, porque um monge, um solitário, pode não ser mau e viver sem


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conhecer a amizade. Digo virtuosos, porque os maus não têm senão cúmplices, os voluptuosos têm companheiros de deboche, os interesseiros têm associados, os políticos reúnem os facciosos, o comum dos homens ociosos tem ligações, os príncipes têm cortesãos. Só os homens virtuosos têm amigos. Cetegus era o cúmplice de Catilina e Mecenas o cortesão de Octávio, mas Cícero era o amigo de Ático. Que implica este contrato entre duas almas ternas e honestas? As obrigações são mais fortes ou mais frágeis, segundo o grau de sensibilidade de cada um e o número de serviços prestados, etc. O entusiasmo pela amizade foi mais forte nos Gregos e nos Árabes do que entre nós. Os contos que estes dois povos imaginaram sobre a amizade são admiráveis. Nós não temos nada de semelhante, nós somos um pouco secos em tudo. Nos Gregos, a amizade era um tema de religião e de legislação. Os Tebanos tinham o regimento dos amantes. Belo regimento! Alguns tomaram-no como um regimento de sodomitas mas enganaram-se, tomaram o acessório pelo principal. A amizade, nos Gregos, estava prescrita pela religião e pela lei. A pederastia era, infelizmente, tolerada pelos costumes; os abusos vergonhosos não devem ser imputados à lei. Tornaremos a falar disto. AMOR Amor omnibus idem. Aqui há que recorrer ao físico, que é o estofo da natureza bordado pela imaginação. Queres ter uma ideia do amor, olha para os pardais do teu jardim, olha para os teus pombos, contempla o touro que levam à novilha, olha para aquele orgulhoso cavalo que dois moços conduzem à égua mansa que o aguarda e que desvia a cauda para o receber, vê como os seus olhos rebrilham, ouve os seus relinchos, contempla aqueles saltos, aquelas mesuras, as orelhas arrebitadas, a boca que se abre em pequenas convulsões, aquelas narinas a intumescer e o sopro inflamado que vão expelindo, aquelas crinas que se erguem e flutuam,


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aquele movimento imperioso com que se lança sobre o ente amado que a sua natureza lhe destinou. Mas não fiques com ciúmes e sonha com as vantagens da espécie humana que compensam em amor tudo aquilo que a natureza deu aos animais: força, beleza, ligeireza, rapidez. Existem mesmo animais que nada conhecem do prazer. Os peixes de escamas estão privados destas doçuras. A fêmea espalha milhões de ovos sobre o lodo e o macho, ao encontrá-los, passa-lhes por cima e fecunda-os com o seu sémen, sem se preocupar com a fêmea a que pertenceram. A maior parte dos animais que se acasalam não gozam do prazer senão por um único sentido e, uma vez satisfeito o apetite, tudo se extingue. Nenhum animal, além de ti, conhece os beijos. Todo o teu corpo é sensível, sobretudo os teus lábios gozam de uma volúpia que nada consegue fatigar e estas delícias só à tua espécie pertencem. Enfim, tu podes em todas as estações e a todo o momento entregares-te ao amor, e os animais apenas dispõem de um tempo bem determinado. Se reflectires sobre estas excelentes particularidades, dirás como o conde de Rochester: «O amor, numa terra de ateus, faria adorar a Divindade.» Como os homens receberam o dom de aperfeiçoar tudo o que a natureza lhes concede, também aperfeiçoaram o amor. O asseio, o cuidado consigo próprio para tornar a pele mais delicada, aumentam o prazer do tacto, e a atenção prestada à saúde torna os órgãos da volúpia mais sensíveis. Todos os outros sentimentos cabem, em seguida, neste do amor, tal como os metais que se podem amalgamar com o ouro. A amizade, a estima, vêm em seu auxílio e os talentos do corpo e do espírito constituem ainda novos elos. Nam facit ipsa suis interdum fœmina factis, Morigerisque modis, et mundo corpore cultu, Ut facile insuescat secumvir degere vitam. (Lucrécio, livro IV)


