MOÇÂMEDES, NAMIBE, ANGOLA: UMA SAUDADE Teresa Sá Carneiro
FICHA TÉCNICA Edição: Luna Art Título: MOÇÂMEDES, NAMIBE, ANGOLA: UMA SAUDADE Autora: Teresa Sá Carneiro Revisão editorial: Tomás Gavino Coelho Paginação gráfica e arranjo de capa: Susete Bruno Capa (desenho): Rui de Mendonça Torres 1.ª Edição Lisboa, Julho 2013 ISBN: 978-989-97955-1-8 Depósito Legal: 361767/13 © JORGE ZAGALO Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Av de Roma, nº 11 - 1º Dto. 1000-261 LISBOA www.sitiodolivro.pt
Serra da Leba. Teresa e Priscila. Abril de 1975
Capítulo I A minha terra. Com inúmeros recantos paradisíacos, orografia, ímpar, uma geografia com recursos naturais que revelavam as delícias de se saber e poder viver num deserto, o descobrir da qualidade de vida num pequeno mas próspero Oásis à beira mar, assim era o lugar onde vivi até à minha idade adulta. Saudades da cidade onde nasci, a cidade de Moçâmedes, atual Namibe. Um Oásis, um pedacinho de terra que entre o enorme deserto do Namibe e o mar, era (é) abençoado por uma natureza que não lhe permitia ser de todo inóspito: ricos cursos de água desciam pela serra que o separava do concelho do Lubango (ex Sá-da-Bandeira). Em época de chuvas, esses cursos de água irrigavam as plantações de solos férteis nas humosas terras das margens dos nossos rios Bero, Curoca e Giraúl, e permitiam a plantação de milho, feijão e muitas outras leguminosas, não só para nosso consumo como também para os nativos da região, povos tribais que nunca tiveram carências alimentares apesar de que, muitos deles sendo nómadas, normalmente optassem por outro tipo de alimentação. Conhecia-se, por exemplo, uma erva colhida pelo povo mucubal que lhes permitia andar vários dias pelo deserto sem qualquer necessidade de outro alimento. Soubemos que as propriedades desta planta chegaram a ser
8 investigadas em laboratórios europeus. Em grandes extensões de terra existiam milhares de cabeças de gado bovino, caprino e ovino sendo que, muitas delas pertenciam a povos tribais que as possuíam como símbolo de riqueza. As terras não eram propriedade exclusiva da raça branca, eram divididas de igual para igual com nativos, por exemplo com o povo mucubal. Inúmeras fazendas e hortas existiam ao longo das margens dos rios, e nelas se desenvolviam as mais variadas espécies de frutos: figos (o famoso figo roxo de Moçâmedes), tamarindos, múcuas( a maravilhosa fruta agridoce do imbondeiro), goiabas, tangerinas, mangas (tínhamos espécies acima de 1 Kg), videiras, oliveiras (enormes e deliciosas azeitonas), nêsperas, mamões, bananas, melancias e muitas outras. Nos locais mais secos, e já desérticos, as condições especiais de busca de água doce, através da abertura de poços, aproveitamento de água em valas e de furos artesianos no solo, permitiam uma melhor irrigação das terras e bom fornecimento de água para os tanques onde o gado ia beber, tal como as ovelhas de raça Caraculo, apesar de estas possuírem uma enorme resistência à sede; a perfeita adaptação ao clima árido era uma característica desta espécie de ovelhas que forneciam peles de grande valor para a confecção de casacos das senhoras em Angola, igualmente exportadas para várias partes do mundo. Uma costa riquíssima em dezenas de espécies de peixe, moluscos, crustáceos, que devido ao mar calmo, grau adequado de salinidade, temperatura da água e à topografia da costa marítima própria para quase que todas as artes da pesca, faziam da cidade um grande marco de indústria piscatória. Os cardumes procuravam abrigo na Baía/Enseada de Moçâmedes na época da desova. A nossa terra era conhecida como a dos melhores caranguejos de Angola: tínhamos os enormes, pescados em cestos nas grandes profundidades do mar alto, os menores que eram encontrados mais perto da costa, e os caranguejos das hortas, os de água doce, apanhados nas margens do rio Bero e seus afluentes. Lembro-me das grandes e produtivas salinas que permitiam abastecer de sal as indústrias de pesca e exportar para outras colónias do Governo Português. Conhecíamos bem o nosso solo, e sabíamos do seu valor! Riquíssimo em
9 minério, ouro, platina, cobre, diamantes, granadas (apanhei muitas na pista de pouso das pequenas avionetes na foz do Rio Cunene), e pedras semi-preciosas vistas a olho nu e soltas pelas areias do deserto. Tínhamos a Welwitschia Mirabilis, uma planta rastejante que procurava água a muitos quilómetros de distância e que se parecia com um polvo gigante. Uma raridade no imenso Kalahári, espécie única no planeta terra. Encantávamo-nos com o céu mais azul de Angola, quase sempre sem nuvens devido ao clima árido. Era um clima peculiar, temperado e ameno, o melhor de toda a costa litoral de Angola, mas as características de um clima desértico lá estavam. Lembro-me da época do cacimbo, o nosso inverno, com temperaturas beirando os zero graus durante a noite e mais de trinta graus de dia. Lembrome dos lagartos “bailarinos” que passavam por nós, apoiados ora numa perna ora na outra para conseguirem suportar as altas temperaturas das areias escaldantes. E os camaleões?! Um divertido mudar de cores chamava a atenção das crianças... Buscas obrigatórias nos nossos passeios por lá. Recordo com muita saudade as praias da nossa costa, praias que nos viram crescer, literalmente. Desde muito pequenos íamos à procura de ostras, mexilhões e burriés na praia das Conchas, este último um molusco muito viscoso também chamado de caramujo. Convivíamos de perto com moreias, um peixe de forma quase cilíndrica de corpo viscoso e sem escamas. Tremelgas, que era uma espécie de raia em ponto pequeno com quatro manchas pretas e redondas no dorso e que, quando pisadas, transmitiam uma carga elétrica no pé provocando uma dor muito forte. São tão feias que o choque elétrico é a única coisa interessante que têm para atrair o sexo oposto! O baiacú, que inchava como uma bola e que cortava qualquer linha de pesca em nylon. E, o terrível pica-pica!? Quem não se lembra? O chamado “Caravela Portuguesa” era o terror das nossas águas quentes nos meses de Verão. Tinha uma bolha transparente tipo vela com filamentos azulados pendentes, muito compridos, que doíam imenso quando nos pegavam. O Santa Kalunga era outro tipo de pica-pica, mas de filamento avermelhado com nódulos em toda a sua extensão e que, quando nos apanhavam não perdoavam, provocando uma dor tão grande que nem a areia da praia aliviava! Sem dúvida era a areia da praia o nosso único recurso possível para aliviar as dores quando se enrolavam nos nossos corpos.
