Rosa Lobato de Faria
Pedra Rara Dispersos e inéditos
Fotografia de João Francisco Vilhena
Rosa Lobato de Faria Pedra Rara
Rosa Lobato de Faria reuniu em Os Linhos da Avó (2004) contos e crónicas que havia escrito e publicado durante alguns anos de intensa actividade literária, mas depois disso e até Fevereiro de 2010 muitos outros trabalhos ficariam avulsos e sem editor, tendo sido dado prelo póstumo a um romance incompleto (Vento Suão), dois livros infanto-juvenis, A menina e o cisne e O balão azul, e ao inédito Alma Minha Gentil, com desenhos de Pedro Sousa Pereira, uma iniciativa de Cristina Ovídio, da editora Clube do Autor. A oportunidade de organizar o seu espólio já nos havia permitido juntar um livro inédito e poemas avulsos à edição da sua obra poética no volume A Noite Inteira Já não Chega. Poesia 1983-2010 (Guimarães, 2012). Chegou a vez de antologiar a prosa dispersa e inédita, renovando a presença literária e editorial de Rosa Lobato de Faria e sublinhando a sua capacidade de escrever em diferentes registos e géneros literários, o teatro incluído. Da nota editorial de Vasco Rosa
«Fina delicadeza e ousadia sem rodeios da mulher que sabe usar as palavras como instrumento de indagação das grandes realidades e dos grandes mistérios da vida.» Vasco Graça Moura «Insaciável vontade de criar e uma singular versatilidade.» Mário Assis Ferreira
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Parténon Edições
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Rosa Lobato de Faria
Pedra Rara Dispersos e inéditos Edição organizada por Vasco Rosa
Parténon Edições Natal de 2015
A hora das mulheres
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© Herdeiros de Rosa Lobato de Faria Parténon Edições Sítio do Livro, Lda. Rua da Assunção, 42, 5.º piso, sala 35 1100-044 Lisboa isbn 978-989-99472-0-7 Capa: © João Francisco Vilhena P. 22: © Pedro Soares P. 344: Retrato de Rosa de Nikias Skapinakis (1959), óleo sobre tela, 80 x 53 cm. Colecção particular Agradece-se a María Dolores Cortés e a Maria Teresa Horta, pela cedência de reprodução dos seus trabalhos
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Nota editorial
Rosa Lobato de Faria reuniu em Os Linhos da Avó (Asa, 2004, 220 pp.; 2.ª ed. 2014) contos e crónicas que havia escrito e publicado durante alguns anos de intensa actividade literária, mas depois disso, e até Fevereiro de 2010, muitos outros trabalhos ficariam avulsos e sem editor, tendo sido dado prelo póstumo a um romance incompleto (Vento Suão, Porto Editora, Maio de 2011, 174 pp., com posfácio de Eugénio Lisboa), dois livros infanto-juvenil, A menina e o cisne e O balão azul (Oficina do Livro e Asa, 2010 e 2011), o inédito Alma Minha Gentil, com desenhos de Pedro Sousa Pereira, uma iniciativa de Cristina Ovídio, da editora Clube do Autor (Outubro de 2013, 37 pp.). A oportunidade de organizar o seu espólio, em 2012, para doação à Sociedade Portuguesa de Autores, já nos havia permitido juntar um livro inédito e poemas avulsos à edição da sua obra poética no volume A Noite Inteira Já não Chega. Poesia 1983-2010 (Guimarães, Dezembro de 2012, 284 pp.). Chegou a vez de antologiar a prosa dispersa e inédita, renovando a presença literária e editorial de Rosa Lobato de Faria e sublinhando a sua capacidade de escrever em diferentes registos e géneros literários, o teatro incluído. A bem sucedida experiência de escrita e representação para televisão favoreceu-lhe uma transversalidade literária invulgar, de que é prova máxima a peça Camilla (v. pp. 217-46), recriação cénica do seu romance Os Três Casamentos de Camilla S., publicado em 1997 (5.ª ed. 2005), um exercício raro na própria literatura portuguesa. Por outro lado, o seu domínio e interesse pelo cânone — que Vasco Graça Moura lhe reconheceu numa apresentação da obra poética no Grémio Literário — permitiu-lhe escrever um «auto vicentino» dedicado à Padeira de Aljubarrota (cujas indicações de cena mostram ter sido escrito a pensar no pequeno ecrã) e adaptar para crianças outras obras do patrono do teatro português, para uma colecção de grande divulgação efémera, produzida pela editora Quasi. Nota editorial
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O espólio também permitiu descobrir Dias de Alma como Hoje (1996), um patchwork de textos de Fernando Pessoa, «costurado» em colaboração com María Dolores Cortés para um espectáculo que nunca viria a acontecer, dando conta da sua «perpétua fidelidade e paixão» pelo poeta dos heterónimos. A sua atenção romanesca a figuras históricas, aqui presente no conto «Vem o senhor» (pp. 247-59), transferiu-se igualmente para a dramaturgia, como em Joana. A Papisa e a lenda (2003-4; pp. 155-216), que aceita, partilha e desafia toda uma longa tradição internacional evocativa da lenda duma papisa medieval através do teatro musicado, do cinema e da literatura. A sua empatia especial com artistas mais novos levou-a a escrever Sete anos. Penas de um casamento para os amigos Rita Blanco e Fernando Luís. E, naturalmente, a condição feminina e a crónica contemporânea sob este ponto de vista — o maior e notório Leimotiv da escritora — são reafirmadas neste «florilégio final», em contos e crónicas e também numa entrevista concedida a Maria Teresa Horta, em Maio de 1995. Vasco Rosa
