BICHOS À SOLTA
Luís Souta Lionor Dupic e Constança Souta
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«Todos os animais têm direito à atenção, aos cuidados e à protecção do homem.» (Declaração Universal dos Direitos dos Animais)
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BICHOS À SOLTA 25 postais escritos por um pai à sua filha
Juvenil
«Pé na terra, escama na água e asa no céu, cada ser no mundo seu.» (provérbio Brasileiro do Nordeste)
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«e cobrem o ar gafanhotos mosquitos e moscos pavões e patolas libelinhas zangões borboletas tabões abelhinhas gralhas galinholas e no chão abertos os gorgomilos há bichas e crocodilos muito abundantes de beiça larga e papos grandes e na tapada andam leões e leopardos entre ruminantes mirabolantes longos focinhos de “alifantes”» 2
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(Fausto, “Velas e navios sobre as águas” in Em busca das montanhas azuis, 2011)
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Para a apaixonada dos mares e amiga dos animais, a C., naturalmente; destinatária destes postais ilustrados que lhe fui enviando, nas férias, durante 15 anos.
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Edição: edições Vírgula® (Chancela do Sítio do Livro) Título BICHOS À SOLTA Autores LUÍS SOUTA (Texto) LIONOR DUPIC e CONSTANÇA SOUTA (Ilustrações) Prefácio PAULO BORGES Capa LIONOR DUPIC Revisão ANA LAURA METELO ARAÚJO Paginação ANA BELA AGUIZO 1.ª Edição, Dezembro 2016 ISBN: 978-989-8821-36-2 Depósito Legal n.º 417815/16 Publicação e Comercialização
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O autor não segue o AO90; redige segundo a antiga (e identitária) ortografia.
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ÍNDICE Palavra Prévia · 7 Prefácio de Paulo Borges · 11 I. ÁGUA Crianças e animais · 16 Golfinhos em perigo · 18 Felicitações dos roazes-corvineiros · 20 Golfinhos na Vigia · 22 Fim de férias · 24 Nemo não nos contratou · 26 Dança dos golfinhos · 28 Golfinhos dos Açores · 30 Fi, a virgem do Sado · 32 Namoro na Ilha Dourada · 34 Baleia-azul em risco · 36 Rã atrevida · 38 II. TERRA Cavalos no picadeiro · 42 Cavalo em altos voos · 44 Hamsters roedores · 46 Esquilos nunca vistos · 48 Corridas à beira-mar de um cão esgrouviado · 50 Cães na neve · 52 Gato à porta · 54
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III. AR Flamingos, a elegância bizarra · 58 Cegonhas-brancas do Sado · 60 IV. POST SCRIPTUM As desejadas noites da discoteca · 64 Idade dos entusiasmos irreflectidos · 66 Jovem autónoma e rebelde · 68 Entrada na maioridade · 70 Anexo Declaração Universal dos Direitos dos Animais · 74
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«Vamos falar de animais E de como eles são Do periquito Do gato e do cão… E outros mais Também virão Talvez uma girafa, Um macaco ou um leão» 6
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(José Barata Moura, “Fungagá da Bicharada”, 1975)
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PALAVRA PRÉVIA
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«Qualquer pessoa que leia uma carta que não lhe foi endereçada torna-se o seu destinatário.» 8
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(Gérard Lheritier, director do Museu das Cartas e Manuscritos de Paris, El Mundo, 2014)
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Desde que a minha filha C. aprendeu a ler que lhe escrevo. Os nossos afastamentos, em tempo de férias, eram mitigados por umas “estórias” sintéticas (tinham de caber num simples postal ilustrado) que lhe escrevinhava. Durante 15 anos cultivei a prática do envio de postais (hoje quase em desuso, face às novas tecnologias de comunicação – sms, e-mail, redes sociais,…). A regularidade dessa escrita prolongou-se da escola primária até à sua maioridade, quando acabou a licenciatura. Ela adorava animais, como a generalidade das crianças, e foi esse o elo de que me servi para nos mantermos unidos nas separações pontuais que o calendário escolar impunha. Mal chegava aos burgos de destino, nas minhas viagens de trabalho e de ócio, procurava nas papelarias bilhetes-postais onde aparecessem os animais preferidos da minha filha; depois, “falava” com ela socorrendo-me da “palavra” de cada um daqueles dez simpáticos bichos de estimação, que ela passava o tempo a desenhar nos seus cadernos – golfinhos, baleias, rãs, cavalos, hamsters, esquilos, cães, gatos, flamingos, cegonhas. «No tempo em que os animais falavam…» assim começavam muitas das fábulas que ouvi quando miúdo. Então, como agora, eram animais pensantes que nos davam belas lições de vida. Retomei essa linha e pu-los a “escrever”… postais. O tema central desses despretensiosos escritos girava à volta de um dos objectivos fulcrais de “luta social” da contemporaneidade – a conservação da biodiversidade, o equilíbrio ambiental e a relação dos homens com os animais.
