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Fátima Murteira
Adeus,
até um dia...
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FICHA TÉCNICA edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: Adeus, até um dia… autora: Fátima Murteira capa: Patrícia Andrade revisão: Patrícia Espinha paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, fevereiro 2017 isbn: 978-989-8714-88-6 depósito legal: 415546/16 © Fátima Murteira
publicação e comercialização:
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Dedico este diário à memória do meu filho Tiago. Se o poder destas palavras reacender a Luz na alma de alguém, então talvez terá sido essa a missão que um dia nos foi confiada.
A pombinha da capela do Santuário de Fátima
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ADEUS… ATÉ UM DIA!
Madrugada do dia 29 de julho 2008 As nossas vidas mudaram para sempre nesse dia, quando inesperadamente o toque da campainha da nossa casa rompeu o silêncio da noite e acordou-nos em sobressalto. Eu e o meu marido tínhamo-nos deitado já tarde e, vencidos pelo cansaço, acabámos por adormecer mesmo antes de os nossos filhos regressarem a casa. A confiança que sempre depositámos neles por se terem mostrado sempre responsáveis pelos seus atos, bem como o facto de sabermos que estavam no bairro na companhia dos amigos numa noite fabulosa de verão e de férias, em que os jovens se reúnem em convívio até mais tarde, deu-nos segurança suficiente para conseguirmos pegar no sono e adormecer. No entanto, quando nos acordaram e olhei para o relógio e confirmei que já passavam alguns minutos das 5 horas da manhã, estremeci, pois a essa hora o habitual é estarem todos a dormir, e isso deixou-me numa grande ansiedade. O meu marido deu imediatamente um salto da cama para ir abrir a porta, e tentando também esconder algum nervosismo, comentou comigo: “Deve ter sido um deles, que se esqueceu de levar as chaves de casa!”. Ouvi a porta da rua abrir e fechar, ao contrário do que esperava, apenas ouvi do outro lado um sussurro de vozes que pareciam falar quase a medo. 7
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Tomada por um mau pressentimento, corri para a porta para ver o que se estava a passar, e deparei-me com a presença de dois agentes policiais fardados e um outro à civil, que perguntavam ao meu marido se era ali que morava o agente Tiago Murteira Santos – o nosso filho mais velho. A expressão séria e comprometida com que nos abordaram fez-nos perceber que algo muito grave se tinha passado, e depois de confirmada a nossa dúvida, eles pediram permissão para entrar, alegando trazerem-nos más notícias, e pedindo de seguida que nos sentássemos. Senti o coração acelerar descompassadamente, e as pernas começarem a tremer e a fraquejar, e num impulso irreflexivo, sem me lembrar que ele ainda se encontrava em período de férias, perguntei aflita: “Ele levou um tiro?” – ao que me responderam que não, que tinha sofrido um acidente de viação com a sua própria viatura, a apenas cinco minutos de distância da nossa casa, e que infelizmente não tinha sobrevivido. Senti o coração gelar e fiquei atordoada ao ouvir aquelas palavras. Lembro-me apenas de ter gritado aflita: “Não pode ser o meu Tiago, deve haver algum engano!”, e corri de imediato ao seu quarto, na ânsia desesperada de o encontrar a dormir como supunha. Mas ele não estava e a cama permanecia por desfazer. Completamente desorientada e com as mãos na cabeça, comecei a deambular pela casa e repetindo como uma louca: “O meu Tiago não… não pode ser ele!...”. Os agentes embaraçados colocaram-nos então a par da situação do sucedido, dizendo que tinha sido um camionista que passou no local que viu um poste de iluminação caído na estrada, e quando olhou apercebeu-se que por entre os arbustos secos, havia um carro capotado, e de imediato deu o alarme aos bombeiros e ao I.N.E.M., mas infelizmente quando chegaram já não havia nada a fazer. 8
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Perante a nossa indignação e incredibilidade, o agente que tinha tomado a palavra, perguntou-nos: “Ele não tem um Honda Civic preto, descapotável?”. E prosseguiu dizendo que foram dois colegas do meu filho, que vieram da esquadra onde ele exercia funções, propositadamente para fazerem o reconhecimento do corpo no local do acidente, após terem sido contactados pela polícia local. O embate da notícia e a angústia por ela gerada originaram uma incontrolável explosão de sentimentos: choque, medo, revolta, indignação, frustração, a par da mais impiedosa e complexa dor que um ser humano possa sentir. Porque perder um filho é antinatural, é ver da forma mais cruel ruírem os projetos da nossa vida e a nossa família ficar desestruturada para sempre. Desfeita por dentro, entrei em total desequilíbrio, daí a minha tensão arterial disparar abruptamente, e ter de ser de imediato conduzida numa ambulância para o hospital. Esforçando-se ao máximo para manter a calma e a racionalidade, ainda que visivelmente desfeito pela angústia, o meu marido permanecia pálido, sem conseguir pronunciar uma palavra diante dos agentes, mas, ainda assim, tentando controlar a situação da melhor forma possível. O reboliço na noite, acordou o meu filho mais novo, o Miguel, que reagiu da pior forma, dando murros e pontapés no quarto deles, completamente desorientado e desesperado, segundo me contaram depois os nossos vizinhos mais chegados, que correram em seu auxílio até o acalmarem. Foi ele mesmo que deu a notícia à sua irmã gémea, a Daniela, e foi ela que depois me acompanhou às urgências, visto o meu marido ter sido forçado a ficar em casa, para, em conjunto com os agentes, procurarem a arma e o crachá de ordem do nosso filho Tiago com a sua identificação de agente da P.S.P. e, que, tal como a lei obriga, teriam de ser de imediato devolvidos à esquadra onde ele exercera funções, por uma questão de segurança. 9