10 Convivíamos com fortes ventos vindos do sul de África, as “garroas”, que levavam areias para dentro das nossas casas e levantavam dunas de quase 300 metros pelo deserto num colorido lindo! Vivem na minha lembrança suas cores rosadas perto da foz do Rio Cunene, um rio que separava as margens dos dois Países, Angola e África do Sul. As dunas tinham uma cor única, cor natural da areia quando em movimento. Era assim a nossa terra, a nossa Moçâmedes. O nosso amor reconheceu-se nela, a nossa saudade fica para ela, e todo o gostoso sabor das nossas recordações a ela o devemos.
Capítulo II Nós e os nativos, uma infância juntos. Eu acredito que as nossas vidas sejam o reflexo das nossas memórias, pois se assim não fosse elas seriam apenas uma sequência de instantes do momento atual, muito pouco, acho eu, para a grandiosidade da existência de vida sobre a terra, e para todo o universo fabuloso que se faz de origem para a nossa própria origem. Toda a nossa vivência, a de seres vivos em geral, precisa de tempo para ser vista e ouvida, e talvez só agora, tantas décadas depois, seja possível exprimi-la , ao reunirmos as nossas recordações mais genuínas, e portanto mais autênticas, para que, finalmente, se acredite que conhecemos um paraíso sobre a terra, o lugar da beleza invulgar do nascer do dia, da frescura das manhãs e do final das tardes, e das muitas luas nas noites estreladas. Conhecemos África, o Continente da natureza eterna! Eu não tenho a menor dúvida sobre isso!
Tive uma infância muito feliz, assim como a adolescência, embora com diferentes encantos. Cresci sem conhecer o significado da palavra violência, e sem nunca ouvir dos meus Pais um ”aonde vais?”, de um jeito que demonstrasse preocupação. Sempre tive todos os meus maiores amigos na minha rua, ou em bairros muito próximos. Crescemos sem medos, sem nunca usarmos uma chave para trancarmos portas, apenas com alguns cuidados e observações dos nossos Pais em relação a
12 algumas situações, tais como, por exemplo, sobre o tipo de sapatos que deveríamos usar quando brincássemos na rua, chamadas de atenção que conscientemente acatávamos, pois sabíamos perfeitamente que, alguns dos bichinhos do deserto que invadiam habitualmente a cidade não eram nossos amigos: lacraus (escorpiões), insetos e cobras que, embora fossem pequenas não deixavam de ser muito perigosas. Ao irmos para o deserto sempre usávamos sapatos fechados. Nós, as meninas, calçávamos botinhas de meio cano, e os meninos algo bem mais resistente: botas de solas de pneu e couro de boi, feitas nos já experientes sapateiros “cabeças-depungo”. Lembro-me do cheiro... Como era bom! Fui criada numa casa enorme com um jardim ao redor, várias árvores de fruta, galinheiro, uma gaiola imensa com coloridos periquitos, um canil, muitos cachorros e, em determinadas épocas da minha infância, também animais do mato, como uma gazela bebé e um olongo. É verdade! Um olongo a quem alimentávamos de biberão (mamadeira). Lembranças fantásticas das horas das refeições... Achávamos que o melhor lugar para ele comer seria a sala de costura da minha Mãe, e era para lá que o levávamos na parte da manhã, coincidentemente sempre no horário que o nosso criado, o Manuel, passava cera no soalho. O pobre do olongo abria as quatro pernas e espalmava-se pelo chão... Era olongo para um lado, biberão para outro e nós, com “caras de patos”, no meio de toda aquela confusão ouvindo os ralhetes da minha Mãe. A parte esquerda da nossa casa tinha sido inicialmente projetada com o propósito de ser um escritório para o meu Pai e assim aconteceu, mas não por muito tempo. A família aumentava: nasci eu, logo a seguir meus dois irmãos, e anos mais tarde a minha irmã, mas já integrante de uma nova história da vida familiar. Todo o ambiente do escritório começou a cruzar-se com a rotina de família, o que a tornava cada vez mais incompatível com o cantinho reservado que o meu Pai precisava para trabalhar e atender adequadamente os seus clientes. Anos 50... Eu era muito pequena enquanto aconteciam todas estas mudanças nas nossas vidas, e portanto não me apercebi do desassossego daqueles dias,
13 mas acredito que não tenha sido fácil para os meus Pais desistirem, em definitivo, de um sonho comum. Algum tempo depois o meu Pai alugou uma sala no centro de Moçâmedes para trabalhar, e ali permaneceu fielmente até à saída de Angola. Até hoje, tantas décadas decorridas após a independência de Angola, ainda existe uma placa, de mármore branco, na parede do edifício beirando a rua, onde se pode ver escrito: “Manuel João Tenreiro Carneiro – Advogado”. Porquê ainda não a retiraram? Acreditamos que apenas por comodismo, mas que lá fique, nem que seja para reconhecerem mais um filho de Moçâmedes que muito amou a sua terra. Moçâmedes era uma cidade bonita, limpa e agradável. Algumas das suas ruas foram especiais, tradicionais, e para sempre se marcaram como referências que nunca esqueceremos. Uma delas foi a Rua dos Pescadores, no centro da nossa cidade, uma das ruas mais movimentadas. Com a mudança do escritório do meu Pai para lá, a nossa casa aumentou consideravelmente seus espaços disponíveis