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Pina da Costa
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CÃO, simplesmente Preview
1ª Edição
Agosto 2024
Autor: Pina da Costa
Paginação e design: João Diogo Correia
Reservado todos os direitos.
Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do autor.
Os espinhos da vida fizeram‑me reservado e introspetivo. Despraz‑me falar de mim e suplico que me deixem imperturbado no meu malfadado nicho de mundo. Sempre vivi com o rabo entre as pernas, e é assim que gosto de enfrentar esta amaldiçoada vida de cão.
O Pata Grande, porém, tem insistido para que lhe historie os dias da minha triste existência por mais que lhe assevere não terem mérito de história. Acha‑me muito ensimesmado, sempre refugiado no meu canto, parecendo tudo e a todos temer.
E não é para menos: desde que cheguei ao albergue ‒ ou será antes presídio? ‒, já duas luas bem passadas, são só ameaços, mordidelas, rixas e os momentos em que nos servem uns farelos com a pretensão de comida são autênticas batalhas campais.
Por razão que desconheço, talvez pelo meu frequente cainhar, Pata Grande reparou em mim poucos dias após a minha chegada, e arvorou‑se em meu protetor. A sua corpulência e as marcas de velhas contendas impõem respeito cabonde à maioria dos encarcerados. Sempre que noto turbulência perigosa que ameaça chegar até mim, diligencio a sua proximidade; - 3 -
o que acontece constantemente.
Grande parte de nós é pacata, sossegada e pacífica, mas não faltam arruaceiros, quezilentos, aqueles que desfrutam toda e qualquer porfia, e não perdem o ensejo de provocar disputas pelo menor dos motivos ou por motivo nenhum.
Não admira: quase duas centenas de bichos confinados a um pequeno cerrado, desabrigado dos frios ventos, da chuva batida ou da torreira do sol, têm no fácil confronto escape para as suas frustrações.
Se é o calor que impera, a magra sombra de escassas e ralas ramagens de umas enfezadas oliveiras é disputada como madeiro boiando no meio de náufragos. Por mim, já nem tento encontrar aí um palmo de penumbra. Quando o sol desaba pesadamente sobre o terrado, abrigo‑me debaixo destas finas chapas, embora ressumbrem calor como assador em brasa, daqueles que os humanos usam para amaciar e aromatizar a carne.
Se é a chuva a fustigar‑nos, então sim, sem lugar seguro debaixo deste exíguo cabanal de que os cães mais possantes logo se apropriam, apenas me resta procurar incipiente abrigo junto a um dos troncos de árvore, acocorado sobre mim mesmo, vendo a chuva cair e resvalar pela minha churra e untuosa pelagem tal como desliza pelas ervas dos campos em grossas e compassadas gotas.
O único exercício são as loucas correrias de uns atrás dos outros, ora atacando ora fugindo, invariavelmente sinfonizadas por uma atroada de latidos e ganidos.
Sim, o barulho é outro penadouro que nos é imposto; os insuportáveis ladrares, irritados e histéricos, alastram pertinazmente, com e sem razão, a toda a matilha. Já os momentos de acalmia são coisa rara neste rincão de desterro.
Sem espaço, sem ação, sem distrações, a exasperação e o nervosismo são a condição normal dos residentes, frustrações geralmente descarregadas no primeiro que passa por perto ou naquele que ao nosso lado abocanha a insípida comida.
A ração, também ela, aí está para nos mortificar: sempre igual, sem graça e desenxabida, sendo a entranhada fome o único condimento que nos faz correr para o gamelo.
Como disse, não gosto de falar de mim; também não é fácil falar de mim. Veja‑se logo a primeira pergunta do Pata Grande: “qual o teu nome?”
Sei lá qual é o meu nome! Já fui Cachorro, Farrusco, Nicas, Rafeiro, Moino, Vadio, Malditocão, Raispartocão…, mas o mais das vezes sou simplesmente Cão; desde pequeno me avocam, por tudo e por nada, de Cão, mesmo quando, temporariamente, me outorgavam outro nome.
Assim, “Pata Grande, trata-me por Cão, simplesmente”.
Digo-lhe. Afinal, cão como os outros. Pois, bem vistas as coisas, nasci como cão, tive uma vida de cão e aqui estou à espera de uma morte de cão.
