W.H. Hudson, Verdes Moradas - excerto

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tradução e apresentação de

José Domingos Morais

Abel […] depara com alguém que tem forma humana, uma jovem de grande beleza que convive com a natureza, conhece as árvores e as ervas, é amiga das aves, das borboletas e dos insectos, dos animais, tanto dos que rastejam como dos que trepam pelas árvores ou andam a trote pelas campinas. O amor surge, não se sabe de onde, visita Abel e Rima — é este o nome da rapariga da floresta — e ambos se apaixonam. Abel descobre que a felicidade é possível de alcançar se porventura ele for capaz de viver em paz com a Natureza, respeitá-la e admirá-la e não a maltratar. E o lugar da felicidade será a sua verde morada. Tal como Rima e tal como Abel, Hudson amava a Natureza e a Vida, embora esta nem sempre lhe tenha corrido como desejaria […]. Mas estou certo de que ao erguer-se, num local como Hyde Park, uma estátua de Rima, provavelmente a personagem mais amada por William Henry Hudson entre todas as que criou, ter-se-á prestado ao escritor, falecido em Londres em Agosto de 1922, não só a homenagem que merecia, mas ainda a que melhor se enquadra na mensagem que nos deixa, e que é um convite e um desafio para amar e proteger a Natureza e a Vida. J.D.M.

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W.H. Hudson VERDES MORADAS

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VERDES MORADAS


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W.H. Hudson

VERDES MORADAS

tradução e apresentação

José Domingos Morais


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TÍTULO ORIGINAL: GREEN MANSIONS

© SISTEMA SOLAR, CRL (2015) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA E JOSÉ DOMINGOS MORAIS REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE NA CAPA: PINTURA DE CÉZANNE, 1887 1.ª EDIÇÃO, OUTUBRO DE 2015 ISBN 978-989-99307-1-1


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apresentação

Em Londres, no Hyde Park, existe um recinto que é um refúgio ou, talvez mesmo, um santuário de aves. Aí se ergue a pequena estátua de uma figura feminina cujo nome é Rima, a misteriosa criatura que vivia nas florestas amazónicas, metade mulher e metade ave, e que é a heroína deste romance. O refúgio e a estátua foram ali instalados em 1995, em memória de William Henry Hudson, o autor de Verdes Moradas, criador de Rima, membro fundador da instituição britânica Royal Society for the Protection of Birds. W.H. Hudson nasceu na Argentina em Quilmes, uma povoação próxima de Buenos Aires, a 4 de Agosto de 1841. Os pais eram norte-americanos de origem inglesa e irlandesa que, por motivos de saúde ou financeiros, haviam trocado o leste dos Estados Unidos pelo clima mais saudável da América do Sul onde, nas pampas argentinas, se dedicaram à criação de gado ovino. Foi essa a terra da infância e da juventude de Hudson, uma terra de savanas e pastagens, de árvores e aves, de gado bravo e animais à solta. Uma terra que desde criança percorreu e o enfeitiçou, porque olhou o céu e viu as estrelas, ouviu o vento a soprar e a água a correr nos ribeiros, sentiu os cheiros da folhagem das árvores e os aromas das ervas e descobriu que havia uma outra vida, não condicionada pelas exigências diárias da sociedade egoísta e tirânica, uma vida onde a liberdade não era uma ilusão mas sim um mistério que o atraía e o


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fascinava e recheou a memória de recordações que em 1918, já quase com oitenta anos de idade, nos revelou na sua obra de carácter autobiográfico escrita e publicada em Londres e a que deu o esplendoroso título de Far Away and Long Ago (Muito Longe e Há Muito Tempo). Nas suas deambulações pelas pampas da Argentina, pela Patagónia, pelo Uruguai e pelo Brasil, Hudson não se cansava de ver e observar a vida animal, em particular a das aves, e registar tudo o que de algum modo o intrigava ou impressionava. Mais tarde, já em Londres, para onde mudou a sua morada em 1869, esses registos possibilitaram-lhe a publicação de dois estudos sobre as aves da sua juventude intitulados Argentine Ornithology (1889) e The Naturalist in La Plata (1892) que lhe granjearam o mérito de ser reconhecido como um especialista. Na sua nova pátria, a Inglaterra vitoriana cuja cidadania vem a adquirir em 1900, dedica-se também à investigação ornitológica e publica em 1895 um outro estudo denominado British Birds. Em 1885 vem a lume a sua primeira novela, The Purple Land, cuja acção se desenrola naturalmente na América do Sul, mais concretamente no Uruguai, e que não obteve grande sucesso, quer junto do público quer da crítica. Todavia Ernest Hemingway no seu romance The Sun Also Rises (O Sol Também se Levanta), faz referência a esta obra. É, porém, com Green Mansions que Hudson adquire notoriedade como romancista e os elogios de diversos escritores seus contemporâneos, como por exemplo Henry James, Joseph Conrad ou Ford Madox Ford. O livro é levado para o cinema em 1959, num filme dirigido por Mel Ferrer e protagonizado por Anthony Perkins e Audrey Hepburn, que não conseguiram obter os favores do público e as boas palavras dos críticos, tal como já tinha acontecido com a novela The Purple Land. Em Green Mansions (Verdes Moradas), o protagonista Abel, um jovem venezuelano, vê-se obrigado por questões de ordem política a aban-


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Santuário para pássaros e Memorial dedicado a W.H. Hudson em Hyde Park, Londres. Autoria de Jacob Epstein, 1925. Baixo-relevo representando a personagem Rima de Verdes Moradas.

donar a capital Caracas e procurar refúgio na floresta da Guiana. Aí encontra os Índios e os Índios acabam por se revelar gente tão pouco merecedora de confiança como os evoluídos habitantes das grandes cidades. Abel ouve uma voz na floresta… ou talvez não seja uma voz mas sim o chilrear de uma ave de maravilha. Os Índios aconselham-no a não tentar encontrar a criatura cujo cantar o persegue, pois trata-se, dizem, de um ser maléfico e horrendo. Abel não obedece, procura e não desiste e depara com alguém que tem forma humana, uma jovem de grande beleza que convive com a natureza, conhece as árvores e as ervas, é amiga das aves, das borboletas e dos insectos, dos animais, tanto dos que rastejam como dos que trepam pelas árvores ou andam a trote pelas campinas. O amor surge, não se sabe de onde, visita Abel e Rima — é este o nome da rapariga da floresta — e ambos se apaixonam. Abel descobre que a felicidade é possível de alcançar se porventura ele for capaz de viver em paz com a Natureza, respeitá-la e admirá-la e não a maltratar. E o lugar da felicidade será a sua verde morada. Rima quer saber o que é o Mundo e o que existe para além da floresta verde, e quer saber quem era a sua mãe, que só em criança conheceu e só sabe o