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Com a vida virada do avesso, valeram-nos os nossos vizinhos do prédio e os familiares mais próximos, que solidariamente nos prestaram a sua ajuda da forma como podiam, esforçando-se para nos darem todo o tipo de apoio de que necessitávamos naquele momento de profunda dor e pesar. Mais tarde, já em casa, foram também as minhas amigas Lígia e Lurdes que se colocaram à beira da minha cama e me prestarem os cuidados recomendados no hospital com a ajuda e orientação também de uma médica amiga e vizinha, a Doutora Manuela, curiosamente mãe também de um agente a exercer funções na mesma esquadra do meu filho. Foi através dele que a notícia correu o bairro e a casa se encheu de gente mal o dia nasceu. Os preparativos fúnebres ficaram a cargo de um amigo de longa data do meu marido, e por esse motivo o processo correu mais rápido do que o habitual, e nessa mesma manhã ele foi autopsiado e às 15 horas o seu corpo entregue na casa mortuária da igreja do Forte da Casa, a poucos metros de distância da nossa casa, para ser velado. Nunca poderei apagar da minha mente o momento que vivi e a dor que senti, quando me aproximei da urna, e vi o meu menino ali deitado com flores e sem vida. O choque foi tão violento, que fui invadida por uma onda de emoções tão forte, e senti o coração afogar-se em lágrimas sem fim. Tal como tinha pedido, vi-o vestido no seu uniforme de gala da P.S.P., o mesmo que apenas vestira no dia da sua formatura de agente policial. Com orgulho, vi colocada sobre ele a bandeira do seu clube onde jogava desde menino, e que o próprio presidente do clube fez questão de lhe levar pessoalmente, e sobre esta a sua camisola com o número com que sempre jogou e o seu apelido, “Santos-10”. Foi o seu amigo de infância Ruben com quem também
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jogava, que teve a brilhante ideia de ir a nossa casa buscá-la, em jeito de homenagem. Creio que só quando o vi ali comecei a ter consciência de que o perdera para sempre, e saber que lhe sobrevivi quando a lógica da vida é os pais partirem antes dos filhos. É não só devastador como contra as leis que regem a Natureza, e tudo deixou de fazer sentido na minha vida a partir daí. Entorpecida pelo choque, caí sobre o seu peito soluçando, e cobri de beijos o seu rosto gelado… e senti o meu sangue gelar com ele. Discretamente sem que ninguém se apercebesse, abri alguns botões da sua camisa azul para colocar a minha foto, na ânsia desesperada de que assim não se sentisse tão só, e fiquei petrificada ao deparar-me com uma longa cicatriz, que lhe atravessava o peito e o abdómen, feita horas antes na autópsia. Inesperadamente, fui surpreendida com a presença de quatro agentes da P.S.P., que, posicionando-se em par de um lado e do outro da urna, se mantiveram ali todo o dia e toda a noite, apenas revezando-se, quando necessário, prestando-lhe desta forma a última homenagem. A casa mortuária e a rua encheram-se de gente para o acompanhar, e foi de tal forma a afluência de pessoas, que, apesar de ser o dia da folga da igreja, o padre Gil abriu as portas da igreja dando ordem para o levarem para lá, para que todos pudessem assistir à missa de corpo presente, que ele mesmo dirigiu. Foi um momento extremamente doloroso, e chorei inconformada o tempo todo. No final da missa, os seus amigos Bruno e Pedro, com quem viajara de férias nos dias anteriores ao acidente que lhe roubou a vida, vieram entregar-me uma foto sua, que dias antes tinham tirado juntos no mais radical desporto do “Port Aventura”, onde estiveram, e onde se mostravam divertidíssimos, enquanto ouvia as palavras emocionadas do Bruno: “O Tiago era uma pessoa espetacular!... Divertimo-nos imenso juntos, e ele estava muito feliz.” 11
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Com os olhos rasos de lágrimas abraçou-me, e chorei agarrada a ele a dor que me sufoca por dentro, e me rouba a vontade de viver. Soube depois, por outros amigos, que assim que eles tiveram conhecimento do sucedido através do telemóvel, largaram de imediato o parque de campismo em Espanha onde estiveram na sua companhia nos dias anteriores à tragédia e onde planeavam estar mais uma semana, e viajaram toda a noite, para poderem estar ao seu lado na despedida. Foi um ato louvável, e sem sombra de dúvidas a maior prova de amizade que lhe poderiam prestar. Durante toda a noite e até ser dia, e sem condições para isso, os seus amiguinhos mais chegados permaneceram fielmente no velório ao nosso lado, distribuindo palavras de conforto, ainda que igualmente arrasados. É, sem dúvida, nestes momentos difíceis que se vê quem são os verdadeiros amigos, e é algo que nunca esquecerei. Com a ansiedade do romper do dia que o levaria para sempre das nossas vidas, fiquei de novo mais agitada, o que fez originar uma nova subida de tensão totalmente incontrolável, e uma vez mais tiveram de chamar uma ambulância para me levar ao hospital. Apesar de estar meio inconsciente, recusei-me a ir com eles, pois estava suficientemente lúcida para perceber que, se me levassem, voltariam a pôr-me a dormir impossibilitando-me de ir ao seu funeral, e isso eu não podia permitir de modo algum. E dessa forma a medicação foi dada ali pelo pessoal da ambulância até ficar estabilizada. Curiosamente foram os mesmos que me assistiram na noite do acidente, o que fez com que redobrassem os cuidados e a atenção para comigo, facto que não poderei esquecer. Assim como a forma atenciosa e gentil de um jovem agente da P.S.P. de Alverca que durante a noite me acom-