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Nota editorial
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Índice
05 Nota editorial, de Vasco Rosa 09 Pedra rara 21 Gil Vicente, Camões, Pessoa Auto do forno da Brites, 23 Auto da Índia de Gil Vicente adaptado para os mais novos, 48 Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente adaptado para os mais novos, 67 Alma minha gentil, 79 Dias de alma como hoje, 84
119 Saudade 123 Teatro! Sete anos. Penas de um casamento, 125 Joana. Papisa e lenda, 156 Camilla, 217
247 Vem o senhor 261 Crónicas Penélope, 263 Os presentes de Deus, 264 Judas, 265 Azul azulejo, 266 Espelhos, 268 Chuva na cidade, 270 Esta clara manhã, 272 Nem tudo o vento levou, 274 A hora das mulheres
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Elogio dos comboios, 275 A raiz e o fruto, 277 Aguardente de rosas, 279 Dias de Reis, 281 O raio verde, 283 Tango, 284 A verdade é só uma, 285
287 A hora das mulheres Mulher, 289 A bailarina, 292 A voz, 396 A gata e eu, 298 O postal no lixo, 301
303 Ler, escrever, ouvir Ler é navegar, 305 Ler é ler-se, 307 Inadiável é a escrita, 308 A palavra sedutora, 309 A palavra favorita, 312 Cantiga da rua, 315 Espírito assombrado, 317 Diálogo com o Fado, 318 A palha da alma, 319 Os olhos de Raquel, 321 Voando nas asas da fantasia, 327 Mário Zambujal, 329 Livro de Mágoas de Mário Martins, 331 Até p’rà Semana de Silvestre Fonseca, 333 Exercícios de Respiração de Hugo Gonçalves-Rato, 334
335 Não estar é da morte quanto sei 343 Apêndice Entrevista a Maria Teresa Horta (1995) 352 Bibliografia de Rosa Lobato de Faria 8
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Pedra rara
A hora das mulheres
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Sei que sou rara. Um capricho da natureza, uma anomalia geológica, fez-me nascer assim, diamante com tonalidades verdes e rosa. Não de um verde que se possa chamar verde, de um rosa que se possa chamar rosa. O verde é como se um pouco de água do mar ficasse em mim aprisionada desde o tempo em que os homens não molestavam as pedras porque as consideravam sagradas. É uma suspeita de verde apenas visível ao pôr-do-sol ou à luz das velas, e nem todos os mortais conseguem apreender o seu clarão. O rosa, ao contrário, só é visível de madrugada, como se eu tivesse absorvido uma nuvem do sol nascente ou trouxesse no coração uma rosa do jardim mais exótico da terra. Sou rara e linda e tão vaidosa que gostaria de escolher o meu destino. Sabendo o que sei hoje, ao fim de séculos nas mãos dos homens, escolheria viver encostada à pele de uma bela mulher, cujo calor conseguisse, de forma misteriosa, surpreender ao mesmo tempo o verde e o rosa em mim. E que dessa visão fossem apenas dignos olhos poetas ou sábios, ou tão puros como os de uma criança recém-nascida. Quando me arrancaram, há milhares de anos, do meu esconderijo, o homem que me encontrou, encandeado pela minha luz, que o transtornou, imaginou-se meu dono. Mas era apenas um escravo, trabalhando sob chicote, para um homem cruel e, porque sabia que ia ser revistado, tratou de me engolir, como era hábito fazerem os outros escravos quando o brilho de uma pedra os maravilhava. Mesmo por lapidar, havia sempre um raio de luz que lhes dava a entender a nossa beleza e, num gesto irresistível, guardavam-nos no único lugar que tinham de seu e que era o interior do próprio corpo. O escravo trouxe-me dentro dele uma semana. Mais nada funcionou no seu organismo. Tentou vomitar-me, mas não conseguiu. Contorcia-se com dores e logo o dono desconfiou do que se passava e, pegando na sua adaga, foi ele próprio Pedra rara
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abrir-lhe o abdómen, para me encontrar, lavada em sangue e em fezes mas, mesmo assim, emitindo clarões de luz verde como ninguém jamais vira. Mandou vir uma bacia de água e lavou-me. Tentei esconder a minha luz, mas aprendi, naquele momento e para sempre, que não tenho qualquer poder sobre mim, embora tenha um enorme poder sobre os outros. Enquanto o meu achador agonizava, o meu novo dono preparava-se para viajar. Conheci assim o que é balançar em dorso de camelo, o calor e o frio do deserto, o ruído das cimitarras entrechocando-se quando um bando de malfeitores atacou e matou o meu novo dono e eu caí na areia e ali fiquei, sujeita a um sol impiedoso e às tempestades do deserto. Várias delas me taparam, a última desenterrou-me. E assim, numa madrugada em que o sultão atravessava as areias com larga comitiva de que fazia parte a sua favorita, fui novamente achada para seguir o meu destino. A favorita do sultão era uma negra belíssima, enfeitada de lindos atavios e pedras preciosas que, do alto do seu palanquim, vislumbrou na areia uma luz cor-de-rosa. Mandou que o cameleiro que conduzia o animal lhe apanhasse aquele bocado de brilho, que encostou ao peito e, vendo que era uma pedra que reflectia os tons raros do nascente, guardou-a entre os seios, e ali fiquei, salva do esquecimento. A favorita, que se chamava Fatma, mandou-me lapidar, não sem que o lapidador ficasse guardado à vista, noite e dia, pelos soldados do sultão. Quando apareci na minha verdadeira beleza, e a minha nova dona se apercebeu do meu tom de nuvem ao amanhecer e do meu verde-mar à luz dos archotes, apaixonou-se por mim, cobriu-me de beijos da sua doce boca, suspendeu-me numa corrente de ouro e passou a usar-me no seu colo de garça. Fomos felizes durante muito tempo. Porém, embora eu resista aos séculos, aprendi que os seres humanos são efémeros. Um dia a minha dona morreu. O sultão, que a amava muito, mandou construir para ela um belíssimo túmulo, e enterrou-a com os seus bens mais preciosos. E comida, para que não tivesse fome no seu caminho para a eternidade, e bebida para que não tivesse sede. Uma grande ânfora com água serviria para lavar os pés na sua entrada no paraíso; todas as suas jóias preciosas, os seus vestidos e véus mais ricos e eu, no meu fio de ouro, pousada no seu peito. 12