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nome da terra onde a mãe vivia, Riolama. Do alto de um monte Abel aponta-lhe o horizonte e diz-lhe que para lá da linha há outras florestas e outros montes… e há o mar. Metem-se ao caminho em busca do passado de Rima, à procura de Riolama. Os Índios não permitem que isso aconteça e impedem que Abel e Rima venham a gozar o amor e viver a felicidade a dois. É este o fio da história que Abel conta a um amigo que quer saber de quem são as cinzas preciosamente guardadas numa urna. Abel diz ao amigo que enquanto as suas cinzas não se misturarem com as da urna, a terra não deixará de ostentar a sua esplendorosa beleza, a beleza que Rima lhe ensinou a ver e a admirar. Quer parecer-me que em 1905, quando William Henry Hudson criou as personagens de Rima e Abel, já ultrapassados sessenta anos de vida, as recordações da infância e da juventude lhe permitiam continuar a ver na terra, fosse ela qual fosse, a beleza que, muito longe e há muito tempo ele viu e uma outra Rima, vinda sabe-se lá de onde e desde quando, o ensinou a admirar e amar. Tal como Rima e tal como Abel, Hudson amava a Natureza e a Vida, embora esta nem sempre lhe tenha corrido como desejaria e julgo que merecia, e é de lamentar que o filme já mencionado não constitua, assim o dizem, um louvor à Natureza, um cântico à Vida e uma homenagem a Hudson. Mas estou certo de que ao erguer-se, num local como Hyde Park, uma estátua de Rima, provavelmente a personagem mais amada por William Henry Hudson entre todas as que criou, ter-se-á prestado ao escritor, falecido em Londres em Agosto de 1922, não só a homenagem que merecia, mas ainda a que melhor se enquadra na mensagem que nos deixa, e que é um convite e um desafio para amar e proteger a Natureza e a Vida. J.D.M.


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prólogo

É para mim motivo de grande pesar que esta tarefa me tenha exigido, para a concluir, muito mais tempo do que aquilo que eu pensava. Passaram já muitos meses — de facto, mais de um ano — desde que escrevi para Georgetown a anunciar a minha intenção de publicar, dentro de muitos poucos meses, toda a verdade acerca de Mr. Abel. Vindo do seu amigo mais chegado, seria esta a mais insignificante das coisas e eu esperava que as discussões nos jornais pudessem cessar em qualquer caso, pelo menos até ao aparecimento do livro prometido. Não foi isso o que aconteceu e, longe como estou da Guiana, não me dei conta de que a imprensa local vinha fazendo sair, semana após semana, diversas e variadas conjecturas, cuja leitura deveria ser, em alguns casos, muito penosa para os amigos de Mr. Abel. Um quarto escuro, de que ninguém suspeitara a existência naquela casa de família na Maria Street, mobilado apenas com uma pequena mesa de ébano onde se encontrava uma urna cinerária com a superfície ornamentada de flores, de folhas e de espinhos, e uma serpente enrolando-se por tudo aquilo; ainda uma inscrição de sete curtas palavras que ninguém conseguia compreender ou interpretar correctamente e finalmente as cinzas misteriosas… era tudo o que se relacionava com um capítulo não contado da vida de um homem e assim se punha à disposição da imaginação de quem o olhava. Esperemos que agora, e por fim, as histórias e fantasias cessem de vez. Todavia, é bem na-


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tural que a curiosidade mais viva tenha sido despertada, não só por causa do encanto peculiar indescritível do homem, que todos reconheciam e que todos os corações conquistava, mas também por causa daquele capítulo secreto — aquela estada no deserto, sobre a qual guardava silêncio. De um modo vago, os seus amigos íntimos pressentiam que ele fizera experiências estranhas que profundamente o tinham afectado e alterado o curso da sua vida. Apenas por mim era a verdade conhecida e, tão brevemente quanto possível, devo agora falar da minha grande amizade por ele e da minha estreita intimidade, e contar o que aconteceu. Quando, em 1887, cheguei a Georgetown para iniciar um emprego num serviço público, deparei com Mr. Abel, um antigo residente, homem de fortuna e muito bem aceite na sociedade. No entanto, ele era um estrangeiro, um venezuelano, um desses homens turbulentos da nossa fronteira, que os colonos sempre olharam como seus inimigos naturais. A história que me contavam dizia que cerca de doze anos antes ele chegara a Georgetown vindo de qualquer um dos remotos distritos do interior; que tinha viajado só e a pé, atravessando metade do continente para alcançar a costa e apareceu-lhes, nessa primeira vez, como um jovem estrangeiro sem um tostão, em farrapos, quase reduzido a um esqueleto pelas febres e toda a espécie de misérias, com o rosto enegrecido pela longa exposição ao sol e ao vento, sem amigos, falando um escasso inglês. Viver foi para ele uma luta dura. Mas amanhou-se como pôde e por fim chegaram de Caracas umas cartas a informá-lo de que uns bens consideráveis de que tinha sido desapossado, estavam uma vez mais em seu poder, e também a convidá-lo a regressar ao seu país para tomar parte no governo da República. Mas Mr. Abel, embora jovem, tinha já enterrado as paixões e aspirações políticas


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e, aparentemente, até o amor pelo seu país. De uma vez por todas escolheu permanecer onde estava — os seus inimigos, dizia ele com um sorriso, eram os seus melhores amigos — e uma das primeiras aplicações que fez com a sua fortuna foi adquirir aquela casa na Main Street, que mais tarde foi como um lar para mim. Devo dizer que o nome completo do meu amigo era Abel Guevez de Argensola, mas nos seus primeiros tempos em Georgetown tratavam-no apenas pelo seu nome de baptismo e, mais tarde, desejou ficar conhecido simplesmente por «Mr. Abel». Assim que travei conhecimento com ele, deixei de me espantar com a estima e mesmo com a afeição com que ele, um venezuelano, era tido nesta colónia britânica. Todos o conheciam e todos gostavam dele e a razão de assim ser era o encanto pessoal do homem, a sua boa e agradável disposição, a sua maneira de lidar com as mulheres, que muito as encantava e não suscitava o ciúme de nenhum homem — nem sequer do velho fazendeiro irascível, casado com mulher jovem e de cabeça leve — o seu amor pelas crianças pequenas, por todos os animais selvagens, pela natureza e por tudo aquilo que não estivesse relacionado com os comuns interesses materiais e as preocupações de uma comunidade puramente comercial. As coisas que apaixonavam os outros homens — a política, o desporto e o preço dos diamantes — eram alheias ao seu pensamento. E quando os homens se tinham ocupado com estas questões durante uma temporada inteira, quando se tinham esfalfado e, como numa tempestade, «deitado os bofes pela boca» no escritório, no salão do clube ou em casa, e ansiavam por uma mudança, era um alívio voltarem-se para Mr. Abel e levá-lo a falar do seu mundo — o mundo da natureza e do espírito. Era uma boa coisa e todos estavam de acordo, ter um Mr. Abel em Georgetown. Que, sem dúvida, era bom para mim, bem de-