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panhou e conduziu pelo seu braço, amparando-me e levando-me por vezes até à rua para me acalmar e confortar. Infelizmente por alguma razão que desconheço, talvez pelo choque ou pela medicação, não tenho noção nenhuma do rosto de todas estas pessoas e da maioria que me apoiaram nestes momentos tão difíceis, daí nunca poder agradecer-lhes pessoalmente caso me volte a cruzar com elas um dia, e isso deixa-me alguma frustração, confesso. Quando o dia rompeu, a casa mortuária e a rua voltaram a encher-se de gente para o acompanharem ao cemitério, e apercebi-me de que eram os últimos momentos que estaria ao seu lado, e chorei desesperadamente abraçada a ele. Depois de todos nós nos despedirmos, fecharam a urna, e colocaram sobre ela a bandeira Portuguesa, que muito nos honrou. Foram precisas duas carrinhas funerárias, sendo uma só para o transporte de flores que não paravam de chegar de todos os lados. Rumo ao cemitério de Rio de Mouro, fomos escoltados por carros da Brigada da P.S.P. Lembro-me da minha cunhada Júlia pedir-me para olhar para trás, emocionada e dizer-me: “Olha!... o teu filho tem honras de ministro.” E foi só nesse momento, que me virei para trás, que tive a noção dos carros de polícia que nos seguiam, e outros que ao longo do caminho se iam juntando ao cortejo, vindos de outros locais, bem como da quantidade de carros de particulares que igualmente nos acompanhavam, todos alinhados e em marcha lenta, com as luzes intermitentes ligadas durante todo o trajeto, em pleno dia de verão e já com o sol a espreitar no horizonte. Quando chegámos ao cemitério, foi igualmente com grande surpresa que nos deparámos com um corredor de agentes da
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P.S.P. que abriam caminho desde a porta da entrada do cemitério ao crematório, para o receberem com todas as honras. Soubemos depois que eram os colegas e formadores da Escola de Polícia de Torres Novas onde se formou, e apesar de me sentir muito honrada por isso, fiquei igualmente muito fragilizada e sensibilizada com a emoção. Foi um dos momentos mais tocantes e significativos que vivemos ao longo deste percurso tão doloroso para nós, e que recordaremos com muito carinho e estima, dada a sua grandeza. Chegado o momento da derradeira despedida e amparada por familiares, dei-lhe o último beijo afogado em lágrimas, e pedi aos Anjos de Luz que o acompanhassem à sua nova morada, e vi levarem o meu menino para a sala crematória. E desejei morrer nesse mesmo instante, porque já não encontrava sentido para nada, neste mundo tão cruel para nós. E, desta forma violenta e traumática, vi fechar-se para sempre um ciclo da nossa vida, na certeza porém de nunca mais podermos voltar a ser como éramos antes da tragédia nos bater à porta. Na memória permanecerá a imagem do seu sorriso rasgado, e dos seus olhos cintilantes à chegada da sua viagem de férias, e o entusiasmo como relatava a sua aventura ao irmão, na promessa de o levar lá no ano seguinte. Mas a morte fez-se anunciar antes do tempo, e esse é um dos muitos sonhos que a vida lhe roubou. Nessa mesma noite, dando tempo para que todos saíssem dos seus serviços, os seus amiguinhos e irmãos voltaram a reunir-se, para desta vez rumarem ao local do acidente, enchendo-o de coroas de flores e fotos de momentos memoráveis que passaram juntos. Tal como aconteceu no cortejo da manhã, eles saíram do bairro nos seus carros em cortejo e marcha lenta, com as luzes
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intermitentes uma vez mais ligadas, facto que deixou quem presenciou estes momentos muito sensibilizados. Nós só tivemos conhecimento desta homenagem no dia seguinte. É impossível passar naquele lugar e ficar-lhe indiferente pela forma como o enalteceram. Antes de partir de férias, deixou no seu Hi5 as seguintes mensagens: “O tópico foi alterado para Road Trippin algures em Espanha a caminho do Barça Férias à última hora…sigá marinha! Até ao meu regresso… se regressar Lol” (dia 19 julho 2008 – 15 horas)
Dois minutos depois, outra: O tópico foi alterado para “A leste…” Dias depois, logo após termos encontrado o seu crachá de ordem, que ele escondera cuidadosamente em parte incerta tal como lhe era devido, eu e o meu marido dirigimo-nos à 2.ª Divisão da 34.ª Esquadra dos Olivais Sul, para procedermos à sua devolução, como nos havia sido recomendado pelos policiais que estiveram em nossa casa, no dia do acidente. Trémulos, e visivelmente abalados pela dor esmagadora dos últimos dias, entrámos pela primeira vez na esquadra que, há cerca de um ano atrás, acolhera de bom agrado o nosso filho, logo após a sua formação como agente, e onde exercera funções até ao final dos seus dias. Na mão, carregava o seu crachá aconchegando-o contra o meu coração, como se se tratasse de um pedacinho de si que ali fosse deixar. Na verdade, apesar de ser apenas um pequeno objeto de metal, ele tinha um valor incalculável, dado o seu simbolismo, já que nele estavam projetados os seus sonhos, que com grande mérito e orgulho havia conquistado. Daí ser um momento 15
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extremamente delicado e sensível para nós, ao sermos obrigados a fazê-lo. A aguardar-nos estava o subcomissário da P.S.P. que, logo que soube da nossa chegada, nos veio receber, com extrema amabilidade e consideração. Dando de imediato ordem a um dos agentes que fosse ao cacifo do nosso filho recolher os seus haveres por ele ali deixados. Pouco depois, o agente apareceu carregando um cabide com roupas e uma caixa de cartão branca, com alguns objetos pessoais. Entre eles houve um que me chamou especial atenção, uma pasta azul, com um bloco de folhas de formato A4 incorporadas. Abri-o, e deparei-me com os registos por ele anotados das últimas ocorrências dos serviços por ele prestados, antes de partir para férias. Saber que nunca mais vai ter oportunidade para o fazer foi demasiado duro para mim, e uma vez mais foi impossível segurar as lágrimas que tentava evitar a todo o custo. E foi nesse momento que resolvi converter esse seu bloco num diário, para que o silêncio das suas palavras não apagasse a sua memória, e eu pudesse também proclamar a minha dor e o meu amor por ele. Entre palavras de sincero pesar e elogios à sua pessoa como ser humano e agente policial, o subcomissário despediu-se de nós, após uma longa conversa, mostrando-se visivelmente emocionado com o desfecho fatal que ocorreu nas nossas vidas, e oferecendo os seus préstimos para o caso de ainda nos vir a ser útil. Nesse mesmo dia, 4 de agosto de 2008 às 18 horas, foi celebrada a missa de 7.º dia do seu falecimento. E uma vez mais fomos rodeados pela solidariedade dos familiares e amigos mais próximos.
