Amorte

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Emanuel Breu

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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Dário Filipe Saraiva Barros TÍTULO: AMORTE AUTOR: Emanuel Breu PREFÁCIO: Andreia Levita POSFÁCIO: Neuza Nunes ILUSTRAÇÕES: Emanuel Breu e Alexandre Correia (Desenhos a carvão) e Tiago Ferra (Fotos a preto e branco) PAGINAÇÃO: Nuno Ferreira CAPA: Emanuel Breu e Alexandre Correia CONTRACAPA: Lurker 1.ª EDIÇÃO LISBOA, 2011 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Publidisa ISBN: 978-989-97261-0-9 DEPÓSITO LEGAL: 324683/11 © Emanuel Breu PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, Porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


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“A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.” Bernardo Soares No “Livro do Desassossego”

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PREFÁCIO A primeira questão que se me levanta é se “AMORTE”, de Emanuel Breu, necessita realmente de um Prefácio. Escrever sobre este jovem autor só pode constituir um acto de Amor, nunca um testemunho crítico técnico/literário, pois, se assim fosse jamais passaria de uma indelével e desbotada tentativa de declarar o singular pendor literário, artístico e humano deste auspicioso autor. Um gesto de Amizade foi decerto, o seu pedido para eu colocar palavras minhas na sua obra. A sua solicitação encheu-me de uma timorata satisfação e, simultaneamente, de um incontestável orgulho pela possibilidade de, ainda que de uma forma humilde e pouco primorosa, fazer parte do seu livro. Conheço o autor há relativamente pouco tempo, mas a simbiose afectiva gerada entre nós, a partir da partilha do amor pelas artes e da sua ímpar personalidade, que expressa de um modo genuíno e autêntico através da música e dos seus textos, permite-me dizer que o considero uma alma alada e sofrida, portadora de muitas e diversas vivências sumptuosas que, 7


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no percurso de muitas vidas passadas, se foi aperfeiçoando e transformando numa jóia em estado bruto de pureza que se abriga no Homem e no Pai que é hoje. Quando me pedem para falar do Emanuel, as primeiras palavras que me surgem são: sensibilidade, amor, humildade e raiva. Toda esta obra, “AMORTE”, é produto deste conjunto de sentimentos que, trabalhados a partir de um génio extraordinário, invulgar e pleno de sabedoria e vontade, nos oferecem um texto digno de partilhar os espaços de qualquer livraria. Posso dizer, ainda que de um modo redutor, pois muito mais haveria para dizer, que a obra nos envolve num sentimento de desespero, dor e angústia, mas ao mesmo tempo revela-nos a grande verdade, infelizmente há muito adormecida no coração e mente humanas. O amor e a partilha de afectos são de facto o último suspiro de esperança na criação de um mundo melhor, mais “vivivel”, e que a pior das dores humanas é a da morte e da descrença na humanidade e dignidade de cada homem. Numa sociedade cada vez mais desenraizada, onde os sentimentos humanos passaram a ser instrumentalizados em pró do ter, do haver, em detrimento do ser e do conhecer. A Criatura encarna, ainda que de um modo hiperbólico, a decadência e a desumanização da sociedade contemporânea e do ser humano em particular. Dificilmente poderíamos ver narradas de um modo superior as imagens da podridão e decadência da sensibilidade humana, ou mesmo do enfraquecimento ou ausência dos seus sentimentos. Sim, porque ainda que nos possam parecer 8


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demasiado horríveis os sofrimentos da criatura, devemos sempre recordar-nos que não está tão longe da nossa realidade, basta apenas abrir um jornal ou ligar a televisão para vermos que o ser humano cada vez mais se enreda e se afunda no seu próprio nojo, na sua própria vergonha. O homem contemporâneo adormeceu em si tudo o que de mais humano tinha, o seu ser, o seu sopro vital, a sua alma, os seus sonhos, a sua alegria e a sua pureza. O autor projecta nas suas personagens, nos seres imaginários toda a raiva e desilusão que tem perante uma sociedade desmembrada e adormecida pelo capitalismo, pelo consumismo desenfreado, pelo apogeu das armas, da ganância e da guerra, em detrimento do amor e dos afectos de tudo o que de mais puro, cristalino e singelo que o homem possuía. Ainda que todo o curso da obra se paute por um pessimismo negro quase barroco, e por uma frieza desmedida não podemos deixar de considerar, os sentimentos puros que o autor deixa transparecer no final de cada conto. Na realidade o mundo está envolto nas teias da dor e do ódio, todavia basta apenas o homem voltar a olhar para si, para o seu interior que num átimo volta a deixar fluir os seus sentimentos verdadeiros e puros. Citando Nuno Júdice, “Podíamos saber um pouco mais da morte. Mas não seria isso que nos faria ter vontade de morrer mais depressa. Podíamos saber um pouco mais da vida. Talvez não precisássemos de viver tanto, quando só que é preciso é saber que temos de viver. Podíamos saber um pouco mais do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar de amar ao saber exactamente o que 9


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Ê o amor, ou amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada sabemos do amor.� Andreia Levita

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AMORTE Esse teu lado obscuro Solstício da escuridão que tanto me ilumina Bem de que não me curo É esse o teu condão e talvez a minha sina Essas tuas pétalas negras que me afloram o olhar São a minha coroa de espinhos A cruz que tenho de carregar Sangro de encantamento Chagas desse momento Em que me abriste a alma para este sentimento Provei a pureza do teu veneno Minha serpente do paraíso E sucumbi diante do teu pedestal Enamorado dos teus edénicos lábios Meu lívido arco-íris, dissabor integral 11


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Não te conheço para além de mim Nem sei se existes na imagem de ti Mas és a sombra que vagueia Errante na minha imaginação Meu vulto interior Ermo esplendor da solidão Viúva peregrina da dor que existe, tão triste… Nisto a que chamam o coração Vem ter comigo ao meu casulo És a presença em que me anulo Leva-me nessas asas feridas pelo infinito estelar Vamos desbravar a noite Desfalecer ao luar…

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PRIMEIRA PARTE Era uma vez o nada, o vazio absoluto, um abismo profundo, quiçá infinito, que repuxava para dentro de si, vertiginosamente, o olhar mais introverso que por ele se aventurasse. Era um poço de angústias que transbordava de si mesmo, tantas as almas nele submersas. Almas náufragas da Dor existencial, após severas odisseias pela mágoa e desilusão. Errantes peregrinas interiores, abalroadas pela ondulação montanhosa da decadência. A Dor existia e florescia dentro da escuridão, bebendo as lágrimas sanguíneas que jorravam dos olhares feridos e desapiedados das criaturas, a quem se insinuava intrinsecamente. A Dor existia por si só, na solidão de cada uma, indiferente a quem sujeitava, desde que fosse nutrida dentro de um qualquer casulo emocional. A Dor era Maga, Deusa, Rainha. Todos lhe ofertavam os seus sentimentos. Todos a bajulavam com o seu sangue. Eram cânticos sôfregos em sua devoção, desde o murmúrio 13