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pressa o descobri. É certo que eu não esperava encontrar em tal lugar alguém com quem pudesse partilhar os meus gostos — esse amor da poesia que tem sido a paixão e a delícia da minha vida. Mas foi alguém assim que eu encontrei em Mr. Abel. Foi para mim uma surpresa que ele, nado e criado na literatura de Espanha e leitor da literatura inglesa com apenas dez ou doze anos de experiência, possuísse um conhecimento da nossa poesia moderna tão íntimo como o meu e lhe dedicasse um amor tão grande como o meu. Este sentimento comum aproximou-nos e fez de nós os dois — o nervoso hispano-americano dos trópicos com a pele cor de azeitona e o fleumático saxão de olhos azuis vindo do frio do Norte — um só em espírito e mais ligados do que dois irmãos. Muitas foram as horas do dia que passámos juntos a «fatigar o sol com as nossas conversas», muitos, sem conta, os deliciosos serões naquela sua repousante casa em que eu era um hóspede quase diário. Eu não esperava tamanha felicidade, nem ele tão-pouco, frequentes vezes me disse. O resultado desta intimidade foi que a minha vaga ideia sobre o seu passado oculto, que me levara a crer que uma qualquer estranha experiência o afectara profundamente e tivesse talvez alterado o curso da sua vida, não se atenuou e, pelo contrário, se acentuou e com frequência persistia. Era quase doloroso observar as alterações que nele ocorriam sempre que as nossas conversas desligadas tocavam por acaso nos aborígenes e no conhecimento que adquirira sobre o carácter deles e as linguagens que falavam, quando viajou pelas suas terras e com eles conviveu. Tudo o que tornava fascinante as suas conversas — a vivacidade e a curiosidade do seu pensar, a finura e a alegria de espírito tingida por uma terna melancolia — parecia desvanecer-se. Até a expressão do rosto mudava tornando-se dura e inflexível, e enumerava todos os acontecimentos com uma voz mecânica e seca, como se estivesse a


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ler um livro. Aflige-me registar estas coisas mas nunca deixei escapar nenhuma alusão a esta percepção e nunca falei do assunto com ninguém, salvo numa discussão que acabou por ser o único e breve rompimento naquela estreita amizade de longos anos. Eu caíra num mau estado de saúde e Abel ficou não só preocupado mas também incomodado, como se, ao adoecer, eu o tivesse tratado mal e chegou mesmo a dizer que eu poderia ficar curado se porventura assim quisesse. Não o tomei a sério, mas uma manhã, quando o chamei ao meu escritório, acometeu-me de modo tal que me fez perder a paciência e enfurecer-me. Disse-me que a indolência e o uso de estimulantes eram a causa do mau estado da minha saúde. Falou de uma maneira trocista, como se não pensasse realmente no que dizia, mas sem poder disfarçar inteiramente os seus sentimentos. Espicaçado pelas suas repreensões disse-lhe preto no branco que ele não tinha o direito de me falar daquela maneira, mesmo que fosse de brincadeira. Sim, disse ele, já sério, tinha o maior dos direitos — o direito da nossa amizade. Não seria um verdadeiro amigo se guardasse silêncio sobre uma questão como esta. Então, precipitadamente, retorqui que a nossa amizade não me parecia, a mim, tão perfeita e total como ele julgava. Uma das condições da amizade é que os dois parceiros devem conhecer-se bem um ao outro e não terem segredos. Toda a minha vida e o meu pensamento estiveram sempre abertos para ele e neles podia ler como num livro aberto. A sua vida era para mim um volume fechado e afivelado. O seu rosto tornou-se sombrio e, após uns momentos de reflexão silenciosa, levantou-se com um gelado adeus e sem o nosso habitual aperto de mãos. Depois da sua saída senti uma grande perda, senti que uma calamidade se me abatera em cima, mas estava ainda atormentado


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pelas suas tão cândidas censuras e, para cúmulo, no fundo do meu coração eu reconhecia o seu acerto. Nessa noite, jazendo acordado, arrependi-me da crueldade da resposta que lhe dera e decidi pedir-lhe perdão e deixar ao seu cuidado a questão das nossas futuras relações. Mas ele antecipou-se e a manhã trouxe-me uma carta em que me pedia perdão e convidava para nessa noite ir jantar com ele. Éramos só os dois durante o jantar e mais tarde, quando nos sentámos na varanda a fumar e a saborear um café bem preto, estávamos calmos, de um modo pouco usual e com uma certa gravidade, que levou os dois criados fardados de branco — o velho mordomo hindu de cara morena e olhos espertos e um jovem negro da Guiana de uma cor quase azul-escura — a lançar continuadamente olhares furtivos para a cara do patrão. Estavam habituados a vê-lo mais jovial quando tinha um amigo para jantar. Para mim, a mudança no seu comportamento não foi surpresa, pois desde o momento em que o vi adivinhei que estava determinado a desafivelar e abrir o volume fechado de que falei. Adivinhei que chegara a hora de ele falar.


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capítulo i

Agora que estamos calmos e em sossego — disse ele — e lamentamos ter-nos zangado um com o outro, não tenho pena do que aconteceu. Mereci as tuas censuras. Cem vezes tive vontade de te contar a história completa das minhas viagens e aventuras com os selvagens e uma das razões que me impediu de o fazer foi o receio de que isso provocasse um efeito infeliz na nossa amizade. É para mim preciosa e, acima de tudo o mais, desejo conservá-la. Mas agora não quero pensar mais nisso. Devo apenas preocupar-me com a maneira como te devo contar a minha história. Vou começar no tempo em que tinha vinte e três anos. Era ainda muito cedo para me enredar na política e nas suas complicações, que me obrigaram a fugir do meu país para preservar a minha liberdade e talvez a minha vida. Cada nação, alguém fez notar, tem o governo que merece e é bem certo que a Venezuela tem aquele que merece e melhor lhe assenta. Dizemos que é uma república, não apenas por não ser nenhuma, mas ainda porque todas as coisas devem ter um nome e ter um belo nome ou um nome sonante é muito conveniente, em particular quando se quer pedir dinheiro de empréstimo. Se os venezuelanos, escassamente distribuídos por uma área de meio milhão de milhas quadradas, na sua maior parte camponeses iletrados, mestiços ou indígenas, fossem homens educados e inteligentes, sobretudo preocupados com o bem público, ser-lhes-ia possível constituírem uma república. Em vez disso são governados por pequenos


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grupos que se entretêm com revoluções. Este sistema de governo revela-se muito conveniente e perfeitamente adequado às condições naturais do país e ao temperamento nacional. Acontece que os homens cultos e educados, digamos a classe alta, são tão pouco numerosos que são muito poucos aqueles que não se encontram ligados por laços de sangue ou de matrimónio a membros proeminentes do grupo político a que pertencem. Com isto, tu podes ver como foi simples e quase inevitável que os tivéssemos acostumado a considerar a conspiração e a revolta contra o partido no poder — os homens de um outro grupo — como o que há de mais normal na ordem natural das coisas. No caso de fracassar, as insurreições são punidas mas não consideradas como uma imoralidade. Pelo contrário, os homens mais inteligentes e os mais virtuosos tomam, entre nós, um papel determinante nestas aventuras. Não tenho a pretensão de decidir quando e em que condições as coisas se apresentam, ou não, intrinsecamente erradas, ou se estão erradas em certas circunstâncias e não o estão em outras, por serem inevitáveis. Com este aborrecido prelúdio apenas pretendo que possas entender como eu — um jovem de reputação sem mácula e não um militar de carreira ou um político ambicioso, com meios de fortuna assinaláveis neste país, bem visto na sociedade, amante das proezas sociais, dos livros e da natureza — inspirado, assim creio, pelos mais elevados motivos, muito prontamente se deixou envolver por amigos e conhecidos numa conspiração para derrubar o governo do tempo, com o objectivo de o substituir por gente de mais valia, ou seja, por nós mesmos. A nossa aventura fracassou porque às autoridades chegaram rumores do conluio e tudo se precipitou. Os nossos chefes achavam-se dispersos pelo país e alguns no estrangeiro, e umas tantas