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São, sem dúvida, essas pessoas que fazem a diferença nestes momentos de extremo pesar, e é a força delas que evita que se extinga de vez a pouca energia que nos move. Numa oportunidade de fazermos chegar o agradecimento a todos os que nos acompanharam nestes momentos, principalmente àqueles que não poderemos fazer pessoalmente, decidimos colocar um anúncio no jornal C.M. para esse efeito. Quando abri o jornal e me deparei com a sua foto, o impacto que senti foi tão violento que me senti paralisada pelo choque e pela angústia, e chorei até os olhos arderem de dor.
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Terça-feira, 5 de agosto de 2008 Querido filho, Acordar para a vida, tornou-se agora a mais dura tarefa do meu dia a dia. Destroçada, sem alento e forças para seguir em frente, choro inconsolada a tua falta, e deambulo pelos cantos como uma zumbi, sem nexo e sem saber que rumo dar à vida, agora tão vazia e sem sentido para mim. E afundo-me num verdadeiro pranto e mágoa. O pai e os manos estão igualmente perdidos e desfeitos, e nem os nossos animais escapam contagiados pela nossa falta de energia, ou por razões que o nosso entendimento desconhece, permanecendo de olhos tristes e caídos, aninhados pelos cantos. Cada dia está a tornar-se mais insuportável a tua ausência na nossa casa e nas nossas vidas, e nem as noites nos dão tréguas, ora nos levantamos, ora damos voltas e reviravoltas na cama, com o pensamento preso em ti, até que o corpo vencido pelo cansaço físico e psíquico se deixe render. E foi num desses curtos espaços de tempo, que esta noite tive um sonho relacionado contigo. Sonhei que caminhava pela rua de olhos fixos no chão, chorando a tua perda e totalmente alheia a tudo ao meu redor. A certa altura, vi uma mão esticada à minha frente, e alguém interrompendo os meus pensamentos. Quando ergui a cabeça, vi diante de mim uma mulher forte, com um ar muito humilde e com uma menina de pouco mais de um ano ao seu colo, pedindo-me esmola. Assim que olhei a bebé, senti-me enfeitiçada por ela, devido às semelhanças que ela tinha contigo quando tinhas a sua idade. Tinha os cabelos cheios de caracóis alourados, o rosto redondinho, e os olhos esverdeados muito expressivos, e tinha um tom de pele muito branquinho, e vestia um vestidinho branco, que 18
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lhe dava um ar angelical. Na realidade, apesar de ser menina era a tua fotocópia, sendo o sexo oposto a única diferença que vos distinguia. Pensando no bem-estar da criança, despejei na mão da mulher todas as moedas que tinha na carteira. Quando de novo ergui a cabeça, fui confrontada com a presença de mais três mulheres e crianças ligeiramente afastadas umas das outras, e precisamente iguais à anterior, facto que me deixou bastante apreensiva no momento. Quando acordei, fiquei presa àquela visão, e chorei ao recordar-te em pequenino. Depois de me preparar para ir com a nossa cadelinha Luna à rua, e ir ao supermercado, resolvi pegar no carro para ir à povoação mais próxima, para desta forma evitar cruzar-me com a vizinhança, de modo a não voltar a falar no assunto que me deixa cada dia que passa mais melindrada. Quando lá cheguei, e assim que saí do carro fui intercetada por um mendigo que me estendeu a mão para me pedir esmola, e, tal como aconteceu no sonho, dei-lhe todas as moedas que tinha. Na verdade, a coincidência deste facto deixou-me curiosa, já que vou lá regularmente e nunca tinha lá visto nenhum mendigo a pedir, e isso fez-me pensar se essas crianças que visionei no sonho não representariam os quatro filhos que Deus me destinou mas que, por motivos de força maior, tive de abortar um. Quem sabe não seria ela essa encantadora criança que veio esta noite aos meus sonhos, dadas as semelhanças que tinha contigo. Fosse como fosse, a verdade é que este sonho me tocou profundamente. Hoje foi também um dia muito difícil para o pai, porque veio cá o perito do teu carro buscá-lo para irem juntos ao local do acidente e ao ferro-velho tirar fotos ao carro. Ainda não tinha visto o carro, pois antes de nos darem a notícia do acidente retiraram-no para evitar que o víssemos, 19
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dadas as circunstâncias em que este se encontrava com o embate sofrido. Chegou a casa pálido, mal conseguindo articular as palavras, com a voz presa pelas lágrimas que igualmente lhe balançavam nos olhos, devido ao trauma que este lhe causou. Não me quis dizer como é que o carro ficou com o acidente, argumentando apenas que foi melhor eu não o ter visto da forma como ficou. No meio de tanta dor, não sei como é que arranja coragem para enfrentar e dar solução a tantos assuntos que têm de ser tratados.
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Quarta-feira, 6 de agosto de 2008 Depois de muita insistência da parte das psicólogas da P.S.P., que nos têm acompanhado neste duro processo de luto, eu e o pai acabámos por aceitar o seu apoio e irmos à consulta com a psicóloga que acompanha estes casos, na sede da P.S.P. de Lisboa. Torna-se cada vez mais penoso para nós entrarmos nestes lugares, e sermos confrontados com a rotina quotidiana dos agentes, circulando de um lado para o outro, e termos consciência de que já não fazes parte desse grupo ativo de que tanto te orgulhavas, tal como nós. Por isso é mais um dia particularmente sentido por nós. Apesar do convite ser estendido também aos manos, eles não quiseram ir, dizendo que não ia valer de nada. “Afinal o que não tem remédio, remediado está.” E essa é que é a verdadeira verdade. Mas não podemos deixar de o fazer, em agradecimento ao apoio e disponibilidade que tiveram desde o primeiro dia connosco. Depois de sermos recebidos atenciosamente por duas psicólogas, entrámos com uma delas para uma sala, onde permanecemos cerca de duas horas, abrindo o nosso coração, e ouvindo palavras de coragem e conforto, bem como, uma vez mais, os maiores elogios à tua pessoa. Mas palavras leva-as o vento, e a dor, essa, é a única certeza que temos doravante, nos ermos e desertos caminhos que agora teremos de percorrer sem ti, por isso talvez não volte lá. Para chorar, choro em casa, no silêncio da minha dor. Afinal este é um processo irreversível, sem volta a dar. Para quê remexer na ferida que sangra a todo o instante, quando preciso é de um bálsamo para a acalmar? Hoje propus fazer um pacto com o pai, e ficou combinado irmos os dois, nos dias do teu aniversário e do teu falecimento, 21
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ao Santuário de Fátima acender-te uma vela e prestar-te homenagem, dedicando esses dias particularmente à tua memória e ao nosso amor por ti. Outro tema abordado à mesa foi o destino que cada um de nós pretende dar às suas cinzas depois do nosso falecimento. E se antes não se discutia esse tipo de temas, hoje vemo-nos obrigados a enfrentar a realidade das coisas. Assim, eu e o Miguel sem hesitações decidimos ficar junto de ti, o pai quer ser deitado ao mar de Sesimbra “a nossa praia”. E a Daniela quer que sejamos nós a decidir, já que se sente dividida. Por um lado, quer ficar connosco, por outro lado, diz que tem pena que o pai vá sozinho para o mar. Desta forma, é melhor dar-lhe mais tempo para pensar. Há um mês atrás nem nos passava pela cabeça falar nestes assuntos, infelizmente os imprevistos acontecem quando menos esperamos, e tu és a prova disso, daí a necessidade de o fazer antecipadamente.