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O amor-próprio, sobretudo, estreita estes laços. Aplaudimos as suas escolhas e as ilusões em cortejo são o ornamento desta obra cujas fundações foram postas pela natureza. Eis aqui o que tens de superior aos animais, mas se é certo deliciares-te com tantos prazeres que eles ignoram, quantos desgostos também sofres, de que os bichos não fazem a menor ideia! O que há de horrível para ti é que a natureza envenenou, em três quartos da terra, as delícias do amor e as fontes da vida com uma moléstia medonha, à qual o homem está sujeito e que apenas lhe infecta os órgãos de geração. Esta peste não é como tantas outras doenças que são o resultado dos nossos excessos. Não foi o deboche que a introduziu no mundo. As Frineias, as Lais, as Floras, as Messalinas não foram atacadas, surgiu numas ilhas onde os homens viviam na inocência e de onde alastrou pelo mundo antigo. Se alguma vez se pudesse acusar a natureza de desprezar a sua obra, de contrariar o seu plano, de agir contra as suas intenções, foi por certo nessa ocasião. Seria esse o melhor dos mundos possíveis? Pois bem! Se César, António, Octávio nunca padeceram dessa doença, não teria sido possível evitar que ela tivesse causado a morte de Francisco I? Não, pode dizer-se, as coisas estavam assim ordenadas, da melhor maneira. Assim quero crer, mas é difícil. A M O R D I TO S O C R Á T I C O Como pôde acontecer que um vício, destrutor do género humano se porventura se generalizasse, que um atentado infame contra a natureza seja todavia tão natural? Parece ser o último grau da corrupção reflectida e todavia é a parte que de ordinário caberá àqueles que não tiveram ainda tempo de ser corrompidos. Entrou nos corações jovens, que não conheceram ainda a ambição, nem a fraude, nem a sede das riquezas. É a juventude cega que, com um instinto mal esclarecido, se precipita nesta desordem à saída da infância.


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A inclinação dos dois sexos, um pelo outro, manifesta-se bem cedo mas, diga-se o que se disser das Africanas e das mulheres da Ásia meridional, esta inclinação é geralmente muito mais acentuada no homem do que na mulher. É uma lei que a natureza estabeleceu para todos os animais, é sempre o macho a atacar a fêmea. Os jovens machos da nossa espécie, criados e educados conjuntamente, sentem esta força que a natureza neles começa a desenvolver e, não encontrando o objecto natural do seu instinto, lançam-se sobre aquilo que lhe é semelhante. Com frequência um rapaz novo, pela frescura da sua tez, pelo esplendor das suas cores e pela doçura dos seus olhos, assemelha-se durante dois ou três anos a uma bela moça. Se o amam é porque a natureza se equivocou, presta-se homenagem ao sexo, afeiçoando-se a quem tem as mesmas belezas e, quando a idade faz desvanecer a semelhança, o equívoco cessa. Citraque juventam Ætatis breve ver et primos carpere flores. (Ovídio, Metamorfoses X, 84-85)

É bem sabido que este equívoco da natureza é muito mais comum nos climas amenos do que nos gelos do setentrião, pois ali o sangue é mais ardente e a ocasião mais frequente. Também aquilo que no jovem Alcibíades não parece mais do que uma fraqueza, é uma abominação repugnante num marinheiro holandês ou num vivandeiro moscovita. Não posso admitir que se pretenda que os Gregos tenham autorizado esta licenciosidade. Cita-se o legislador Sólon, porque disse em dois versos ruins: Tu podes amar um belo rapaz Enquanto não lhe crescer barba no queixo.