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cabeças estouvadas do partido que se encontravam em Caracas e provavelmente receassem ser presas, arriscaram um golpe temerário. Acometeram o Presidente na rua e este ficou ferido. Os agressores foram presos e alguns deles fuzilados no dia seguinte. Quando tive conhecimento das notícias, estava eu longe da capital, instalado com um amigo numa herdade nas margens do Rio da Quebrada Honda, no Estado de Guarico, a cerca de quinze ou vinte milhas da cidade de Zaraza. O meu amigo, um oficial do exército, era um dos chefes da conspiração e, como eu era o filho único de um homem que fora fortemente odiado pelo Ministro da Guerra, tornou-se indispensável fugirmos ambos, para salvar as nossas vidas. Dadas as circunstâncias não podíamos esperar nenhum perdão, mesmo invocando a nossa juventude. A nossa primeira ideia foi alcançar a costa mas, como o risco de uma viagem até La Guayra, ou até qualquer outro posto do nordeste, se afigurava demasiado grande, tomámos caminho em direcção contrária, para o Orinoco, e descemos o rio até Angostura. Mal alcançámos este razoavelmente seguro refúgio — em todo o caso seguro apenas para o momento — mudei de ideias e decidi não abandonar o país. Desde a minha infância senti-me fascinado por esse imenso e quase inexplorado território que nós possuímos a sul do Orinoco, com os seus inúmeros rios e ribeiras que não figuram em nenhum mapa e as suas florestas sem pistas nem veredas; e senti-me fascinado pelos seus habitantes selvagens, com os seus costumes antigos e a sua maneira de ser, não adulterados pelo contacto com os Europeus. Visitar este mundo primitivo e selvagem fora sempre um sonho que não cessei de acalentar e preparei-me tão bem quanto pude para tal aventura, aprendendo mais do que um dos dialectos falados pelo Índios dos estados do norte da


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Venezuela. E agora que me encontrava na margem sul do nosso grande rio, tendo a minha disponibilidade um tempo ilimitado, decidi satisfazer este desejo. O meu companheiro tomou o caminho da costa, enquanto eu comecei a preparar-me e a reunir informações junto daqueles que já tinham viajado pelo interior para negociar com os selvagens. Decidi que o melhor a fazer seria subir o rio e penetrar no interior pelas terras ocidentais da Guiana e pelo território da Amazónia que faz fronteira com a Colômbia e com o Brasil, para regressar a Angostura ao fim de cerca de seis meses. Não receava ser preso nessa região semi-independente, selvagem na sua maior parte, pois as autoridades da Guiana pouco se importavam com as convulsões políticas e sociais ocorridas em Caracas. Os primeiros cinco ou seis meses passados na Guiana, após ter deixado a cidade refúgio, foram suficientemente recheados de acontecimentos para satisfazer um espírito moderadamente aventureiro. Em Angostura, um complacente funcionário fornecera-me um passaporte em que estava registado (para que todos pudessem ler) que o objectivo da minha visita ao interior consistia em recolher informação relativamente às tribos nativas, aos produtos vegetais da região e a outras matérias que oferecessem utilidade para a República. Solicitava-se às autoridades que me proporcionassem protecção e assistência nas minhas buscas. Subi o Orinoco, fazendo ocasionais incursões pelas pequenas missões cristãs situadas nas proximidades da margem direita e também pelas aldeias dos Índios. Viajando desta maneira, vendo muito e aprendendo muito, em cerca de três meses cheguei ao Rio Meta. Durante este tempo diverti-me a escrever um diário onde relatei aventuras pessoais, impressões sobre a terra e a gente, ambas semicivilizadas e selvagens. E à medida que o meu diário crescia,


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comecei a pensar que, uma vez regressado a Caracas, poderia ser útil e interessante para o público publicá-lo, o que também me poderia proporcionar alguma notoriedade. Esta ideia revelou-se gratificante e foi muito estimulante, de tal modo que comecei a observar as coisas com mais pertinácia e a cuidar da minha redacção. Mas o livro nunca chegou a ver a luz. Da embocadura do Meta continuei a minha jornada, tencionando visitar a aldeia de Atahapo onde o grande Rio Guaviare e mais outros rios desembocam no Orinoco. Mas eu não estava destinado a atingi-lo, pois na aldeia de Manapuri caí doente com sezões. E aqui terminam os primeiros seis meses das minhas vagabundagens, a propósito das quais nada mais há a dizer. É difícil imaginar local mais miserável para alguém adoecer com sezões do que Manapuri. A aldeia, constituída por casebres mesquinhos e meia dúzia de construções de terra lamacenta ou de palha amassada com barro, com telhado de folhas de palmeira, achava-se rodeada de águas, de pântanos e florestas, autênticos viveiros de miríades de rãs a coaxar continuamente e de nuvens de mosquitos. Mesmo para alguém em perfeito estado de saúde, viver em tal lugar seria um fardo bem pesado. Os habitantes não deviam ser mais do que oitenta ou noventa, na sua maior parte Índios daquela classe degenerada que facilmente se podem encontrar em vendas comerciais perdidas nos campos. Os selvagens da Guiana são grandes bebedores, mas não são bêbedos no sentido que nós damos a este termo, pois os seus licores fermentados contêm tão pouco álcool que é necessário engolir quantidades despropositadas para provocar uma intoxicação. Mas na taberna dão preferência aos mais potentes venenos do homem branco e o resultado é que, numa aldeola como Manapuri, pode assistir-se à encenação, tal como num palco de teatro, do último


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acto da grande tragédia americana a que sem dúvida se podem suceder outras e mais grandiosas tragédias. Os meus pensamentos, ao longo deste período de sofrimento, eram extremamente pessimistas. Por vezes, quando a chuva quase contínua cessava durante meio dia, aproveitava para me arrastar para fora e fazer uma curta caminhada, mas sentia-me sempre incapaz de qualquer exercício, pouco me importando com a vida e completamente desinteressado das notícias que de longe em longe recebia de Caracas. Ao cabo de dois meses, sentindo umas ligeiras melhoras na minha saúde e, com isso, um renovado interesse pela vida e pelos acontecimentos, lembrei-me de desenterrar o meu diário e redigir uma breve narração dos meus dias passados em Manapuri. Por uma questão de segurança arrumara-o numa pequena caixa que para o efeito me fora emprestada por um mercador venezuelano, antigo residente na aldeia, Pantaleão de seu nome, mas por todos chamado Don Panta, que vivia abertamente com meia dúzia de mulheres na sua própria casa e muito conhecido pela sua desonestidade e pela sua cupidez, mas que sempre me mostrou ser um bom amigo. A caixa encontrava-se escondida num canto do arruinado telhado de folhas de palmeira da choupana onde eu habitava. Ao retirá-la descobri que durante várias semanas a chuva, gota a gota, não cessara de cair-lhe em cima, tendo o manuscrito ficado reduzido a uma pasta ensopada em água. Praguejando, arremessei-o ao chão e a gemer atirei-me para cima da cama. Foi neste lamentável estado que me encontrou o meu amigo Panta, cujas visitas eram constantes e a qualquer hora. Quando, em resposta às suas perguntas ansiosas, lhe apontei a papa de papel amontoada no chão de terra, com o bico do pé virou-as do avesso e em seguida, soltando uma estrondosa gargalhada, pontapeou-as para fora e acrescentou que tinha confundido aquele objecto com