cívico. Homens e mulheres de diferentes países, crenças e religiões unem-se num movimento global de acção em torno desse nobre desígnio que é a luta pela defesa do Ambiente. Espera-se dos jovens uma atitude menos centrada no nacionalismo e mais na linha da cidadania-mundo. Um eixo de acção social que passa muito pela defesa e preservação do planeta Terra. Esta, sim, é uma causa passível de unir a Humanidade. Caso contrário, todos pereceremos com a implosão do planeta azul. Saibamos então evitar essa catástrofe! «Terra! Esta é a terra que Deus nos deu… … e no entanto, quem poderá dizer que um palmo é seu?»2 Quando, aos vinte e dois anos, a C. resolveu emigrar para os Estados Unidos da América (Oregon) – a tal emancipação que sabemos que ocorrerá, mais tarde ou mais cedo, mas que, no íntimo, nunca desejamos –, nas arrumações subsequentes do seu caótico quarto, reencontrei todos aqueles meus postais. E também os desenh os que ela foi fazendo na pré-escola e no 1.º ciclo do ensino básico. Depois, aquele “dom” esvaiu-se… E ocorrem-me sempre as palavras de Pablo Picasso: «Toda a criança é um artista. O problema é como manter-se artista depois de crescido». Pedi então à Lionor que ilustrasse este livro a partir dos desenhos infantis da sua irmã. E ela aceitou :)
«vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar»1 um hino de outros tempos e de outras causas, mas que hoje ganha novo sentido 1
Título de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (1968), popularizado pelo cantor Francisco Fanhais.
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Tomaz Ribas “Epopeia” in Monotonia, 1942: 20.
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PREFÁCIO Paulo Borges
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«Ensinava-lhe a terra e a água, e o fogo e o ar; os animais, as plantas e as rochas; o Sol, a Lua e as estrelas, e como todas essas coisas se relacionam umas com as outras, mantendo o equilíbrio do Universo, como as malhas de uma rede, em que cada nó segura quatro fios que estão ligados a outros quatro nós, são o que forma a própria rede.» 12
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(Ricardo Alberty, Relógio de Sol, 1970: 137)
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É uma alegria constatar que ainda há quem escreva com papel e tinta a alguém, nesta era de comunicação cada vez mais electrónica e virtual, necessariamente distante dos processos mais artesanais e físicos que também são muitas vezes mais incarnados, espirituais e afectivos. E uma dupla alegria verificarmos que foi um pai que escreveu a uma filha postais ilustrados, durante 15 anos, ao longo da sua infância e juventude, dando voz aos animais de que ela mais gostava. Com estes postais de Luís Souta, acompanhados pelas muito vivas e interessantes ilustrações das suas filhas Lionor Dupic e Constança Souta, a própria destinatária, regressamos – como bem sabe o autor – a uma das mais poderosas e intemporais intuições da humanidade, a de que os animais falam e comunicam com os humanos. Os mitos, tradições e lendas das mais diversas culturas falam-nos de um tempo em que as diferentes espécies de seres comungavam e comunicavam entre si, não estando ainda separadas e fechadas pelas barreiras do medo, da agressão, da estranheza e da indiferença. Essas narrativas evocam uma harmonia original do mundo e da criação que não deixa de suscitar uma irresistível saudade, por mais que o que nos dizem pareça hoje estranho a muitos dos nossos contemporâneos, filhos de uma civilização que se afasta cada vez mais da natureza e do convívio com as vozes e os afectos dos seres não-humanos. Perdendo a capacidade de sentir e dizer, com Antero de Quental, no soneto “Redenção”, «E eu compreendo a vossa língua estranha, / Vozes do mar, da selva, da montanha... / Almas irmãs da minha, almas cativas!», o ciclo antropocêntrico da civilização hoje globalizada encerra-se nas inquietações, problemas, discursos e solilóquios de uma humanidade desenraizada da Terra e da Vida exuberante que cada vez mais destrói, se bem que dela integralmente dependa. E isto é um trágico
