Por uma Vida Melhor

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Manuel do Nascimento

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FICHA TÉCNICA Por uma Vida Melhor – Memória de Vivências Manuel do Nascimento EDIÇÃO: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) AUTOR:

REVISÃO:

Liliana Simões Ângela Espinha PAGINAÇÃO: Alda Teixeira

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CAPA:

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TÍTULO:

Lisboa, Novembro 2020 ISBN:

978-989-9028-07-4 474833/20

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DEPÓSITO LEGAL:

© MANUEL DO NASCIMENTO

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

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ÍNDICE 7

O primeiro grito do Manel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O Manel e a escola. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O padre da aldeia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os passatempos na aldeia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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As injustiças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

35

Tudo começa aos 12 anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

39

A ida para lisboa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O dia da inspecção militar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Chegada a França . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A partida do Manel para o estrangeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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À procura do Manel, . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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o desertor, no Estado Novo salazarista. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

67

O Manel em França. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

75

Uma vida de mais de meio século . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

75

Associativismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Anos de preparação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Em família, o Manel foi à terra em 1995. . . . . . . . . . . . . . . . .

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Mudar de ramo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Encontro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

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PRÓLOGO Cada livro tem uma alma, que representa quem o escreve

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e quem o lê.

Este livro pretende retratar acontecimentos com a simplicidade de quem os viveu, através das palavras simples da

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nossa gente. Cada um tem a sua história, que pode ser inimaginável, bela, picante, romanesca, brutal, manhosa.

Podem parecer histórias anedóticas, absolutamente surreais, porém, são bem reais e fazem parte das nossas vidas.

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As memórias que se guardam das vivências no seio da

família, da aldeia onde nascemos e crescemos estão ainda bem presentes nas gavetas do nosso cérebro, mesmo que, por vezes, não estejam organizadas e se encontrem até bastante dispersas.

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A história de um indivíduo resulta de uma sucessão de

acontecimentos que ocorrem ininterruptamente. As experiências da vida formam a nossa identidade, mas a nossa memória é selectiva. Além de conservar quotidianos repetitivos, preserva lembranças detalhadas dos momentos mais marcantes da nossa vivência. Temos um narrador adolescente que escutava atentamente as histórias de uns e outros, apaixonado pela forma como se cruzavam com momentos-chave da história portuguesa. 7

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A realidade é que tecer considerações sobre o património cultural, sobre a terra ou sobre algum indivíduo em particular é sempre uma tarefa ingrata. Ingrata, porque ficará sempre muito por dizer do muito que sempre se diz ou se deseja transmitir.

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É difícil descrever o património cultural da nossa terra ou das suas gentes, tanto quanto possível, de uma maneira imparcial.

O sentido que devemos atribuir à própria noção de patri-

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mónio, deve ser percebido como algo que foi herdado e que nos ajuda a melhor apreender o passado, com o qual ficamos

para sempre obrigados a tudo fazer, no sentido de o transmitir às gerações futuras nas melhores condições possíveis.

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O Manel, nascido numa pacata aldeia, é o protagonista

desta narrativa. Desde as suas vivências na aldeia que o viu nascer, à sua mudança para Lisboa, onde viveria alguns anos, e finalmente a sua partida para o estrangeiro. Uma derradeira viagem para escapar ao dever militar, que o obrigava

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a embarcar para terras do Ultramar, obrigando-o a lutar por um povo que desconhecia, sem sequer entender a razão para tal guerra. Uma coisa era certa, a propaganda salazarista impedia os portugueses de verem a realidade do que se passava no Ultramar. «Uma guerra injusta e criminosa.» Portugal vivia numa ditadura salazarista desde a Constituição de 1933. Uma constituição feita por Salazar e para Salazar. Salazar não era corrupto, mas corrompia. Durante aproximadamente cinquenta anos, transformaria Portugal 8

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numa quinta e os portugueses em emigrantes. Empobreceu a cultura portuguesa e, se por si não roubou o Estado português, roubaria a liberdade do seu povo durante o período de quase meio século em que prevaleceu o Estado Novo salazarista.