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um réptil desconhecido que, para fugir da chuva, rastejara para dentro da choupana. Fingiu espantar-se por eu lamentar a sua perda. Aquilo não era mais do que uma narrativa verídica, exclamou ele. Se eu quisesse escrever um livro para ser lido pelos que não sabem sair de casa, com facilidade eu poderia inventar um milhar de mentiras bem mais divertidas que qualquer experiência real. Viera ver-me, disse, para me propor uma coisa. Vivia já há vinte anos naquele local e acostumara-se ao clima, mas não podia aconselhar-me a permanecer ali, se porventura fosse meu desejo continuar a viver. Eu devia, sem perda de tempo, sair dali e ir para uma terra diferente — para as montanhas, onde o ar é seco e saudável. — E se quiseres quinino quando ali estiveres —, concluiu — cheira o vento quando soprar do sudoeste e aspirá-lo-ás até às tuas entranhas, fresco e vindo da floresta. Desanimadamente fiz-lhe notar que, dadas as minhas condições, seria para mim impossível deixar Manapuri. Ele retorquiu que um pequeno grupo de Índios chegara há pouco à aldeia e tinha vindo não apenas para trocas e comércio mas também para visitar um membro da tribo, que era uma das suas mulheres comprada há alguns anos ao pai dela. — E o dinheiro que me custou, até hoje nunca me arrependi de o ter gasto —, disse — pois ela é uma boa esposa e não é ciumenta — acrescentou amaldiçoando todas as outras. Estes Índios, pertencentes à tribo Maquiritari, vinham dos montes Queneveta. Ele, Panta, e, ainda melhor, a sua boa mulher, podia falar-lhes de mim e interessá-los no meu caso e, a troco de alguma recompensa razoável, levar-me-iam em jornadas lentas e calmas até ao seu país, onde seria bem acolhido e bem tratado e poderia recobrar a saúde.


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A proposta, depois de ter bem reflectido, causou em mim um efeito tão benéfico que não me limitei a aceitá-la com alegria. No dia seguinte senti-me apto a mexer-me e a dar início aos preparativos da viagem, já com alguma energia. Cerca de oito dias mais tarde despedi-me do meu generoso amigo Panta, que considerei, depois de o ter visto fazer tanta coisa, como uma espécie de animal selvagem que me saltou em cima não para me dar a morte, mas para me dar a vida. Sabemos, com efeito, que até os brutos e cruéis selvagens e os homens maus têm por vezes impulsos delicados e bondosos que os fazem agir de um modo contrário à sua natureza, como se fossem o agente passivo de um poder mais elevado. Foi uma tortura contínua a viagem nas minhas frágeis condições e a paciência dos meus Índios foi severamente posta à prova. Mas não me abandonaram e finalmente conseguiu-se percorrer a distância total, que calculei em cerca de sessenta e cinco léguas. Devo dizer que à chegada me achei mais forte e sob todos os aspectos melhor do que na hora da partida. Desde então foram rápidos os meus progressos em ordem a uma completa recuperação. O ar, com ou sem qualquer virtude medicinal trazida das árvores da cinchona, na longínqua floresta andina, era tónico e, quando comecei a passear pela colinas sobranceiras à aldeia ou, mais tarde, quando me senti capaz de trepar até aos cumes, o mundo visto do alto daquelas montanhas selvagens de Queneveta tinha uma grandeza e uma gloriosa diversidade de paisagens, que eram imensamente refrescantes e uma verdadeira delícia para a alma. Passei algumas semanas com a tribo dos Maquiritari e as suaves sensações do retorno da saúde fizeram-me feliz durante um certo tempo. Mas estas sensações raramente perduram para além


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da convalescença. Tão depressa me senti bem e logo comecei a sentir o incansável acicate da inquietação. A monotonia da vida selvagem naquele lugar tornou-se intolerável. Após o meu longo período de inactividade, surgiu a reacção e eu somente ansiava por acção e aventura, por mais perigosas que fossem. E ansiava ver outros lugares e outras caras, aprender novos dialectos. Por fim congeminei a ideia de me deslocar até à ribeira de Casiquiere, onde encontraria algumas pequenas feitorias e talvez pudesse obter das autoridades a ajuda necessária para alcançar o Rio Negro. De facto, tinha agora na cabeça a ideia de seguir este rio até ao Amazonas para em seguida descer até ao Pará e à costa do Atlântico. Deixei as serranias de Queneveta e parti com dois índios que me serviram de guias e de companhia, mas a sua viagem terminava logo a meio caminho do rio que eu pretendia alcançar e assim deixaram-me com uns amigáveis selvagens que viviam nas margens do Chunapay, um tributário do Cunucumana que corre para o Orinoco. Aqui não tive outro remédio senão aguardar a oportunidade de me juntar a um qualquer grupo que se deslocasse na direcção do sudoeste. Por estes dias já eu tinha gasto a totalidade do meu reduzido capital em adornos e tecidos de algodão adquiridos em Manapuri, pelo que já não me era possível angariar os serviços de nenhum homem. Talvez valha a pena fazer o rol de tudo o que nesse momento eu possuía. Tive de habituar-me a não usar nada mais do que umas sandálias para me protegerem os pés e, como roupa, limitava-me a um único par de calças e uma camisa de flanela que lavava com frequência, andando de tronco nu enquanto secava. Felizmente dispunha de um belo e excelente manto de pano azul muito resistente, oferta de um amigo, em Angostura, que ao entregá-lo proferiu uma profecia dizendo que o manto havia de


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durar mais tempo do que eu, o que esteve quase a ser verdade. À noite servia-me de coberta e, para aquecer um homem e proporcionar-lhe conforto enquanto caminhava e o tempo se mostrava frio e húmido, jamais se fabricara melhor resguardo. Eu tinha um revólver e uma cartucheira metálica pendurados no meu cinturão de couro e ainda uma boa faca de mato com cabo feito de corno de veado e uma lâmina rija, de mais ou menos nove polegadas de comprimento. No bolso do manto guardava um belo isqueiro de prata e uma caixa de fósforos, de que tornarei a falar nesta narrativa, e mais uma ou duas futilidades que estava decidido a conservar enquanto fosse possível. Durante o aborrecido período de espera passado nas margens do Chunapay, os Índios da aldeia contaram-me uma história mirabolante que provavelmente terá sido a causa da desistência da minha aprazada viagem ao Rio Negro. Estes Índios usavam colares, como aliás quase todos os selvagens da Guiana, mas reparei que um deles exibia um colar inteiramente diferente dos outros e que muito excitou a minha curiosidade. Eram treze placas de ouro, de forma irregular e de tamanho aproximado à unha polegar de um homem, todas ligadas por fibras. Consentiu que eu examinasse o colar e pude verificar, sem a menor dúvida, que as placas eram de ouro puro, martelado pelos selvagens. Fiz-lhes umas perguntas e eles responderam que o colar viera dos Índios de Parahuari, e Parahuari, disseram depois, era uma região montanhosa a oeste do Orinoco. Todos os homens e todas as mulheres desses sítios, asseguraram, tinham um colar semelhante. Este relato incendiou de tal modo a minha cabeça que dia e noite não conseguia repousar, assombrado por sonhos dourados e cismando na maneira de me deslocar até essa rica região, desconhecida da gente civilizada. Os Ín-


