Casimiro O colhedor de trevo a quatro Romance
Edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) Título: Casimiro – O colhedor de trevo a quatro Autor: José Rodrigues Duarte Revisão: Cecília Sousa Capa: Patrícia Andrade Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, junho de 2015 ISBN: 978-989-8678-98-0 Depósito legal: 395066/15 © José Rodrigues Duarte PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
JosĂŠ Rodrigues Duarte
Casimiro O colhedor de trevo a quatro Romance
Prefácio
Num dia de outono, quando as folhas começavam a ser mais fracas - os homens também sentiam a fraqueza dos anos, era naquela altura que caíam como as folhas das árvores - a Natureza não ficava vermelha na sua fraqueza, mas o homem, com a sua vanidade, escondia a sua debilidade, criando artimanhas para iludir essa passagem. Às vezes era a força da Natureza que aparecia para levar o homem à sua realidade da vida. O outono era o vizinho do inverno, que nos deixava, muitas vezes, na dúvida entre as estações - com uns dias brilhantes de sol ou, logo a seguir, com chuva e frio fugaz, que nos aparecia apenas para nos advertir do seu vizinho inverno. Fernando Pessoa deixou este bom poema sobre o outono, escrito em 1932. Uma névoa de Outono o ar raro vela Uma névoa de Outono o ar raro vela, Cores de meia-cor pairam no céu. O que indistintamente se revela, Árvores, casas, montes, nada é meu. Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono. Sim, sinto-o eu pelo coração, o como. 7
Mas entre mim e ver há um grande sono. De sentir é só a janela a que eu assomo. Amanhã, se estiver um dia igual, Mas se for outro, porque é amanhã, Terei outra verdade, universal, E será como esta... Fernando Pessoa
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O colhedor de trevo a quatro
Como todas as manhãs, Casimiro, novo reformado, levantou-se às 6h00 da manhã, preparou-se e tomou o seu café e, ainda em pijama, enfiou por cima um casaco, vestiu umas calças, calçou os sapatos e saiu com a sua cadela bastarda, de cor loura, amarela e branca. Como gostava de colher o trevo a quatro, não fazia 50 metros sem meter os olhos na beira dos caminhos à procura do seu trevo do dia. Em outubro, numa manhã fresca e com muitas folhas a cair, Casimiro, num dos caminhos habituais, viu entre as folhas um sapato de cor preta quase novo. Em volta, uma bicicleta e, mais à frente, uma perna de uma senhora sem sapato e com uma mancha de sangue. Casimiro levou as mãos aos olhos, esfregou-os, mas a sua cadela foi logo cheirar a pessoa. Casimiro chamou pela cadela: - Linda, vem cá, fica quieta e senta-te - e esta obedeceu. Ao mesmo tempo, Casimiro aproximou-se do corpo e viu que era uma jovem com alguns ferimentos na cara e que estava sem sentidos. Casimiro, como tinha alguma ideia sobre primeiros socorros, verificou a pulsação da jovem e concluiu que aquela estava com vida, mas sem sentidos. Tentou reanimá-la e, olhando para todos os lados para pedir ajuda, não viu ninguém nos arredores. Nem mesmo a velha chata que ele encontrava todos os dias com o seu pequeno cão. Tentou mais uma vez reanimar a pessoa e, ao fim de uns momentos, ela começou a pestanejar. Casimiro sentou-se a seu lado e falou-lhe sem lhe mexer. Alguns minutos depois, ela disse: 9
- Tenho dores numa perna e na cabeça. Ele perguntou se ela tinha um telemóvel e ela respondeu que sim, que tinha um num pequeno saco nas suas costas - o qual Casimiro ainda não tinha visto. Ele perguntou-lhe se ela estava de acordo que ele chamasse alguém para ir lá ter, pois estava com o seu fato de treino por cima do pijama e não queria ir assim ao hospital. Ela concordou, e Casimiro chamou a ambulância, que em poucos minutos chegou. Casimiro teve tempo para lhe perguntar o nome e pedir o número de telefone. Quase ao mesmo tempo da ambulância chegou a polícia para saber o que se tinha passado. Casimiro teve de explicar a causa da sua presença e a rapariga foi para o hospital. A