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mais soluçante ao grito mais agonizante! Todos queriam o seu espaço, a sua luz, para brilharem negros e sangrentos! Debruçavam-se

vénias

padecentes

no

harém

da

mortalidade. Pobres almas jubilares. Esbeltas chagas, meretrizes da epiderme interior, bafejadas pelo suspiro da Morte, colectora dos enfermos, que se detinha, ávida e serena, na espera do seu momento, da sua redentora incursão pelo espaço devastado, para nele semear a harmonia da extinção, uma leveza de substância rochosa, capaz de empilhar a cruz dos mártires, e purificá-la na sua gélida chama. Ardentes eram as sensações da Morte, como ar comprimido numa veemência calorosa, onde a forma se condensa no eco sentido interiormente pelos transeuntes da decadência, vindo dela a agrura em que se sentem os peregrinos adulterados pela consciência, que enquanto existe imaginação e sonho, a Suprema não encontra vida no coração das Criaturas. A Morte não é coisa que se experimente num estado de espírito desapegado do corpo. A Morte é o corpo, e é na vivência da matéria que atinge o seu esplendor. É na devoção mental que a escravidão lhe presta que ela ergue o seu templo. É na escuridão do pensamento que se exulta a sua luz, que tudo o mais é sombra, corpo e sombra, sombra e corpo. A Dor não serve a Morte. Serve a vida que lhe é descendente desde a emancipação da criação, como o coração de um pai serve eternamente o Amor pelo seu filho, por mais que as asas deste se aventurem por entre céus além da vista, e deixem a assombração da saudade como a sua única presença…

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Fazia frio… O gelo ardia sólido dentro de si, e percorria gasoso a atmosfera sinistra, mas já não existiam sensações vitais que gerassem um arrepio. A palidez reluzia pela sua pele branca. O seu corpo já não balançava na inquietação. As suas mãos já não tremiam. Os seus dentes já não colidiam uns contra aos outros num ritmo periclitante. Já não havia sinais do desassossego. O Medo desaparecera, ou ficara algures para trás, dentro da bruma que atravessara. A Dor também parecia ter hibernado no seu interior. Entrara talvez num período de incubação sensitiva, e estranhou-se dentro de si a Criatura. Ela era agora uma mera sombra elevada na sua escuridão, um corpo nevoento, desintegrado da carne, vagueando na altivez do limbo, sem memória do que lhe acontecera, desconhecendo o embrião deste novo estado existencial. A última imagem que tinha de si, no arquivo ainda fresco da lembrança, era o da sua figura incorpórea, sentada no chão que sempre lhe fugiu dos pés, encostada a uma parede que nunca a amparou, de frente para o vazio, para uma outra parede branca, onde a claridade existente reflectia a sua silhueta carpida num pranto lancinante! Era o espelho da sua existência, escuro e cortante, assim como a lâmina que se agarrava aos seus dedos trémulos, e a palma da mão que se detinha no contacto frio, metálico, daquele objecto, para o qual olhava, intensamente, vidrada, vislumbrando nele um significado que nunca conhecera em vida; a liberdade! Essa sensação que nunca havia experimentado no covil da sua existência. 15


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A sua imagem, encoberta pelo Negro, desvendada por este, era projectada como um vulto carpido em si mesmo num mural incolor, nesse momento que se repetia por si mesmo ao longo dos dias de agonia. A sua única luz contempladora germinava no crepúsculo lacrimoso que lhe escorria pelo rosto, e lhe ardia os olhos quando a tempestade fazia uma pausa. Até que um dia já não havia suco lacrimal para ser exprimido. A fonte da angústia havia secado, e já só restava a dormência da mesma, qual menina, mimada e caprichosa, que sugara o líquido da sua vitalidade, esse sangue, salgado e transparente, em que se embebia a gula da Dor.

A Dor passara a ser então um mero zombie no corpo interior da Criatura, na alma que ela já não sentia dentro de si. As suas emoções eram sonâmbulas no palco dos sentidos. Assim, indelevelmente, a Criatura já só era, já só existia, como o espectro da morbidez que sobre ela se assomara. Dentro da 16


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sua mente assombrada, onde as lembranças eram teias que se agarravam, pegajosamente, aos recantos baços e frios dos seus sentidos, como se embalsamasse as sensações, indagou-se, num monólogo pensante; “Serei eu real? Existirei eu neste espaço entre mim e a solidão? Que abismo se cavou em mim? E o que me espera neste buraco negro e fundo, onde de repente me fui encontrar? O pranto prostrava a Criatura, embrenhada em si própria, com a lâmina reluzente por entre os dedos, afiada, fina, fria, gélida, desafiadora, provocante, amiga, companheira, cúmplice do seu âmago trivial… Subitamente, num gesto repentino, que já tardava há uma eternidade, sentiu a elevação e declínio da sua mão no mesmo instante e a batuta de aço laminador desferida num impulso fugaz! Um rasgo dilacerante de encontro ao pulso do seu outro braço! E foi quando o brilho que deslizava na extremidade da lâmina irrompeu como um clarão pela sua pele, beijando num corte gélido as suas veias submissas! O metal e o sangue encontraram-se naquele ponto de ebulição orgânica, e estranharam-se na textura, na temperatura, no paladar que um vampiro não desdenharia, lambendo, sedento, aquela lâmina ensanguentada até à mais ínfima fissura! Perdeu-se um banquete para o faminto morcego. Todo o sangue que espirrava, lentamente, daquela fonte humana, ali, estendida pelo chão, numa poça abissal, em comunhão 17