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dios abanaram severamente a cabeça quando tentei persuadi-los a levarem-me até lá. Encontravam-se bastante longe do Orinoco e Parahuari situava-se ainda mais longe, a dez ou talvez quinze dias de jornada. E era uma região que desconheciam, onde não tinham nenhum contacto familiar ou outro. Contudo, a despeito das dificuldades e atrasos e não sem custo e até algumas aventuras perigosas, consegui finalmente atingir o Alto Orinoco e cruzá-lo para a margem oposta. Pelas minhas mãos e com perigo da minha vida, lutei para abrir um caminho para oeste através de terras desconhecidas e hostis, seguindo de uma aldeia de Índios para outra aldeia onde a todo o momento poderia impunemente ser assassinado para se apoderarem dos meus escassos haveres. É penoso, para mim, dizer uma palavra amável a propósito dos selvagens da Guiana, mas devo agora fazê-lo e dizer que nunca eles me fizeram qualquer mal enquanto estive à sua mercê ao longo da minha demorada viagem. Pelo contrário, deram-me abrigo nas suas aldeias, deram-me de comer quando tive fome e ajudaram-me a prosseguir quando eu nada tinha para lhes dar em troca. Todavia não creias nem comeces a dizer que há alguma doçura na sua maneira de ser, uns sentimentos humanos e bondosos como aqueles que se encontram nos povos civilizados… longe disso. Olho agora para eles e felizmente para mim, olhei também para eles quando, como já disse, me achava à sua mercê e vi-os então e vejo-os agora como animais ferozes dotados de uma espécie de inteligência manhosa e malévola, muito e muito maior que a de um bruto. E, por única moral, têm o respeito pelos direitos dos outros membros da família ou da tribo, sem o qual nem as mais rudes comunidades podem sobreviver unidas. Como foi então possível eu ter feito o que fiz, viajar livremente e viver sem


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nunca ser agredido, no meio de tribos que desconfiam dos estrangeiros e não lhes dedicam nenhum sentimento amigável, numa região onde, ainda por cima, o homem branco nunca ou raramente é visto? Porque eu conhecia-os muito bem. Sem esse conhecimento, constantemente posto à prova, e uma facilidade extrema na aquisição de novos dialectos, facilidade que a prática permanente tornou quase uma intuição, eu teria passado muitos maus bocados após ter deixado a tribo do Maquiritari. Mesmo assim, por duas ou três vezes escapei por um fio. Mas deixemos esta digressão. Avistei enfim as famosas montanhas de Parahuari que, para minha grande surpresa, não eram afinal mais do que colinas, nem sequer muito altas. No entanto isso não me perturbou. O facto incontestável de Parahuari não ter na sua paisagem nenhum traço imponente parecia-me antes comprovar que seria rico em ouro. De outro modo como poderia o seu nome e a fama dos seus tesouros serem tão familiares a um povo que vivia em lugar tão longínquo como as margens do Cunucumana? Não havia ouro. Explorei ao longo de toda a serrania, que tinha cerca de sete léguas de comprimento, e visitei as aldeias, onde muito conversei com os Índios e os interroguei, mas eles não usavam colares de ouro nem outra forma de ouro, e nunca tinham ouvido falar da sua existência em Parahuari ou em qualquer outro lugar que eles conhecessem. A última aldeia onde falei do assunto da minha investigação, embora já sem esperança, situava-se a cerca de uma légua da ponta ocidental da serrania, no meio de uma região alta e acidentada de florestas e savanas e cortada por inúmeros ribeiros de cursos rápidos. Perto de um destes que tinha o nome de Curicay, situava-se a aldeia. No meio de umas árvores dispersas, de copa baixa, erguia-


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-se uma grande construção flanqueada por duas outras mais pequenas, onde os homens da aldeia, em número de dezoito, passavam a maior parte do tempo desde que não estivessem a caçar. O seu cabecilha, ou chefe, de nome Runi, tinha cerca de cinquenta anos de idade e era um homem taciturno, bem constituído, com uma dignidade um tanto selvagem e uma disposição por vezes carrancuda e de outras vezes muito desagradada com as intrusões de um homem branco. Inicialmente não fiz qualquer tentativa para suscitar a sua simpatia. Que ganharia eu com isso? Mesmo a máscara de amabilidade, que durante tanto tempo eu usara e com tão bons resultados, agora me incomodava. Mais valia pô-la de lado e ser eu próprio, tão calado e carrancudo como o meu bárbaro hospedeiro. Se alguma ideia malévola começasse a tomar forma na sua mente, deixá-la desenvolver-se e deixá-lo, a ele, fazer o que de pior lhe apetecesse, pois quando pela primeira vez o insucesso olha de frente para um homem, fá-lo com uma expressão tão negra e repelente que nada mais se pode acrescentar para tornar esse homem ainda mais miserável e amargurado, pronto a tudo suportar sem a mínima apreensão. Durante semanas eu tinha pesquisado cada aldeia, cada ravina rochosa, cada tumultuoso riacho da montanha, buscando com olhos ávidos e febris aquele luminoso pó amarelo que me obrigara a tão longa viagem para o encontrar. E agora todos os meus belos sonhos — todo o prazer e todo o poder que haveria de desfrutar — se desvaneciam como no deserto uma mera miragem se desvanece ao meio-dia. Foi um dia de desespero aquele que vivi neste lugar, sempre sentado dentro de portas, pois a chuva caía copiosamente, fingindo-me adormecido na minha cadeira e, pelas estreitas frechas dos meus olhos semicerrados, espreitando os outros, também sen-


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tados ou passeando de um lado para o outro tal como num belo sonho andam as sombras e as pessoas. Em nada me importavam os outros e não me apetecia mostrar-me amistoso, nem sequer para suscitar o oferecimento casual de um qualquer alimento. Ao anoitecer a chuva cessou. Levantei-me, saí para a rua e dirigi-me para o riacho mais próximo, um curto passeio, onde me sentei numa pedra, descalcei as sandálias e lavei os meus magoados pés na água fresca e corrente. A metade ocidental do céu estava de novo azul, com aquele azul suave e luminoso que aparece quando a chuva deixa de cair, mas a água cintilava ainda nas folhas das árvores e os troncos pareciam ainda mais negros debaixo da folhagem verde. A rara beleza do cenário impressionou-me e encheu de alegria o meu coração. Do outro lado, ao longe, para oriente, as colinas de Parahuari, acariciadas e iluminadas pelo sol rasante rompiam por entre a neblina desenhando-se contra as cinzentas nuvens de chuva envoltas numa estranha glória, carregadas de uma beleza mística e ignorada que quase me fez esquecer como estas mesmas colinas me tinham desiludido, magoado e troçado de mim. Deste mesmo lado, tanto para norte como para sul, via-se uma floresta contínua, mas para oeste os olhos encontravam uma paisagem diferente. Para além da ribeira, com algumas árvores anãs espalhadas ao longo das margens, e para além da orla de verdura que acompanhava o curso da água, estendia-se uma savana de cor castanha trepando para uma longa, baixa e rochosa crista, por trás da qual se elevava uma grande colina solitária, talvez uma montanha, de forma cónica e revestida por uma floresta quase até ao topo. Era a montanha Ytaioa, o principal marco da região. À medida que o sol se punha por detrás da crista, para lá da savana, o céu, a ocidente, ia adquirindo uma delicada cor rosa, que mais parecia um fumo