e, para além da instalação definitiva da biblioteca no cómodo maior, eu fui a maior privilegiada. Um dos quartos foi reservado exclusivamente para mim, para dele fazer a minha casinha de bonecas. De certa maneira até que era justificável, pois eu tinha tudo o que uma casa de bonecas precisava. Era,na realidade, uma casa de verdade em miniatura, e faltava-me um espaço para poder usar o que tinha e assim poder brincar de uma maneira completa. Tinha até mesmo um armário em madeira, de um tamanho considerável, com cabides prontos a receber os vestidinhos de cada uma das minhas bonecas. A maioria das peças da minha casinha eram presentes de clientes especiais do meu Pai, pessoas muito pobres, da raça negra, que não podiam pagarlhe pelos serviços prestados e assim ofereciam o que tinham. Muito humildes, muito reservados, eles entravam pela parte de trás da casa, e chegavam à entrada da cozinha com grandes sacos de estopa, ora cheios de brinquedos em madeira, ora de frutas, legumes, ovos, galinhas, cabritos e até leitões... O meu Pai sempre quis que fosse eu a receber e a agradecer os brinquedos. Veio-me agora à lembrança a cor dos estofados dos sofás
14 que um deles me ofereceu, era em tons de vermelho. Inúmeros nativos de algumas regiões de Angola eram muito habilidosos para trabalhar com madeira e faziam coisas de particular beleza. Eram exímios entalhadores... Lembro-me das ‘’carrancas’’, das bengalas com cobras esculpidas e enroscadas a toda a volta. Lembro-me dos cinzeiros lindíssimos, peças de decoração e variadíssimos outros objetos. Certa vez vi uma arca, tipo daquelas de cânfora que vinham da Ásia Oriental, que nunca mais esqueci. Se esse homem que a fez tivesse vivido num País onde pudesse desenvolver aquela arte seria, no mínimo, reconhecido como artista plástico. Muitos deles, e muito habilidosos, viviam reclusos na prisão de São Nicolau, em Bentiaba, que era uma colónia penal política, a única cadeia de céu aberto de Angola: mantinha homens capturados durante a guerra colonial... Terroristas, como eram chamados, aquem, com bom comportamento, era dada a permissão para trabalhar na cidade, em casas de famílias ligadas ao funcionalismo público. Terroristas (perdão pelo uso da palavra), mas trabalhadores muito qualificados: eram grandes cozinheiros, doceiros, costureiros e muitos deles tinham bons conhecimentos na área médica que, pensando bem, eram por isso necessários dentro dos grupos de apoio dos que lutavam no meio do mato, em meio ao nada, contra as tropas portuguesas. Todos os presos eram trazidos de outros pontos de Angola. Quando havia alguma investida vitoriosa da tropa portuguesa, eram todos capturados e juntos encaminhados para a mesma cadeia que os guerreiros: todos enviado para a cadeia de São Nicolau. Início dos anos sessenta, eu tinha 9/10 anos quando começávamos a nos aperceber que alguma coisa de diferente estava acontecendo na cidade e nas nossas casas. Uma grande inquietude pairava no ar! Coisas fora do habitual... Conhecíamos pessoas fora do nosso convívio diário, um acúmulo de pessoas todas as noites em nossa casa, e muitas vezes sem mesmo entendermos qual o assunto das conversas. Palavras desordenadas, rostos tensos, e a minha Mãe nos pegando pelas mãos, às pressas, sempre nos conduzindo para os nossos quartos antes da hora normal, antes hora do
15 “xixi, cama”. Estes momentos estão muito presentes na minha memória! Foi assim que comecei a ter a certeza de que, “gente grande” também tinha medo. As pessoas de Moçâmedes estavam inquietas com alguma coisa, ou com alguém! Nós, as crianças, não sabíamos o que seria, mas nos apercebíamos que era algo sério. Um certo dia perguntei à minha Mãe do que se tratava ao que ela me respondeu que, talvez ela, eu e meus irmãos precisássemos de ir passar uns tempos à casa dos meus Avós, em Portugal. Entendi que o meu Pai ficaria e que teríamos de deixar todas as nossas coisas. Eu não me imaginava a viver sem a minha casinha de bonecas e imediatamente fui preparar-me para a mudança. Fiquei alguns dias guardando tudo o que havia dentro daquele quarto, e quando a minha Mãe notou o meu isolamento eu já havia empacotado peça por peça, absolutamente decidida a levar aquele tesouro comigo. Vendo a minha angústia, ela sossegou-me e disse-me que ainda não estava nada definido sobre a nossa ida para a Metrópole (nunca gostei desta palavra, pareciame que soava a algum tipo de comando sobre nós). Os dias passavam com normalidade, mas as noites eram cheias de acontecimentos misteriosos; eu via pessoas, carros e jipes estacionados em frente às casas da nossa rua, e os nossos Pais a entrarem neles em silêncio. Soube, anos mais tarde, que os nossos Pais eram a defesa da cidade! Eles deslocavam-se em grupos nas chamadas “ronda”, para os pontos mais desabrigados e mais vulneráveis, como o aeroporto. Cada um tinha a sua arma. Penso eu que fossem carabinas e caçadeiras. Quem as fornecia? Nunca soube, mas acredito que fossem propriedade de caçadores amadores, (e também alguns profissionais), uma atividade de esporte e lazer muito comum naqueles anos 50/60. Era assim por todo o País!... Só mais tarde começaria a chegar um reforço, um maior contingente da tropa portuguesa que se constituiu, com muita disciplina, como a força oficial pública de defesa das cidades em Angola. Moçâmedes foi uma das cidades que menos sofreu na época do terrorismo. Nunca houve um tiro disparado nem qualquer ato violento, fosse contra quem fosse. Convivíamos com vários povos tribais, até mesmo dentro das