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Quinta-feira, 7 de agosto de 2008 Com uma inquietação constante no coração e a alma sangrando, finalmente reuni forças para desfazer o teu saco de viagem, que os teus amigos nos vieram entregar, depois de decidires à última hora antecipar o regresso de férias, e viajares de avião sem eles. Disseram-nos que te tinham convencido a trazê-lo com eles no carro onde viajaram por terras de Espanha, para dessa forma poupares o dinheiro dos portes de carga no avião. Trémula, tirei cada uma das tuas peças de roupa, apertando-as contra o peito, na ânsia de poder sentir nelas o cheiro do teu corpo e do teu after-shave, e fui assaltada com a lembrança das vezes que te beijava e te dizia: “Com este cheirinho, elas caem logo de quatro!” Na verdade esta era a forma que encontrava para te dizer que, com o teu charme e o teu cheirinho, elas iriam ficar a suspirar por ti. Nunca respondias às minhas provocações, no entanto, esboçavas sempre um tímido sorriso como resposta, e eu sabia que gostavas de ouvir esses piropos apesar de desconcertantes. Hoje, morro de saudades do cheirinho doce e do toque terno do teu rosto, e não consigo calar o grito de revolta por te ter perdido, e ver quebrados para sempre esses laços de cumplicidade e amor que vivemos juntos. E chorei convulsivamente uma vez mais. É de tal ordem perturbador e angustiante saber que te perdi, que não sei como conseguir enfrentar e gerir estas tão profundas mudanças na minha vida. Hoje, fui levantar as fotos que mandei revelar, da tua viagem de férias. Fotos, essas que nem chegaste a ver. E doeu-me tanto, filho! Vou colocá-las no teu álbum e distribuir algumas pela casa, para que a tua imagem nunca se dissipe da minha mente. 23
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Também passei pela florista, para comprar flores brancas para a jarrinha que coloquei ao lado da moldura com a tua foto, na minha mesa de cabeceira. Optei por umas branquinhas, miudinhas e em forma de cachos. Não sabendo o nome delas e também por não as conhecer, apontei para elas para as pedir. E foi com extrema emoção que ouvi a florista perguntar-me: “Os beijinhos de mãe?” Fiquei sem palavras ao ouvir o nome das flores, e os olhos encheram-se de lágrimas. Igualmente emocionada, a florista não conteve as lágrimas, e confessou-me que nunca tinha feito arranjos e coroas de flores que lhe custassem tanto a fazer como as tuas, lamentando profundamente o que te aconteceu. Aproveitei a oportunidade para lhe agradecer também a coroa que te ofereceu. Quando cheguei a casa, coloquei as flores na jarrinha e, fixando a tua terna foto, disse-te com a voz embargada pelas lágrimas: “Estes beijinhos de mãe são para ti meu querido!…” – e não consegui articular mais nenhuma palavra. Nesse preciso momento, uma pequenina flor soltou-se de um dos cachos e caiu mesmo no centro da tua foto, como se me retribuísses também esse beijinho que te dei. Perplexa, tirei um dos cachos e sacudi-o com força para me certificar se as flores se desprendiam com facilidade, mas nenhuma se soltou. Depois repeti o mesmo com os outros cachos, e uma vez mais nenhuma se desprendeu. Rendida ao encanto do momento, beijei-a carinhosamente e guardei-a dentro de uma caixinha como recordação. Quem sabe não tenha sido um beijinho vindo do céu. Além disso, foi uma casualidade escolhê-las para enfeitar pela primeira vez a tua jarrinha.
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Sexta-feira, 8 agosto de 2008 Por mais que nos custe, são muitas as voltas que temos de dar para tratar os assuntos que ficaram pendentes com a tua inesperada partida. Assim, logo cedo, eu e o pai tivemos de ir ao notário tratar de mais papeladas, e à tarde fomos à funerária levantar mais pagelas de condolências que fizemos propositadamente para entregarmos na esquadra onde exercias funções, depois do subcomissário da tua unidade nos ter confessado que muitos dos teus colegas lamentaram não terem conseguido ficar com uma, devido à grande afluência de pessoas que apareceram no funeral e que as fizeram desaparecer num ápice, apesar de termos mandado copiá-las três vezes consecutivas. Uma vez mais, dirigimo-nos ao subcomissário que nos recebeu numa curta e amistosa visita, mostrando-se muito grato pelo nosso gesto, e onde uma vez mais fez questão de te elogiar como agente e ser humano, dizendo: “Tudo indicava para que ele viesse a ser um excelente agente!...” Ouvimos as suas palavras emocionadas, embrenhados num choro silencioso e comovido. Já em casa, voltámos a abordar o destino que iremos dar às tuas cinzas, por agora guardadas em nossa casa. Na opinião do pai, deveríamos deitá-las ao mar ou colocá-las na gaveta do cemitério onde estão as cinzas dos teus avós paternos, mas eu não concordei com a ideia, não só porque o local não me diz rigorosamente nada, como fica demasiado distante da nossa vila. Quanto ao mar, sempre me intimidou, e por isso era outro local que não me agradava. E depois de voltas e reviravoltas, o pai sugeriu um local, que nunca me havia passado pela mente, mas que aguçou de imediato a minha curiosidade: “O Monte!”. O monte que circunda a nossa vila, e que tu e os manos descreviam como um local lindo e silencioso, com uma vista maravilhosa junto às ruínas 25
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de um Forte que deu nome ao local onde vivemos: “Forte da Casa”, e onde se pode observar não só a vila como o rio e o mouchão. Apesar de nunca ter subido o monte, e ter visto apenas fotos que os manos lá tiraram, fiquei logo com a sensação de ser o lugar indicado para o que pretendíamos, daí aguardar ansiosa para ir lá ver se tinha condições para isso. Ficou combinado irmos lá os quatro, com o tio Paulo e a prima Carlinha e a nossa cadelinha Luna, as pessoas mais presentes na tua vida – daí um segredo que ficará entre nós, já que queremos fazer uma cerimónia o mais privada possível, bem como um local de “encontro” contigo. Creio que fizemos a escolha acertada, e que iria certamente ser do teu agrado.