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Mas na verdade, seria Sólon legislador quando compôs estes dois versos ridículos? Ainda era jovem, e quando o debochado se tornou sábio não incluiu uma tal infâmia entre as leis da república; seria o mesmo que acusar Théodore de Bèze de ter pregado a pederastia na sua igreja porque na juventude compôs uns versos para o jovem Cândido em que dizia: Amplector hunc et illam. Abusa-se do texto de Plutarco que nas suas tagarelices faz dizer a um dos interlocutores do Diálogo do Amor que as mulheres não são dignas do verdadeiro amor, mas um outro interlocutor toma o partido das mulheres, como era seu dever. É certo, tanto quanto a ciência da antiguidade o pode ser, que o amor socrático não é, de modo nenhum, um amor infame. Foi este nome de amor que induziu em erro. Aqueles que se dizia serem os amantes dum jovem eram precisamente os mesmos que agora são, entre nós, os meninos dos nossos príncipes, amigos de honor, moços ligados à educação de um jovem de distinção, seus companheiros de estudo e de manobras militares, uma instituição guerreira e santa de que se abusou como se abusa das festas nocturnas e das orgias. O bando de amantes fundado por Laio era um bando invencível de jovens guerreiros comprometidos por um juramento a darem a vida uns pelos outros. Foi o que a disciplina antiga teve de mais belo. Sexto Empírico e outros bem disseram que a pederastia era recomendada pelas leis da Pérsia. Que citem o texto da lei, que mostrem o código dos Persas e, ainda que o mostrem, não vou acreditar e direi que a coisa não é verdadeira pela razão simples de ser impossível. Não, não está na natureza humana fazer uma lei que contradiga e ultraje a natureza, uma lei que aniquilaria o género humano se fosse observada à letra. Quanta e quanta gente adoptou hábitos vergonhosos e tolerados


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num país pelas leis desse mesmo país! Sexto Empírico, que de tudo duvidava, bem podia duvidar desta jurisprudência. Se vivesse nos dias de hoje e visse dois ou três jovens jesuítas abusar de um ou outro estudante, teria ele o direito de dizer que estas brincadeiras lhes são permitidas pelas constituições de Inácio de Loiola? O amor entre rapazes era tão comum em Roma que ninguém se preocupava em punir essa tolice, perante a qual todo o mundo baixava a cabeça. Octávio Augusto, esse assassino debochado e poltrão que ousou exilar Ovídio, entendeu que era muito bom Virgílio cantar Alexis e Horácio compor umas pequenas odes para Ligurino e a antiga lei Scantinia, que proibia a pederastia, subsistiu mas o imperador Filipe repô-la em vigor e escorraçou de Roma os rapazinhos que se dedicavam ao ofício. Enfim, não creio que jamais tenha havido uma qualquer nação civilizada que fizesse leis contra os costumes*. AMOR-PRÓPRIO Um mendigo dos arredores de Madrid pedia esmola numa atitude de muita nobreza. Alguém que por ali passou disse-lhe: «Não tens vergonha de desempenhar esse ofício vergonhoso, quando podias muito bem trabalhar? — Senhor, respondeu o mendigo, eu peço-vos dinheiro * Dever-se-iam condenar os Senhores… a apresentar todos os anos à polícia um filho da sua autoria. O abade Desfontaines esteve prestes a ser assado na praça de Grève, por ter abusado de uns jovenzinhos saboianos que faziam a limpeza da sua chaminé. Foi salvo por uns seus protectores. Era preciso arranjar uma vítima e cozeram Deschaufours em seu lugar. Foi demasiado, est modus in rebus. Devem aplicar-se as penas proporcionalmente aos delitos. Que diriam César, Alcibíades, o rei da Bitínia, o rei da França Henrique III e tantos outros reis? Quando queimaram Deschaufours, fundamentaram-se nas leis de São Luiz, traduzidas para francês no século XV. «Se alguém é suspeito de… deve ser levado à presença do bispo e, se for provado, devem pô-lo na fogueira e todos os seus bens serão entregues ao barão, etc.» Mas São Luiz não diz o que se deve fazer ao barão se este barão for suspeito de… e se isso for provado. Note-se que pelo termo… São Luiz entende os heréticos, a quem ao tempo davam esse nome. Um equívoco levou Deschaufours, gentil-homem loreno, à fogueira, em Paris. Despréaux teve muita razão em compor uma sátira contra o equívoco, que aliás causou muito mais mal do que se pensa.