16 nossas próprias casas, mas todos eles eram pacíficos. Muitos chegavam ainda meninos e cresciam junto conosco. Não podia haver povo mais dedicado que os mucubais, e foram eles quem melhor nós conhecemos. Foi deles que mais nos aproximávamos. Nunca ouvimos falar em qualquer conflito com os brancos (como nos chamavam). Podemos todos dizer que fomos grandes amigos! Terra abençoada! Uma terra anunciadora de energia purificada, onde nos sentíamos nascidos a cada momento. Estávamos em paz, e abençoados pela natureza MÃE, mesmo durante todos os anos de Guerra Colonial, período a que se chamou de terrorismo. Parece incrível, mas o único grande susto que passamos em Moçâmedes durante essa época foi na nossa própria casa, ao que me referirei oportunamente. Nunca houve nenhum grupo de nativos engajado em movimentos rebeldes de ataque aos brancos, em qualquer ponto do distrito de Moçâmedes. E eram muitas as etnias: himbas, mukuisses, bosquímanos (mukankalas), mucubais (kuvales)... Mas, eram pacíficos! Os mucubais. Ó, os mucubais! Quando deles me recordo é assim: grandes criadores de gado, resistência, poder, fibra, força, conexão com a terra! Em suma, auto-estima! Eram os nossos irmãos de região, os que mais próximo participavam do nosso dia-a-dia. Os nossos guardiões do deserto que, com seus inseparáveis porrinhos, nos orientavam os passos por toda aquela terra de areias soltas, uma interminável promessa de vida! Eles, nós e aqueles jipes por aquelas terras, jipes com tração às quatro rodas, preparados para atravessar as desafiadoras picadas do deserto do Kalahári. Com o tempo também se transformavam em mecânicos dos jipes, que lhes eram tão familiares quanto alguma coisa que lhes fosse íntima nas suas próprias vidas tribais. Parece que estou a vê-los: mulheres lindas, homens garbosos, altos, fortes, postura ereta, dentes afiados, com turbantes e peles de animais cobrindo-lhes o corpo seminu. Povos nómadas, e portanto prontos para grandes caminhadas pelo deserto! Untavam-se sempre com um barro vermelho para se protegerem do sol. Percorriam (percorrem) dezenas e dezenas dequilómetros por dia , com a resistência de quem está
17 próximo do Grande Espírito e Dele traz a energia. Um povo com uma identidade e um orgulho muito fortes, que persiste no seu modelo de vida e resiste à integração; não se fundem com outras etnias e raças. Não há lugar para submissão a qualquer outra tribo ou outra cultura. Um povo de espírito guerreiro quando defende as suas formas primitivas de hábitos de pastoreio. O gado era (é) fonte de riqueza, e negociavam com os brancos - em pé de igualdade- disputas de terrenos para pastagem. Permitiam-nos uma convivência sem restrições; deixavam que nos aproximássemos dos seus kimbos (várias cubatas dispostas em círculo), que participássemos de funerais noturnos que duravam toda a noite e que se transformavam em festa. Aceitavam que vibrássemos com eles nas batucadas ao cair da noite quando, literalmente, entravam em transe. E nós os recebíamos ainda crianças... Que saudades daqueles meninos! Quantas coisas vinham com eles... E quanto nos ensinavam! Quantos novos hábitos alimentares eles traziam para a cidade: comidas exóticas à base de dendém, e que nós, crianças, adorávamos. Quantas vezes corriamos para perto deles e fazíamos o nosso segundo almoço do dia. Mas tinha de ser ao jeito deles, até mesmo a maneira de comer. Tinha de ser com as mãos! Que vontade de voltar ao meu quintal e beber a bulunga, bem branquinha, aquela que só um mucubal sabia (sabe) fazer. Que vontade de voltar a comer daquele peixe seco, apenas lavado do excesso de sal e depois assado na brasa. Vontade de pegar a farinha de mandioca e o pirão com aquele molho delicioso : depois, e com um pedacinho de peixe nos deliciávamos como nunca, antes! O molho era feito a partir de um refogado de cebola e tomate em óleo de palma, e depois acrescentava-se mais um pouco de óleo, mas cru. Às vezes juntavam alguma água ao refogado, cozinhavam o peixe e acrescentavam alguma verdura: rama de batata-doce, por exemplo. Os meninos mucubais chegavam a nossa casa apenas com uma pequena tanga, descalços, e sem saberem falar uma única palavra de português. Deixavam para trás todos os costumes tracionais, e a minha Mãe transformava-os em criados com C maiúsculo: ótimos cozinheiros, jardineiros, e até copeiros que, com espírito de benevolência e humildade, aceitavam usar uniformes