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Privada de luz, ali fiquei a vê-la decompor-se, a sentir os vermes devorando o seu corpo de deusa. Custava-me a crer que o resto dos meus séculos fosse passado naquela escuridão, naquele silêncio, naquele horror. E um dia vieram os salteadores de túmulos, e viram-me envolvida nos ossos de um esqueleto, e levaram-me para me verem à luz do dia, e deslumbraram-se, e lutaram por minha causa, e vários cadáveres depois vi-me no colo de uma mulher branca, que não era deusa nem princesa, nem sábia nem poeta, e que tratou de me vender à rainha daquelas terras, pois pensou que ninguém mais seria digno de mim. Eu cada vez ficava mais vaidosa. Por mim homens lutavam, morriam, ganhavam os favores das mulheres mais belas. Pois ao ver uma tal pedra ao pescoço da rainha, o rei ordenou-lhe que a tirasse para a oferecer à amante, que andava esquiva nos últimos tempos. Foi comigo que a reconquistou. Teve o bom gosto de me oferecer à luz dos candelabros e, como se eu fosse mágica, logo o seu coração começou a bater pelo rei, que era velho e perdera o vigor que ela exigia. Passei a conhecer os seus segredos. Não era apenas o rei que frequentava a sua cama, mas também um jovem lindo, forte como um touro e doce como a brisa da tarde. Se o meu coração de pedra pudesse abrigar outro sentimento para além da vaidade, ter-me-ia apaixonado por ele. Um dia, num arrobo de loucura, sabendo que o rei tinha ido viajar para longe, o jovem passou a noite com ela e de madrugada, grata pela noite inesquecível que ele soubera oferecer-lhe, a minha dona colocou-me ao pescoço do seu fogoso amante. Era a hora da minha luz cor-de-rosa e o jovem ficou enfeitiçado por aquele clarão e não pensou nas consequências funestas que aquele gesto poderia ter. Vivi feliz, escondida na roupa do meu amado (se eu pudesse amar...). A minha ex-dona disse ao rei que me perdera ou que me roubaram, mostrou grande tristeza e até chorou um pouco. Contou isto ao namorado num dos seus encontros amorosos e ambos riram do velho rei. Porém, um dia, num jogo de espadas que se armou no palácio, eu e o meu fio saltámos para fora do gibão do rapaz, que no calor da contenda não deu por nada. Pedra rara
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Era a hora do sol-pôr e lancei o meu raio verde-água, e todos reconheceram a minha cor inconfundível. Teria protegido o jovem, se pudesse, mas faz parte da minha natureza a magia atractiva dos meus cambiantes, e o rei, vendo-se traído e sem atender a súplicas, mandou matar os dois amantes que assim o humilharam perante a corte. Quanto a mim, aguardava-me um destino diferente. O rei meteu-se no seu bergantim e foi lançar-me em alto mar, e todos os habitantes das águas vieram ver-me deslizar lentamente, lentamente, até ir aninhar-me entre plantas aquáticas e pedras de nenhum valor. Foi ali que o grande peixe me observou, me provou e me comeu. E viajou, e viajou, e viajou, e eu com ele. Lembram-se da eterna história do peixe que vai ter à cozinha da princesa levando no seu bucho a jóia, a chave, a pérola, o bilhetinho revelador? Pois fui eu a primeira a quem isso aconteceu e dei, depois, origem a todas as outras histórias em que o peixe, lançado à mesa da cozinha, traz dentro de si a solução para um final feliz. Aquele peixe, com cara de poucos amigos, que me devorou, foi pescado, misturado na rede com centenas de peixes, posto à venda num mercado barulhento e finalmente comprado por uma cozinheira simpática, de grandes peitos e grandes ancas, bochechas rosadas do calor do fogão. Comprou-nos e quando abriu a barriga do peixe ficou absolutamente estarrecida, tão estarrecida que se pôs a gritar. Ali estava eu, esplendorosa, naquela cozinha burguesa, e os donos da casa, que acorreram, entenderam que eu seria um óptimo dote para a sua filha única, de quinze anos, chamada Carol. Isto passava-se, parece-me, num país de nome Holanda, onde são grandes apreciadores de diamantes. A menina Carol passou a usar-me ao pescoço, mais como um brinquedo do que como um adorno. Tirava o fio para o pôr nas bonecas e eu receava ir um dia parar ao lixo juntamente com os seus desenhos amarrotados, os lápis sem bico e os pincéis velhos. Nunca me viu ao amanhecer, porque estava a dormir, nem ao pôr-do-sol porque estava a estudar. O mestre vinha todas as tardes dar-lhe lição de geografia, de história da 14