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Sábado, 9 de agosto 2008 Numa caixinha de metal onde costumavas guardar os adornos de metal das tuas fardas da tropa e da P.S.P., encontrei um minúsculo papelinho com esta incógnita declaração: “N TENHO FOME, N TENHO SONO, N ME CONCENTRO EM ND, PRECISO DE ME ENKONTRAR, SENTIR O CALOR DO TEU CORPO, A TUA RESPIRAÇÃO OFEGANTE, TAR CTG. KERES?”
Não sei a quem era destinada esta declaração, mas creio que o tenhas escrito recentemente, já que usavas a caixa com frequência. Foi muito duro o impacto que me causou ler estas palavras, já que elas me deram conta da dura realidade de não poderes viver o amor que te fervilhava nas veias, tão próprio da tua jovialidade. Foi mais um sonho que a vida te roubou.
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Segunda-feira, 11 de agosto 2008 A manhã acordou sombria e a chuviscar, bem diferente dos últimos tempos, soalheiros e extremamente quentes, como se viesse aliar-se à tristeza deste dia que prometia ser muito difícil para todos nós. O dia que escolhemos para prestar-te a última homenagem. Logo cedo, o pai foi aos Olivais buscar o tio Paulo, já que ele está privado de conduzir devido ao acidente de moto que sofreu recentemente, e, enquanto isso, eu fui à florista buscar as rosas brancas que deixei encomendadas para hoje. O Miguel tirou hoje o dia no serviço, e a Daniela não teve necessidade de o fazer porque é o seu dia de folga. Eu e o pai continuamos de férias, e a Carla também. O tio Paulo viaja ainda hoje para Inglaterra, o país que agora o acolhe, por isso termos escolhido este dia, antes da sua partida para a cerimónia. Eram cerca das 11 horas quando finalmente nos conseguimos reunir, seguindo em direção ao monte, onde decidimos espalhar as tuas cinzas. Foi uma tarefa bastante árdua para o tio Paulo, já que se desloca agarrado a muletas e o caminho é bastante difícil nestas circunstâncias. Ainda com todas estas limitações, fez questão absoluta de estar presente no último adeus. O local agradou a todos. A paisagem exuberante que dali se observa e o silêncio tornam-no único e muito especial. De mãos dadas, numa corrente de energia e amor, todos escutaram emocionados a oração que eu mesma escrevi para o momento, e depois o pai espalhou as cinzas ao vento, e cada um depositou as rosas brancas que levámos, inclusive a Luna que carregou a dela presa na sua coleirinha. E ficámos em silêncio e
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lágrimas, envoltos em memórias do tempo que pudemos desfrutar do teu amor e da tua companhia. De regresso a casa, fomos levar de seguida o tio ao aeroporto, fazendo apenas uma paragem para almoçarmos, no Centro Comercial onde dias antes da tua partida tinhas almoçado com a Diana (a tua amiga colorida), facto que me tocou profundamente. E enquanto fomos levar o tio, a Daniela ficou no Centro à espera da Diana, onde ficou de se encontrar com ela mais tarde, para irem sair juntas.
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Quarta-feira, 13 de agosto 2008 Hoje de manhã, fui com o pai ao Núcleo de Investigação Criminal da Brigada de Trânsito em Lisboa, para um encontro marcado com o cabo Matos, responsável pela investigação do acidente. Queria saber como eras, os teus hábitos, bem como com quem tinhas estado momentos antes do acidente, inclusive pediu os números de telefone dos amigos que estiveram contigo – o Filipe, o David e o Marcelo –, de modo a poder marcar uma audiência com eles, noutro dia. De regresso a casa, passámos pelo local do acidente, e encontrei no meio das coroas de flores, agora secas pelo sol, uma linda rosa vermelha, envolta num fino papel negro, e sobre ele destacava- se um coração dourado que dizia “Com muito amor”. Não faço ideia de quem a colocou lá, certamente uma amiga muito especial, já que a Diana disse-nos não ter sido ela. Uma vez mais, foi impossível segurar as lágrimas, perante mais esta triste realidade. À tarde, fui com o pai e a Luna ao monte, para te podermos sentir mais perto. E depois do jantar fomos até à avó, de modo a prestar-lhe algum apoio e companhia, já que depois da partida do tio Paulo ficou ainda mais arrasada. Na verdade, é-me difícil dar-lhe o apoio que merece, porque, tal como ela, me sinto de rastos e sem forças para viver, ainda assim esforço-me o melhor que posso para esconder o que me vai realmente na alma, agora que ela precisa tanto do meu apoio e companhia.