cadela, que não simpatizou com um dos polícias, começou a fazer barulho e isso alertou alguns transeuntes e também a velha chata estava lá e que perguntou: - Senhor Casimiro, o que é que se passou? E ele, já cansado de explicar respondeu: - Eu depois conto-lhe ma chère. A polícia disse a Casimiro que ele podia ir embora e que, se fosse necessário, entrariam em contacto com ele. Entretanto chegou Bernardo, que era o seu amigo fotógrafo, mas que trabalhava também para a polícia. Chegou e começou clique, claque sem mais terminar. Casimiro disse-lhe adeus e foi passear com a cadela, que começava a ficar insuportável com o polícia. Ao passear, a imagem da jovem não lhe saía da cabeça. Ela chamava-se Carolina Freitag, segundo a polícia. Um lindo nome e uma bela filha de cabelos castanhos, olhos cereja, pretos, com cerca de 165cm, 170cm, de estatura média e desportista. Porém, ele não sabia ainda como tinha acontecido o acidente, e isso deixava-o muito ansioso. Então, resolveu ir visitar a Carolina ao hospital depois do almoço. 10
Casimiro preparou-se depois do almoço e foi de autocarro ao hospital, que ficava a cerca de 6 km de distância, visitar Carolina. Entrou na receção e perguntou pelo quarto de Carolina Freitag. A rececionista disse-lhe que ela estava no 2.º andar, no quarto 44 A. Casimiro passara primeiro no quiosque e comprara um cravo vermelho para oferecer à Carolina, juntamente com uma tablete de chocolate de leite. As dezenas de metros que separavam a receção do andar de Carolina pareciam intermináveis. Casimiro chegou à porta, respirou fundo e bateu com uma força tão tímida e dócil que Carolina não ouviu, mas como ela dividia o quarto com outra paciente, aquela disse-lhe que entrasse. Carolina, meia sonolenta, olhou para ver a pessoa que estava a entrar e disse, com ar de surpreendida: - Ai que alegria de ver o senhor Casimiro, o meu salvador, mandado por Nossa Senhora de Fátima para me ajudar. Virou-se para a outra paciente e disse: - Senhora Elisa, é este o meu anjo salvador de quem lhe falei. E, num só fôlego disse: - Venha cá, senhor Casimiro, eu quero agradecer-lhe pela sua grande ajuda - e uma lágrima de alegria escorreu pela cara da jovem, a qual Casimiro secou com os dedos da mão que tinha livre, pois a outra mão segurava o cravo e o chocolate. Casimiro acabara de vivenciar o primeiro grande reconhecimento da sua existência - depois do nascimento dos seus filhos - e, durante alguns minutos, ficou sem palavras e tão emocionado que não se ouvia a respiração. Ela disse-lhe: - Senhor Casimiro, sente-se na cadeira e venha para perto de mim. Casimiro puxou a cadeira antes de se sentar e ofereceu o cravo e o chocolate a Carolina. Esta procurou uma jarra e pediu a Casimiro para a ir buscar à prateleira, ao lado da casa de banho. Casimiro preparou a jarra e deixou-a com a flor em cima da mesa, ao lado da cama de Carolina. Sentou-se, olhou para Carolina e disse: 11
- Que história, minha Carolina! Como está? Ela respondeu que estava cada vez melhor e que talvez pudesse sair do hospital dentro de alguns dias. - O meu pai vem buscar-me, e vou ficar em casa dele durante alguns dias -, disse Carolina. Casimiro disse-lhe que se ela precisasse de alguma coisa era só pedir, e disse-lhe para o ir informando sobre suão seu estado de saúde. Então Casimiro começou a perguntar sobre o acidente. Carolina explicou-lhe que, como todos os acidentes, aquele não tinha escapado à maioria deles - estúpido. Nesse dia estava de folga e resolvera ir dar uma volta de bicicleta e, como estavam no final do verão, e como o verão naquele ano quase se juntara ao outono - e as nogueiras estavam cheias de nozes, encontrando-se muitas nozes e ramos no chão -, ela tinha tropeçado num ramo e batido com a cabeça num arbusto duro, pois o seu capacete estava no saco. Isso fora o que a polícia lhe dissera, pois ela não se lembrava de mais nada. - Felizmente você chegou e salvou-me. E você, senhor Casimiro, o que estava a fazer? Casimiro, muito brincalhão, respondeu: - Eu andava à procura de meninas bonitas feridas e encontrei uma princesa... - Não, conte lá a verdade - pediu Carolina - o que estava a fazer? Ele então respondeu: - Primeiro, vamo-nos tratar por tu, porque ouvi-la sempre a chamar-me de senhor dá a impressão de que estou velho. Carolina acrescentou: - Velho, ora essa! Você é um jovem ainda nos supermercados (à venda). - E a colega de quarto da Carolina, uma senhora entre os 60 e os 70 anos perguntou: - Diga-me onde se vende que eu vou comprar... 12