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Felizmente a maioria dos portugueses são como os camaleões, e o Manel não foi excepção. Também emigrou, acabando por se adaptar à sua nova vida no estrangeiro.

Olhando para trás, para os anos mais importantes da

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sua vida, aqueles que o tornaram no homem que é hoje, e se é verdade que não possuía um caderninho onde apontar

a sua história, preservou-a, guardada na prateleira das suas memórias e, ainda que empoeiradas, decidiu que chegara a

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hora de soprar a poeira e contar o seu percurso.

Existem, certamente, escritores que nunca tiveram nem

caderninho nem prateleira, com ou sem pó. Mas as palavras do narrador têm a força de contar as suas «vivências», a sua experiência, os seus desejos mais secretos, os seus medos, a

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sua força e determinação e a sua realidade, e é o que se propõe fazer.

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O PRIMEIRO GRITO DO MANEL

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O Manel nasceu em meados do século XX, no dia 10 de Agosto de 1949, uma quarta-feira, numa pataca aldeia

da Beira Alta, situada entre a região do Dão e do Douro. Só daria o seu primeiro grito da parte da tarde, à hora da sesta.

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Dois dias após o seu nascimento, Portugal sofria uma

onda de calor em que se registariam 35 ºC em Lisboa e 45 ºC em Elvas.

Nesse mesmo dia, ainda pela manhã, o povo dava a notí-

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cia de que também nascera uma rapariga, a filha da vizi-

nha do castelo (castelo é um local na aldeia, porque adoptou esse nome ninguém sabe. Assim como também não se sabia quem seria o pai da menina, apesar de existirem desconfian-

ças, diziam as más línguas).

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Coisa rara, diziam na terra, dois nascimentos no mesmo

dia, na mesma aldeia, uma rapariga e um rapaz. Porém, do Manel conhecia-se o progenitor, apesar dos seus pais se terem casado à pressa, quase em segredo, e o Manel ter ido, também em segredo, ao casamento na barriga da sua mãe. A boda, realizada às 9 horas da manhã do dia 30 de Abril de 1949, assim rezam os papéis, contava somente com a presença dos padrinhos, que, no dia 26 de Setembro do mesmo ano, seriam também os padrinhos de baptismo do Manel. 11

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O pai do Manel era filho de pai incógnito, que, após o seu nascimento, regressara ao Brasil, onde nascera e onde morreria sem nunca o reconhecer. Daquele lado da família, só o seu avô paterno o legitimaria como neto. Já a sua avó, mãe do seu pai, nunca casaria, porém ainda

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teria mais três filhos e uma filha, cada um de pai diferente, contudo, ninguém falava deles.

A verdade é que o Manel nunca conheceu os avós. Do pai

do seu pai já se conhece a história, o pai da sua mãe morrera

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ainda antes do seu nascimento. Da sua avó materna sabia que tivera duas filhas e três filhos, e que anos mais tarde, já viúva, vivera com outro homem, de quem o Manel se

recordava. Também se lembrava de um tio que conhecera

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quando já era adulto, irmão da sua mãe, tinha estado preso, desconhecera sempre o motivo.

Nunca teve curiosidade em saber mais sobre a família,

fosse sobre a vida dos pais, do irmão da sua mãe ou até mesmo dos outros irmãos do seu pai. Possivelmente com

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receio de ser agredido ao estalo por tocar em assuntos tão delicados.