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com o corpo desfalecido! Sangue e carne, carne e sangue, mergulhados um no outro, encontrando-se no exterior, frios, gelando cada vez mais num dia de Outono que, cinzento, espreitava pelas fendas esguias da persiana que a Criatura já não abria, barrando a ostentação da claridade que o sol fazia embater na outra face da janela. A face que se entregava ao mundo, e ao sol que atravessava as nuvens filtradoras da sua luz agressora, hostil presença estelar no olhar noctívago da Criatura, miradouro da sua alma negra! A Criatura jazia no chão, inanimada, quando se ouviu o ranger da porta, o guinchar da madeira inchada e envelhecida a arrastar-se de rapina pelo soalho humedecido em sangue, e entraram uns passos no palco do sacrifício. Abriram-se umas cortinas de espanto num olhar chocado e traumatizado, que emergiu num grito horrorizado, desesperado, ensurdecedor, como um eco agudo e estridente que progredia pela escala do som à velocidade da luz, até rebentar com os decibéis da sensibilidade! Que envolvência chamativa da percepção necrófaga dos curiosos peões! Que belo engodo para os abutres famintos do nefasto espectáculo! A vivência da vida não tem o efeito convidativo que a Morte incita. Ama-se a tragédia alheia desde a exposição medieval da Morte em praças públicas, até ao ocultismo mortuário das mentes contemporâneas! “ Assomai! Está perante vós o mais antigo espectáculo do mundo! Vinde deliciar-vos com o sangue de outrem! Banhai o olhar nele, para que em vossas veias possa efervescer a excitação que vos irriga o corpo siderado na 18


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insignificância da vossa vida sedentária! Vinde satisfazer a sede de desgraça do próximo! Aproximai-vos, mas guardai a distância do salvamento, para que não passeis, subitamente, de predador visual a presa carnal!”

Soaram as sirenes, o chamamento uníssono do cortejo carnavalesco e canibalesco! A borracha incandescia pelo asfalto numa cíclica combustão emergente, e entraram duas indumentárias brancas pelo espaço negro, assentes em dois corpos lestos, que elevaram, lentamente, num gesto súbito, o desfalecimento iminente da Criatura, deitando-a sobre uma maca que estendia o quase cadáver pelo seu corpo de linho, ensopado em sangue. A Morte, no seu estado quase físico, materializava-se naquele corpo esmorecido e drenado, cujos sinais vitais fugiam da prospecção dos primeiros socorros, até que uma pequena e indelével pulsação se sentiu, assim como um pequeno fôlego 19


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libertino que a acompanhou na emancipação! Mas nem sinal da consciência, essa mantinha-se impenetrável no seu estado de hibernação... O palco agora era outro, subdividido por cortinas que ocultavam a decadência de outras criaturas. O aroma a éter pairava no ar, fedia no ar, empestava o oxigénio e as inspirações em que este se insurgia. Aquele cheiro a lixívia gasosa que tentava abafar o perfume da podridão, como se desinfecta-se a fragrância intrínseca da degradação orgânica! As paredes eram telas brancas, onde os olhares despertos projectavam películas da memória passadas em retrospectiva, e visões futuristas da dor que os definhava até à alma… Pela janela embutida no sôfrego tijolo que se amontoava como esqueleto daquela armação edificante, irrompia uma luz exterior agressiva, como uma navalha de brilho que dilacera a íris da escuridão! Um clarão invasor, que se confundia com a claridade já ejaculada por aquele objecto envidraçado que pendia sobre o tecto, e parecia grávido de luz. A luz, que descia numa aurora incolor sobre o espaço sombrio, até embater no seu próprio reflexo, desenhado pela sua substância luminosa no azulejo que revestia o chão daquele quarto curandeiro. Pedra cintilante por onde rolavam as camas dos pacientes, tão passivos e impotentes perante o infortúnio do padecimento… Era numa dessas camas, no seu canto sideral, que se detinha no foco incandescente da luz, onde estava deitada a Criatura, emparedada entre dois lençóis de linho, que sustinham um cobertor de lã e uma manta de algodão, como se 20


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o frio pudesse ir mais além da alma, e o soro intravenoso pode-se saciar a sua fome de mortalidade! Eram agulhas, fios, ventosas, tubos, uma parafernália de mensageiros condutores entre a Criatura e uma máquina de tentáculos artificiais, que se lhe entranhavam na pele e mantinham a sua alma prisioneira do seu corpo imóvel. Corpo dormente, que recuperara o calor da existência, uma qualquer fervura que ardia muito branda pela sua pulsação. Uma pequena labareda que se sustinha para além das cinzas, imune à extinção da sua chama materna, que deixara ainda uma última vértebra descendente para arder... O espírito da Criatura, introverso naquela casca moribunda, revirava-se no seu interior, nas profundezas da intuição agreste, procurando a sua imersão desincorporada, desmaterializada da carne que ainda o agarrava e o siderava, vivaz, insone, claustrofóbico, na cuba da existência terrena, naquele coma que dava à costa pelas margens fronteiriças entre a Morte e o seu ser hospitaleiro. Passaram-se manhãs, tardes e noites, dias, meses e anos na caverna do sofrimento eremita. Os ponteiros do relógio seguravam o tempo numa eternidade catatónica dentro da Criatura, enquanto o tempo sideral corria na sua imparável marcha lenta, fazendo as suas vítimas pelo caminho... criaturas que, inevitavelmente, cumprem o seu ciclo existencial e embarcam, a tempo ou a destempo, na travessia que espera todas as almas, para o Além que as aguarda na sua pose solene e misteriosa... O Além que existe na ignorância em torno de si e na indagação a que leva… nas certezas religiosas em que é 21


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afirmado, e nas idealizações filosóficas e espirituais que suscita… um espectro fantasioso, assombroso, que impregna medo e encanto nos pensamentos que o experimentam, absortos na sua realidade sensitiva… Ele, o Além, não é mais que a presença em que se assume, a sombra que não se define no olhar do pensamento, a sensação transcendente que solta brisas do seu mistério num labirinto existencialista, e levanta vendavais interrogativos nos seus divagantes peregrinos… Uma enigmática condição ambiental, que insinuara o seu condão sensitivo pela erógena percepção da Criatura, seduzindo-a para a descoberta missionária desse Além, para além da Morte que o desvenda... A Criatura mantinha-se impenetrável na sua dormência. O tempo para si já havia parado há muito tempo, no momento em que a sua consciência se esvanecera do seu corpo, mas, entretanto, acordara na sensibilidade nebulosa da sua alma... haveria esta a resgatado para o seu ventre incubado, gerando uma efervescência revoltosa que se espumou pelo canal da sensação e desaguou numa gota de suor, a que se seguiram tantas outras, emancipadas na pele do seu rosto intrépido, que sofreu uma oscilação na sua tonalidade, avermelhando-se numa ebulição metamórfica! Estava consumada a primeira variação camaleónica na inerte moldura facial da Criatura! Ela respirara para fora de si, para longe da sua estaticidade! Levara a acção do seu espírito até à superfície epidérmica! Ensopara o algodão do seu pijama e o linho dos lençóis naquele néctar libertino, peganhento, que colava a sua matéria lubrificante a qualquer matéria absorvente. 22