Todos se riram. Casimiro estava vestido com umas calças da moda, de cor vermelha e com uma camisa tailandesa de seda, de cor escura, e com um casaco de malha creme. De facto, fazia-o mais novo alguns anos. Ele sempre gostara de estar na moda, mas sem gastar muito. Casimiro era baixo, bem proporcionado, de cabelos escuros, com poucos brancos, apesar dos seus 60 anos. Então Casimiro disse: - Falemos a sério. Todos os dias me levanto e vou passear a minha cadela, mas depois que tive um problema nas articulações das pernas, volta e meia, tenho que parar por causa da circulação. Alguns anos depois ganhei o hábito de procurar trevos a quatro. Carolina perguntou-lhe se ele costumava encontrá-los e Casimiro respondeu: - Tenho, e muitos. Coloco-os em folhas A4, e tenho folhas cheias deles. Casimiro tirou um do bolso, dentro de um envelope de papel feito especialmente por ele e disse: - Pronto, aqui tens um que te ofereço para que a tua vida corra sem acidentes maiores - Casimiro acrescenta - os trevos a quatro só dão sorte àqueles que os recebem. Vira-se para a senhora Elisa e diz: - Dou-lhe um também amanhã, quando passar aqui para vos desejar um bom dia - Casimiro continuou - então, nesse dia, como o tempo estava um pouco frio, típico dos dias em final de verão, ao olhar para os trevos, pois existem muitos, vi um sapato preto e depois um corpo de uma bonita menina deitado no chão com ferimentos na cabeça e na perna esquerda. Aproximei-me e tentei prestar os primeiros socorros, mas quase que entrava em pânico, porque não foi fácil para mim, e depois o resto da história já sabes. Agora, o mais importante é que te sintas bem, e que dentro de dias estejas em casa e que continues a trabalhar e a estudar. Carolina reforçou: - Sim, trabalhar e estudar. E Casimiro perguntou: 13
- No quê? Carolina estava a fazer uma formação social para acompanhar as pessoas idosas nas casas de repouso e hospitais. - Falta-me ainda um ano de prática e formação - disse Carolina. Entretanto, uma enfermeira entrou e anunciou: - Eu preciso de ficar sozinha com as pacientes, pois tenho de fazer recolhas para as estatísticas. Casimiro aproveitou a situação e disse: - E eu digo-te, Carolina, até amanhã. Virei um pouco mais cedo. Casimiro despediu-se e saiu pela porta, tendo o cuidado para não a fechar. Casimiro, como de costume, passeava com a sua cadela. Vira Bernardo, com o chapéu enterrado na cabeça, a caminhar a passos largos, e que lhe disse: - Bom dia, Casimiro, o dia começa mal. Mais um que se atirou para a linha do comboio por causa das notas da escola de aprendizagem… Casimiro não deixou Bernardo terminar e disse: - Estas malditas notas, para quando as podemos modificar, este sistema traze muitas desagrasças para as famílias! Casimiro foi professor durante muitos anos e viu sempre as notas como uma injustiça para os mais fracos. Como ele costumava dizer, nós somos uma sociedade injusta e temos tendência para desvalorizar o trabalho que sai do esforço dos menos dotados. Somos uma sociedade de formatados onde todos temos de ser bons e melhores, as escolas aprendem a ter uma grande boca com bons dentes para melhor comer e amassar os outros. Apetecia-lhe dizer muitos palavrões, mas como não é bonito passou só a pensar, e o autor escreveu linhas invisíveis para se consolar. E assim deixou duas linhas em branco para satisfazer a revolta de Casimiro.