18 impecavelmente brancos e com botões dourados para servirem à mesa. Serviam “à francesa”,absolutamente de acordo com o que lhes era ensinado. Sabiam como colocar castiçais de prata nas mesas... Dá para acreditar? MUCUBAIS?! Sim, mucubais faziam esse serviço! Enquanto serviam à mesa a minha Mãe comunicava-se com eles com os olhos, e eles entendiam-na perfeitamente. Mirando-me no exemplo da minha Mãe, não encontro uma única razão para que algumas pessoas da cidade tivessem tido necessidade de contratar empregadas domésticas da Metrópole. Parece que estou a vê-los à chegada, junto ao portão maior da minha casa, o da entrada do carro! Ainda acho que reconheceria o odor, apesar de já meio século ter passado. Era uma mistura de cheiro forte de gado, de estrume (o gundi que eles colocavam na cabeça), de capim e de água da chuva batendo em barro vermelho, o que resultava em algo a que nos habituámos e de que realmente gostávamos. Afirmo que era aquele o verdadeiro cheiro de mato. Com paciência, eram ensinados e preparados para viverem dentro das nossas casas. Sempre achei que fossem felizes, lá. Normalmente só voltavam para as suas terras quando tivessem conseguido comprar o bem maior para todos eles: uma bicicleta! Na volta para os seus Kimbos de origem (entre o Virei e o Distrito de Benguela) eles iam de comboio até um certo ponto, e depois carregando as suas bicicletas nas costas. Como isso era possível? Só eles, mucubais, poderiam explicar.
Capítulo III Nossas casas, dedicados criados, rotinas pacíficas e primeiras inquietudes.
Acho que, para todos nós, haverá para sempre algo comum em relação às mais queridas lembranças... As nossas casas e tudo e o que delas fez parte! Vivíamos com conforto e nada nos faltava. Mesmo os que, eventualmente, pudessem ser mais carentes em termos financeiros, moravam dignamente e podiam educar os seus filhos em boas Escolas. Assim decorriam as nossas vidas. Muitas famílias em Moçâmedes conseguiam comprar as suas habitações. O sistema de construção civil criou um apoio ao financiamento de imóveis através de uma Cooperativa de Habitação que possibilitou a compra de muitas casas próprias: essa Cooperativa era o “Lar do Namibe”! Normalmente eram ótimas vivendas e moradias, com bons acabamentos e cuidados jardins. Os nossos criados tinham os quartos no quintal das casas, assim como o local próprio para fazerem os braseiros onde pudessem comer em grupo, em volta do fogo, mantendo desta maneira iguais hábitos alimentares aos que tinham nos seus kimbos. Chegavam pequenos ás nossas casas e, com
20 o passar dos dias, começavam a falar português. Embora fosse ainda uma mistura com o umbundo por um bom tempo, conseguíamos conversar, nos comunicar e brincar praticamente desde o início. Participavam das nossas brincadeiras e, muitas vezes, nas nossas tarde de “coboiada” quando juntávamos, diariamente, de vinte a trinta crianças no jardim da nossa casa para jogarmos ao “TÁU”. Como precisávamos de um número par de participantes para esta brincadeira, ou seja, igual número de crianças para cada lado do campo de ‘’batalha’, então o Manuel (o copeiro), era chamado para completar as faltas. Ficava orgulhosíssimo, pois para ele era uma honra ser o escolhido e não o José ou o Branco, os outros dois criados de idade muito aproximada. Eram igualmente famosas as tardes de futebol com os meus irmãos e amigos, no quintal da nossa casa, mas os mais emocionantes encontros de bola eram no deserto, um pouco acima da nossa casa, no areal próximo à Escola Comercial: entre muitos, os nossos queridos amigos Mário João Duarte, Luis Bonvalot, Vasco Pinhão, Zé António, Albano, Yá Melo,Jorge Brás, Miguel Fiuza, Vitó e Rui Torres. Inesquecíveis encontros! Para estas saídas os nossos criados precisavam da autorização prévia da minha Mãe; podiam deixar o trabalho da casa, mas quase sempre com a calorosa interferência do meu Pai que era muito generoso no relacionamento.Sempre foram tratados como crianças que eram. O meu Pai uma pessoa de extrema sensibilidade, um humanista autêntico, acredito eu. Conheci duas únicas pessoas assim durante toda a minha vida: meu Pai, e meu Tio Raul Fernandes (Farrica), um Angolano de coração que daria a vida por aquelas terras se preciso fosse. Os nossos criados quase nunca faltavam à matinée dos domingos no Cine Moçâmedes... Era o meu Pai que lhes dava o dinheiro para que comprassem os bilhetes, mas impunha uma condição: que contassem o filme no dia seguinte. Podese imaginar o que era ver o José, o Manuel e o Branco, absolutamente empolgados, a contar um filme americano de cowboys!? Ou, então, a contar um filme de corridas automobilísticas, um dos temas preferidos dos três, e que eu tive o gosto especial de assistir do lado deles!? Nessa tarde