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A Criatura pulsava novamente dentro de si, inconsciente do seu tumulto, da penumbra tenebrosa em que ascendia! Ela era uma qualquer vida exumada em si própria, dentro do seu cárcere sensitivo, e nele se afundava, como areia movediça que a engolia aos pedaços em cada incursão gestual do seu espírito revoltoso! Acendeu uma vela dentro da sua cegueira. Uma luz quente e balançante, que dançava num pedestal de cera imaginária. Alumiou-se ainda mais a escuridão, enquanto se derretia a alma da percepção interior. A essência flamejante daquela pequena tocha desbravava o negro, mas não existia visão que fosse clara no olhar introverso da Criatura. O olhar cego de pensamento, desfocado da racionalidade que sempre lhe esventrara a virtude e o ensejo. Não se via nada porque os seus olhos internos eram brancos pela córnea, límpidos da sua íris negra, esse lugar profundo, onde se encontram todas as cores, devotando a sua rainha-mãe, a progenitora que elas fecundam na sua mistura colectiva... a cor, suprema, que dita a substancial presença de todas as outras submissas... o preto, o negro, a noite que se adensava sem luar na introversa paisagem inócua da Criatura! Brancura sinistra, soturna, noiva magiar da escuridão, profetiza das trevas! Deixá-la erguer o seu ramo de ciprestes, atravessar o povoamento dos sepulcros, e caminhar obtusa pelo mausoléu da eternidade, carregando a lividez do seu semblante oculto na clarividência do seu véu jubilar, quando os sinos necrófagos tilintam as badaladas da Morte e fazem ressoar o uivo pendular da transcendência… 23


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Transladada para uma nova condição mirabolante, a Criatura estendia as mãos, pontífice dos seus braços, pelo vazio… Apalpava o ar fumado de negrume… Mexia os dedos por entre a nebulosidade do espírito e a camada gasosa que o oxigenava... um sopro pútrido, azedo do soro que fedia odorífico no seu sangue amarelado! Ela desembainhava as suas garras sedentas de tacto, do assomar visceral de algo palpável, alguma matéria a que a bruma instintiva se pudesse agarrar e impregnar nela um qualquer sentido de orientação intuitiva… Eis que surgiu de rompante, pela sensibilidade do toque vagabundo, uma matéria rugosa que bruscamente lhe acariciava a ponta dos dedos! Essa matéria dispunha-se 24


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geometricamente numa forma vertical. Era uma porta no vazio, sem sustentabilidade física, no meio do nada, pendida sobre o negro, ramificada no seu espírito metafísico! A Criatura estranhou-lhe a existência, mas agarrou-se a ela com o instinto de sobrevivência de um náufrago a boiar abraçado a um pedaço de madeira lascada, desintegrada da sua armação navegadora, atravessada pelo impacto dilacerante de uma onda vertiginosa, ou pelo impulso predador de um qualquer Adamastor! A porta sentiu-se empurrada para dentro do espaço que ocultava. A Criatura entrou na cegueira dos seus passos temerosos. E logo uma voz, de surdina, lhe sussurrou; “Sê bem-vindo a mim, o teu Passado. Eu sou a semente de onde rebentou o teu primeiro sinal de vida. Fui gerada pelo impulso que levou uma consciência primitiva a um acto vil, cru, cruel, grotesco, tirano, animalesco! Uma tesão predadora, descarregada num coito violento sobre a impotência de uma presa, tua Progenitora, agonizada pela brusca invasão da carne pelo seu ninho vulvar, entre contínuos golpes agressores que geraram sangue, lágrimas, hematomas interiores e exteriores! Fui projectada na saciedade ejaculada pelo clímax selvagem do dador de esperma, teu Progenitor! Ele largou-me a mim e às minhas irmãs, no vácuo cavernoso que emparedou, sôfrego, o seu vigoroso membro felino, e da irmandade espessa e viscosa em que nos diluíamos só eu sobrevivi, chocando de frente com um corpo estranho ao meu, que me absorveu e me ramificou dentro de si. Alojei-me naquele ventre ferido, imundo em sangue vaginal e fedorento sémen! Ganhei uma nova vida naquela fusão orgânica, quando já delirava na morbidez que me ameaçava… Resisti dentro 25


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do meu novo corpo celular, dentro do óvulo, naquele antro uterino que me abriu as portadas, e me acolheu dentro da carne da minha Hospedeira, tua Progenitora. Espancada, violada, fracturada por dentro e por fora... sangrando inconsciente numa qualquer sarjeta, onde fora largada como o dejecto de uma luxúria e maledicência vorazes, estava a minha Hospedeira, tua Progenitora! Ela era um manto de escoriações! O sangue ardia-lhe fresco nas feridas que lhe retalhavam a carne até á alma, quando foi encontrada pela compaixão, e desinfectada pelo trato medicinal que à urgência do seu estado físico ocorreu! Injectaram-lhe poções químicas. Tiraram-lhe fotografias aos ossos. A sua pele foi remendada por agulhas que sustinham linhas nas suas cabeças ovais, que a cada esticão exerciam uma força unificadora das margens sanguíneas de cada chaga desferida na sua epiderme… Veio a cura física, fragmentada em cicatrizes! A bonança que se apregoa depois da tempestade, mas, por baixo da crosta, os raios e coriscos daquele momento devastador eram uma presença cíclica, revivida incessantemente na reincarnação do trauma no templo da memória! Seguiram-se terapias mentais, acompanhamento psicológico, mais fármacos anabolizantes... antídotos para a Dor que não se deixava entorpecer! Veneno que não anestesiava a sua existência infernal dentro da tua Progenitora. Mais mentiras para o fosso cavado dentro da sua memória. Nas profundezas do abismo era só ela, a lembrança, circundada por espelhos negros que reflectiam o vermelho escuro, a imagem dolorosa, sangrenta, do sofrimento, revivido intensamente na estagnação do tempo naquele capítulo visceral! 26