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Duas linhas em branco... Ficou melhor assim... Casimiro ficou tão indignado com aquela situação que correu para casa para escrever um artigo no jornal sobre as injustiças das notas na formação profissional pois, durante anos, ele havia sido testemunha de casos de perdição, sofrimento e tristeza para as famílias dos aprendizes mais carenciados. Para ele aquela situação não podia continuar. Era preciso reagir e mudar, pois a qualidade das formações não era os valores das notas, mas sim as competências profissionais práticas e sociais, e aquelas não faziam parte das avaliações das notas. Um outro modelo seria possível.
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A segunda visita de Casimiro ao hospital
Casimiro, perturbado, foi na tarde visitar Carolina, não se esquecendo do trevo para Elisa. Quando chegou, bateu à porta e Carolina disse para ele entrar. Carolina estava deitada na cama, coberta com um lençol branco, que lhe cobria as ancas, deixando aparecer as suas coxas branquinhas e redondinhas, típicas de uma jovem na casa dos 20 e tais. Num gesto espontâneo, Carolina cobriu-se e disse: - Isto pode dar ideias aos mais velhos! Casimiro respondeu: - Ver é muito bom, e do resto já chega. Ela riu-se de felicidade e disse: - Amanhã vou para casa! Casimiro tirou um pequeno envelope do bolso e deu a Elisa, que estava a ler um livro de Proust e que, em tom de agradecimento disse: - Muito obrigada pela sua simpatia! Casimiro falou com Carolina sobre o seu regresso a casa e disse: - O pior já passou. Deixo-te o meu número de telemóvel e quando tu quiseres ir apanhar trevos comigo diz alguma coisa... Carolina não deixou terminar a frase de Casimiro e disse: - Depois de amanhã vamos passear no sítio do acidente. Amanhã telefono-te para combinarmos a hora e o local do encontro. Casimiro respondeu: 17
- Está bem, é uma boa ideia. Depois podemos ir tomar alguma coisa numa esplanada, porque apesar do fim do verão ainda faz bom tempo. Casimiro despediu-se de todas, deu um beijo na cara de Carolina e disse: - Minha menina, fica bem e até amanhã. Carolina também se despediu dele. Casimiro desejou uma boa tarde à senhora Elisa e tudo de bom para o seu futuro. Saiu e fechou a porta com muito cuidado. Ficou alguns segundos parado em frente à porta e um flash da sua vida passou. Lembrou-se de quando um dia visitou a sua esposa, já falecida, ao hospital. Através de Carolina relembrou a sua esposa no hospital para fazer uma operação ao apêndice. Aqueles momentos de carinho e felicidade apareceram como um milagre, e ele ficou alguns minutos como que hipnotizado. Um enfermeiro, que estava de passagem no local, perguntou-lhe se o podia ajudar, mas Casimiro respondeu que não era necessário, que ele encontraria o caminho da saída. Carolina chegou a casa dos seus pais depois de o seu pai a ter ido buscar ao hospital. Estava muito alegre pelo facto de os médicos terem dito que os exames à cabeça estavam todos bem e os ligamentos do joelho estarem também a ficar bem. Ela deveria ainda caminhar com canadianas durante duas semanas e não fazer muito esforço no joelho ferido. Os pais prepararam o jantar, comeram e falaram do seu acidente. Ao mesmo tempo disseram: - Depois de jantar tens de telefonar ao teu irmão Julian - que era o seu único irmão e que estava a aprender inglês em Londres - porque ele já telefonou duas vezes. E assim foi. Depois do jantar ela telefonou ao seu mano em Londres e uma verdadeira história começou a ser contada por causa do seu acidente. O pai, Paulo Freitag, disse-lhe: - O telefone sai caro meninos. É melhor ires visitá-lo em easyjet, que fica mais barato. Carolina disse adeus e mandou beijinhos de todos para o seu irmão querido, despedindo-se com um grande beijo do seu irmão. 18