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paradoxo, o de uma humanidade enclausurada na inconsciência e nos apetites, de dominação, exploração, usufruto e lucro, que a levam a cada vez mais lesar as raízes, o tronco, os ramos, as folhas, as flores e os frutos da grande árvore da Vida à qual pertence com as demais espécies. O trágico paradoxo de uma humanidade que não vê que ao contaminar a terra, as águas e os ares, ao esgotar os recursos naturais perseguindo a quimera do crescimento económico ilimitado e ao destruir a biodiversidade está a destruir as condições da sua própria sobrevivência. É por todos estes motivos, infelizmente sempre mais actuais, que a imaginação e a sensibilidade de Luís Souta, que reactualiza o tempo em que os animais falavam – não porque tenham deixado de falar, mas porque deixámos de os escutar e compreender –, e a mensagem deste livro se revelam cada vez mais importantes. Na sua singeleza, os postais enviados por Luís Souta a sua filha Constança constituem uma profunda lição de educação ambiental baseada nesse exercício ético fundamental que é o de nos colocarmos no lugar do outro, neste caso o outro não-humano, visto e sentido não como distante e alheio, mas como próximo e íntimo, partilhando os mesmos sentimentos e emoções que nós. Ou seja, visto e sentido como realmente é, pois hoje a ciência comprova, confirmando as intuições das tradições mais remotas da humanidade, que os animais não-humanos possuem uma vida mental e emocional complexa e por vezes sofisticada, com evidente capacidade de sentir a dor e o prazer físicos e psicológicos, o bem-estar e o mal-estar, o correr bem ou o correr mal da vida, tal como nós, os animais humanos. Bichos à Solta, de Luís Souta, é assim uma obra que se inscreve no coração do actual despertar da consciência humana para a proximidade
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de todas as formas da vida animal, levando-nos a repensar e ampliar, como temos defendido, a categoria bíblica de próximo, que não se reduz antropocentricamente ao mundo humano sempre que a nossa consciência intelectual e a nossa empatia amorosa e compassiva nos abrir ao reconhecimento de como os nossos companheiros não-humanos partilham connosco as experiências fundamentais da vida, em graus e modalidades diversas e por isso mesmo incomparáveis. A possibilidade de sobrevivência da espécie humana e de superação positiva da mais grave crise civilizacional de sempre dependem hoje de uma mutação radical da consciência e da experiência humana no que respeita ao modo de se relacionar com os demais seres vivos e com a Terra e a biosfera como um todo. Nesse sentido, obras com o espírito de Bichos à Solta são essenciais, pois delas depende que os bichos que também somos soltem os demais bichos da violência a que os sujeitam, soltando-se a si mesmos das amarras da ignorância, da avidez e da agressividade que ainda tanto nos dominam.
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I ÁGUA
«Pois se a gente até se afoga grita a boga Por o homem ter estragado o ambiente Dá cabo da criação esse pimpão E isso não é decente» (Amália Rodrigues/Alberto Janes, “Caldeirada (Poluição)” in Fado da Saudade, 1977)
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1. Crianças e animais Setúbal - Tróia, 01 de Junho (Dia Mundial da Criança) Constança, prezada amiga Hoje é o teu dia e o de todas as crianças do mundo. Os humanos resolveram escrever um texto, há já alguns anos (tinha o teu pai quase a tua idade), com bonitas ideias e louváveis propósitos para proteger as crianças de alguns males que existem nas vossas sociedades. Esse belo texto chama-se «Declaração dos Direitos da Criança» e é para lembrar essas sábias ideias que todos os anos se comemora o «Dia Mundial da Criança». Neste postal, com cheiro às férias que se aproximam, tens o mar e uns golfinhos (ainda nossos familiares), de que tanto gostas. Estes dois meninos têm muita sorte pois podem tocar-lhes, fazer-lhes festas, brincar com eles… Nas tuas aventuras marítimas talvez te cruzes connosco, e, como somos uns golfinhos simpáticos, pode ser que te levemos numa corrida louca, por cima das ondas, em piruetas e malabarismos que só nós conseguimos fazer. Quem sabe?…