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Eu, tu, nós, fomo-nos desenraizando do nosso estado viscoso. Sofremos o impulso floral da natureza e, nas cinzas daquele jardim uterino, devastado pela pútrida fotossíntese do sémen, fomos ganhando o caule ósseo que te sustém, a seiva púrpura que te corre nas veias, o tecido epidérmico que reveste a tua carne sôfrega. Fomos ganhando vida dentro daquela Morte interior. Imunes ao seu estado desolado, alimentámo-nos dos químicos nutritivos que nos chegavam daquela fonte embrionária. Sugámos-lhe o veneno da Dor, e emprenhámos também nós, dentro daquela gravidez, do Karma que condensava na sua essência, a origem nefasta da tua existência... a ocasionalidade selvagem e infernal da tua concepção, a impureza sacra da tua emancipação imunda e nauseabunda, que a penetração do Demónio semeou! Eras, éramos uma espécie de vírus inseminado num ventre traumatizado que voltava a reviver, por acção da tua existência parasita, desembainhada por aquela espada canibalesca, o inferno que lhe fora desferido primitivamente! Existias, existíamos como fruto apodrecido pelos genes da memória. Rebento, mais que indesejado, malogrado, pela nossa Hospedeira, futura Progenitora, que sentira assim a perpetuação física do seu horror emocional, quando começaste com os teus manifestos hormonais! Rituais sintomáticos que denunciavam a tua presença fetal em águas negras e sangrentas, para desolação de quem te suportava dentro de si, e não te conseguia devotar o Amor que uma progenitora devota à sua cria, porque tu eras um símbolo vivo, intenso, demasiado vivo e intenso, palpável, da Dor e do Ódio, já por si mesmos, filhos bastardos, impregnados na alma do pensamento! 27


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O primeiro pensamento sensorial que inspiraste com a visão do teu nascimento foi o da tua Morte instantânea, servida num banquete de plasma, placenta, água ensanguentada, carne desfiada... a ceifa dessa tua epidémica condição embrionária! Mas foste ficando e resistindo dentro da tua pérfida e nefasta incubação, porque Deus interveio por ti no templo da consciência! Os meses foram sendo desfolhados no calendário, e tu estavas cada vez mais territorial no teu aquário negro, e cada vez mais assombroso na perspectiva da tua chegada! A Dor agudizava-se no peito da tua Progenitora! O desespero, a agonia, eram sensações sobressaídas da esperança e compaixão que ela tentara cultivar em si... em vão! Tu eras o espectro frutificado do Demónio na mente dela! A tua aura maléfica, traumática, era imponente no pedestal da maternidade, e a tua Progenitora desapegou-se dela, desapegando-se da própria vida... esvaindo-se em frascos de veneno granular... contaminando toda a conexão orgânica e emocional que vos unia umbilicalmente! Tu, já quase Cria, sentiste o ataque químico, nuclear, no teu pequeno mundinho, a convulsão em redor que incidiu no teu casulo e te ameaçava com a devastação venenosa! Já não existia Deus no pensamento, apenas o Demónio na forma exasperada do suicídio! Abriu-se então um clarão ofuscante na escuridão do teu casulo, um quadro de luz, delineado pela incisão de um bisturi na pele e adentro da carne da tua Progenitora! Ela já havia se desvanecido no piiiiiiiii (...) que marcava o compasso do falecimento sobre a linha horizontal que desfilava em rodapé naquela máquina reguladora da actividade cardíaca. O coração morrera para o corpo e para a alma! 28


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O coração morrera pelo Amor que não existia e que era Amor pela vida sobre a forma venenosa da Morte!

Pulsavas convulso no envenenamento, quando duas mãos de látex te resgataram da toxicidade, te cortaram o elo umbilical a ela, e te deram duas palmadas, assentes na pele engelhada das tuas nádegas, para chorares o primeiro pranto da tua vida, que a tua voz, ainda virgem, se recusava a manifestar! Lacrimejaste estridentemente como a primeira reacção de estranheza a uma nova atmosfera! Emancipaste-te do ventre que atentava ser também o teu sepulcro! Foste um milagre e uma maldição infimamente ligados sobre o nascimento da tua existência terrena! A cirurgia que te desvendou foi a porta edénica que se abriu no inferno! Parecia haver um desígnio angelical propenso à ocorrência da salvação divina sobre a ténue linha do precipício, ou apenas a sádica misericórdia do Diabo, paralela ao teu sofrimento, seu deleitoso entretenimento! Sobreviveste ao teu pranto tóxico e lacrimal, e quando já inalavas o oxigénio pelas tuas próprias narinas, e te alimentavas da 29


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lactose diluída na água, geraste o teu primeiro dilema existencial, ainda na inconsciência do teu estado dependente. Eras um rebento da natureza sem ramagem sustentável numa árvore genealógica, que no teu caso era a devastação! Eras um fruto apodrecido na solidão de uma incubadora. A tua cesta familiar ocorreu à colheita da tua Progenitora pela Morte e, olhando-te sobre a tua macabra sobrevivência, sentenciou-te a existência com a sua repugnância, assinando o teu destino num contrato de doação. Eras um dejecto humano, e foste enviado como mercadoria excedentária da sociedade para o acolhimento gélido, cruel e disciplinador de um lar. Uma mansão de rosto sisudo, fachada sinistra, arquitectada pela tonalidade bolorenta da pedra, vítima temporal da incidência agreste da chuva e do sol... esculpida pelo verdete que trepava na escalada do musgo pela sua superfície rochosa, fixando-se no rebordo das janelas e varandins, prancha suicida dos corpos das almas que se agastaram da sua presença naquele mausoléu de proporções edificantes no seio de uma floresta densa de arvoredo, verde-escuro, muito escuro, onde o negro irrompia pelas fileiras da cor... onde as silvas, urtigas, e arbustos espinhosos e cerrados armadilhavam o ensejo de desbravamento... onde os uivos dos lobos famintos ecoavam numa melodia arrepiante e assustadora! Uma envolvência tenebrosa da mãe natureza, que circundava a casa dos horrores! Dentro dela, dentro das paredes e pisos que a subdividiam, ensinava-se a mastigar autênticos vómitos alimentares, e cada regurgitação era severamente punida, com o chicote a estalar marcadamente na pele, e a fome a roncar no âmago estomacal por largos períodos temporais! 30