Carolina e Casimiro a passear
O pai de Carolina acompanhou a filha ao encontro com Casimiro. Conheceram-se e aquele agradeceu a Casimiro a sua veneração para com a sua filha. Carolina, de canadianas para não forçar os ligamentos do joelho, disse a Casimiro: - Vamos lá! Casimiro, passados 50 metros, ao lado da ribeira, disse: - Foi aqui que te encontrei - e fez um círculo com a mão, explicando - aqui estava um sapato, aqui a bicicleta e tu estavas ali, com a cabeça naqueles arbustos verdes. Naquele momento, algumas lágrimas de emoção correram pelo rosto de Casimiro. Carolina agarrou a sua mão e apertou-a, dizendo-lhe: - Obrigada por teres estado aqui no momento certo. Casimiro retomou o fôlego e continuou: - De seguida, tentei fazer alguma coisa, mas com dificuldade. Logo chamei a ambulância com o teu telefone e partiste para o hospital. Carolina disse: - Agora que já sei tudo vamos passear um pouco neste sítio tão bonito. Temos água, árvores e vida. Há sempre pessoas e bicicletas a passar. Casimiro, ao passar por uma velha nogueira, disse: - Aqui apanho, todos os anos, as nozes que como durante todo o ano. É uma árvore com muita saúde, dá sempre belas nozes - mais adiante viu 19
uma aveleira e explicou - as aveleiras são muitas, mas as pessoas não as apanham. Estes frutos secos são bastante caros no comércio. Carolina, com os seus lentos passos, continuava, enquanto Casimiro contava a sua vida, durante algumas centenas de metros, olhando para a paisagem, que proporcionava coisas lindíssimas para apreciar. Carolina falou da sua formação e dos estágios que deveria fazer antes de encontrar trabalho fixo. Casimiro falou dos seus projetos e da viagem que gostaria ainda de fazer enquanto a saúde o apadrinhasse. Carolina, ao ouvir o Casimiro com tanta motivação nas suas argumentações, disse-lhe que gostaria de viajar dentro da sua cabeça, lugar onde certamente havia viagens de muita felicidade e alegria. Casimiro respondeu que na sua cabeça só havia lugar para ideias que muitas das vezes não eram realizadas. Às vezes nem lugar tinha para pensar no dinheiro que precisava, mas que, por ela, apertava os seus neurónios para que tivesse um conforto ideal. Casimiro olhou para as horas e disse: - Já é tempo de irmos tomar alguma coisa na esplanada do restaurante ao lado da ponte. E assim se instalaram numa mesa redonda na esplanada, debaixo de enormes castanheiros selvagens com mais de 100 anos. Algumas mesas estavam ocupadas por turistas da região. A patroa da esplanada, que conhecia Casimiro, cumprimentou-o: - Bom dia, como está? Com um grande sorriso de simpatia, Carolina apreciava, pensando que Casimiro não estava sozinho. Casimiro tinha filhos e filhas, netos e netas, mas viviam um pouco distantes. Mesmo que volta e meia lhe fizessem visitas, ele passava muito tempo sozinho, e como ele verbalizava, a solidão era a sua companheira diária e também a sua companheira de leito. A empregada chegou e deu as boas tardes. Casimiro perguntou a Carolina o que ela desejava. Carolina pediu um sumo de laranja e Casimiro um café e duas tartes de ameixa da casa, que eram as mais famosas na região. Entretanto, a mãe de Carolina chegou para a ir buscar e pediu um café. 20