21 cometemos todos um pequeno desacato: nós, eu e meus irmãos, tivemos de entrar pela porta lateral do Cine Moçâmedes, a destinada aos nossos empregados. Não tínhamos ainda a idade de 12 anos, idade permitida pela rigorosa Censura para a entrada. Acho que vi o meu Pai com cara da comprometido, mas igualmente com um leve sinal de satisfação no rosto... Uma expressão de vitória, talvez; afinal, acabava de cometer um “pecado” que tinha valido a pena. E se valeu! Um momento ímpar! Batemos palmas com toda aquela criançada mucubal, e gritámos em coro como nunca mais faríamos nas nossas vidas. Eu não devia ter 10 anos de idade quando esta divertidíssima estória aconteceu. Eram assim as tardes de domingo para os criados lá de casa e era absolutamente hilário assistir aos relatos dos filmes daqueles meninos mucubais, coisa o meu Pai não perdia às segundas-feiras de manhã. Muitos dos acontecimentos eles tinham necessidade de explicar por mímica, pois não conseguiam encontrar vocabulário que pudesse transmitir o que tinham assistido na tela, e muito menos o que tinham sentido. O meu Pai ria às gargalhadas soltas, sempre com a voz da minha Mãe ao lado a implorar: “Deixa-os trabalhar, Manuel João”. Lembro-me muito bem do bem-humorado José, e do pequenininho que cuidava do canil e do quintal da casa, o Branco, mas o nosso amor maior sempre foi o Manuel, o criado de “dentro”. Ficou conosco até ao nosso último momento de Angola, e apesar de se ter tornado membro do Comitê do MPLA em Moçâmedes, foi-nos dedicado e fiel até ao fim. Nesta época eu já era adulta e casada, e recordo-me com precisão dos nossos últimos dias em casa dos meus Pais, em Moçâmedes. Ele, Manuel, estava sempre conosco, mas desaparecia na parte da tarde sem nunca nos dizer para onde ia. Nunca foi cobrado pelas suas escapadelas, pois nunca deixou de cumprir os seus deveres para com as obrigações da casa. Acompanhava todas as nossas conversas, especialmente enquanto nos servia no horário das refeições, mas nunca nos denunciou. Da sua boca nunca saiu algo que pudesse nos criar algum problema, o que com toda a certeza aconteceria se resolvesse contar o que ouvia. O que era falado na nossa casa ali ficava! Vivíamos tempos perigosos após o 25 de Abril! Muito desamparo... Um
22 mundo sem leis e sem regras. As tropas portuguesas deixaram Angola e estávamos à completa mercê da anarquia das facções políticas angolanas que, sem rumo, se instalavam de Norte a Sul do País. Pelo que sabíamos, na época eram apenas três movimentos políticos, mas com boa ação e combate a partir do poder estabelecido pelos líderes de cada partido político.Tempos de instabilidade! Era necessário um cuidado extremo em relação às nossas atitudes e impressões manifestadas sobre o que víamos acontecer à nossa volta. Cuidado com o que dizíamos, pois de uma simples conversa entre amigos no “Café” da esquina, ou de uma brincadeira poderiam surgir prisões completamente arbitrárias, ou coisas ainda mais graves. As paredes “tinham ouvidos” e eles não aceitavam o tom displicente, normalmente desinteressado, que a maioria de nós manifestava quando se referia aos novos e poderosos “governantes” de Angola: Agostinho Neto, Jonas Savimbi e Holden Roberto, os revolucionários líderes angolanos que disputavam o poder político em Angola. A maioria de nós tinha um grande desinteresse político,apenas alguns se engajaram naquela luta partidária. Apesar de tudo, e porque não dizer,apesar dos parcos conhecimentos e interesses políticos que tínhamos, muitos de nós ainda desejava pensar num futuro em Angola, mesmo quando começamos a vislumbrar o desequilíbrio social e governamental. Não nos passava pela cabeça abandonar aquelas terras! Não queríamos deixar as nossas vidas, desistir das nossas conquistas! Havia uma intolerância e uma altivez doentia da parte do poder instalado nas cidades (cada um a seu tempo), e nós andávamos completamente alheios ao que estava acontecendo em Portugal, mais precisamente desde o momento em que Angola foi VERGONHOSAMENTE entregue pelo Governo Português sem a mínima preocupação com as nossas vidas e nossos bens. Estávamos sós, e sem informações! Imprensa escrita? Não me lembro de a termos mais, ou pelo menos com regularidade. Era pela rádio que escutávamos alguma coisa sobre o destino da nossa terra, e assim permanecemos até ao momento final. Até lá tínhamos de ter um comportamento submisso
23 em relação a tudo que acontecia. Soube de casos em que, se alguns não tivessem tido oportunidade de fuga, com certeza que hoje não estariam vivos. Era comum os aviões portugueses carregarem, como bagagem “despachada”, passageiros angustiados e apavorados. Eram pessoas comuns, sem qualquer partidarismo político, que tinham cometido a pequena imprudência de participarem de conversas em público sobre os destinos de Angola. Os delatores normalmente não entendiam o vocabulário usado, interpretavam à maneira deles, comunicavam aos seus superiores e...! Essas fugas faziam-se de um momento para o outro, e sempre sem tempo para se pegar um saco de roupa em casa. Muitos nem levaram consigo qualquer documento. Entravam dentro de malas normais para o bagageiro do avião, e só eram retirados após a decolagem. Há muitos testemunhos de tudo isto, e eu mesma tenho um primo que pode relatar, com a maior exatidão e riqueza de detalhes,tudo pelo que passou. Aqueles últimos tempos em Angola, sem o apoio das tropas portuguesas, foram de sobrevivência. Não havia Governo instituído, e consequentemente não havia LEI. Andávamos constantemente receosos, e permanecíamos em completo silêncio especialmente quando estávamos perto de alguém uniformizado. Lembro-me com maior clareza dos militantes do MPLA, os últimos a terem o poder antes da proclamação da independência de Angola em Novembro de 1975; os últimos que eu me lembro de ter visto pelas ruas das duas cidades onde vivi em Angola, Moçâmedes e Sá da Bandeira. Recordo-me que uma vez me sentei na mesa de um “Café”, ao lado de outra onde estava um guerilheiro do MPLA com uma metralhadora e várias granadas penduradas nos ombros. Ao aperceber-me do perigo levantei-me sorrateiramente e deixei o local. Agi com cuidado, pois eles eram tão prepotentes e (...), que eu corria o risco que achassem ser uma atitude insultuosa da minha parte, tal como tinha acontecido no dia anterior quando me pediram para que saísse do meu carro quando passava em frente à Delegação do Movimento em Sá-da-Bandeira, e que ficasse em posição de Sentido no momento do içar da bandeira. E, eu