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Holanda, um pouco de literatura e de aritmética e, sobretudo, desenho. Esta era a disciplina de que ela gostava mais. E o professor também. Inclinava-se sobre ela, segurava-lhe na mão, roçava a face nos seus cabelos, que tudo fazia parte das necessidades da aprendizagem. Tinha este mestre um outro aluno que era um génio da música. Apareciam-lhe na cabeça sinfonias inteiras que o enlouqueciam e não lhe permitiam aprender mais nada. O piano do seu quarto soava noite e dia, o que punha os pais desesperados sobretudo quando os mestres lhes diziam que ele não tinha aproveitamento em mais nenhuma área do conhecimento. Nem latim, nem matemática, nem francês, que era a língua fina própria de qualquer cavalheiro. Assim só havia uma solução. Proibir Dagmar de tocar o seu piano, para que, de uma vez por todas, se esquecesse da música. Fizeram isto e o músico, que já o era, caiu numa tristeza tal, que em nada achava o menor gosto, incluindo a comida, a bebida e o sono. Mas o maior problema é que a música acumulava-se na sua cabeça e o enlouquecia. Escrevia de noite as suas partituras e desesperava-se por não poder ouvir no piano os sons que ouvia a toda a hora dentro de si. Sonhava com grandes orquestras que executassem as suas notas, os seus sons, tudo aquilo formando concertos, sinfonias, hinos, cantatas, muitas coisas para um rapaz de dezasseis anos carregar no cérebro e no coração. E então o mestre, que também era mestre da menina Carol, numa das lições de desenho em que aproveitava para, além das leis da perspectiva, lhe ensinar as leis do desejo, tocou-lhe ao de leve na pele do seu pequeno decote e segurou-me entre os dedos e, como sempre acontecia, ficou subjugado pela minha luz. Aquela não era a minha hora rosa, mas alguma coisa no meu translúcido coração se confundiu. Talvez a pele virgem da Carol, o clima das carícias cor-de-rosa do mestre para que, além da luz verde-mar do final da tarde, eu reflectisse um pedaço de céu do ritual sacrossanto do nascer do sol. Pensou o bem-intencionado professor que talvez aquela pedra tivesse o poder de acalmar a tortura em que se debatia o pobre pianista. Pediu à Carol, que sabia generosa, que lhe emprestasse o seu cordão de ouro com a fabulosa pedra que trazia ao pescoço e a Carol riu-se. Isto é só uma pedra que apareceu na barriga de um peixe que a Hilga trouxe do mercado. «Claro que eu empresto mas não diga Pedra rara
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aos meus pais, pois eles até me ralham quando eu ponho a pedra ao pescoço das bonecas.» E assim o mestre levou-me ao jovem músico e, nos primeiros instantes, a minha luz extasiou-o, os sons acalmaram dentro da sua cabeça e ele, infinitamente grato, beijou o mestre e mandou agradecimentos à menina Carol, que não conhecia, mas por quem instantaneamente se apaixonou. Conseguiu finalmente dormir e comer alguma coisa, mas agora era a paixão que o impedia de gozar plenamente a acalmia musical que eu lhe proporcionava. Disse aos pais que pretendia pedir a menina Carol em casamento, e aqueles, a quem já dera tantas ralações, proibiram-no de cometer tal loucura. Além da sua idade não se adequar minimamente a um passo tão sério e tão adulto, a família da jovem não foi considerada à altura social da família deles, que tinham na ideia uma aristocracia subjectiva, que os tornava arrogantes e inacessíveis. A partir daqui as tragédias desencadearam-se. Em primeiro lugar os pais de Carol deram por falta da pedra e ela explicou, com toda a candura, que o professor lha pedira para tentar curar um aluno doente. Os pais inferiram que o professor tinha roubado a pedra. Chamaram a polícia e o mestre foi intimado a entregar-me aos seus legítimos donos. Ele não me tinha, é claro, mas pensou que, se privasse o pianista da minha companhia, ele voltaria a enlouquecer, já bastava terem-no proibido de fazer a corte à menina. A pobre Carol teve de dizer à polícia quem tinha a pedra e o jovem Dagmar, alertado por um criado de que a polícia vinha aí, escondeu-me sob uma montanha de partituras. No mesmo instante a música voltou à sua cabeça. Como um louco ia descrevendo as notas que ouvia e comandando a orquestra imaginária: Violinos, dizia ele, flautas, dizia ele, agora a trompa, ah sim, finalmente o solo de piano, numa doce declaração de amor. A menina Carol, que tinha acompanhado a polícia para fazer o reconhecimento da pedra, ficou apaixonada por ele, pelo seu génio, pela sua loucura e, enquanto os adultos discutiam, conseguiu dizer-lhe que queria ser sua noiva, e casariam, e teriam filhos, todos génios, e guardar-me-iam como talismã. E como tinha aprendido com o mestre de ambos o arrepio da sensualidade, passou-lhe dois dedos no rosto e só não o beijou na boca porque reparou que a mãe dele estava a olhar. 16