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Mas esquiva-te dos barcos e motos de água que andam sempre às voltas, para a frente e para trás, quais carrinhos de feira. Não conseguimos entender o que procuram. Que olhemos para eles? Mas estão tão longe que nem vemos quem lá vai dentro! Aceleras do mundo aquático, desejosos de velocidade e risco (esquecem que não estão num aquádromo). Ao contrário dos barcos a remo, com quem convivemos muito bem, e dos ferries cujos horários e rotas conhecemos
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bem, podendo assim evitá-los, estes aceleras são barulhentos, infestam a costa no Verão, de manhã e de tarde, andam por percursos aleatórios… e não há como nos desviarmos deles. O teu avô, algo dado ao pessimismo, diz que os nossos vindouros só sobreviverão em reservas naturais ou em parques de entretenimento e congéneres. No zoomarine estamos destinados a ser bichos de feira – bem tratados, devidamente alimentados, e com uma esperança média de vida para lá dos 50 anos –, porém longe do nosso habitat que progressivamente se nos vai tornando hostil. Agora há por aí um empreendedorismo (que palavrão este!) empresarial, como o da “Vertigem Azul”, a “Ludyesfera” e similares, que deram em ganhar a vida levando uns mirones de barco a motor com a promessa, nem sempre possível de cumprir, de nos observarem. É vê-los equipados de maquinaria audiovisual vária e binóculos, à nossa cata. Uns vão a Fátima, outros ao Estádio da Luz, estes, os da dita ecologia, vão «em circuito organizado» observar os golfinhos… no seu meio natural. Nem estes nos deixam em paz! Três Golfinhos que muito te estimam
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2. Golfinhos em perigo Setúbal – Praia da Figueirinha, 20 de Junho Constança, minha linda Nós, os golfinhos, somos muito unidos. Andamos sempre em grupo. Assim, nunca nos falta com quem brincar. Com o bom tempo, o mar tranquilo e límpido, adoramos fazer corridas! O meu irmão mais velho, o Gol, é, de nós os três, o mais veloz. Invejo a agilidade com que mergulha, a elasticidade com que salta e a rapidez com que curva! Tento, o mais possível, segui-lo de perto, para melhor observar os seus movimentos e aprender com ele. Mas não é fácil andar na sua “roda” pois a minha irmã Fi, que é quase tão rápida quanto eu, não descola e só atrapalha. Nas nossas correrias, o 1.º lugar está, de antemão, assegurado. Resta-nos, a mim (ah, já é tempo de me apresentar, sou o Nhô) e à Fi a disputa renhida pelo 2.º lugar.
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Gol, num dos seus fantásticos saltos, veio à superfície, ela avisou-o do perigo. Logo em seguida, ouvimos o forte som que meu irmão lançou para nos informar dos riscos que corríamos. Era preciso colarmo-nos a ele. Numa manobra brusca, invertemos a direcção. Mesmo a tempo! Desviámo-nos daquelas redes, de malha fina, que quase nos iam capturando e procurámos, depressa, outras paragens, mais sossegadas, no Estuário do Sado. Não ganhámos para o susto! Beijos afectuosos do golfi Nhô
Às vezes, embrenhamo-nos tanto nestas andanças que nem nos apercebemos dos perigos. Foi o que aconteceu num destes dias quentes de Estio quando mergulhámos mais fundo e não demos conta do movimento à tona de água. Essa pomba branca, que o menino de Picasso tem nas mãos, é que nos salvou. Acredita! Ela, que sulca os céus e tudo vê lá de cima num grande raio de acção, notou que íamos de encontro aos barcos de pesca artesanal que andavam na captura da sardinha e que poderíamos ser fatalmente apanhados nas suas redes. Num voo rápido, desceu até quase beijar as águas e quando o
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3. Felicitações dos roazes-corvineiros Estuário do Sado, 26 de Julho (Dia dos Avós) Constança, a nossa aliada Vimos todos dar-te os parabéns! As boas notícias (tal como as más) chegam hoje a todo lado, até ao Estuário do Sado, onde se acolhe a nossa pequena comunidade de quarenta roazes-corvineiros, única no país. Com que então 41 pontos, de 5’s e 4’s, levaram-te ao quadro de mérito do 6.º ano! Se queres ser zoóloga, tens que te preparar convenientemente, isto é, tens de ser boa estudante. Considera, pois, as notas deste ano lectivo como a tua fasquia de qualidade. Para o próximo, tens que ser capaz de fazer igual ou melhor (ter 5 a Ciências da Natureza, por exemplo). Descer é que não! Faz como nós e procura sempre dar saltos mais altos e arrojados.