A avó do Manel, após o nascimento de cada filho, pas-

sara a oficializar o seu reconhecimento notarial, coisa que não acontecia regularmente, sobretudo entre as ditas pessoas nobres. Temos o exemplo, segundo consta nos livros de História, de Afonso Costa, que mais tarde chegou a estadista, cuja mãe só o reconheria aos 14 anos, tendo feito o mesmo com o irmão dele. 12

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Segundo reza a história, os pais de Afonso Costa tinham casado somente após perfilharem as crianças. O que para os princípios morais do século XX pareciam estar já no moderno século XXI. Temos outros exemplos: Eça de Queiroz, nascido em

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Póvoa de Varzim em 1845, filho ilegítimo de um magistrado, criado pelos seus avós, que só seria reconhecido pelos pais por ocasião do seu casamento em 1886.

Ao que parece, naquela época, eram raros os homens

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e as mulheres solteiras reconhecerem os filhos recém-nas-

cidos. O povo dizia que, eles ou elas, fugiam às suas responsabilidades quando só lhes interessava saciarem os seus desejos — hábito comum entre alguns homens e mulheres.

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Não era raro as raparigas, na sua inocência, caírem mais do que uma vez nas promessas feitas após uma gravidez. Mas, ao que parece, também existiam algumas que diziam não se quererem enfadar com crianças e as rotinas de um casal, para não serem escravas.

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A verdade é que neste século XXI, existem mulheres

escravas dos próprios maridos, que sofrem, que são espancadas e que morrem às mãos de quem as devia proteger. Haverá um dia, neste mundo, mais respeito entre os seres humanos? Sem distinção de sexo, onde as mulheres possam ser consideradas não somente como esposas e mães, mas, principalmente, como Mulheres! Ou o Homem quererá ser sempre poderoso, o mais forte?! A verdade é que mui-

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tos homens ainda acham que uma mulher se deve dedicar somente à casa, aos filhos e ao marido. Mas regressemos à aldeia, ao Manel. Digo aldeia, mas em tempos idos fora concelho e vila pelo foral de 1250, do rei D. Afonso III. Tinha casa da

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câmara, cadeia, tribunal, juiz ordinário e outras autoridades civis. Como autoridade militar, tinha um capitão que comandava uma companhia de ordenanças, sujeito a um

capitão-mor de uma vila vizinha. É de sublinhar a arqui-

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tectura dos tempos da monarquia, que conserva ainda hoje

casas brasonadas de elegante estilo arquitectónico das famílias nobres. Também é de frisar o estilo manuelino da janela de uma casa quinhentista, bem visível ainda nos nossos dias,

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na Rua do Areal.

Em 1836, o concelho foi extinto por ordem da rainha

D. Maria II. A aldeia do Manel era a sede concelhia e ainda conserva o pelourinho como testemunho. Teve dois juízes ordinários, dois vereadores, um procurador do concelho, um

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escrivão de câmara, um juiz de órfãos, um tabelião judicial, um alcaide, um capitão-mor e duas companhias de ordenanças. Pertencia à coroa… esta terra, villa de El Rey. Já no século

XXI, no ano 2001, a sua aldeia é novamente elevada a vila. O historial da aldeia do Manel é bastante rico. As suas

origens remontam a tempos pré-históricos, facto comprovado pelos vestígios arqueológicos aí encontrados: mamoas, castros e vestígios de romanização, como a sua bem preservada estrada. A história da aldeia remonta a tempos anterio14

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res à nacionalização do território e teria sido povoada pelo mouro Zadam Abem Win (ou Hin), segundo o regulamento de Lamego de 1030. O Manel gosta de lembrar as gentes e o meio rural característico da sua aldeia. Os tamancos de solas de pau a

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soarem pelos caminhos e atalhos da vila. A sinfonia dos sons das campainhas e dos chocalhos colocados nos pescoços das

ovelhas e cabras, enquanto pastoreiam por montes, vales e lameiros. O cheiro da resina das matas de pinheiros; a sin-

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fonia dos grilos, das cigarras; as andorinhas a adornarem os seus ninhos; o voo das rolas e pardais.