A falar verdade, já por três vezes tive uma triste e dolorosa morte de cão. Morte incompetente! E se por aqui, no presente, espero sentença decisiva é porque a perversa natureza ainda me quer ofertar, uma quarta vez, nova passagem pela angústia e pelo suplício do finamento da vida.
Muitos dos meus companheiros de prisão gabam‑se de terem sido tratados pelos humanos como iguais, e só um infeliz adrego ou lamentável esquecimento os atirou para este desterro. Tiveram mordomias cuja existência eu nem imaginava ‒ e, pelo que aqui ouço, a minha nem foi das piores experiências de - 5 -
vida.
Pois eles garantem que se passeavam livremente pela casa dos humanos, tinham sopradores refrescantes para o tempo de canícula ou aquentadores para os tempos frios de inverno, sofás para se espojar, camas fofas e quentes, a mesma comida dos humanos, apaparicos e outras cortesias de fazer inveja...
Quão diferente da minha diminuta varanda, exposta a sol, vento e chuva, ou da ração comprada a módico preço e dos ossos bem esbulhados que me atiravam nos dias de melhor fortuna!
Em vez da paulada, que por coisa nenhuma estava sempre à minha espera, eles blasonam mimos, afetos e diários momentos de brincadeira; alguma dor ou maleita era objeto de cuidados e tratos por humanos com mágicos poderes; tinham longos e demorados passeios diários nos parques e praças das cidades, dando largas ao grande prazer, para cães e donos, de urinar e defecar nos relvados e jardins onde os filhotes dos humanos se comprazem a correr e a brincar…
Há até aqueles que não hesitam em reclamar estatuto superior aos humanos e só uma desafortunada fatalidade os atirou para a calamitosa situação que compartilham connosco. É o caso da Lelé cuja dona odiava os humanos mas que a ela tratava com mais cuidados e afeição do que se filha fora. Por desgraça, a sua idosa dona faleceu e uns impiedosos humanos atiraram-na para este aterrador degredo. Para aí está a definhar de tristeza e saudades.
Ao contrário, a minha má sina vem logo de nascença, e só por curtos intervalos de tempo disfrutei de alguns deleites e afeições, tão só, hoje estou certo disso, porque o sádico destino queria dar, por contraste, mais dissabor aos dissabores.
Segundo minha mãe, éramos cinco irmãos; “uma linda ninhada!”, repetia frequentemente com ar saudoso e compungido, lá na longínqua aldeia onde nasci.
Ao sentir que a hora de nascermos se aproximava, explorou com minúcia as partes mais remotas e esconsas das cabanas do dono até encontrar recesso acantoado e recolhido para fazer o ninho. Como, para ela, pontapé e vergastada estavam sempre prontos, quis poupar‑nos a esses tratos, pelo menos enquanto pequenos. Sabia de experiência certa que, mais cedo ou mais tarde, seria também essa a nossa sina.
“Que seja mais tarde, muito mais tarde”, dizia para si mesma. Havia, para isso, que tomar providências para retardar o mais possível o nosso encontro com humanos e com tais padecimentos. E isso só seria possível se o amo não descobrisse os seus cachorrinhos. Tinha a secreta esperança de nos criar e nos enviar ao mundo a governar vida, antes do dono encontrar o bem camuflado aprisco que ela preparara para nós.
Os humanos, porém, têm artes inimagináveis para adivinhar os nossos pensares e intenções, e não se poupam a esforços para ofertar sofrimento a todo o ser que com eles se cruza.
O humano de minha mãe não tardou a perceber que ela havia parido os seus filhotes, e a descobrir o esconderijo tão cuidadosamente por ela elegido e preparado. Debalde evitou, nesses dias, a vizinhança do dono, alimentando‑se já noite cerrada e quando a casa ressumava sossego, e as saídas e regressos ao covil eram sempre sorrateiros, acautelando que não andava nenhum dos amos por perto.
Como o dono descobriu o abrigo, não sabe. Simplesmente, ele chegou de forma inesperada numa fresca manhã, mal passara um quarto de lua sobre o nosso nascimento, e sem palavras nem advertências chutou minha mãe, retirou do berço, um a um, os recém-nascidos e colocou‑nos num cesto que consigo trazia. Minha mãe bem se tentou opor, mas as suas rosnadelas e obstinada resistência foram vencidas com murros e biqueiradas.