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rosado soprado de muito longe por um vento que o deixava suspenso — um véu muito fino e leve, brilhante, que deixava transparecer o céu distante e etéreo. Bandos de aves, uma espécie de corrupião, passavam a voar por cima da minha cabeça, um bando após outro bando, a caminho do poleiro habitual e soltando, enquanto voavam, gorjeios claros como toques de campainhas. E havia também qualquer coisa de etéreo nestas gotas de som melodioso, que tombavam no meu coração como gotas de chuva a cair numa lagoa para misturar a água fresca do céu com a água da terra. Não tenho a menor dúvida de que na água turva do meu coração caíram algumas gotas de água sagrada, tombadas das aves que passavam, do disco escarlate que agora mergulhava no horizonte, das colinas a escurecerem, do rosa e do azul do céu infinito, da totalidade do círculo que a minha vista abrangia. E eu sentia-me purificado e com a estranha sensação de estar a apreender uma secreta inocência e uma secreta espiritualidade da natureza, a pressentir a realidade de uma fronteira, talvez incalculavelmente distante, para onde todos nós nos dirigimos, e de um tempo em que a chuva do céu nos tenha lavado de todas as manchas e vergonhas. Esta paz inesperada, que agora encontrava, parecia-me imbuída de um valor infinitamente maior que o do metal amarelo que não conseguira achar, e também maior que o valor de tudo aquilo que o mesmo metal me poderia oferecer. O que eu agora desejava era permanecer por uma temporada neste local, tão remoto, tão belo e tão calmo, onde experimentara sensações tão desusadas e sofrera uma abençoada desilusão. Foi assim o fim do meu segundo período passado na Guiana. O primeiro tinha sido preenchido com o sonho de um livro que me tornasse célebre no meu país e talvez até na Europa. O se-


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gundo, desde o tempo em que deixei as montanhas de Queneveta, foi preenchido com o sonho de uma fortuna ilimitada, o velho sonho do ouro nesta região, que tanta gente pôs de rastos desde os dias de Alonzo Pizarro. Mas, para aqui permanecer, eu tinha de conquistar as boas graças de Runi, sentado em silêncio e com semblante carregado no interior da sua choupana. Não me parecia que ele fosse alguém que se pudesse conquistar só com palavras, ainda que lisonjeiras. Tornou-se para mim claro que chegara o tempo de me despedir do meu último berloque de algum valor, o isqueiro de pederneira em prata cinzelada. Quando voltei à sua choupana, entrei e fui sentar-me num cepo de madeira junto ao lume, mesmo em frente do meu lúgubre hospedeiro que se encontrava a fumar e parecia não ter mexido um dedo desde que o deixara. Enrolei um cigarro, tirei do bolso o isqueiro, com a pedra e o fuzil suspensos por duas pequenas correntes de prata. Nos seus olhos acendeu-se um ligeiro brilho enquanto observavam, curiosos, os meus movimentos, e sem dizer uma palavra apontou para as brasas a meus pés. Abanei a cabeça, risquei o fuzil na pedra e surgiu uma chuva de faíscas. Assoprei para a mecha e pude acender o meu cigarro. Feito isto, em vez de tornar a meter o isqueiro no bolso, enfiei a corrente na casa de um dos botões do meu capote e deixei-a a balouçar no peito como se fosse um adereço. Mal acabei de fumar o cigarro, aclarei a garganta da maneira mais ortodoxa, fixei os olhos em Runi que, por sua vez, fez um ligeiro movimento para indicar que estava pronto para ouvir o que eu tivesse para dizer. Falei durante muito tempo, pelo menos meia hora, sempre ouvido em profundo silêncio. Dediquei-me sobretudo a relatar as minhas peregrinações pela Guiana e, como me limitei a pouco mais do que enumerar os nomes de todos os lugares que visitei,


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das tribos e dos chefes ou homens principais com quem entrara em contacto, foi-me possível falar sem interrupções e assim esconder a minha ignorância de um dialecto que ao tempo ainda era para mim uma novidade. O selvagem da Guiana julga um homem pela sua firmeza e resistência. Permanecer imóvel como uma estátua de bronze durante uma ou duas horas a observar uma ave; ficar sentado ou deitado durante meio dia; sofrer a dor, frequentemente por autopunição, sem um tremor ou um queixume; e quando houver que debitar um discurso, deixá-lo correr copiosamente sem uma pausa para recobrar o fôlego e sem hesitar numa só palavra — ser capaz de fazer tudo isto é provar ser um homem, a si próprio e aos outros, é provar ser um igual entre todos os iguais, ser alguém que há que respeitar e de quem até se pode fazer um amigo. Aquilo que realmente eu desejava transmitir-lhe foi dito em poucas palavras, em conclusão do meu discurso quase privado de sentido. Disse-lhe que por todo o lado eu tinha sido o amigo dos Índios e que era meu desejo ser também o seu amigo, viver com ele em Parahuari, tal como tinha vivido com outros chefes e outros cabecilhas de aldeias e famílias. Disse-lhe ainda que queria que ele me considerasse do mesmo modo que estes chefes me tinham considerado, não como um estrangeiro ou um homem branco, mas como um amigo, um irmão, um índio. Acabei de falar e, então, ouviu-se o som de um leve murmúrio, como se o ar longamente retido no peito de todos os presentes de súbito se tivesse exalado, enquanto Runi, ainda em silêncio, soltava um grunhido surdo. Levantei-me, desprendi o adereço de prata do meu capote e fiz o gesto de lho oferecer. Ele aceitou-o, não com as boas maneiras que qualquer estranho, desconhecedor deste povo, poderia imaginar. Mas eu fiquei contente, com a certeza de que


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havia causado boa impressão. Momentos depois entregou o estojo à pessoa sentada a seu lado, que o examinou e essa pessoa a uma terceira e, assim de seguida, o estojo deu a volta por toda a assistência, para regressar às mãos de Runi, que deu ordem para servirem uma bebida. Por acaso, creio eu, havia naquela casa, uma certa quantidade de licor de mandioca que, provavelmente, as mulheres se tinham atarefado a preparar durante os últimos dias, sem pensarem que estava destinado a ser consumido prematuramente. Trouxeram um jarro enorme. Polidamente Runi esvaziou de um trago a primeira taça, depois foi a minha vez, seguindo-se todos os outros. E as mulheres também beberam, cabendo uma taça mais ou menos cheia a cada uma, enquanto os homens tinham direito a três. Contudo, Runi e eu fomos os que mais bebemos, pois éramos as duas principais personagens e estávamos obrigados a fazer jus a essa condição. As línguas foram entretanto desatando-se, pois o álcool, embora o seu teor no licor fosse diminuto, começara a desafiar os nossos cérebros. Eu não dispunha do mesmo estômago que eles, do feitio de uma panela, habilitado a armazenar quantidades ilimitadas de carne e de bebida, mas estava determinado, nesta ocasião de extrema importância, a não suscitar e merecer o desprezo do meu hospedeiro e ser por exemplo comparado ao passarinho que delicadamente colhe com o bico seis gotas de água e fica satisfeito. Eu tinha de medir as minhas forças com as dele e, se necessário fosse, beber até atingir um estado de insensibilidade. Por fim, a custo conseguia manter-me de pé nas minhas pernas. Mas até o velho e bem curtido selvagem acabou por mostrar também um grão na asa. In vino veritas, diziam os antigos. O princípio continua a revelar-se acertado, mesmo quando não há vinum, mas apenas um suave licor de mandioca. Runi contou-me que, em tempos, tinha