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Foram então proibidos de se voltarem a ver e passaram a inventar os estratagemas mais loucos para se encontrarem, mas as dificuldades eram cada vez maiores. Entretanto, para remorso de ambos, o professor apodrecia na cadeia, considerado o ladrão da pedra rara que eu era. Combinaram então que a Carol ficaria comigo para poderem confirmar que tudo não passara de um mal-entendido e assim devolverem o mestre à liberdade. Assim foi feito. Mas não passou despercebido aos pais de ambos que tudo isto era fruto de furtivos encontros e a partir daí prenderam-nos em casa. O jovem Dagmar, privado de mim, sem ver a sua amada e com a música a encher-lhe toda a cabeça, suicidou-se com uma corda do violino que tencionava construir assim que a sua cabeça acalmasse. Carol, ao saber da notícia, entrou para um convento, não sem antes me lançar ao canal, culpando-me de todos aqueles infortúnios. Não era novidade para mim o arrepio da água na minha transparência. Mas desta vez não havia de durar muito: um jovem mendigo, que apanhava sol mesmo à beirinha do canal, viu o meu brilho precioso multiplicando-se nas águas como uma chuva de estrelas, e mergulhou para me apanhar. Um guarda, porém, que igualmente ali procurava o calor daquele sol de Inverno enquanto fingia cumprir o seu dever, tinha observado o gesto de Carol, o reflexo nas águas e o mergulho do vagabundo. Pensou, como bom holandês que, se era um diamante, antes fosse para ele, que tinha filhos. E pôs-se a perseguir o rapaz que fugiu como um gamo pelas ruas dos bairros pobres, assaz perigosas para um guarda fardado. Cansado, escondeu-se o moço numa oficina de carpinteiro. Olhou em volta e escamoteou-me no segredo de uma escrivaninha pronta para entrega, onde me senti muito bem. Habituada às perfumadas mãos da menina Carol, ao seu doce colo, aos seus lábios de orvalho que me beijavam tantas vezes, a roupa suja do mendigo tinha-me empanado um pouco o brilho. Reconheci também que, por onde passara, tinha semeado o mal, o crime, o infortúnio. Seria eu uma pedra maldita? Invejei os homens, que podem emendar os seus erros, corrigir as suas faltas, e partir para uma vida com menos pecados. Não é o meu caso. Sou testemunha muda das infelicidades que vou espalhando pelo mundo através dos séculos. Será que eu preferia ser um simples seixo do rio? Não. Pedra rara
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A vaidade é mais forte. O poder é um vício. Prefiro ser a mais bela pedra do planeta. Pensava com desgosto na hora em que o mendigo viria recuperar-me, mas isso não aconteceu. O móvel foi entregue ao homem que o encomendara para a filha que ia casar e que estava a ultimar os detalhes da sua nova casa. O segredo da escrivaninha era tão secreto que fiquei no escuro durante anos a pensar que certamente o mendigo tinha sido ladrão de casas ricas para reconhecer tão bem os fundos falsos dos móveis. Passados alguns anos a minha dona enviuvou e voltou a casar com um rico mercador que a levou para outra terra e apenas escolheu a mobília que lhe pareceu mais valiosa. Lá fui eu, é claro, dentro da escrivaninha, mas desta vez o mercador encontrou-me e hesitou entre oferecer-me à mulher, alardeando a sua imensa fortuna, ou aumentá-la, vendendo-me na corte de Inglaterra. Fiquei a saber que já era uma lenda. O mercador ouvira falar aos seus congéneres do Oriente numa pedra rara, de beleza incomparável, que passara de mão em mão com o seu poder maléfico, até que desaparecera, sabe-se lá aonde. Teve a certeza de que era eu. Desistiu então de presentear a mulher por quem estava muito apaixonado (embora não se importasse de lhe mentir) e foi oferecer-me a um lorde inglês que costumava ser seu cliente. Não lhe falou, é claro, da fama negativa que me acompanhava, mas apenas salientou o meu brilho, a minha luz verde-rosa, o meu império sobre as mulheres. O lorde comprou-me. E para a sua imensa fortuna, foi uma gota de água o preço da escrivaninha que o mercador vendeu como o meu escrínio secreto, mostrando-lhe o esconderijo onde ficaria bem guardada. O lorde nunca me ofereceu a nenhuma mulher. Limitava-se a emprestar-me às suas amantes que, comigo ao peito, brilhavam nas festas e nos grandes acontecimentos. Consta que a própria Rainha Vitória cobiçou a jóia do colo de uma dessas mulheres. Mas ela limitou-se a sorrir e, com uma vénia, agradeceu a distinção que lhe era feita. A desvantagem dos verdadeiros segredos é que morrem com os homens. Assim, quando o lorde se finou, fiquei de novo no segredo daquela preciosa madeira 18
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perfumada, a descansar mais de cem anos. Aproveitei para meditar como conhecera os grandes deste mundo, os burgueses, as mãos sujas dos ladrões e dos salteadores de túmulos, as vísceras de um peixe e de um escravo. E aquilo de que mais gostei foi da pele e perfumada das mulheres a quem, se desencadeei algum infortúnio, também proporcionei o prazer hipnótico do meu brilho que, julgo poder afirmar, elas não trocariam pela paz pobre de quem não teve o privilégio de me possuir. Bolanda após bolanda, a escrivaninha foi, já no terceiro milénio, parar a um leilão. Um homem de beleza, de bondade, de cultura e de inteligência raras, adquiriu-a, comigo no segredo, e soube desmontar o esconderijo e encontrar-me. Durante dois dias e duas noites não pôde afastar-se de mim, e assim assistiu à minha hora rosa-nuvem, a minha hora verde-mar. Trazia uma mulher no pensamento. Escolheu um vinho raro, uma comida rara e mandou-me encastoar em ouro. À hora do jantar pediu a mulher em casamento e ofereceu-lhe o mais belo anel do mundo. Hoje vivo no dedo anelar de uma mulher feliz. Uma mulher feliz, que coisa rara! Quase tão rara como uma pedra rara contar a sua história.