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e não conselhos.» Em seguida virou as costas, mantendo toda a dignidade castelhana. Era um mendigo orgulhoso, este senhor, cuja vaidade se feria com pouca coisa. Pedia esmola por amor de si próprio e não tolerava ser repreendido por outro amor de si próprio. Um missionário que viajava na Índia deparou com um faquir carregado de ferros e cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e que se fazia chicotear à conta dos pecados dos seus compatriotas, os Indianos, que por sua vez lhe davam umas moedas daquelas terras. «Que renúncia de si próprio! disse um dos espectadores. Renúncia de mim! replicou o faquir. Ficai a saber que me faço vergastar neste mundo apenas para vos poder devolver as vergastadas no outro mundo, quando todos vós estiverdes transformados em cavalos e eu for o cavaleiro.» Aqueles que dizem que o amor por nós próprios está na base de todos os nossos sentimentos e de todas as nossas acções, têm toda a razão quando se fala da Índia, da Espanha e de toda a terra habitável e, como nada se escreve para provar aos homens que eles têm uma cara, não há qualquer necessidade de lhes provar que têm amor-próprio. Este amor-próprio é o instrumento da nossa convivência, assemelha-se ao instrumento da perpetuidade da espécie, é-nos necessário, é-nos muito caro, dá-nos prazer e é preciso escondê-lo. ANIMAIS Que pena, que pobreza ter-se dito que os animais são máquinas despojadas de conhecimento e de sentimento, que executam os seus trabalhos sempre da mesma maneira, que não aprendem nada e em nada se aperfeiçoam, etc.! Pois quê! Esta ave que faz o seu ninho em semicírculo quando o prende a uma parede, que o constrói em quarto de círculo quando o situa num canto e em círculo quando escolhe uma árvore, esta ave faz tudo da mesma maneira? Este cão de caça, que tu disciplinaste durante três meses, não saberá mais coisas no fim desse tempo do que aquelas que sabia an-


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tes das tuas lições? O canário a quem ensinas uma ária será capaz de a repetir no instante imediato? Não precisaste de um tempo considerável para o ensinar? Não reparaste que ele se engana e se corrige? É porque eu falo contigo que tu julgas que eu tenho sentimentos, memória, ideias? Pois bem! Agora não te falo. Mas tu vês-me entrar em minha casa com um ar de aflição, procurar um papel com inquietação, abrir a secretária onde me lembro de o ter metido, encontrá-lo e lê-lo com alegria. E tu pensas e julgas que eu experimentei o sentimento da aflição e o do prazer, que tenho memória e conhecimentos. Exerce então o mesmo julgamento sobre este cão que perdeu o dono, que o procurou por todos os caminhos com uivos dolorosos, que entra em casa agitado, inquieto, que desce e sobe, que vai de quarto em quarto, que por fim encontra no seu gabinete o dono que ele adora e lhe testemunha a sua alegria pela doçura dos seus latidos, pelos seus pulos, pelas suas carícias. Uns bárbaros apossam-se deste cão, que é prodigiosamente superior ao homem no que respeita à amizade, acorrentam-no a uma mesa e dissecam-no vivo para te mostrarem as veias mesaraicas. Descobre nele todos os mesmos órgãos do sentimento que existem em ti. Ora diz-me, maquinista, a natureza dotou este animal com todos os mecanismos de sentimento, para ele não sentir? Terá ele nervos para ser impassível? Não penses que uma contradição tão impertinente possa existir na natureza. Mas os mestres da escola perguntam o que é a alma dos animais. Não compreendo tal pergunta. Uma alma tem a faculdade de receber nas suas fibras a seiva a circular, de desabrochar o botão das suas folhas e dos seus frutos. Será que me perguntas o que é a alma desta árvore? Ela recebeu estes dons, o animal recebeu os do sentimento, da memória, de um certo número de ideias. Quem foi o responsável por todos estes dons? Quem lhes deu todas estas faculdades? Aquele que faz crescer a erva do campo e que faz gravitar a Terra em torno do Sol.