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Como te interessas por animais, e o Tursiops truncatus3 está entre os que mais admiras, vimos partilhar contigo algumas das nossas apreensões. Depois de os nossos antepassados terem desaparecido do Estuário do Tejo, são vários os perigos que nos rodeiam também aqui no Sado: estamos envelhecidos e as nossas crias não sobrevivem. É com certa aflição que antevemos o futuro. Há razões que explicam esta situação de fragilidade em que nos encontramos: as descargas poluentes lançadas nas águas, o intenso tráfego marítimo e até a curiosidade daqueles que, querendo observar de tão perto, põem em
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risco a nossa própria integridade física. No Verão, então, tudo se complica ainda mais. Mas, certamente, haverá também outras razões que os cientistas ainda desconhecem. Por conseguinte, é importante que venhas a ser aquilo que desejas: uma zoóloga preocupada com o bem-estar dos animais, sabedora dos nossos hábitos, das nossas necessidades e daquilo que constitui perigo para a nossa sobrevivência. Não queremos ser uma espécie em extinção, remetida ao Aquário Vasco da Gama ou ao Oceanário de Lisboa! O mundo sem nós ficaria bem mais pobre e triste, não achas? Por isso, confiamos em ti. Depositamos muita esperança no teu estudo, saber e empenho. Agora temos de regressar. Resta-nos desejar-te umas boas férias grandes. Aproveita-as bem. E, como já sabes nadar melhor – sim, ouvimos falar de umas medalhas que ganhaste em competição no teu colégio –, votos de bons mergulhos em águas límpidas. Saudações ambientalistas dos Roazes amigos PS: E não te esqueças de telefonar aos teus avós, hoje é o dia deles. 3 Os cientistas naturais dão nomes em latim a todos os animais e plantas. Eu sei que não aprendes tal língua (dita morta, imagina!).
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4. Golfinhos na Vigia
Constança querida
Sabes, não foi só a gulodice (provar os ouriços que tanto nos gabaram) que nos trouxe até à zona saloia; tínhamos igualmente curiosidade em averiguar se era mesmo na «Ericeira onde o mar é mais azul». Os jagozes (assim se designam os naturais desta vila, cada vez menos piscatória) fazem da beleza e da qualidade da água o seu slogan turístico.
Calculo que nesse dia acordaste cedo. Abriste a janela do quarto e a brisa fresca da manhã deu-te os bons-dias. A névoa começava a levantar. O dia prometia sol quente. Foste acordar a tua irmã, ainda presa nos sonhos doces. Desceste a escada e saíste porta fora a chamar a vizinha Carina. «Às 10 horas na minha casa, não te esqueças!»
Viver no mar é muito agradável; contudo, para sermos felizes, precisamos de sossego, silêncio e águas transparentes. Por isso é que simpatizamos mais com aqueles que andam de barco a remos, à vela ou então os que se divertem, nos tempos livres, a praticar bodyboard, surf (o Nhô exige passagem obrigatória por Ribeira d’Ilhas), windsurf ou paddle boarding (a Fi faz questão em dar um pulo até à praia de São Lourenço).
Espanha – Granada, 08 de Agosto
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desovar em águas mais calmas) e, claro, os roazes subiam o rio Tejo à cata delas.