Casimiro perguntou se ela desejava uma tarte, mas ela agradeceu, dizendo que só tomava um café. Casimiro disse a dona Dolores: - Você tem uma pronúncia lá dos lados do nosso cantinho, que é Portugal. Carolina intervém e acrescentou: - Desculpa! Desculpa! Até me esqueci de te explicar que a minha mãe é de origem portuguesa. O seu nome completo é Maria Dolores da Cunha Morais. E Casimiro respondeu: - Não faz mal, porque eu também sou de origem portuguesa e não ando sempre a apregoar. Assim, o ditado é verdadeiro: o mundo é pequeno. Daquela forma a conversa ganhou outro entusiasmo, até que o telemóvel da dona Dolores tocou e ela anunciou que o pai já havia chegado a casa. Casimiro pediu a conta e Carolina advertiu que a próxima volta seria dela. Casimiro acompanhou Carolina e a mãe ao carro despedindo-se das duas, acenando com as mãos e desejando-lhes uma boa viagem. Casimiro, de regresso a casa, fez um balanço do seu dia de visita e ficou muito satisfeito pela forma como o mesmo tinha passado. Antes de ir para casa, passou pelo quiosque e comprou o jornal. Entrou em casa e, como de costume, sentou-se no balcão e leu no jornal o seu artigo sobre as notas da escola. Ficou contente e, se lhe perguntassem se haveria reação pelas partes interessadas, como os formadores ou leitores, ele imaginou argumentações em caso de um ou outro telefonema. Mas a situação das notas é um «chiqueiro», o sistema de notas na formação é incompatível com a luta pelo seu sucesso e Casimiro diria: «continuarei a lutar por esta injustiça». O dia começou a partir e a noite chegou... Ao contrário de quando se é novo, as noites são longas. Casimiro entrou para o seu pequeno apartamento de três assoalhadas com vista para um lago e montanha, onde as cores da paisagem mudam com muita frequência. Olhando para toda aquela bela natureza, deitou-se a imaginar que aquelas lindíssimas árvores ainda iriam 21
ver os seus netos a envelhecer, enquanto ele, já há muito que teria partido. A Natureza sabia repartir a felicidade, mas os homens não! Por isso, tínhamos de aprender também a partilhar. Enquanto Casimiro se preparava para fechar uma das suas janelas, vira um pescador, num pequeno barco a remos, a tentar roubar um pobre peixe à sua liberdade! Quase que teve vontade de lhe gritar... e lhe dizer: «coma esta noite vegetariano e deixe os animais viverem mais um dia!» Mas acabou por fechar a janela e dirigir-se para a cozinha, onde se ordenou a si próprio que naquela noite também iria comer vegetariano. Cozeu duas batatas, uma cebola e cenouras. Regou-as com um pouco de azeite e vinagre e adicionou um dente de alho - diz-se que a melhor forma é esmagar tudo com um garfo - e assim fez. Comeu acompanhando com um copo de vinho tinto e um bocado de pão de milho feito por ele. Viu televisão e, mais tarde, preparou-se para ir para a cama. Antes, ainda escreveu alguma coisa no seu jornal íntimo. Casimiro era sempre acordado às 6h30 da manhã pelo seu relógio biológico, que substituía o seu despertador. Mas naquele dia ele não tinha muita vontade de sair da cama. Ligou o rádio para ouvir as notícias, mexeu-se um pouco e disse para si: «vamos, é dia de trabalho». Levantou-se, preparou-se e tomou o pequeno-almoço. Depois, arranjou-se para sair com a sua cadela Linda. De volta a casa, entrou no quarto, que servia também de escritório e, olhando em volta para os livros da sua biblioteca, Casimiro perguntou-se «para quê guardar tantas coisas que só para mim têm valor, pois os meus filhos nunca se interessaram pelos meus passatempos culturais e profissionais?» Casimiro, apesar da sua idade, interessara-se sempre pela sua profissão, dando-lhe o seu devido valor social. Para ele, aquele valor social era importante, mesmo que muitas vezes fosse abafado pelos interesses financeiros. 22
Apesar de a sociedade estar a mudar, ele acreditava que, num futuro próximo, a cultura da partilha total dos valores materiais e conhecimentos iria ser uma realidade. Casimiro gostava de passar no Restaurante O Figo, que era um restaurante com uma filosofia moderna. A dona desse restaurante, a Cristina, era uma antiga aluna sua. Ali ele comia uma refeição equilibrada à sua saúde.