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As almas dos animais são formas substanciais, disse Aristóteles e depois de Aristóteles, a escola árabe; e depois da escola árabe, a escola angélica; e depois da escola angélica, a Sorbonne; e depois da Sorbonne, ninguém mais no mundo. As almas dos animais são materiais, proclamam outros filósofos. Estes não foram mais afortunados do que os outros. Em vão lhes foi perguntado o que era uma alma material e viram-se obrigados a responder que é matéria que tem sensibilidade. Mas quem lhes deu essa sensibilidade? Foi uma alma material, ou seja, é a matéria que dá a sensibilidade à matéria. E não saem deste círculo. Escutai outros animais a raciocinar sobre os animais, a sua alma é um ser espiritual que morre com o corpo. Mas que prova tendes? Que ideia tendes deste ser espiritual que, para falar verdade, tem sentimento, memória e, até certo ponto, ideias e capacidade para as combinar, mas que jamais saberá aquilo que uma criança de seis anos sabe? Qual o fundamento em que vos apoiais para imaginar que este ser, que não é corpo, se parece com o corpo? Os maiores de todos os animais são aqueles que se atreveram a dizer que esta alma não é corpo nem é espírito. Eis aqui um belo sistema. Nós apenas podemos entender por espírito qualquer coisa de desconhecido que não é corpo. E assim o sistema destes senhores vem a dar nisto, que a alma dos animais é uma substância que não é nem corpo nem qualquer coisa que não é corpo. De onde podem proceder tantos erros contraditórios? Do hábito que os homens sempre tiveram de examinar o que é uma coisa, antes de se assegurarem de que ela existe. Dão-lhe o nome de fiel da balança, válvula de um fole, a alma de um fole. O que é esta alma? É um nome que eu dei a esta válvula que baixa para deixar entrar o ar, em seguida fecha-se e impele-o por um tubo quando eu obrigo o fole a mover-se. Aqui não existe uma alma diferente de uma máquina, mas o que faz mover o fole dos animais. Já vos disse, aquele que faz mover os astros. O filósofo que disse Deus est anima brutorum tinha razão; mas devia ter ido mais longe.


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ANJO Anjo, em grego, enviado. Nada nos adianta saber que os Persas tinham os Péris, os Hebreus os Malakim, os Gregos os seus Daimonoi. Mas o que talvez nos possa esclarecer um pouco mais é saber-se que uma das primeiras ideias dos homens foi sempre a de colocar seres intermediários entre a divindade e nós próprios. São esses os demónios, esses os génios que a antiguidade inventou, o homem fez sempre os deuses à sua imagem. Viam-se os príncipes difundir as suas ordens por mensageiros, logo a Divindade envia também os seus correios. Mercúrio, Iris, eram correios, mensageiros. Os Hebreus, o único povo conduzido pela própria Divindade, de início não deram nome aos anjos que Deus se dignou, enfim, enviar-lhes. Serviram-se dos nomes que os Caldeus lhes davam, quando a nação judaica estava cativa na Babilónia. Miguel e Gabriel são pela primeira vez assim denominados por Daniel, escravo daqueles povos. O Judeu Tobias, que vivia em Nínive, conheceu o anjo Rafael que viajava com o seu filho para o ajudar a cobrar o dinheiro que lhe devia o Judeu Gabael. Nas leis dos Judeus, isto é, no Levítico e no Deuteronómio, não se faz a mais pequena menção sobre a existência de anjos, com mais forte razão sobre o seu culto. Também os saduceus não acreditavam nos anjos. Mas nas histórias dos Judeus muito se fala deles. Estes anjos eram corporais, tinham asas nas costas, tal como os gentios fingiram que Mercúrio as tinha nos calcanhares. Por vezes escondiam as asas debaixo do vestuário. Como seria possível não terem eles corpo, pois bebiam e comiam e os habitantes de Sodoma quiseram cometer o pecado de pederastia com os anjos que se dirigiram a casa de Lot? A antiga tradição judaica, segundo Ben Maimon, admite dez graus, dez ordens de anjos: 1 — Os chaios acodesh, puros, santos. 2 — Os ofamin, rápidos. 3 — Os oralim, os fortes. 4 — Os chasmalim, as chamas. 5 — Os seraphim, centelhas. 6 — Os malakim, anjos, mensageiros, de-