Pedra rara
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Gil Vicente, Cam천es, Pessoa
A hora das mulheres
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Teatro Maizum
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Auto do forno da Brites
Brites de Almeida, conhecida por Padeira de Aljubarrota, nasceu em Loulé e teve uma vida aventurosa e invulgar. Matou piratas, mouros almocreves e até com soldados andou à espadeirada. Esteve presa e acabou em Aljubarrota como padeira, depois de ter andado pelas feiras e ter feito trabalho de almocreve, por vezes disfarçada de homem. Mas o mais célebre episódio da sua vida, que a trouxe ao imaginário de todos os portugueses, foi aquele em que, tendo encontrado escondidos no seu forno sete castelhanos fugidos da batalha de Aljubarrota, ali os matou com a pá do forno. Vamos contar-lhe essa história ao jeito dum auto vicentino.
Padaria, com enorme forno, uma mesa com duas gamelas (esferovite), montes de pão de todos os feitios. Janela e porta a darem para um pedaço de rua praticável.
Cena 0 Sobre fundo negro, a apresentação das personagens A Brites pode falar à moda do Algarve e ter bigode Brites Brites é a minha graça De profissão sou padeira Quando meto a mão na massa sai fornada de primeira. Vicente Meu nome é Vicente Gil Camões, Gil Vicente, Pessoa
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Sou solteiro e bom rapaz com as damas sou gentil com os homens Ferrabrás. Sancha fala axim Eu xou Xancha Bianinha de Dona Brites criada Ponho-me a fajer farinha finjo que num beijo nada. Paco fala «espanhoel» Paco Ensalada Bénitez De D. Nuno tomo tiento pero de la Dona Brites quiero el pan... y el fermiento. Anjo Eu sou o Anjo Papudo que nos autos nunca falta Venho com asas e tudo trazer notícias à malta. Atrás do Anjo acende-se a padaria onde Brites e Sancha estão a lidar. O Anjo, atrapalhado, sai de campo nas pontas dos pés.
Cena 1 Padaria. De dia Brites Mete no forno as carcaças c'um caraças! Peneira a farinha triga! Não me encostes a barriga ao tabuleiro da massa! Se me queimas as cavacas 24
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há já aqui uma briga! Haja um raio que ta parta, rapariga. Sancha Eu tenho que fazer tudo! As broas, as vianinhas as formas e os cascudos as carcaças, os moletes as tranças, as cavaquinhas os brioches, as baguetes... Brites Os brioches faço eu! Assim como as arrufadas as tortas e as regueifas que não as quero queimadas. As gamelas estão lavadas? E passa o pano no chão! Sancha refilona Eu não tenho quatro mãos! P'ra trabalheira tamanha, Só sendo polvo ou aranha! Brites Tu comigo tem cuidado que eu não sou p'ra brincadeiras! Já despachei um soldado um mouro, quatro piratas e quando andava nas feiras e se armavam zaragatas eu era sempre a primeira a pegar no varapau. Amando-te uma estalada que até te ponho de gatas! Mau, mau, mau. Camões, Gil Vicente, Pessoa
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Paco vem à janela Mi delicada donziela mi timida mariposa te quiero para mi espioza assoma-te à la janiela. Sancha Isto deve ser comigo! Terei Paco por amigo E se com ele for casada já terei quem me defenda desta padeira malvada. Brites amassa o pão e finge que não ouve Brites Doña Brites, minha prienda! Doña Brites, minha flior! Paco Ensalada Bénitez Suspira por vuestro amior! Sancha Olha, parece mentira! Ele quer namorar a Brites «Com a Sancha aqui tão gira!» Paco Ó Sancha, tu não me irrites Estoy ablando a tu patroa que es hermosa e mucho boa Pra lhe chegares aos calcantes tens de comer muita broa! Brites Eu não preciso de amantes! Saia daí seu fuinha que lhe despejo a farinha mesmo em cima do sombrero Atira-lhe com farinha 26
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Já disse que não o quero nem com molho de hortelã. Paco ¡Ay Dios, que génio más feio! Brites Vai fazer queixa à mamã! Sancha Se ele viera pra mim eu juro por minha fé que ia descalça e a pé à Ermida, a São Crispim. Levava-lhe um borzeguim todo bordado a cetim e um arrátel de pão mole do forno da Dona Brites. Isto se Paco Bénitez a quem chamam o espanhol se enrabichara de mim! Vai à janela, mas o outro já lá não está Sancha Tu não sabes o que eu sinto! Meu coração como arde! Plano de fora para dentro Vê se vens aqui às cinco! Cinco em punto de la tarde! Brites vem por trás Acabou-se o entremês! Leva-a para dentro à estalada Vai atender o freguês!