Na aldeia, tudo corria ao ritmo das estações do ano. No Verão, o roncar das malhadeiras nas eiras, a tarefa

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das ceifas e as malhadas que davam trabalho a tanta gente. Os homens, crestados pelo sol, segavam o centeio e o trigo, que douravam as searas, transportados para as eiras, amontado nos inúmeros rolheiros. Antes das malhadeiras, as malhadas eram a braço de homens, todos ao mesmo ritmo,

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bem lá alto, com o seu mangual.

Também de lembrar, a desfolhada do milho, da qual

o Manel se lembra com nostalgia. Um trabalho para as mulheres, meninas e meninos. Depois da desfolhada, era necessário secar as espigas, que eram espalhadas nas eiras. Todas estas fainas faziam parte do dia-a-dia das gentes da aldeia. No Outono, era a limpeza das pipas, porque se aproximavam as vindimas e o pisar do novo vinho. 15

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Os homens, com os cestos vindimeiros às costas, apoiados numa trouxa, caminhavam em fila, atrás uns dos outros, da vinha para o lagar, onde as uvas eram esmagadas, pisadas por homens e mulheres. Onde o vinho, depois de fermentado, era envasilhado nos tonéis ou pipas.

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As grandes quintas da aldeia e da região davam trabalho a muita gente: homens, mulheres e rapazotes. O Manel também vindimou quando tinha 10 e 11 anos. Durante a noite,

ia para o lagar para a pisa das uvas. Esta era feita ao ritmo

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de uma concertina e de cantigas à desgarrada; e, de vez em quando, com uma gota de aguardente e figos secos.

No Inverno, o Manel ajudava na apanha da azeitona e assistia à produção do azeite. Da apanha, a maioria servia

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para fazer azeite, separando-se algumas azeitonas para consumo e para estarem prontas a ser consumidas meses mais tarde, para isso, era necessário curti-las e conservá-las. Havia ainda a apanha das nozes e das castanhas, com a celebração do magusto, onde não podia faltar a jeropiga. Também era

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a época da poda das árvores e das vinhas. Era nesta altura que se preparavam as terras para um novo ciclo de sementeiras. As gentes idosa e mais nova, sentadas nas soleiras das portas das casas, costuravam, tricotavam, dizendo coisas do povo, era a Internet dos nossos dias. Na Primavera, preparavam-se os terrenos para as culturas dos cereais e legumes, com a preocupação de cumprir com as normas agrárias de forma a aumentar a produção. O Verão e a Primavera eram os períodos mais fartos em 16

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comida, principalmente com a variada fruta da época. No Outono e Inverno, derivado ao frio e ao gelo que queimavam as culturas, havia escassez, porém as batatas e as couves nunca faltavam. Na casa do Manel não havia fartura, mas havia semfundo do pote de ferro.

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pre uma sopa de feijão ou de couve a fumegar à lareira, no A comida era escassa na maioria das casas por falta de e roupa.

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dinheiro, o pouco que havia servia para comprar azeite, sal A cozinha, tal como os quartos, não tinha janelas. As

divisões eram separadas por tabiques de madeira, iluminadas pela luz que passava através das telhas de vidro.

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O que tornava a cozinha, por vezes, tão escura como o resto das telhas em terra. Na casa existia uma janela por onde entrava a luz do dia ou o luar nas noites claras. Durante a noite, a luz no interior das casas provinha de candeeiros a petróleo com «torcidas», que mais pareciam

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tochas a esfumaçar.

A maior parte das casas tinha dois pisos: o rés-do-chão

ou loja e o primeiro andar, que era a habitação. Existiam ainda algumas casas que possuíam sótão, que, na maior parte das vezes, só rastejando se conseguia avançar. Na loja eram guardadas as ferramentas do trabalho dos campos; a lenha que era utilizada nas lareiras; as batatas; os cereais; o feijão seco; a palha; e alguma fruta e castanhas, guardadas para consumo ou para trocas por outros produtos 17

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alimentícios necessários que não tinham. Para alguns dos habitantes, a loja também servia para guardar o gado. O trabalho nos campos era de sol a sol, começava com o despontar do dia até já ser noite cerrada. O que implicava que durante os meses de Verão as horas de trabalho fossem