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putados. 7 — Os eloim, os deuses ou juízes. 8 — Os bem eloim, os filhos dos deuses. 9 — Cherubim, imagens. 10 — Ychim, os animados. A história da queda dos anjos não se encontra nos livros de Moisés. O primeiro testemunho que a refere é o do profeta Isaías que, apostrofando o rei da Babilónia, exclama: «Que é feito do cobrador de tributos? Os abetos e os cedros regozijam-se com a sua queda. Como foi que tombaste do céu, oh Hellel, estrela da manhã?» Traduziu-se este Hellel pelo nome latino Lucifer e em seguida, com um sentido alegórico, deu-se o nome de Lucifer ao príncipe dos anjos que fizeram guerra no céu. Por fim este nome, que significa fósforo e aurora, tornou-se o nome do diabo. A religião cristã fundamenta-se na queda dos anjos. Aqueles que se revoltaram foram precipitados das esferas em que habitavam para o inferno, no centro da terra, e tornaram-se diabos. Um diabo tentou Eva sob a forma de serpente e danou o género humano. Jesus veio resgatar o género humano e triunfar do diabo, que ainda nos tenta. Contudo, esta tradição respeitante à fundamentação apenas se encontra no livro apócrifo de Enoch e, mesmo aí, é narrada de uma maneira muito diferente da tradição transmitida. Santo Agostinho, na sua centésima nona carta, não tem qualquer dificuldade em atribuir corpos leves e ágeis aos bons e aos maus anjos. O papa Gregório segundo reduziu para nove coros, para nove hierarquias ou ordens, os dez coros de anjos reconhecidos pelos Judeus: são os serafins, os querubins, os tronos, as dominações, as virtudes, as potestades, os arcanjos e enfim os anjos que dão o nome às outras oito hierarquias. Os Judeus tinham no templo dois querubins, cada um com duas cabeças, uma de boi e a outra de águia, e com seis asas. Nas pinturas de hoje aparecem com a imagem de uma cabeça volante com duas pequenas asas por baixo das orelhas. Pintamos os anjos e os arcanjos com a figura de jovens com duas asas nas costas. No que respeita aos tronos e às dominações, ainda não houve ensejo de os pintar.