Camões, Gil Vicente, Pessoa
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Cena 2 Vicente Gil surge na rua e assoma à porta Vicente Brites, formosa rainha aviai-me dois moletes que a fome está esganadinha a moer-me os gasganetes. Tenho fome de vos ver tenho fome de comer tenho sede de bober e tenho medo de morrer. Que el-rei D. João I vai dar batalha a Castela E eu, soldado e guerreiro, não me livro de entrar nela! Brites Que dizeis? Ides p’rá guerra? Deixais a vossa padeira? Vicente Vou com D. Nuno Álvares Pereira que há-de levar esta terra a ser eterna nação independente e feliz sob a bandeira de Aviz do nosso rei D. João. Brites Comei pois o vosso pão Vede como ‘inda está morno! E é oferta da casa! Abraça-o Já sabeis qual é a paga antes que eu, como o meu forno, 28
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me ponha p'ráqui em brasa. Sancha Esta mulher é só manha Que sangue mais assanhado! Vicente Gil começa a abusar Eu quero ver se o soldado tem fogo p'ra tanta lenha! Brites Mas olhai que sou donzela Sancha faz troça purinha! Ouro da lei! Não me vires a panela! Não te contenta a gamela E o queijo que te dei? Vicente D. Brites, minha amiga vou p’rá guerra. E se não torno? Deixa-me encher a barriga e aquecer-me no teu forno... Brites Vinde almoçar no domingo, antes de ires p’rá grande ceifa, um almocinho castiço. Tu entras com o chouriço, eu entro com a regueifa! Sancha Cuidado, senhor Vicente, Vem aí o capitão! Inda o apanha em flagrante com a carcaça na mão!
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Cena 3 Sancha está sozinha na padaria Paco à porta Puedo entrar? Sancha Ai! Certamiente! Mas D. Brites não está... Foi folgar com D. Vicente p'raquela banda de lá. Paco Es contigo, chica mia. Quieres ser minha conversiada? Estoy a pierder a mania de querer a coisa da tia, agora quero a criada! Sancha de joelhos, abraça-se à pá do forno como se esta fosse um santo Ai São Crispim Salvador! Ouviste a minha oração? Hei-de pegar-te ao andor no dia da procissão! Paco Que fazes? Estás agachada abraçada a essa pá? Sancha procura em cima do balcão Eu, Paco? Não... Não é nada... Procurava uma arrufada que estava ao pé da empada e agora já não está... Paco À louca da tua ama vamos encher de ciúmes! El outro vai p’rá batalha 30
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no puede aquentar-le a cama. Sancha E eu quero ver, Deus me valha quem é que l’apaga os lumes! Paco Tu puedes venir comigo? Con tu Paquito querido? Será que la Sancha... pode? Sancha É claro que a Sancha pode! Mas é claro como água! Paco Só me queda mucha mágoa daquele hermoso bigode! Sai abraçado a ela, com um olhar brando para trás.
Cena 4 Brites está a tirar pão do forno, chega Sancha Brites Ai agora é que me vens? Depois de eu ter amassado cento e quarenta e dois pães? Sancha hipócrita Ando cheia de cuidado por minha mãe, coitadinha! Fui perguntar à vizinha que foi lavar à ribeira que conhece uma rameira que passa lá no casebre se viu minha mãe na eira Camões, Gil Vicente, Pessoa
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e se tinha muita febre. Mas respondeu-me a vizinha que ninguém a enxergou! Chora imenso Decerto já se finou a minha pobre mãezinha! Brites Olha lá! E a farinha? Não chegou até agora! Mas isto é o da Joana? Sancha Não me ralhe minha ama que, se calha, a esta hora já eu sou uma órfãzinha! Brites Venho de dormir a sesta e encontro, vejam-me esta: a padaria fechada! E os fregueses ao postigo que vinham buscar a broa já estavam d’olhos em bico! Sancha Não se enfernize comigo, que quando eu me vi plantada fiz o mesmo que a patroa: Fui dar água ao mangerico! Cala-te boca! Brites amansada Está bem! Como amanhã é domingo e a tua mãe está doente e vem por aí Vicente... que... (que é que rima com domingo? 32
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agora não se me vem...) Sancha É... pingo, bingo, flamingo! Brites desabrida Vai lá p’rá da tua mãe!