24 fiquei em sentido! Quieta, sem saber porquê, e para quem estava eu a fazer aquela cortesia militar. Que bandeira era aquela? Não fazia parte da minha educação, nem muito menos da minha criação em qualquer fase da vida. Apercebi-me, pois, do perigo que todos corríamos dentro do “Café”, daquele espaço completamente fechado, e a saída daquele local foi a atitude mais certa a tomar. Soube depois que, após a minha retirada, teria passado por lá uma viatura aos disparos de metralhadora enquanto descia a rua principal, a rua do “picadeiro”. Isto provocou um susto enorme em todos os que lá estavam, pois o tal emproado das granadas penduradas no ombro levantou-se atrapalhadamente, dando sinais de algum tipo de desequilíbrio. Começámos a perceber como seria a vida em Angola após a independência! Faltou-nos o ideal político de Humberto Delgado!!! Como nos faltou!!! O homem que defendia a necessidade de preparar o povo das Colónias antes de lhe ser concedida a autodeterminação. Estávamos entregues, completamente entregues ao “salve-se quem puder”. Eram três os movimentos políticos, e portanto, três problemas a resolver, porque nenhum deles iria desistir da ideia de governar aquele rico(íssimo) País. Iriam guerrear-se até que os líderes adversários acabassem eliminados. Sabíamos disso! Iriam, com toda a certeza, destruir Angola, e só parariam no preciso momento em que um deles permanecesse sozinho “lá em cima”. E foi precisamente isso que aconteceu... Aconteceu o que qualquer um de nós previu, ou melhor, todos nós, os que lá ficámos até ao fim. Saudades do nosso criado Manuel!... Ainda tão menino (pelo menos para nós), mas já um militante do MPLA. Ouvimos dizer que morreu em combate pouco tempo depois de termos deixado Angola. Deve ter dado a vida ao defender com corpo e alma a sua causa, pois era assim o nosso querido amigo Manuel: era dedicado, bom e fiel. O Manuéé, como os outros meninos mucubais o chamavam... Só eles, só mucubais, nos deixaram estas lembranças em Moçâmedes, e nunca ouvimos falar de outro povo, de outra etnia, que se tivesse adaptado
25 tão bem à vida com os brancos. Foram respeitados e gostados por nós. Acho que reconheciam esse sentimento e isso motivasse uma troca boa entre as duas partes. Sabíamos, pelas pessoas que tinham fazendas perto das áreas de pastoreio dos mucubais, de casos muito interessantes e mesmo curiosos: os mucubais tinham as suas terras, e os brancos as deles, mas muitas vezes havia a invasão de propriedades pela necessidade da procura de melhores condições de pastagem para o gado. Uma questão séria a resolver!? Nem tanto! Marcava-se um encontro solene entre as duas partes, e falavam de igual para igual. Não havia diferença entre o branco Sr. Doutor e o SOBA da tribo. Tinham de chegar a um entendimento comum, senão a reunião não tinha um término. Era assim que se convivia no nosso deserto do Namibe, no Distrito de Moçâmedes, na nossa terra... Éramos corretos, éramos decentes, todos. Eles e nós! Não eram só meninos mucubais que apareciam à nossa porta para pedir emprego, muitos outros nativos queriam trabalho nas cidades. O Governo do Distrito de Moçâmedes, tal como os de outras cidades de Angola, organizava a inclusão de nativos no quadro laboral, nativos que viviam em locais longínquos, e oferecia-lhes trabalho devidamente remunerado. Aos que aceitavam contratações particulares não se poderia garantir que isso acontecesse. Normalmente, os que eram contratados dentro da lei, se interessavam e aceitavam sem hesitações. Eram contratados por dois anos, ou por períodos pré-determinados. Os interessados em contratá-los dirigiam-se à Capitania, local onde se fazia o contrato. Habitualmente eram nativos que vinham do interior, na maioria filhos mais novos de famílias de mucubais empenhados em conseguir dinheiro para comprar mais cabeças de gado. Muitos eram levados para as indústrias de pesca, e os mais novos seguiam então para as nossas casas, para servirem como criados. Era necessária mão-de-obra nas cidades e eles eram um recurso. Tinham informações sobre a vida nas cidades, e conheciam o valor do dinheiro que lá poderiam ganhar. Eram procurados não apenas para trabalho doméstico, mas também para mão-de-obra em fábricas de