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Quinta-feira, 14 de agosto 2008 Beijo ternamente a tua foto num gesto que já se tornou um hábito, e não consigo segurar as lágrimas, sempre que o faço, já que não sei como viver nesta angústia que me dilacera por dentro e me dá a sensação de endoidecer a qualquer momento. E foi esse o motivo que me fez recorrer hoje à nossa médica de família, já que tenho consciência de que preciso de ajuda para superar este meu elevado nervosismo. Ficou em choque com a notícia, e ficou sem palavras perante a tragédia que se abateu nas nossas vidas. Vim medicada para a depressão, como já era de se esperar. Depois de virmos do médico, o pai foi ao ferro-velho de Vialonga, onde a G.N.R. mandou colocar o teu carro acidentado para abate, já que não tem reparação possível. Apenas se aproveitou o rádio para pôr no teu velho Opel Corsa, que decidimos entre todos dar à Daniela, pois pensa muito brevemente tirar a carta de condução, e é a única que não tem carro. Depois disso, fomos com a Luna ao monte, já que esse é agora o nosso local de oração e reflexão, e podemos chorar livremente, longe do alcance dos manos. Hoje, pedi à Daniela que abrisse o teu Hi5, para ver se tinha mensagens dos teus amigos, e foi com espanto e muita emoção que encontrei nele um poema de uma amiguinha misteriosa, que ninguém conhece, e que faço questão de o transportar para este teu diário, já que é a ti dedicado. Assinou apenas Carla (Vialonga), e creio tratar-se da jovem que te foi colocar a rosa no local do acidente. Ao meu lado os teus olhos fechados A nossa vida já findou, Neste caixão de amor acorrentado Eu e tu somos a noite que a noite não murchou. 31
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Escuta agora o nosso Pesadelo, O que podemos chamar de sonho, Tem o nosso cheiro misturado, Indefinidamente pelos séculos enterrados. Sobre o Branco Imaculado As nossas mãos unificam, as almas, Somos algo que não ousamos dizer. Somos a vida e morte eterna. Quando sinto o teu perfume no ar, As mãos tremem timidamente. O vento sussurra-me as ternas palavras, Que trazes para me abraçar. Sem teu calor inconfundível, O meu sopro definha na escuridão Os meus olhos contemplam apenas o interminável chão Onde me imagino sem sonhos.
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Sábado, 16 de agosto 2008 Dou comigo colada à vidraça do meu quarto, afogada num oceano de lágrimas, enquanto recordo a nossa última noite juntos, horas antes do acidente. E ainda consigo ver nitidamente esses momentos, mais precisamente a tua presença física junto ao teu carro no estacionamento em frente à janela do meu quarto, minutos antes de chegares do ginásio. Lembro-me de te estar a observar – vestias uma t-shirt preta, e uns calções “tropa”, deixando a descoberto o bonito bronzeado da tua pele, que te dava um toque ainda mais charmoso, e de pensar como te tornaras um lindo jovem, e de sentir um grande orgulho por isso. No preciso momento em que chegavas do ginásio, o pai regressou depois de mais um dia de trabalho, cruzando-se ainda na rua e antes de entrarem em casa. E isso foi motivo suficiente para convenceres o pai a instalar as luzes azuis no quadrante do teu carro, antes que anoitecesse e mesmo antes do jantar. Várias vezes fui à janela chamar-vos, para interromperem por alguns minutos o trabalho, para virem jantar. Tinha feito lasanha, que era um dos teus pratos favoritos, de modo a compensar-te das refeições ligeiras que tinhas comido no campismo, e vendo que não ligavam ao meu chamamento, acabei por ralhar com os dois. Já eram 22h30 quando deram por terminado o trabalho e vieram jantar. Por ser tão tarde, acabaste por não ter oportunidade para falar das tuas férias, pois de seguida eu fui ao café com o pai e tu ficaste no computador. Soube depois que tentavas contactar a Diana, mas ela não atendia as chamadas do telemóvel, por isso saíste ao encontro dos teus amigos, e assim acabámos por nos desencontrar, porque quando chegámos do café já tinhas saído.
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Lembro-me apenas das últimas palavras que trocámos antes de eu e o pai sairmos, pedindo-te que se saísses antes de chegarmos, fechasses a janela, pois a nossa gata Xena tinha lá ficado a apanhar ar. Quando chegámos minutos depois já tinhas saído, e depois disso tudo ficou por dizer… Só hoje consegui desfazer a tua cama e colocar a roupa a lavar, e chorei desesperadamente, enquanto cheirava e apertava a tua roupa contra mim, na ânsia de ainda sentir o teu cheiro. Encontrámos hoje sobre a tua escrevaninha um DVD com uma gravação de há um ano atrás, de um jantar de convívio com os teus colegas e formadores da Escola de Polícia de Torres Novas, onde te formaste. Até ao dia de hoje, não tínhamos tido oportunidade de o visionar, pois desconhecíamos que o tinhas em teu poder, por isso foi um momento muito intenso e chocante para todos rever-te dessa forma. Era um jantar de despedida da escola e falavam muito animados sobre os lugares onde tinham sido colocados. Animado e com um sorriso lindo, dizias aos teus colegas de curso: “Quanto a mim, fico apenas a 10 minutos de casa!…” Referias-te à esquadra dos Olivais onde irias ser colocado já como agente da P.S.P., e foi impossível segurar as lágrimas ao ouvir-te dizer isto, já que a tua vida foi interrompida de uma forma tão abrupta e tão injusta, que mal pudeste desfrutar desses momentos. Não sei como sobreviver a tão dura prova, nem tão-pouco como evitar as lágrimas que se multiplicam com o decorrer dos dias. Morro de saudades tuas, meu querido.
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Domingo, 17 de agosto de 2008 Encontrámos no computador as fotos do dia 8 de julho, o dia que foste sair com a Diana ao Shopping Alegro, onde almoçaram juntos. Disse-nos ela que estavas muito feliz nesse dia e que querias muito comprar-lhe um anel, mas ela não quis entrar na loja nesse dia, certamente achando que ainda era cedo para qualquer compromisso mais sério. Isso foi mais uma forma de ficarmos a saber que estavas realmente apaixonado por ela. Hoje olho para essas fotos com os olhos inundados de lágrimas, ao constar que é mais um sonho que a vida te roubou. E porque é domingo, e porque não conhecia o Shopping, senti necessidade de ir até lá. Não sabia porém, que isso iria mexer demais com os meus sentimentos, já que te imaginava a todo o momento a percorrer aquele espaço num momento tão feliz da tua vida, que foi esse dia que partilhaste com a Diana. Depois fomos até à avó. E de regresso a casa passámos pelo local do acidente e depois fomos ao monte rezar e chorar a nossa dor. Sabes, o pai confessou-me hoje em lágrimas que estava convencido de que Deus te chamou para seres seu ”Guardião”, alegando o facto de seres bom e nunca teres feito mal a ninguém, além de teres sempre procurado o caminho do bem ao longo da tua vida. É reconfortante pensar nessa hipótese.