Apesar de ainda dorida e debilitada da parição, vendo‑o afastar‑se com os seus bebés, fez uma derradeira e desesperada tentativa para o deter; atirou‑se contra o dono colocando as patas dianteiras nos ombros dele e, fincando firmemente as patas traseiras, tentou impedir o seu avanço, sem nunca descurar redobradas cautelas para não lhe infligir malefício algum.
Ela bem sabia que rebelião contra humano é ato sacrílego. “Um gesto que sai sempre demasiado caro”, repetir‑mo‑á diversas vezes mais tarde.
E saiu‑lhe caro, muito caro!
Um empurrão, seguido de forte pontapé no abdómem provocou‑lhe uma dor lancinante, que só aliviou e desvaneceu quando caiu inanimada.
Ao retomar consciência de si e da situação, sem saber o tempo que, entretanto, decorrera, tentou levantar‑se, espevita-
da pela perceção de perigo que recaía sobre os seus cachorrinhos. Por cada tentativa de movimento, fortes picadas de dor percorriam toda a arcada das costelas estendendo‑se em estrias dolorosas a todo o ventre. Mal levantando a cabeça, sondou o horizonte com a vista, farejou as aragens, atentou nos mais leves sons.
As suas crias haviam desaparecido!...
Com as parcas forças que a aflição de mãe arrancou do seu fraquejado e doído corpo, pôs‑se em pé; cambaleante, arrojou‑se terreno abaixo cheirando o rasto do seu dominador; pérolas de sofrimento saltavam‑lhe dos olhos e escorriam pelo focinho; cada passada provocava‑lhe um ganido de dor.
Sentimentos de desespero e terror foram‑se apossando dela à medida que os receios passavam a suspeitas e as suspeitas a certezas quanto às verdadeiras intenções do irascível e impiedoso dono.
Como temia, o rasto desembocava na ribeira, mas nenhum sinal do seu mal amado humano. Narinas fariscando os ares e orelhas guichas, tentou captar o mais leve odor ou ténue gemido que lhe indicasse a localização dos filhos. Nenhum som para além do brando marulhar das águas. Captou, porém, eflúvios meio indefinidos que pareciam apontar para os seus tenros cachorros; eram cheiros quase impercetíveis pairando sobre as águas e vindos de jusante do arroio.
Desceu ao longo do regato, vencendo com dolorosa dificuldade as altas ervas que lhe tolhiam os passos.
Parou e o seu coração parou também. Meio camuflado pelos juncos que se destacam na margem, um diminuto e fulvo dorso oscilava ao sabor da leve e mansamente ritmada ondulação das águas.
Um dos seus bebés! - 9 -
Atirou-se à água e, ignorando as dores que lhe trespassavam a carne, conseguiu retirar o pequeno corpo, pegando‑o delicadamente pelo cachaço com a mandíbula e colocando‑o no lenteiro que bordejava o ribeiro.
Hesitou entre sair do arroio e reanimar o corpinho inerte e já meio frio ou procurar os restantes filhotes por entre as ervas. Optou por continuar as buscas das outras crias temendo que alguma ainda se debatesse contra a tormentosa asfixia das águas.
Notou que era menos doloroso nadar que andar e apressou‑se na inspeção diligente das margens; foi descendo junto à orla esquerda, sem descurar um exame atento ao outro lado do corgo.
Um após outro, entre os junquilhos e embudes dos baixios, foi encontrando os minúsculos e fofos corpos dos seus bebés, frios, flácidos, sem o menor sinal de vida.
Havia já retirado três, e começava a sentir‑se desfalecer de acracia e prostração, quando descobre que algo se agita num tufo de tifas no meio do córrego.
Minha mãe, tomada por desconsolo total e em pleno desespero, já não sentia outro estímulo senão deixar‑se arrastar pela corrente e permitir que águas misericordiosas afogassem as suas mágoas. No entanto, ao adivinhar uma das suas crias entre aquele embaraço de ervas, sentiu‑se retomada de forças, as forças bastantes para salvar um dos seus bebés.
Apressou‑se nessa direção. Encontrou‑me enredado na ramagem que as tifas retinham e sustentavam à tona de água.