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Ensinava-se a urinar e a defecar no sítio certo, naquele aro sanitário que, no seu fundo, repuxa os dejectos intestinais para dentro do esgoto. Um processo sinérgico à existência de todas aquelas crias assustadas e indefesas, depositadas naquele hostil antro de educação, que perfilava os seus involuntários recrutas diante de um pelotão de fuzilamento comportamental, na linha de fogo de regras e horários levados à extremidade do cumprimento! A insolência e o desleixo pagavam-se caro, na moeda da violência gratuita, que não chegava a carecer de motivação, além da instintiva disposição para a mesma por parte dos amados instrutores! O clima era infernal! Reinava o medo nos olhares, nos gestos, nas posturas temerárias, absortas na timidez, na iminente ameaça do minimalismo reinante, que arranjava sempre um mártir para exemplificar o seu domínio! Cresceste naquele meio selvagem com outros animais ferozes! Felinos domesticados à lei da chicotada, que cultivaram desde cedo a raiva e o ódio dentro de si! Nada mais existia ali para ser colhido, ao ponto do canibalismo social se ter tornado na mais preciosa virtude emancipada daqueles seres desconstruídos e animalescos! Os fracos foram definhando por si mesmos e sepultados numa vala recôndita, sitiada na extremidade do quintal hortícola, que se estendia até ao mato, e onde tu, no auge da tua infância, brincaste com uma inchada nas mãos de sol a sol, por dentro do negro caloroso que te ardia na pele e te gelava a alma! A escuridão, que soprava glaciar em dias invernosos! A pele fina e cristalina das tuas mãos virgens depressa se emprenhou da calosidade do labor árduo! Cavavas o solo, esventrava-lo com o metal do teu brinquedo. Abrias-lhe buracos 31


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minúsculos perante o fosso que se cavava na tua alma, e depois cobria-los novamente com terra, fecundados por embriões de vegetais, tubérculos e leguminosas. Padecias da escravidão em que se encerrava a tua actividade curricular... Aprenderas a falar, para perceberes as ordens que te eram dirigidas e poderes dizer “sim senhor”. Aprenderas a ler as letras do alfabeto, e depois a conjugá-las em palavras, para saberes interpretar o manual da sobrevivência, a bíblia dos súbitos, em todos os capítulos da submissão, novo e velho testamentos, que só deixavam ao rebanho a apologia da escravatura, sagrado mandamento da ditadura! Aprenderas a contar. Foram-te ensinados os números e as suas equações, para saberes o teu próprio número, o código de barras que te distinguia no rebanho, e para saberes quantificar o peso de cada saca de produção, e quantas devias carregar, suportadas ao ombro do teu corpo esquelético, para o leito traseiro de cada viatura estacionada no porto de carregamento. Foi quando, num assombro de coragem, que não era mais que desespero, vislumbraste a tua evacuação daquele inferno rústico florestado, e aproveitaste a desatenção da vigília para despejar o conteúdo de uma saca naquela vala, onde jaziam os ossos e a podridão odorífica da decadência carnal, emanada para a atmosfera ainda fresca, pérfida e nauseabunda, depois de mais um faminto holocausto! Enfiaste o teu esguio esqueleto pélvico dentro da mesma saca que esvaziaras. Repuxaste o rebordo circular, centrando a sua abertura na palma da tua mão, e ataste-a com o cordel que havias desatado. Já te havias entretanto misturado na multidão 32


AMORTE

das sacas existentes, e a tua saca era mais uma na parafernália de serapilheira que compunha mais uma produtiva exportação.” Quando a última luz do dia, a última nesga de claridade, se evadira da planície carniceira, o rebanho de esqueletos serventuários regressava da lavoura. Perfilava-se para a recompensa alimentícia diária, uma qualquer mistela de ingredientes suspeitos, que era devorada com a sagacidade de uma vara, antes de amontoarem as ovelhinhas na pocilga, onde lutavam selvaticamente por um bocado de chão que lhes servisse de repouso, até aparecerem sobre o amanhecer os cadáveres dos vencidos, mordidos, debicados, desintegrados em pedaços de carne que alimentavam as hienas vencedoras! Era aí que dormiam desde que incorporavam a força e o intelecto mínimos requeridos para o labor, e era muito precoce esta transmutação! Os que, porventura de uma qualquer debilidade física ou mental, não cumpriam esta directiva, eram abatidos com pancadas, retalhados às postas, e servidos, racionalmente, como suculento manjar aos predadores canídeos, sempre tão esganiçados de fome e maltratados, para alimentar a sua raiva e sentido de obrigação na guarda do perímetro infernal! Esta classe não operária era a mártir favorita da exemplificação, e o isco que recompensava a fidelidade carnívora do melhor amigo do homem, devidamente desumanizado! Acontecia que a Criatura havia-se escapado ao seu faro infalível e visão periférica, quando o faroleiro canídeo que guardava o perímetro dos seus movimentos, fora tentado pelo instinto da gula necrófaga, a uma incursão do seu faro 33


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pelo fosso da degradação carnal, e resvalara para dentro deste, vertiginosamente, ficando embandeirado como um espeto no mastro afiado e penetrante de um osso pontiagudo, que havia sido esculpido pelas larvas carnívoras, predominantes naquele seu habitat paradisíaco! À hora crepuscular da contagem do rebanho a ausência da numeração existencial da Criatura assinalava o desaparecimento do seu corpo, ou antes, do seu esqueleto pedante, e logo soaram os bombos e as sirenes do inferno! Chamas sonoras que se propagavam numa escala incendiária pela

brutalidade

alarmante!

Despertador

furtivo

dos

demoníacos caçadores da dissidência, sempre tão ávidos da máscula expressão desportiva do seu instinto predador! Lançaram-se então numa insaciável perseguição do seu alvo desertor pela escuridão cortante do bosque, munidos de catanas que decapitavam a flora espinhosa… Iluminados pelo foco incandescente das lanternas, desbravavam caminho para a sua passagem armada… Canos metálicos, emparelhados numa uniformidade funcional, que sopravam a pólvora em uníssona combustão carpida num invólucro catapultado pela acção mecânica do gatilho! A Morte das crias, ou a sua estocada final, também sofria este processo, quando o seu desfalecimento era projectado em vagas de chumbo desferidas em animadas caçadas que lançavam as presas cambaleantes no desespero da sobrevivência florestal. Rituais assassinos que desfrutavam da invocação clemente dos cordeiros sacrificados no acto desportivo!