Cena 5 Brites está à janela, vê vir Vicente Gil, vai à porta. Outro dia Vicente Que tenha um bom domingo D. Brites, minha bela! Brites Vi-vos chegar, da janela... Vindes almoçar comigo? Está a sair a carniça, Tomai a gamela. Chica! Que me queimei na panela: Ou foi praga de Castela ou foi por faltar à missa... Vicente A Sancha? Comem. (Cuidado, não havia talheres. A carne é posta no pão e cortada com a faca que Vicente traz à cintura.) Brites Pediu licença p’ra ir visitar a mãe que está velha e alquebrada. Por um lado ainda bem, que anda aí alvoraçada Camões, Gil Vicente, Pessoa
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por causa duma presença que a mim não me agrada nada! Vicente É preciso mão na moça se ela é namoradeira! E dar-lhe mais serventia! Mandá-la arrumar a loiça, ajeitar a prateleira e lavar a padaria... Brites Sabeis aquele castelhano, o Paco, todo aperaltado? Que anda aí há mais dum ano p’ra me comer um bocado com rodeios de cigano? Vicente É o Paco bailador que as moças traz enganadas. Dos dentes tira uma flor, canta-lhe juras de amor... Já está! São favas contadas! Brites Andou-me aí com falinhas, olhinhos de anho mal morto. Mas eu respondi-lhe torto disse-lhe duas das minhas. Vicente ri-se Desandou à moda antiga! Brites Tomou ares de apoderado foi falar à rapariga, dançou-lhe um sapateado trauteou-lhe uma cantiga... 34
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Coitada da Sancha amiga! Permita São Leonardo que lhe não cresça a barriga... Vicente Castelhano de olho preto «Filho de puta ladrão», como diria o meu neto de seu nome Gil Vicente lá p’ró século dezasseis. (Será poeta eminente orgulho dos portugueses e fará seus entremezes na presença até de reis!) Brites Essas coisas lá sabeis... Ou tendes fé no futuro ou dizeis isso no escuro p’ra me deixar embaçada? Vicente Não te peço que acredites!... Dá-me cá outra arrufada vinda da melhor fornada do forno da Dona Brites. Dão-se beijinhos, muito alarves e ele dá-lhe palmadas no rabo.
Cena 6 Rua. Com fundo de viola espanhola, Paco e Sancha estão abraçados. Vicente Gil sai da padaria Vicente Largai lá a rapariga que não é p’ró vosso dente! Camões, Gil Vicente, Pessoa
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Paco Io no soy hombre de briga senhor soldado Vicente. Ora deixai que vos diga que la chiquita es mi nobia, nobia de Paco Bénitez! A vós não vos chega a côdea das tortas da Dona Brites? Quieres también el miolo? Sancha mete-se para dentro Vicente Não se responde a um tolo. Sacai lá da vossa espada Batei-vos por minha fé! Para a câmara, gabarola (Que isto nem merece nada, resolve-se ao pontapé!) Paco puxa da faca En la ponta de mi faca se murió mucho brigante! Vicente com a espada no ar Cale a boca, seu farsante! Mais vale que ajoelhe e reze! Paco altivo Pero hoje es dia treze... no vos daré esse gozo Soy muy supersticioso qual gitano que se preze! O Paco desata a fugir Vicente Eu dou-te a superstição! Desfaço-te sem demora ó vergonha dos ciganos! 36
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E vede com que aflição amanhã por esta hora entre gritos e estocadas fugirão os castelhanos à frente das nossas espadas!
Cena 7 Outro dia. Brites vai sair, entrega a casa a Sancha Brites Guarda tu a padaria que eu vou ali numa pressa p’ra fazer uma promessa a Santa Virgem Maria. Que a batalha seja ganha, Vicente Gil volte são e deixe quando casado este mister de soldado porque já ninguém me apanha outra vez nesta aflição! Sancha Também a pedir sois franca! Três promessas numa só? Senhora, da pobre Santa tende dó! Já vejo que D. Vicente é bom mestre e bom aluno... Brites bate-lhe Atrevida! Impertinente! Está calada que me móis! Ouvem-se vozes. Voz Off grita Camões, Gil Vicente, Pessoa
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Fugiram sete espanhóis aos soldados de D. Nuno! Brites Isto quer dizer vitória! Eu vou já. Venho depois contar o resto da história. Corre pela rua, Sancha espera um minuto e corre atrás dela.
Cena 8 Paco vê a porta aberta e verifica que não está ninguém Paco ¿Que pasa? ¿Donde estarion? ¡Está apagado el foguión! ¡Mas que bela ocasión de me vingar da padera e del Vicente cabrón! Já sabeis de que maneira! Vai à porta e solta um assobio e fala baixo Podeis venir! Podeis venir! Dentro do fiorno a escondiê-los ... E eles vão puxar-lhe os cabielos e eu vou-me fartar de rir...
Cena 9 Brites chega da igreja, põe-se a arrumar as coisas, de vez em quando ouve barulho, começa a desconfiar. Às tantas espreita para o forno Brites Mas que temos nós aqui? 38
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Sete formas de centeio Com um buraco no meio e gradas, que nunca vi! Mas muito mal amassados! Pega na pá Mal tendidos, muito crus! Santo nome de Jesus precisam de ser sovados. Começa a dar pázadas nos espanhóis P’rá massa não ser pesada — Toda a gente sabe disso! — tem de ser bem amassada tem de levar no toutiço! Então p’ra que ninguém esqueça quem é a Brites de Almeida vai um chuto na cabeça sete pázadas na peida! Castelhanos de dentro do forno. Voz Off ¡Ay, ay, ay, ay, ay, ay, ay! ¡Mujer más braba no hay! Voz Off (Não te esqueças que estás a levar) Vamos a hacer un acordo tenemos mucho dinero ourito de castellanos e para usted sera todo si nos dejar sin más danos. Brites Ai novidade tamanha que já falam os cascudos! Já lhes saiu das entranhas fala mansa e mansas manhas como se foram cornudos! Entretanto, lá vai lenha! Camões, Gil Vicente, Pessoa
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