O sufoco da água que nos pulmões roubava espaço ao ar, e o frio que se ia apossando do meu corpo empurravam‑me para a semiconsciência; contudo, segundo sustentava minha mãe, o
meu instinto batalhador ainda sustinha as narinas fora de água e mantinha as diminutas patas num lento e exausto pedalar.
Arrastou‑se e arrastou‑me até à margem; escolheu uma touceira de panasco seco e aninhou‑me nele.
Ainda percorreu lentamente uma certa distância ao longo do ribeiro perscrutando cuidadosamente as duas margens, tufos de ervas ou remanso em parcel, mas do meu quinto irmão não mais encontrou sinal algum.
Revisitou as restantes crias, depositadas na borda da água; retirou‑as mais para terra, revirou‑as e farejou‑as: a vida abandonara‑as em definitivo!
Quando regressou para junto de mim, encontrou‑me inanimado e frio. Julgou‑me igualmente perdido, segundo me confessou tempos depois quando me recontou a desventura do meu nascimento. Prostrada e desconsolada da vida, enroscou‑se à minha volta e perdeu a consciência em indulgente sono ou desmaio, não sabia ao certo.
Deu acordo de si quando eu me agitava procurando uma teta para mamar.
O milagre do meu salvamento era atribuído por minha mãe ao meu espírito lutador.
Coração de mãe!
Sempre me considerou inconformado e resiliente. No entanto, desde esse dia que era a minha adversa fortuna que ditava o meu destino; sofrera tal como os meus irmãos o angustiante garrote das águas, senti como eles o frio apossar‑se do meu corpo e tolher‑me os membros, sofri exasperado com a aflitiva falta de ar e o sufoco dos primeiros jorros de água entrando dolorosamente nos pulmões; temi e padeci o terror e o suplício de morrer. Não me foi concedido, todavia, o definitivo desenlace, o alívio que o fim outorga.
Sim, meus irmãos jaziam no limbo do Nada, livres de apoquentações e sofrimento, enquanto eu acabava de ser lançado no inferno da vida.
Os dias seguintes nem pareceram tão inferno quanto isso… para mim, pois minha mãe não conheceu lenitivo.
Arrastou‑me para um pequeno nicho entre duas rochas, em moita próxima, onde construiu cama quente com fenos que abocanhou pelas redondezas. Estava fora do território do seu humano e a algumas centenas de saltos de galgo da sua casa.
Com os amojos todos por minha conta, dava‑me ao luxo de chuchar em todas as tetas, embora tivesse a minha preferida. Quente e bem aconchegado, todo o dia a seguir ao meu ressuscitamento dormi e mamei beneficiando da inação de minha mãe, tomada de profunda ignávia; uma inação alimentada de fraqueira, dor e infelicidade.
Não fora eu, admitia tempos depois, por ela ali teria ficado para todo o sempre, prostrada em lento fenecer, tal era o pesar e o desalento da mente, e a debilidade e as dores do corpo.
No final do segundo dia, as dolências não aparentavam tanta agudeza, mas a fraqueza ameaçava levá‑la a perder o acordo de si. Se não reagisse e não se alimentasse, seria uma sentença de morte certa para o único filho que lhe restava da desventurada ninhada.
E olhava ternamente para mim!
E foi ao ver‑me ali tão indefeso, tão adorável e sugando avidamente a vida do seu débil corpo que lhe deu alento para se levantar e procurar comida.
Minha mãe não era má caçadora e bicheza não faltava nos cerros e várzeas; se queria completar a magra ração que o dono
lhe servia, quase sempre uns escodeados de pão duro ou um caldo aguado, só raramente um osso já bem esbrugado, tinha de fazer frequentes caçadas pelos montes ou nas frescas margens dos corgos.
Consolava‑se com laparoto que se aventurasse nos verdes centeios que circundam as matas, ou saltitasse alegremente por entre as ervas tenras de vergéis e almargens com frescura alimentada por regular nascente. No verão, vasculhando os restolhos dos trigais, o cacarejar de perdiz ou o voo rasteiro de perdigão eram um bom indicador de criação por perto; não raro conseguia abocanhar dois ou três perdigotos com que, de seguida, se banqueteava calmamente. Outras vezes tinha de se contentar com rato do campo surpreendido em rasa chã.