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longas. Na noite da consoada não podia faltar na mesa o tradicional bacalhau cozido e o polvo. Para sobremesa, havia rabanadas, feitas com farinha de trigo, molhadas em ovo e fritas na

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frigideira. Havia filhós preparadas na véspera da consoada,

feitas de farinha, água, sal e fermento, que depois de amassada ficava a levedar. Em seguida, colocava-se uma sertã com azeite ao lume da lareira e, mal esta aquecia, mergulhava-se

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um pouco daquela massa estendida, muito fina, em forma de pequena piza. Assim eram feitas as filhós de Natal. Na mesa não faltavam as nozes, os figos secos e a aletria,

doce feito de esparguete muito fino, cozido com açúcar, que depois de colocado nos pratos era polvilhado com canela.

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O arroz-doce era confeccionado do mesmo modo, e para quem tinha dinheiro, levava leite e limão. Nesta noite, deitavam-se depois da meia-noite. Os pais

e os filhos jogavam com os filhos, com confetes, ao par ou

pernão1, e depois comiam as filhós polvilhadas com canela

e açúcar.

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Par ou ímpar, a quantidade da mão fechada como se dizia na minha terra. 18

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Contavam-se lendas do Natal, algumas da terra outras das terras vizinhas. Naquela época, na aldeia, não havia troca de prendas para as crianças, por vezes, era somente um rebuçado ou uma laranja, quando havia. Brinquedos existiam poucos ou nenhuns para a maioria

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das crianças da aldeia. Portanto, tinha de haver criatividade, tanto dos pais como das crianças. Na cidade era diferente, já havia brinquedos, não sendo necessária nem imaginação

nem criatividade. Isto foi o que viu o Manel quando chegou

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a Lisboa. Enquanto na aldeia os brinquedos principais para

os rapazes eram o pião, os botões e andar de arco, feito de um arco em ferro difícil de encontrar ou de pneus de carros, depois dos sapateiros terem aproveitado o que necessitavam

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para fazer calçado.

A época natalícia era a oportunidade de juntar a família,

tanto na noite de consoada como no dia de Natal. Nesse dia, como no do Ano Novo, a maior parte da população da aldeia tinha por tradição ir à missa. O padre dava a beijar

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o menino Jesus, e as pessoas davam o pouco dinheiro que tinham ou um presente. No final da missa do Galo e na noite de Ano Novo, havia

um leilão para a venda das prendas ofertadas ao menino Jesus. Ninguém sabia para onde ia o dinheiro, apesar de alguns afirmarem que era para a Igreja. Garantido era que no fim do sermão, do leilão, do Natal e do Ano Novo, tanto o padre como o sacristão apressavam-se na sacristia a contar o dinheiro amealhado. 19

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Porém, havia sempre um magnífico presépio feito com pinheiros, musgo e todas as figurinhas tradicionais religiosas, que só era desmontado depois do Dia de Reis. Além desta, existiam outras festividades. As festas e danças do Entrudo. Os poetas do povo, ditos

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poetas populares, escreviam versos nos quais lhes davam um título histórico ou simplesmente um tema. Estas festas eram

tradicionalmente teatro popular ao ar livre, percorriam as praças e caminhos. Um teatro feito pelo povo, para o povo.

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Um teatro aberto a todos, sem restrições. O povo não era

erudito nem tinha essa pretensão, a verdade é que a maior parte dos textos estão actualmente perdidos.

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Benditas sejam as cantigas Dos moços inesperados, E a fé das raparigas

No amor dos namorados, Os bailes e as danças

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E os contos dos serões.