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A viatura que transportava a Criatura já ia longe no distanciamento do Inferno, galgara a terra batida e rolara já metros e quilómetros no alcatrão, quando a Criatura sentiu um abrandamento, seguido de uma paragem, que sustinha a convulsão do motor na errância da viagem, e uma voz feminina, límpida, cristalina como o canto de uma sereia, ecoou da cabine frontal até ao espaço de carga, purificando a cacofonia dos motores e da armação metálica conectados na mesma possessão! Era uma diva edénica, soltando harmónicos do paraíso na subtileza angelical de um singelo e doce - “obrigado”. Gratidão que teria o seu preço, oculto no pensamento promíscuo do condutor, imundo num intuito perverso de lascívia que tomaria a melódica Sereia como presa do seu cio animalesco e desenfreado, quando após nova arrancada e posterior paragem na berma solitária de um atalho obscuro, a induziu, por uso da violência, à passagem para a parte traseira da viatura, para onde projectou o seu corpo delicado, já enfermo de diversas agressões, que arrastado pelo ar num impulso repentino, caiu desamparado no monte de serapilheira ali existente! O animal entesado saltou-lhe para cima com o seu primitivo sentido de apropriação carnal, gerando gritos estridentes de Dor, horror e desespero, que estilhaçavam o embalo melódico nutrido pela Criatura em relação aquela voz nectarina, que se distorcia então numa agonizada e arrepiante acidez sobre a possessão do tacto felino, que rasgava as escamas da Sereia, desbravando as suas intimidades carnais! Uma ceifa machista que não chegou a desflorar a sua fêmea vitimada, pois a Criatura, de encanto dilacerado, sentiu-se 35


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intimamente familiarizada com aquele acto grotesco, que era uma sensação embrionária no seu subconsciente, e efervescia tenebrosa e revoltosa no seu âmago conceptual… ascendendo pelo canal da essência maléfica a cada poro espigado na sua pele transparente, onde se distinguia cada traço ósseo do seu esqueleto. Uma radiografia da magreza que revestia o seu corpo fraco, insustentável em si mesmo, atemorizado, mas que descobrira num impulso enfurecido, a força de uma heróica avalanche, desenterrada num golpe incisivo de uma pá elevada até ao céu, e na sua curva descendente cravada a pique na cabeça do monstro, aniquilando-o da sua vida sanguinária e da escoriação venenosa daquele acto hediondo! A Criatura evadira-se subtilmente da sua embalagem de serapilheira, desatando as margens superiores que o cordel prensava num nó interno e, sofrendo o impacto visual e sensitivo daquele sádico ritual sacrificador, sentira o chamamento assassino a percorrer-lhe as vértebras do desejo, para, num assombro instintivo de frieza predadora, apoderarse daquele objecto rudimentar e transformá-lo nas suas garras felinas, desferindo-as sobre a aura craniana que coroava a estimulação prazenteira da lascívia animalesca! A pá entranhou-se no cérebro do predador, e esventrou-lhe a mioleira, decapitando-lhe os neurónios e siderando-se na fissura carnal que abrira, como um machado cravado na cabeça da besta que fora ceifada da sua pérfida existência! A Morte pesava toneladas naquele corpo suado, peludo, gasto, imundo, e caído sobre a balança ferida que o suportava esmorecido, quando a Criatura, na extinção das suas forças, 36


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fez dos seus braços finos, ósseos, um guindaste possessivo que agarrou e elevou aquele peso morto de cima da sua sustentação feminina, e jogou a sua carne flácida, obesa substância, para fora da caixa traseira da viatura, depositando-a sobre a terra batida do trilho sinistro em que se encontravam! No instante fronteiriço sentiu o apagão dos seus sentidos, absortos no cume da debilidade, de onde resvalou subitamente o seu corpo, estendendo sobre a serapilheira o seu colapso incorpóreo!

Quando a Criatura voltou a si, à sua consciência ainda nebulosa, sentiu o gesto cíclico de uma mão que, suavemente, acariciava o seu rosto encovado. Eram carinhos desenhados no espaço abissal entre os ossos da sua cara… Era a ternura a massajar o tecido epidérmico da sua estrutura facial. A sua cabeça era aconchegada num berço corporal, que a sustinha no contacto caloroso de um ninho de veludo, uma almofada de algodão carnal. 37


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Sentiu então uma aurora fraternal a descerre-lhe na alma… A alma, pulsante de estranheza sensitiva, logo assomou ao seu olhar, obsessiva na procura da fonte brotante daquela essência pura, que a envolvia num elan sensorial tão paradisíaco, quanto antagónico da experimentação negra e trivial sentida até então! Sentia uma aragem de compaixão redentora, como bálsamo para a Dor. As suas pálpebras dilataram-se do seu encerramento, e os seus olhos encandearam-se no esplendor de um sorriso! Uma incandescência labial que desbravava os traços luzidios de um rosto amanhecido numa beleza arrebatadora, cintilando uma perfeição para além da sua palidez desfigurada pela monstruosidade de que fora resgatada! O olhar da Criatura escalou vidrado na devota contemplação... e foi quando se encontrou num momento do tempo, eternizado de brilho ofuscante, com a negróide arco-íris do olhar que sobre si se lançava! Eclodia o encontro de duas almas sombrias, negras, padecentes na estigmatização do corpo, que se envolveram no magnetismo em que ascendiam purificadas! Olharam-se como quem vê o Paraíso através do Inferno! Hipnotizaram-se mutuamente no pêndulo da alma sobre o olhar! Atingiram o céu no baloiço da íris! Brincaram no parque da infância… e desfloraram nele o êxtase e a paixão que eram ervas daninhas florescentes na escuridão! Correram ávidos dos vales e das montanhas! Desceram e ascenderam em campos eufóricos, onde desabrochava a adrenalina! Rebolavam pelas encostas verdejantes e mergulhavam em lagos ondulantes de excitação! Afogavam-se na bruma incandescente dos sentidos, 38


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enquanto se olhavam fixamente, e se viam para além dos seus corpos estáticos na matéria daquele momento! Passaram eras de sensações entre si, atravessando-lhes o ritmo cardíaco que disparava em vagas compulsivas no peito que parecia um vulcão claustrofóbico, e quando os seus lábios se magnetizaram no foco de um beijo profundo, a carne estremeceu dentro deles, desde o epicentro da alma! Caíam

estalactites

do

crepúsculo,

como

estacas

crucificantes da Dor, e penetravam nas fossas da alma desabada num pedestal sensitivo! Nasciam furacões interiores do sopro em que se aromatizava o beijo nenúfar! O Amor era uma Fénix a renascer das cinzas da Dor… a esvoaçar na cumplicidade daquelas duas almas siamesas… que se arranhavam com carícias ternurentas no leito do Cupido, adentro da madrugada… Amanheceu na planície exterior aos enamorados. Floresceram traços solarengos de um novo dia, que se exumava na linha do horizonte. A claridade subia-lhes pelo corpo na escalada da luz, quando deram as mãos e caminharam cambaleantes pelo trilho de terra batida, que era uma transversal de uma via alcatroada, por onde seguiram na berma da estrada, pedindo caridade aos velocípedes transeuntes que, apressados pelo rolo compressor de uma lida imparável, os repugnavam, indiferentes ao seu estado enfermo e mendigo. Ao longe surgiu então uma carroça, puxada pelas passadas de um cavalo que, troteando o alcatrão, ia comendo a distância que o separava das almas gémeas, encorpadas na sua debilidade física. À passagem por eles, um velho que, sentado na sua carroça 39