26 indústria de pesca e para serviços públicos, como limpeza da cidade, jardinagem etc. Eram chamados de “contratados”. A maioria deles já chegava com um contrato de trabalho fixo ou, então, com a interferência de algum familiar que, de volta ao kimbo, os indicava para uma casa particular que precisasse dos seus serviços. Estes homens e mulheres negras tinham outros locais para residência, afastados das nossas casas. Locais bem simples, em bairros do subúrbio da cidade. Lá viviam com as suas famílias e organizavam as suas vidas, fora dos horários de trabalho. Pelo que conta a história tinham etnias múltiplas, mas de igual origem: teriam vindo todos de uma região do Norte de África, da zona do Mar Vermelho. Ao ocuparem o continente africano, ao longo dos séculos, adquiriam as diferenças, criavam novos costumes, afirmavam as suas raízes e tornavam-se pastores, guerreiros, pescadores, agricultores, ferreiros, criadores de gado, de acordo com as regiões ocupadas. Esses bairros populares, os de subúrbio, no Sul de Angola eram chamados de sanzalas. Já no Norte eram chamados kimbos, no mato, e de musseques nas cidades. Eles mesmos faziam as suas casas, as chamadas cubatas, normalmente de um único cómodo, em barro, e com estrutura de apoio em estacas (galhos fortes de árvores). Infelizmente não tinham nenhum apoio dos Governos de Distrito. Foi um dos aspectos mais desumanos da colonização. Os Governantes em Portugal não se preocupavam com a falta do mínimo de condições de vida. Assim era por toda a Angola. No Lobito, por exemplo, na maior sanzala de lá, que era a Canata, havia apenas duas fontes/bicas de água para a população toda do bairro. Por todas as sanzalas e musseques de Angola os esgotos eram a céu aberto tal como no Brasil Colonial e na Idade Média, na Europa. Mas, apesar de todo o isolamento social, a humilhação do preconceito de exclusão que sofriam e a falta de saneamento básico, não eram completamente abandonados e entregues ao acaso: eram orientados e vigiados por elementos da polícia local, os Cipaios, negros como eles, mas já com uma certa formação e que trabalhavam para a polícia pública do Governo do Distrito. Os Cipaios eram os elementos repressores da
27 administração colonial que, muitas vezes de forma bem maquiavélica, fomentava o tribalismo: eram sempre de tribos rivais, nunca da mesma província ou tribo. Os brancos chegavam a questionar a razão de tanto ódio tantas vezes evidente entre eles, porque, na verdade, não entendiam nada do seu sistema cultural. No geral, o sistema colonial português mantinha o maior desrespeito pelas pessoas e cultura... era a maneira de melhor controlar. Isso ficou bem mais marcado depois de 1961 e no começo da guerra, quando chegaram os militares portugueses e as mulheres contratadas para darem aulas. Nos forçavam até o sotaque da Metrópole. Lembro- me de, após o meu exame de ditado da 4ª classe, ainda uma criança de 10 anos de idade, ter chegado angustiada a casa e dizer aos meus Pais que não tinha entendido nada do que a professora tinha ditado e que, portanto, iria reprovar na prova. Ela trocava os “Bês” pelos “Vês” e eu nunca tinha escutado alguém a falar daquele jeito. “Como ela falava mal português” - pensava eu. Não sei como não reprovei... Devo ter atingido o limite permitido de erros ortográficos para uma prova de ditado. Antes de 1961, ano em que foi declarada abertamente a guerra colonial, até o nosso sotaque era bem diferente do de Portugal. Até aos anos 60, embora os brancos fossem descriminados, e considerados brancos de 2ª os nascidos nas colónias africanas, o desrespeito pela cultura não era tão acentuado. Sem dúvida que a afronta pela cultura dos nativos ficou claríssima quando da chegada das mulheres de militares para darem aulas aos das colónias. Vinham com toda a bagagem cultural a ser imposta. Não eram só militares que eram enviados para combater em Angola (isso seria um grande erro, e não próprio de um homem inteligente como Salazar), chegava também o alicerce, o que faria crescer o ideal da cultura portuguesa, ou seja, chegava, paralelamente, o poder da força pela imposição da informação cultural e educação Europeia sobre os ideais políticos africanos.
Capítulo IV Vidas submissas a regras impostas pelo sistema Colonial, mas prazerosas. A educação e a informação eram exclusivamente para nós, os brancos, não para os nativos. No entanto existiam negros que estudavam nas mesmas escolas que os brancos e não eram discriminados. Foram poucos, mas podiam chegar até à Faculdade, ninguém os impedia. Obviamente, Portugal queria mantê-los na Idade da Pedra para que nunca conseguissem se valer do conhecimento para valorização da força da razão. Interessava ao Governo Português que continuassem inferiorizados perante a sociedade. Alguns deles, contrariamente ao previsto, eram ajudados por seus patrões brancos quando se apercebiam de capacidades e inteligências a serem aproveitadas e respeitadas. Conheci alguns que, depois dos estudos superiores e já devido a essa boa formação e educação, se juntaram às forças revolucionárias no período que antecedeu a independência de Angola. Embora a maioria de nós, brancos, nos negássemos a qualquer envolvimento político com os novos ares que começavam a soprar em Angola, reconhecemos isso como um fato normal. Fizeram eles muito bem! Defendiam a sua terra, ou pelo menos acreditavam que estavam