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anjo

São Tomás, na questão CVIII, art. 2, diz que os tronos estão tão perto de Deus como os querubins e os serafins, porque é sobre eles que Deus está sentado. Scot contou mil milhões de anjos. A antiga mitologia dos bons e dos maus génios, ao passar do Oriente para a Grécia e para Roma, levou-nos a consagrar estas ideias e fez-nos admitir para cada homem um bom e um mau anjo, em que um o protege e o outro o incita para o mal até à hora da morte. Mas ainda não é sabido se estes bons e maus anjos passam continuamente do seu posto para um outro, ou se são rendidos por outros. Consultai sobre este artigo a Summa de São Tomás. Não se sabe com rigor onde os anjos se mantêm, se é no ar, no vazio, nos planetas: sobre esta questão, Deus não quis que fôssemos instruídos. ANTITRINITÁRIOS Para dar a conhecer as suas ideias e sentimentos, basta dizer que eles sustentam que nada é mais contrário à recta razão do que aquilo que se ensina entre os cristãos sobre a trindade das pessoas em uma só essência, em que a segunda é engendrada pela primeira e a terceira procede das duas outras. Basta dizer que esta doutrina ininteligível não se encontra em nenhum passo da Escritura. Que não se pode localizar nenhuma passagem que a autorize, e à qual se possa, sem de modo algum nos afastarmos do espírito do texto, dar um sentido mais claro, mais natural, mais conforme às noções comuns e às verdades primitivas e imutáveis. Que sustentar, como fazem os seus adversários, que existem diversas pessoas distintas na essência divina, e que não é o Eterno o único verdadeiro Deus, mas que é necessário juntar-lhe o Filho e o Espírito Santo, é introduzir na Igreja de Jesus Cristo o erro mais grosseiro e mais perigoso, pois que é favorecer abertamente o politeísmo. Que implica uma contradição dizer-se que não há senão um Deus e que todavia existem três pessoas e cada uma delas é verdadeiramente Deus.


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antitrinitários

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Que esta distinção, um em essência e três em pessoa, nunca se encontrou na Escritura. Que ela é manifestamente falsa, pois é certo não haver menos essências que pessoas, nem menos pessoas que essências. Que as três pessoas da Trindade são ou três substâncias diferentes, ou acidentes da essência divina, ou esta mesma essência sem distinção. Que no primeiro caso arranjam-se três deuses. Que no segundo faz-se Deus composto de acidentes, adoram-se os acidentes e metamorfoseiam-se os acidentes em pessoas. Que no terceiro é inutilmente e sem fundamento que se divide um sujeito indivisível e que se distingue em três aquilo que em si próprio não é distinguível. Que ao dizer-se que as três personalidades não são nem substâncias diferentes na essência divina, nem acidentes desta essência, será muito difícil persuadirmo-nos de que sejam qualquer coisa. Que não é necessário crer-se que os trinitários mais rígidos, e os mais decididos, tenham eles mesmos qualquer ideia clara do modo como as três hipóstases subsistem em Deus sem dividir a sua substância e, por conseguinte, sem a multiplicar. Que Santo Agostinho, ele próprio, após ter apresentado sobre este assunto mil raciocínios tão falsos quanto tenebrosos, viu-se forçado a reconhecer que a este respeito, nada de inteligível se podia dizer. Eles citam em seguida esta passagem deste padre que é, com efeito, muito singular: «Quando se pergunta, diz ele, o que é os três, a linguagem dos homens revela-se curta e faltam os termos para os exprimir. No entanto foi dito três pessoas, não para significar qualquer coisa, mas porque é necessário falar e não permanecer mudo.» Dictum est tamen tres personae, non ut aliquid diceretur, sed ne taceretur. (De Trinit. Lib. V, cap. IX)

Que os teólogos modernos não foram mais esclarecedores nesta matéria.


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tradução e posfácio de

José Domingos Morais

Pessoas de todos os estados e condições encontrarão com que se instruir e, ao mesmo tempo, divertir. Este livro não exige uma leitura seguida, mas seja qual for a página em que se abrir, encontrar-se-á sempre matéria de reflexão. Os livros mais úteis são aqueles em que os leitores são os autores de uma das metades. Desenvolvem os pensamentos cujos germes lhes foram apresentados, corrigem o que lhes parecer defeituoso e, com as suas reflexões, dão solidez ao que se lhes afigura frágil. Voltaire

Voltaire DICIONÁRIO FILOSÓFICO

Voltaire DICIONÁRIO FILOSÓFICO

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