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de madeira apodrecida, tomava as rédeas da caminhada, induziu ao seu transportador uma paragem na sua marcha lenta. Olhou com piedade os enfermos apeados, e ofereceu-lhes boleia na traseira rolante, que carregava robustos fardos de palha, no qual se deitaram os débeis corpos das almas apaixonadas. Numa alçada, o Velho apressou o seu cavalo a retomar o destino de ambos numa passada mais apressada e, embalados pela incandescência angelical, cavalgaram pelo asfalto até uma outra transversal, que mais à frente os desviava na direcção da sua estalagem. A estalagem não era mais que uma barraca erguida em terreno íngreme, numa encosta que planava pequenas plantações hortícolas e alguns pomares. À chegada o Velho apeou-se, fez uma festa na cabeça do seu cavalo em sinal de agradecimento, soltou-o das suas amarras e, puxando um balde de água do poço, refrescou o bebedouro, onde o seu vigoroso animal matou a sede que o inundava. A Criatura e a Sereia apearam-se de seguida na tremedeira dos seus passos, que eram pilares de gelatina. O Velho amparava-os no seu ombro descaído, um de cada vez, de encontro à entrada da sua barraca. Uma vez no seu interior, vagou o espaço de palha e cobertores, onde se deitava, oferecendo-o à Sereia escamada em sangue seco. De seguida pegou em dois fardos de palha, desatou-lhes a amarração, e ajeitou o seu volume na forma de uma cama, que cobriu com uma manta de algodão esfarrapado, e aquele foi o lugar do repouso da Criatura. Depois o ancião compassivo trouxe um bacio com água limpa e fresca do poço. A água brilhava por entre as ervas que boiavam à sua superfície e, molhando um trapo no seu interior, 40


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levou-o ao encontro das feridas de ambos os estigmatizados, fazendo desaguar sobre elas, delicadamente, a frescura ervanária que era espremida daquela esponja desinfectante. Um a seguir ao outro sofreram este trato ao longo do corpo, enquanto uma chaleira apitava sobre o lume a fervura de outra água, que aqueceu outras ervas dentro de duas canecas, extraindo destas propriedades também curativas. Deu-lhes a beber o chá, e trouxe-lhes pedaços do pão duro que trocara por dois quilos de laranjas, amolecido em pedaços, dentro de um caldo de sopa de couve, que os seus hóspedes enfermos devoraram em colheradas famintas, até à infinidade de duas malgas repetidas. O cansaço, a Dor e a fraqueza, pesavam no corpo dos enamorados, quando o sono os abrasou sobre o olhar inflamado, e hibernaram a consciência num estado de profunda letargia... o Velho olhava-os com candura e murmurava-lhes por entre os lábios, na sua voz rouca e anciã - “Descansai meus filhos, o mundo aqui não vos fará mal.” - e eles adormeceram em nuvens altruístas no céu compassivo… A Criatura acordou sobre a cama do hospital. Ao seu lado um biombo isolava-a da matéria de uma sombra que sobre a pele deste se reflectia. A Criatura mirou primeiro o tecto branco e fixou-lhe a brancura exacerbada pela luz artificial. Num gesto entorpecido elevou a palma da sua mão, sombreando os seus olhos, e vislumbrou a sua carne. Desapegou os dedos no gesto subtil de um leque, e apalpou o seu corpo, desvendando a sua realidade física. Revirou a cabeça, e contemplou o negro 41


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que enformava através da superfície filtradora do biombo, uma silhueta deitada na sombra de uma cama. Essa imagem nevoenta intrigava-a. Era um espectro que magnetizava as pilhas do seu coração polarizado numa sensação platónica! Desfez-se das agulhas que se lhe entranhavam na pele e da máscara que a oxigenava e, inalando a sua primeira inspiração independente, descobriu-se dos lençóis, arrastando o cobertor e a manta sobre eles, e fez o primeiro movimento da sua perna, alçando-a do poiso e pousando a palma dos seus pés no chão. O corpo da Criatura cambaleava na sua estrutura vertical quando ela ensaiou o seu primeiro passo, apoiando-se na parede que a levava ao encontro daquela tela misteriosa… Pé ante pé assomou a sua mão sobre a possessão do espaço que a vendava à descoberta, e quando se apoderou do primeiro contacto com o biombo, projectou-o num sentido desviante. À sua frente, um corpo encoberto debaixo dos lençóis, do cobertor e da manta… Uma imagem despida que não era reveladora de qualquer identidade, pois sobre a cabeça desse corpo, estava um pano de linho que lhe tapava o rosto. A Criatura aproximou-se do alcance da sua cegueira, dobrou as costas na elevação do seu braço trémulo, levou a mão nervosa ao encontro da revelação palpável, e ensaiou a tremedeira dos dedos pelo toque na venda de linho… Suavemente, removeu-a da aura que ocultava, e sentiu um assombro cardíaco que lhe explodiu no peito, paralisando-lhe os sentidos na visão que desvendara! Era o rosto pálido da sua amada Sereia! Eram os traços lívidos da sua amada Sereia! Era o olhar negro da sua amada 42


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Sereia, sobreposto na escuridão das suas pálpebras! Eram os lábios roxos, quase negros, da sua amada Sereia, que lhe encerravam o sorriso numa expressão sisuda, embora sempre angelical! Eram as narinas amorfas da sua amada Sereia, que já só inspirava o fôlego da morte! Era o cabelo negro da sua amada Sereia, desfiado sobre a almofada branca que acamava o seu desfalecimento! Era o Negro a cobrir tudo e a invadir, flamejante, a Criatura, a qual, pulsando espasmos interiores, sentiu pela última vez a sua amada Sereia no epitáfio de um beijo fogoso que lhe tocava a boca gélida, e sucumbiu instantaneamente sobre o corpo defunto dela, mergulhando quem sabe na eternidade das almas em busca da sua efémera Amada…

Quando foram encontrados mortos, esventraram-lhes o corpo, pilharam-lhes os órgãos que se aproveitavam para outras 43


Emanuel Breu

vidas carentes, e cremaram os restos na caldeira da efemeridade, que nĂŁo existia na terra quem verte-se uma lĂĄgrima pelos seus cadĂĄveres, e justificasse por isso o arrendamento de um buraco no jardim das pedras!

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