Agora, contudo, no seu estado, nem pensar em caçar; só se fosse rã desprevenida tomando um regalado e descuidado banho de sol à beira de charco ou regato. Qualquer bicho astuto adivinharia a sua fraqueza e lentidão, e rapidamente passaria notícia pelos bosques, tornando‑a alvo de chacota e de ridículo no reino da bicharada.
Restava‑lhe arriscar uma ida ao alpendre do humano onde costumava estar a sua tigela; aí esperava encontrar um resto de caldo azedo ou fatacaz de pão ressequido.
Aguardou pela negrura da noite e pelo silêncio na casa do dono para explorar o anexo onde era habitual ser‑lhe servido alimento.
A parede de pedra que delimitava o quintal, e que antes saltava com pincho sem esforço, foi desta vez dolorosa de ultrapassar. Felizmente a contida altura do muro permitiu-lhe uma operação a dois tempos. Com movimentos cautelosos, foi subindo com as patas dianteiras até firmá-las no topo da
vedação, depois, tateando apoio com as traseiras, trepou até conseguir empoleirar-se no cocuruto das pedras.
Saltou para dentro do terreiro e logo sentiu uma explosão de dores alastrando pelo seu corpo que a tolheu por instantes. Manteve-se estática para recuperar. Nem respirar podia. Após uns momentos, que a levaram quase ao sufoco, a geral dolência foi-se dissipando como ondas em lago formadas por arremesso de pedra. Avançou em passo lento e indeciso.
Como esperado, a escudela tinha um resto de caldo agraz que, apesar disso, sorveu com sofreguidão; lambiscou todas as côdeas duras que encontrou espalhadas pelo chão; farejou metodicamente e mordiscou a mais pequena migalha perdida no meio da palha.
Já regressava quando um odor agradável a atraiu; seguiu‑ -lhe o rasto e junto à parede do galinheiro encontrou um osso rançoso, talvez o coto sobrante de algum presunto. Já por ali havia andado gato, bem o notou nos olores que remanesciam, mas o tamanho e a dureza do courato devem‑no ter feito desistir. Sorte grande para ela, dava para se entreter toda a noite! Saiu dali mais acomodada e avivada com o osso na boca, qual troféu.
A investida fora mais proveitosa do que esperara. Será que o dominador estava arrependido do mau trato que lhe dispensara e sobretudo aos seus filhotes? Que não se iludisse; bem a podia tratar diariamente com limpa e farta carne que nunca lhe perdoaria. No fim de contas, há dois dias que não vinha comer e, se bem conhecia os hábitos dos seus humanos, o dono deve ter continuado a atirar para aquele canto alguma que outra sobra sem se certificar se ela comia ou não comia. À exceção da vianda ou caldo que a dominadora colocava na gamela, os restos de comida costumavam ser displicentemente atirados de - 14 -
longe, sem reparos nem zelos.
Se, no regresso à toca, fosse surpreendida por bicho que desconhecesse o drama por que passava, diria que minha mãe vinha feliz, confortada de estômago, com o osso na boca e aquele abanar involuntário da cauda em aparente satisfação.
O mundo, porém, havia desabado para ela, e este pontual sucesso não atenuava as cruciantes dores do corpo nem beliscava a profunda tristeza e a avassaladora angústia que alagavam o seu espírito.
Ainda não tinha conhecimento, ou pelo menos compreensão, da tragédia que se abatera sobre minha mãe e meus irmãos. No entanto, o trauma que eu vivera deixou em mim uma perturbante insegurança e pavor do abandono; qualquer ruído, qualquer sombra, me assustava, mas era a ausência de minha mãe que verdadeiramente me deixava em pânico. E este primeiro momento solitário, envolto nos medos da noite, foi longo e angustiante.
Grande foi a minha alegria ao percebê‑la com todos os meus sentidos: fusguei aquela rescendência que me envolvia como aconchegante manta, escutei os seus doces latidos e vislumbrei‑a pela primeira vez, embora não passasse de diáfana silhueta recortada na entrada da choça. E não hesitei em inaugural e trôpega corrida em direção a ela.