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uma vez conhecido um homem branco que era um homem mau, o que o persuadira que todos homens brancos eram maus. Aliás, David, de modo mais categórico, proclamara que todos os homens eram mentirosos. Mas agora percebia que não era assim e que eu era um homem bom. Com a intoxicação, a sua amizade tonava-se cada vez mais calorosa. Presenteou-me, para tomar o lugar do estojo de que eu me privara, com um pequeno e curioso isqueiro, feito com a cauda cónica e esvaziada de um tatu e apetrechado com um fecho de madeira. Deu-me também uma cama de rede feita com ervas que de imediato mandou pendurar para eu me poder estender sempre que me apetecesse. Não havia nada que não quisesse fazer por mim. Finalmente, quando íamos no terceiro ou quarto jarro, já com muitas taças emborcadas, começou a aliviar o coração dos seus sombrios e perigosos segredos. Desfez-se em lágrimas, pois o «homem sem uma lágrima» não pode e não sabe viver nas selvas da Guiana. Verteu lágrimas por aqueles que longos anos atrás foram traiçoeiramente massacrados; lágrimas pelo seu pai, morto por Tripica, o pai de Managa, que ainda se encontrava neste mundo. Mas que Managa e o seu povo se acautelem e não queiram ver Runi pela frente. Runi já derramara o seu sangue, já alimentara a raposa e o abutre com a própria carne e não acharia repouso enquanto Managa vivesse com o seu povo em Uritay, nas cinco colinas de Uritay situadas a dois dias de jornada de Parahuari. Assim falava do seu velho inimigo e atormentava-se freneticamente, batendo no peito com furor e rangendo os dentes. Por fim agarrou numa lança e enterrou profundamente a ponta no chão de terra barrenta, para de seguida a arrancar e cravá-la uma e outra e ainda outra vez, e assim mostrar o tratamento que daria a Managa, a ele ou a qualquer um do seu povo, homem, mulher ou criança, se


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porventura os viesse a encontrar. Depois saiu pela porta fora, a cambalear e brandindo a lança. Olhou na direcção do noroeste, aos berros, desafiou Managa a vir massacrar o seu povo e queimar a sua casa, como tantas vezes ameaçara fazer. — Ele que venha! Managa que venha! — gritei eu, a cambalear atrás dele. — Eu sou teu amigo, sou teu irmão. Não tenho nem lança nem flechas, mas tenho isto — isto! — E saquei do meu revólver e comecei a brandi-lo bem alto. — Onde está Managa? — prossegui. — Onde são as colinas de Uritay? Ele apontou para sudoeste na direcção de uma estrela baixa. Então eu clamei: — Que esta bala vá ao encontro de Managa, sentado com o seu povo em redor do fogo e o derrube e o faça derramar o seu sangue pelo chão! — E logo de seguida descarreguei a minha pistola na direcção que ele apontava. Mulheres e crianças soltaram um grito de terror enquanto Runi, a meu lado, num acesso de alegria feroz e de admiração se virou para mim e me apertou num abraço. Foi o primeiro e último abraço que alguma vez recebi de um selvagem nu e macho. Não seria aquele o melhor momento para surpresas esquisitas, mas devo dizer que ser apertado contra aquele corpo encharcado em suor foi uma experiência desagradável. Mais outras taças de licor de mandioca se seguiram a esta explosão de entusiasmo e, por fim, incapaz de continuar a beber, procurei aos tombos a minha cama de rede mas não consegui trepar para cima dela. Runi, embrenhado em solicitude, veio em minha ajuda e o resultado foi os dois rebolarmos pelo chão. Os outros conseguiram erguer-me e atirar-me para o meu leito balouçante, onde de imediato caí num sono profundo e sem sonhos de que só despertei na manhã seguinte, já o sol se levantara.


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Acuré Nome dado em certas regiões da América do Sul a um mamífero erissodáctilo, um paquiderme, mais vulgarmente conhecido por tapir. Araguato Macaco ruivo e uivador sul-americano da região do Orinoco. Armadilho Mamífero desdentado das florestas sul-americanas, mais vulgarmente conhecido pelo nome de tatu. Assuero Personagem bíblica do Livro de Ester. Rei da Pérsia, intenta exterminar o povo judaico ao que a judia Ester, sua esposa, se opõe. Beberu Árvore sul-americana, da mesma família que o loureiro, a que no Brasil se dá o nome de itaúba branca. Calicô Pano de algodão fino, fabricado antigamente em Calicute. Camoodi Serpente da América do Sul que chega a atingir o comprimento de quinze metros, vulgo anaconda. Cecropia Espécie de amoreira da América tropical. Coati Mamífero plantígrado sul-americano, de cauda muito comprida e focinho longo e movível.


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Corrupião Ave icterídia da América do Sul, que no Brasil tem também os nomes de sofré e João pinto. Cotinga Ave da América do Sul, de plumagem colorida. Curupitá Ser misterioso e perverso das florestas sul-americanas que, em defesa dos animais e das árvores, ataca todo o intruso. Duraquara Ave das florestas amazónicas. Formiga de Fogo Espécie de formiga da América do Sul que segrega um líquido particularmente irritante. Goma Haima Variedade de borracha. Iguana Réptil sáurio das florestas sul-americanas, comestível. Maam Ave da América do Sul. Opossum Mamífero marsupial das florestas americanas. Pássaro-sino Ave da floresta tropical sul-americana cujo canto indica a proximidade de uma fonte. Pecari Espécie de javali, ou porco selvagem da América.


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Preguiça Mamífero desdentado das florestas sul-americanas que se move com lentidão. Quetzal Ave mexicana de plumagem vivamente colorida que desempenha um papel fundamental na mitologia azteca. Roraima Maciço rochoso na região fronteiriça do Brasil, da Venezuela e da Guiana que atinge cerca de 2800 metros de altitude. Sakawinki Macaco de pequeno porte das florestas tropicais. Sarigueia Mamífero marsupial sul-americano, de vida nocturna, vivendo nas árvores e de cheiro repugnante. Tapir Mamífero perissodáctilo das florestas americanas dotado de tromba. Também conhecido por anta.


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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire


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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola


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tradução e apresentação de

José Domingos Morais

Abel […] depara com alguém que tem forma humana, uma jovem de grande beleza que convive com a natureza, conhece as árvores e as ervas, é amiga das aves, das borboletas e dos insectos, dos animais, tanto dos que rastejam como dos que trepam pelas árvores ou andam a trote pelas campinas. O amor surge, não se sabe de onde, visita Abel e Rima — é este o nome da rapariga da floresta — e ambos se apaixonam. Abel descobre que a felicidade é possível de alcançar se porventura ele for capaz de viver em paz com a Natureza, respeitá-la e admirá-la e não a maltratar. E o lugar da felicidade será a sua verde morada. Tal como Rima e tal como Abel, Hudson amava a Natureza e a Vida, embora esta nem sempre lhe tenha corrido como desejaria […]. Mas estou certo de que ao erguer-se, num local como Hyde Park, uma estátua de Rima, provavelmente a personagem mais amada por William Henry Hudson entre todas as que criou, ter-se-á prestado ao escritor, falecido em Londres em Agosto de 1922, não só a homenagem que merecia, mas ainda a que melhor se enquadra na mensagem que nos deixa, e que é um convite e um desafio para amar e proteger a Natureza e a Vida. J.D.M.

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