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História do Restaurante O Figo (La Figue)
La figue (o figo) era um restaurante com uma filosofia de consumação futurista - que encaixava no projeto daquele género de restaurantes - num programa de criação de empresas com a classe do terceiro ano, GEI (gestionária em economia e intendência) da qual Casimiro era o professor. Um dia pediu aos alunos que trabalhassem sobre um projeto de um restaurante futurista e deu a ideia aos alunos de trabalhar sobre vários projetos. Um deles era o Restaurante La Figue, com uma filosofia de produtos biológicos, alimentação equilibrada, própria para diabéticos e sem glúten. Com espaço, algumas mesas de quatro lugares e um serviço take-away. O material e os utensílios eram poucos, pois a filosofia do serviço era a de privilegiar o conforto, a segurança e a confiança. O logótipo era um figo com as suas cores verde e dourado escuro e a polpa. Aquele projeto tinha sido premiado pelos aprendizes. Casimiro sentia-se no Figo muito reconhecido, porque todos sabiam que ele tinha sido um dos impulsionadores da ideia. A patroa sentou-se à mesa com Casimiro para se aconselhar sobre como alargar o seu negócio sem muitos riscos, pois o restaurante funcionava muito bem e os colaboradores estavam muito motivados. Casimiro andava já há muito tempo a pensar naquele assunto e, naquele dia trazia a ideia em forma de um pequeno projeto para a explicar à Cristi25
na. Quando terminou de comer, mandou chamar Cristina. Aquela sentou-se à mesa, com um café, e perguntou a Casimiro se ele também queria um, ao que Casimiro respondeu afirmativamente. Cristina perguntou: - Caro Casimiro, o que tem de bom para me dizer? - Depois de pensar em várias formas de alargar o negócio e, como sabes, eu sou adepto da partilha de valores, a ideia é formar uma cooperativa com os teus colaboradores, aqueles que estiverem interessados. Para melhor explicar deixo-te este dossiê, que tu vais ler, e depois poderemos analisar os pontos que tu possas julgar interessantes. A filosofia não se altera, mas as estruturas do trabalho são um pouco diferentes, como a preparação de certas receitas e iguarias, que irão ser confecionadas numa cozinha central e depois transportadas para os locais de venda. São as grandes modificações do projeto, para garantir uma ótima qualidade de serviço. No projeto é prevista uma formação para todos os colaboradores com o objetivo de os sensibilizar para a filosofia do projeto. Casimiro despediu-se de Cristina e aquela sugeriu que se voltassem a encontrar dali por dois dias, tendo Casimiro concordado. Casimiro pagou a refeição, desejou a todos uma boa tarde e despediu-se até uma próxima. Casimiro saiu e viu o seu amigo Bernardo, o fotógrafo, que lhe perguntou: - Olá Casimiro, como vai a Carolina? Vai melhor? Casimiro respondeu: - Olha, ela já saiu do hospital e está bem. Já fomos passear no local do acidente e ela hoje vai telefonar-me. - Bem - diz Bernardo - tenho de ir. Se tudo vai bem, eu fico contente - dá uma palmada nas costas de Casimiro e disse - até breve! E Casimiro pediu: - Olha Bernardo, podes dar-me uma fotografia do local do acidente? - Normalmente não se faz, mas como sei que contigo não há problema, da próxima vez que nos encontrarmos dou-te uma - respondeu Bernardo. 26
- Obrigado, amigo - disse Casimiro. Antes de ir para casa, Casimiro passou por um centro comercial para ver as novas ofertas e promoções. Ele observou as novas tendências com muita atenção e acabou por comprar um casaco de malha claro, que ia bem com as calças vermelhas. De volta a casa, Casimiro passou no cemitério para regar as flores que tinha colocado na campa da sua esposa. Era sempre com muita emoção que Casimiro passava alguns momentos de recolhimento na companhia da sua querida. Os primeiros passos desde o cemitério até à sua casa não eram os mais ligeiros, pois ele sentia a vulnerabilidade do Homem em relação à morte. «Nós somos insignificantes, vistas as coisas» pensa «passamos a nossa vida a criar e a nos impor na sociedade para, de um dia para o outro, tudo deixar. O sonho deixa de brilhar e, simultaneamente, deixamos a nossa obra ou obras por acabar. Mas a vida é feita de contrariedades e mesmo na morte aquelas estão presentes». Casimiro pensava no porquê de o homem