De mochilas atafulhadas, vocês partiram para a praia. Num gargalhar de tropelias, atravessaram os campos, a corta-mato, com o Pinóquio na vossa peugada (mais do que o farejar constante, era o peso em excesso que o atrasava); e ao descer as arribas, lá tiveste que pegar nele ao colo. Chegaram finalmente ao areal deserto da Vigia. O Pinóquio enroscou-se de imediato e, naquela areia quente, preparou-se para uma sesta que se previa longa. Vocês livraram-se das roupas num abrir e fechar de olhos e correram ávidas para o mar. Mergulharam, naquelas águas frias, uma, duas, três,… vezes sem conta. De repente, mesmo ali à vossa frente, três belos roazes4 saltavam na onda. «Que lindos! Olha, são os meus amigos, o Gol, a Fi e o Nhô!», dizias à Carina que nos acenava numa excitação incontida. A vossa surpresa justificava-se, pois é tão raro sairmos do Estuário. Só que desta vez viemos atrás de lulas, chocos e corvinas, o nosso petisco favorito. Daí, chamarem-nos roazes-corvineiros. Imagina: o teu pai, quando miúdo, chegou a ver familiares nossos perto do mouchão da Póvoa, o que se explica porque aí se encontravam corvinas (elas gostam de
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Mas o problema, neste tempo de Verão que se avizinha, são os jet skis e os barcos de recreio para wakeboard. Não param um segundo. Os motores barulhentos ensurdecem-nos, desorientando-nos e, muitas vezes, ferindo-nos. E deixam na água um cheiro a gasóleo. De repente, lembrei-me daquela canção que foi, em Portugal, uma das primeiras a que podemos chamar de educação ambiental. Toma-a como um aviso, Constança: «se tu fores à praia / se tu fores ver o mar / cuidado não te descaia / o teu pé de catraia / em óleo sujo à beira-mar».5 Temos que defender a qualidade do mar. E para isso precisamos muito da vossa ajuda. Podemos contar com a vossa colaboração? Sim? Que bom, temos mais uns amigos-eco. Adeus, boas férias… e banhos porreiros! Beijos ecológicos do Gol finho, em trânsito 4 Também conhecidos por golfinhos-nariz-de-garrafa. 5
De um cantautor, colega do teu pai dos tempos de universidade, que ele muito admira. Fausto (1977) “Rosalinda” in Madrugada dos Trapeiros.
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5. Fim de férias Espanha – Ilha de Fuerteventura, 07 de Setembro Constança, afectuosa amiga
«O que é bom nunca é demais.» Ditado bem apropriado às férias, não é? Mas, infelizmente, elas estão a chegar ao fim. Sei que detestas a campanha do «regresso às aulas», lançada pelas grandes superfícies, quando ainda decorre o mês de Agosto! Aqueles anúncios lembram-te a inevitabilidade do término do melhor período do ano, o Verão. As aulas começaram hoje. Os intervalos foram curtos para conversar com as amigas; e tantas eram as novidades que todas falavam ao mesmo tempo! Esse agradável reencontro, todavia, não te fez esquecer os tempos despreocupados da Cortesia. Vais ter saudades da praia, dos bons mergulhos na água límpida e fria da Vigia e, principalmente, vai-te custar separares-te de nós, os teus amigos golfinhos.
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Mas olha, neste teu indesejado regresso ao Pai do Vento, eu, o rápido Gol, a minha esbelta irmã Fi e o meu irrequieto irmão Nhô vamos fazer-te companhia… no tecto do teu quarto! É verdade, um candeeiro novo com o desenho de nós os três irá ajudar-te a entrar, todas as noites, no mundo dos sonhos azuis (quem disse que os sonhos eram cor-de-rosa é porque nunca mergulhou fundo no oceano). Quando estiveres deitada, naqueles momentos em que o João Pestana, de mansinho, se prepara para te levar na companhia do Little Nemo
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para o Reino-dos-Sonhos6, podes ficar a olhar-nos, na certeza de que as lembranças do mar azul e das nossas tropelias te aconchegarão o sono nas noites longas de inverno. E quem é, afinal, esse menino, companheiro de brincadeiras aquáticas? Temos mouro na costa? Não te esqueças: «namoros de Verão enterram-se na areia». Bom ano escolar! Momices dos amigos Gol Fi Nhô
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Winsor McCay, Little Nemo in Slumberland. Lisboa: Livros Horizonte, 1990; volume I (1905-1907), volume II (1907-1908).
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6. Nemo não nos contratou Oceano Atlântico, 08 de Dezembro Constança, minha bela amiga Estamos desolados! No filme À Procura de Nemo há peixes, moluscos e crustáceos de todas as espécies, cores e feitios. Mas os golfinhos foram esquecidos! Como se explica esta exclusão? Nós, que tão conhecidos somos pela nossa alegria, afabilidade e gosto de viver! Espectáculo é connosco. Quase dispensaríamos a direcção de actores. Sei que adoraste o filme, mas confessa, não sentiste a nossa falta? O Gol seria, sem dúvida, um actor exímio nos saltos e piruetas. Eu já me contentava com o papel de duplo, nas cenas mais arriscadas e perigosas. Só a Fi é que não se importou muito. Sabes, ela é pouco dada a fitas. Gosta mais de outras artes, dispensa a 7.ª. O seu sonho, só a mim confessado, é ir para um zoo animar a criançada barulhenta que enche as bancadas, naquelas tardes cálidas de Verão. Pois, prefere os aplausos em directo. Como ela diz, o palco está-lhe na massa do sangue; será o seu segundo mundo, depois das águas do Sado, naturalmente. A propósito, sabes que por lá o ambiente continua turvo dos detritos e pesado de metais. As fábricas não fecham, não se reciclam nem se auto-controlam. Antes persistem na sujeira. A SECIL (do cimento) e a Central Eléctrica não dão sinais de arrepiar caminho, no respeito pela Natureza.