Na verdade, a sua presença tinha admirável efeito: bastava senti‑la próxima para todos os temores interiores e as ameaças que me sitiavam se desvanecerem milagrosamente, tal como rajada de vento dispersa e dissipa o leve aroma do rosmaninho. Nos dias seguintes, minha mãe, insegura da minha segurança, apenas me abandonava em ausências sempre rápidas, já
noite cega, para visitar a sua escudela na casa dos seus humanos.
Para mim, estas diárias saídas ao crepúsculo ou ao anúncio da aurora, abandonado aos ameaços da noite e do desconhecido, asseguravam amiudadamente uma espera em espertina, ansioso e assustado. E o relego só regressava ao meu espírito com a revinda de minha mãe. Cabriolava, então, em torno dela, tranquilo e feliz.
Entretanto ela recuperava, dia a dia, lentamente, da debilidade e das mágoas. Já gemia menos quando eu mamava e ao levantar‑se. Começou a dar breves passeios nas contiguidades do abrigo e desafiava‑me a pequenas explorações, sempre noturnas, na boca da toca.
A dolorosa e traumática experiência do meu primeiro morrer, apresentava‑se, crescentemente, como vaga lembrança, oscilando entre sonhado pesadelo e pungente realidade. E começava já a acreditar na insidiosa camuflagem da vida com sua aparência de aprazimento, tendo o aconchego da mãe sempre por perto e mamando a meu bel-prazer até à fartança.
Com dois quartos lunares ainda mal decorridos nestas andanças já rotinadas de procurar comida pela calada da noite, minha mãe, gradativamente confiante e afoita, dirigiu‑se uma vez mais ao telheiro do amo, não sem antes cumprir o seu cauteloso ritual de vasculhar as proximidades, não andasse por perto raposo ou lince que lhe abarbatasse a última das suas crias.
Anichei‑me no fofo das ervas secas e quentes do fundo do ninho, comportamento habitual sempre que minha mãe se afastava furtivamente para longe das penedias onde se alojava o nosso esconderijo, e aí me mantinha quedo e mudo até ela voltar. A sua ausência avivava em mim a perceção instintiva dos perigos da noite que o meu espírito medroso levava ao limite e impunha sempre momentos de impaciente ansiedade se não tinha a boa dita de adormecer.
Estas saídas eram usualmente breves. Desta vez, contudo, o meu afligir aumentava na exata medida da inquietante sensação de uma demora muito para além do habitual. É certo que ultimamente minha mãe, sentindo‑se mais robusta ‒ melhor, menos fraca ‒, aproveitava para fazer breves passeios pelo povoado ou tentar surpreender algum que outro
láparo pastejando mais desprevenido nas redondezas, mais por vício que pelas expectativas de sucesso tendo em conta a sua frágil condição. Já a tardança em casa do dono continuava a corresponder ao tempo mínimo requerido pelo estugado abocanhar da parca comida que por lá ia encontrando.
Ponderava mesmo abandonar de vez os seus humanos. Reconhecia que, pouca ou muita, todos os dias lhe colocavam na tigela alguma coisa para entreter o estômago, mas era impossível esquecer o que fizeram aos seus pequenotes. A forma rude como era tratada, onde pontapé ou vergastada era prato do dia, já há muito a aceitara como requisito de vida; afogar, porém, os seus bebés estava para além da sua capacidade de olvidar ou perdoar.
Os eventos recentes deviam impor‑lhe uma decisão fácil e inequívoca de abandonar o seu dono. Paradoxalmente, tal não acontecia. Nunca compreendera esta necessidade dos cães se submeterem a um humano. Mas que essa necessidade existia e fazia parte do “ser cão”, não tinha a mínima dúvida. Mesmo depois deste trato brutal continuava a sentir essa precisão como se pulsão vital se tratasse.
Seria apenas a dependência de sustento que ela sentia? Na verdade, a vida de cão resume‑se a correr atrás de um osso: nasce‑se a procurar uma teta, vive‑se em constante vasculhar alimento em todos os cantos e recantos, e quando se fica impossibilitado de o fazer morre‑se. “Mas os lobos lá sobrevivem, e quanto mais arredios dos humanos melhor lhes correm as coisas…”, acabava por desabafar para si mesma minha mãe, sem, apesar de tudo, este desabafo se afirmar como argumento categórico para decisão definitiva.
Seria o cómodo das palhas e fenos onde se podia enrolar confortavelmente nas frias e chuvosas noites de inverno?