Nos três dias de Carnaval, que iam do Domingo Gordo

até terça-feira, milhares de pessoas do povo enchiam as praças e terreiros da aldeia para recitar, cantar e ouvir os milhares de versos escritos para a ocasião. Ao que parece, nos meados dos séculos XIII e XIV, tais diversões conheceram o seu período florescente. Mais tarde,

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nos séculos XV e XVI, diversas representações e recreações ocasionais eram apresentados na Corte Real. Gil Vicente, na sua formação popular, foi na corte de D. Manuel I e de D. João III, organizador de espectáculos palacianos, tendo a seu encargo a celebração de nascimen-

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tos e casamentos. O teatro vicentino é uma criação original de Gil Vicente a partir de elementos tradicionais, dispersos legados da sociedade portuguesa da sua época.

Segundo consta, antes de Gil Vicente, já tinham sido

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encenados espectáculos palacianos por altura do casamento

de D. Isabel de Portugal com Filipe, duque de Borgonha, em 1429, e durante as cerimónias do casamento do Infante Afonso de Portugal com Isabel de Castela, em 1490.

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O Manel recorda-se de assistir na sua juventude a uma

pequena comédia acerca do parto de uma mulher, com a saída de uma boneca e a abertura de uma botija de água tingida de vermelho, tudo colocado numa almofada atada à barriga. O autor e actor da comédia era um homem que

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não sabia ler nem escrever. Naquela época, eram raras as pessoas que tinham televisão, por esse motivo, era imperativo ser inventivo para criar divertimentos. A Páscoa era outra celebração religiosa também bas-

tante festejada em família. Havia doces e bola de carne. Uma tarefa exclusiva das mulheres que ocupavam os fornos públicos da aldeia. As madrinhas davam folares aos afilhados, bolo típico da festa.

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Estes dias estendiam-se, desde sempre, durante o ano, quebrando o ritmo penoso dos dias de trabalho duro. Natal, Páscoa, Carnaval, São João e o ciclo da natureza pareciam fundir-se com o calendário cristão. No Carnaval ou no dia do Entrudo não havia carros a

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desfilar nas ruas, mas havia pessoas com os bolsos cheios de farinha para enfarinhar quem passava, enquanto outras utilizavam pó-de-arroz, que era mais cheiroso.

Também era tradição, as crianças da escola primária

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entregarem um presente aos professores. Num cesto enfeitado ia um cabrito que os pais tinham comprado para oferecer como presente.

As crianças, enfeitadas com fitas, liam versos, chama-

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dos de testamento do cabrito. Em geral, após a entrega do cabrito, o professor oferecia um lanche. As crianças ficavam felizes com a entrega do presente mas principalmente pelo lanche oferecido.

Ainda durante a semana de Carnaval, havia os casamen-

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tos. Os rapazes juntavam-se no ponto mais alto da aldeia e com um funil diziam o nome das raparigas com quem deviam casar. Claro que não passava de um jogo.

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O MANEL E A ESCOLA O Manel, apesar de gostar de ir para a escola, não perce-

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bia o motivo de existir em todas as salas de aulas, por cima do quadro de lousa, um crucifixo, as fotografias de Oliveira

Salazar, de Craveiro Lopes, de Américo Tomás e de ter de

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cantar o Hino Nacional antes do início de cada aula. Sem saber a resposta a todas essas curiosidades, os dias e os quatro anos de estudos continuaram, sempre com o mesmo cenário

matinal na escola, até obter o seu diploma da 4.ª classe, que

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significava o fim dos estudos primários obrigatórios.

Durante as aulas, uma vez por semana, o padre da aldeia

vinha à escola falar de Deus. Por vezes, falava de alguém ou de uma família em particular, fosse para dizer bem ou mal. O Manel não compreendia por que razão o padre fazia

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aquilo.

Também costumava dizer que «quem toca no corpo,

acorda o diabo! Deus vê tudo! Deus está em toda a parte!». Achava que ninguém percebia o que queria dizer, ele certamente não o entendia. Só mais tarde viria a compreender o sentido das suas palavras. Durante os quatro anos de estudos, o Manel teve duas professoras e dois professores. Já naquela época, as aulas eram mistas. 23

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