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Domingo, 24 de agosto de 2008 Depois da insistência da tia Zélia e do tio Rafael, aceitámos o convite e fomos passar uns dias com eles, na sua casa da Foz do Arelho. A Luna foi connosco, mas a nossa gatinha Xena que não se dá com mudanças, ficou em casa ao cuidado dos manos. Mas, antes de viajarmos, fomos ao monte, agora que se tornou uma necessidade para nós. Com a Vila da Foz em festa em honra da Nossa Senhora da Conceição, assistimos à missa e de seguida acompanhámos a procissão, sempre com o pensamento centrado em ti e sem conseguir segurar as lágrimas que caíam sem controlo. Hoje a tia ensinou-me a rezar o terço, e de agora em diante farei dele um hábito em tua memória.
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Terça-feira, 26 de agosto 2008 Aproveitando a estadia na Foz, resolvemos ir com os tios ao Santuário de Fátima acender-te uma vela e rezar por ti, já que a fé nos dá um certo conforto e a esperança de que Deus possa ouvir as nossas preces, e dessa forma ir ao teu encontro. Enquanto rezávamos o terço na Capela das Aparições e sempre lavada em lágrimas, fui interrompida pela tia, que insistia para que eu olhasse na direção dos meus pés. Bem juntinho a mim, e dentro da Capelinha das Aparições, estava pousada uma lindíssima pomba branca, que me fitava insistentemente, sem nunca desviar o olhar de mim, como se eu fosse a única pessoa que ali estava, e ali permaneceu sem nunca se mover, desde o início até ao final do terço. O impacto que senti na cumplicidade de ambas foi tão forte, que cheguei a pensar que ela pudesse ser uma manifestação vinda de ti, e esse momento não só me tocou profundamente, como nunca mais o apagarei da minha memória. Apesar de ter conhecimento de que há alturas muito especiais em que elas são largadas, o que não era o caso, ela estava ali, sozinha, como que unida à minha dor, o que não deixou de ser estranho. Não resisti, e no final do terço tirei-lhe uma foto para que esse momento fique para sempre registado, e um dia incluído neste diário.
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Sexta-feira, 29 de agosto de 2008 Faz hoje um mês que partiste, e nos nossos corações e na atmosfera da nossa casa reina uma tristeza infinita e um sentimento de revolta e indignação porque tinhas a vida toda pela frente e partiste demasiado cedo. Desta forma, vimos para sempre destruída toda a ordem e planos que projetámos juntos. Está-se a tornar insuportável viver sem ti, e sinto-me cada vez mais perdida e confusa, sem saber como enfrentar o futuro sem ti. Como superar a tua perda se nunca mais vou poder ouvir-te proferir o teu doce “mãe” que me fazia pulsar para a vida, o som da tua voz, do teu riso misturados com o dos manos, o som da tua viola, da tua guitarra e da tua música espalhados pela casa, a cumplicidade e entusiasmo que partilhavas com o teu irmão nos jogos de futebol, na PlayStation, nas vossas saídas entusiastas para o Estádio da Luz para verem jogar o clube do vosso coração, em tudo o que vos unia. As vozes calaram-se na nossa casa, dando lugar ao silêncio aterrador e ao vazio que deixaste em nós. A nossa casa perdeu a vida. O Miguel fecha-se no quarto, e chora não só a perda do irmão querido, como a do melhor amigo, e talvez seja o que esteja a sofrer mais com a tua ausência. Tento agarrar-me à fé em Deus, por isso mandámos rezar uma missa hoje, mas foi a nossa vizinha Elizabete que acabou por se antecipar e te a oferecer, em memória da amizade e carinho que sempre sentiu por ti. Estiveram connosco vizinhos e amigos. Foi um momento muito sentido e sofrido por nós.
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Sábado, 30 de agosto de 2008 O Miguel e a Kaddy saíram há pouco, para um fim de semana em Tomar na companhia de amigos. Tem sido uma grande ajuda o apoio da namorada, já que ela faz de tudo para o distrair e tirar deste ambiente de luto. Eu fecho-me no vosso quarto e choro, ao pensar nas recordações que ele me traz. A Luna e a Xena continuam deitadas pelos cantos, de olhos caídos, e não querem brincar. Vem-me à memória as vezes sem conta em que a Xena se aninhava no teu colo, fazendo grandes sonecas. Sei que ela também sente muito a tua falta. Hoje recebi a visita inesperada do teu amiguinho Bruno, e falámos muito de ti e da vossa viagem a Espanha. Falou com a voz embargada de lágrimas e com grande indignação por não conseguir perceber como é que perdeste a vida naquele acidente, já que sempre foste o mais cuidadoso e responsável de todos os vossos amigos do grupo. Falou-me da tua vincada discrição na tua vida pessoal, e da forma como andavas feliz naquelas férias, principalmente quando recebias os telefonemas ou mensagens da Diana. Falou-me na maneira como coravas quando as miúdas na praia ou no campismo se metiam contigo, chegando mesmo a pedir-te o número do telefone, enquanto eles se roíam de inveja por não serem eles a terem a oportunidade, mas acabavas sempre por dispensá-las delicadamente, por timidez e respeito. Falou-me do amigo sincero e sensato que, tal como ele disse, lhes estava sempre a “dar nas orelhas” com bons conselhos. Perguntou-me onde tínhamos colocado as tuas cinzas para poder ir até lá, e ficou sem palavras quando lhe falei do monte. Confessou-me entusiasmado que foi muitas vezes contigo para lá, andar de bicicleta, quando eram miúdos, curtir a paisagem com os vossos amigos e até assarem castanhas. 39
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