querer sempre ampliar tudo em continuidade. Naquela mania global da sociedade, que era a nossa perdição. Um dia teríamos de estagnar, de não produzir mais, teríamos de não aumentar o consumo, de não comer de mais e de não gastar mais. Um dia teríamos de deixar de evoluir no sentido materialista e, assim, o mundo iria encontrar a verdadeira felicidade e fartura. O capitalismo criava as diferenças e injustiças sociais, as quais o homem não podia controlar. Assim que Casimiro chegou a casa e abriu a porta, o telefone tocou. Ele correu para o telefone e viu no ecrã que era Carolina. Atendeu, dando-lhe as boas noites com um sorriso. Carolina não ficou indiferente e interpelou-o com um sorrisinho encantador. Casimiro disse: - Quando vi que eras tu, todos os maus pensamentos se evaporaram de imediato! 27
Carolina respondeu: - Sim, sim, mas o vapor transforma-se em água. - Sim! - Exclama Casimiro! - mas já chorei, de facto, hoje também, pois passei no cemitério, e são momentos tristes. Como vai a saúde? - Estou bem! Acabo de receber um convite para ir fazer um estágio. É um pouco longe daqui, mas estou satisfeita, porque este estágio vai ser o último antes do exame final, e depois logo se vê - comentou Carolina. Casimiro despediu-se: - Olha, desejo-te tudo de bom. Dá novidades tuas, volta e meia. Carolina disse que não faltaria com as novidades. Os dois despediram-se e Casimiro baixou o telefone, com muito cuidado, e, deixando ficar a mão em cima do aparelho disse: - Pronto, a vida é mesmo assim, uns continuam a lutar para uma melhor vida e outros lutam para guardar a vida nas melhores condições. Casimiro pegou num livro e dirigiu-se para o balcão para ler um pouco. Era um livro sobre a vida do Padre Américo (vida e obra da rua). Um livro que dava algum conforto ao coração de todos os que queriam ajudar os outros, mas que, por vezes, lhes faltava coragem e disposição para o fazer. Para Casimiro, o livro do Padre Américo deveria ser um livro obrigatório na escola primária, porque a sua obra era um exemplo de amor pelos mais fracos. Era sempre um tema da atualidade, o seu humanismo social, dando o amor verdadeiro aos abandonados. Casimiro preparou alguma coisa para comer e saiu com a lindinha antes de ir para a cama. Entretanto, o telefone tocou. Era a sua filha querida, Inês, que lhe perguntava quando é que ele a podia ir visitar, pois já tinham passado algumas semanas desde a última vez que se viram. Ela disse: - Tu podes vir e dormir aqui e partes no dia seguinte depois do almoço, se quiseres. Vens com a cadela, claro. 28
Ele terminou dizendo: - Muito bem. Olha, amanhã telefono para te dizer exatamente quando chego, pois antes de partir quero ir comprar alguma coisa para a Jane, porque ela vai fazer anos em breve. Inês disse-lhe: - Está bem pai, então até amanhã. Quando Casimiro saía com a Linda, apreciava sempre o bom tempo que fazia naquela altura do ano. Encontrava pessoas conhecidas durante o passeio dos cães com quem trocava algumas palavras sobre o tempo e sobre a idade dos animais. Ele continuou o passeio e depois disse a Linda: - Vamos, é tempo de entrar. Vamos dormir. A cadela, que estava habituada à sua voz, regressou ao seu lado e caminhou em direção a casa. No dia seguinte, Casimiro levantou-se e foi à cidade comprar umas trufas de chocolate branco para Jane, já que ela gostava muito, e também uma outra caixa para a família. Além disso, retirou 100€ para dar a Jane, porque ela ia fazer uma viagem com a classe da escola. Casimiro telefonou à sua filha Inês para lhe dizer que chegava na sexta-feira à tarde e que regressaria no sábado depois de almoço. Inês ficou muito contente e agradeceu a visita, despedindo-se até sexta à tarde. Casimiro, apesar de ter mais três filhos, era com Inês, a sua filha mais nova, que ele sempre tivera mais contacto. Inês era casada. Os outros filhos de Casimiro eram Julian, Marcial e Tomás, que também o visitavam muitas vezes, com os seus netos e netas, especialmente aos fins de semana e dias de festa. Eram todos muito carinhosos com Casimiro, e claro, aquele sabia que a vida dos filhos era também a sua. Casimiro preparou o seu carro, um Mazda, com cerca de 10 anos, mas que ia muito bem. Aproveitou para lavá-lo, verificar os pneus e abastecer de gasolina, porque Inês vivia em Argovie. 29