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Nesta altura de pré-Inverno com as águas frias (bbrrrrr), o movimento de barcos é mais reduzido e, portanto, maior o sossego. Mas acredita, esta quase quietude entristece-me. Faltam-me as pessoas por perto. Por isso é que vinha mesmo a calhar, nesta época baixa,
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uma certa agitação extra. Entrar num filme era cá uma gozação! Que inveja eu tive das tartarugas surfistas! Aquele Casco era mesmo muito divertido e o Bruce, vegetariano, ou até o Angler, das negras profundidades, tinham o seu quê de curioso. Bem nos podiam ter contratado, por exemplo, como meio de transporte rápido e seguro para levar o pai de Nemo, na sua persistente e infatigável busca, à grande cidade australiana de Sydney. Estou convencido que nos faltou um agente para esta missão empresarial. O Gol é que tem razão: temos de nos profissionalizar. Neste mundo de forte concorrência (então nos oceanos comemo-nos, literalmente, uns aos outros), não há lugar para amadorismos. Tudo isto explica a nossa pressa, desculpa. Vamos a caminho de Hollywood, na esperança de um Nemo 2, ou então, pode ser que a concorrente, DreamWorks, avance também com um filme animado, nas profundezas dos mares. Continuam a ser espaços ainda muito desconhecidos. Eu e o meu irmão bem os poderíamos ajudar nessa aventura aquática. Já que o nosso Oceanário, do Parque das Nações, inspirou a Walt Dysney/Pixar, talvez o Estuário do Sado dê os motivos para um outro argumento. See you later… Adeus! Beijos ternurentos do golfi Nhô, your special friend
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7. Dança dos golfinhos Cabo Verde – Ilha da Boa Vista, 29 de Abril (Dia Internacional da Dança) Querida Constança Agora que já sabes tocar flauta transversal (a entrada na Banda comprova-o) começaste a “dar música” aos golfinhos, pondo-os a dançar! Podes contar com a nossa cumplicidade, pois somos danados para a brincadeira; festas e diversão são connosco, desde que aí possamos dar a nossa “barbatana-de-dança”. Tens que convencer o teu amigo a deixar a bola por uns tempos e a partilhar também mais esta aventura aquática (ou será antes um novo hobby?). A propósito, já te deste conta de que ainda não nos confidenciaste o nome desse teu companheiro? Percebemos que não és dada a alaridos nem a demonstrações, antes cultivas a discrição social. Assim, quando achares oportuno, apresentá-lo-ás. Mas mesmo sem o conhecermos, já o temos em boa conta, só porque te acompanha na concretização dos teus projectos. Mas adiante…
e a dança de garagem. Apesar do nosso porte nos aproximar mais dos salões do que das discotecas (o “smoking” muito contribui para isso), preferimos o espectáculo circense. E neste país, nos dias festivos de Carnaval, abunda quem gosta de ser folião… à brasileira «Estava à toa na vida / o meu amor me chamou / para ver a Banda passar/ cantando coisas de amor»7. Beijos de festa dos inseparáveis irmãos Gol Fi Nhô
Soubemos que instalaste a tua oficina de dança no Estuário do Sado. Os frutos estão à vista: um corpo de baile, na perfeição! Muitas horas de ensaio, muita disciplina, muito esforço, para além do abdicar de tantas tentadoras solicitações, não é verdade? Temos-te por voluntariosa, obstinada e exigente.
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Resta-nos uma dúvida: afinal, qual o género musical por que optaste? Na tua idade, anda-se arredio do clássico (vai longe a fugaz passagem, obrigatória, pelo ballett, na Pré); agora, cultiva-se o pop-rock
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Chico Buarque de Hollanda (1966) A Banda.
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