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Apoio de:
Amílcar José Morais
| Construção Social para a Comunidade Surda
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Surdidade
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Esta obra assume-se como um contributo para o caminho a seguir pela Comunidade Surda: Surdidade. O termo Surdidade, Deafhood, foi criado por Paddy Ladd, no Reino Unido, a sua perspetiva é muito necessária para todos os Surdos portugueses para uma reflexão global sobre o que se passa nas lutas e movimentos em Portugal que pretendem a descolonização da maioria. Vivemos no país do medo, do restrito e da recusa da identidade de casa sujeito, o Surdo vier num círculo de opressão sem um papel definido. O que aconteceu aos Surdos em Portugal? Vivemos presos a um sistema dependente do Estado e rotulamo-nos como "oprimidos" e apelidamos a maioria de “colonizadores". Queremos retomar tudo como antes do início do Congresso Internacional da Educação de Surdos em Milão no ano de 1880 que foi uma mácula na educação de Surdos? Queremos anular as consequências deste temível evento em famílias, em profissionais de saúde, no mercado e de trabalho e em muitas outras áreas? A Surdidade é um termo fundamental para nós portugueses, mas o crescimento dos movimentos sociais da Comunidade Surda tem sido feito desde o ano de 1958, urge agora agirmos sob este prisma. A Surdidade encerra em si um poliedro completo onde cabe língua, identidade, cultura, representatividade e respeito. Este livro é uma porta aberta para ver, instigar e agir na Comunidade Surda. Neste livro, que resultou da nossa dissertação de mestrado, mostramos como os Surdos se perspetivam em termos de posicionamento social, na e perante a Comunidade Surda e a sociedade maioritária procurando aferir se ainda estão na posição submissa de menos capaz, de perda ou incapacidade. Procuramos mostrar que está nas mãos, na Língua, a construção de uma identidade coletiva e individual, defendendo o Surdo como membro de uma comunidade linguística minoritária representada por uma língua digna, mas que ainda tem um caminho a seguir para se efetivar para todos como um todo.
Amílcar José Morais
Surdidade Construção Social para a Comunidade Surda
Amílcar José Morais Nativo em Língua Gestual Portuguesa; Mestre em Sociologia no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa; Professor Especialista em Línguas e Literaturas Modernas - Língua Gestual Portuguesa; Professor Adjunto Convidado da Escola Superior de Educação de Coimbra; Investigador integrado do Núcleo de Investigação em Educação Formação e Intervenção (NIEFI) da Escola Superior de Educação de Coimbra, IPC; Docente do Centro Educação e Desenvolvimento António Aurélio da Costa Ferreira e Jacob Rodrigues Pereira e da Casa Pia de Lisboa, IP; Ativista e autor de vários artigos sobre temas afetos à Comunidade Surda.
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SURDIDADE: CONSTRUÇÃO SOCIAL PARA A COMUNIDADE SURDA
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título: Surdidade: Construção
Social para a Comunidade Surda José Morais edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) autor: Amílcar
imagem de capa:
António Cabral Ângela Espinha paginação: Paulo Resende capa:
isbn:
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1.ª edição Lisboa, janeiro 2022
978‑989-9028-47-0 491898/21
depósito legal:
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© Amílcar José Morais
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao seu autor, a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total.
publicação e comercialização:
www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500
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Amílcar José Morais
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SURDIDADE: CONSTRUÇÃO SOCIAL PARA A COMUNIDADE SURDA
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AGRADECIMENTOS
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Tenho a grata oportunidade de, neste meu primeiro livro decorrente do trabalho de Dissertação de Mestrado, poder dar o meu contributo, enquanto sociólogo, para uma reflexão sobre a Comunidade Surda. Para o trabalho que agora apresento, tive a importante participação, a confiança e o apoio de inúmeras pessoas Surdas e das instituições de maior referência para a Comunidade Surda nomeadamente, a Associação Portuguesa de Surdos (APS) e a Federação Portuguesa das Associações de Surdos (FPAS). Sem todos eles, não teria sido possível avançar na minha investigação. O meu maior e sentido agradecimento a todas as pessoas Surdas, sobretudo aos quatros entrevistados, que representaram a “elite” da Comunidade Surda, e às instituições que contribuíram para a concretização desta dissertação. À Marta Morgado e à Mariana Martins, o meu sincero agradecimento pela dedicação em organizar e publicar os dois primeiros volumes da obra inovadora de Paddy Ladd, Em Busca da Surdidade, livros que foram fundamentais no meu despertar para esta temática, de forma mais consistente e estruturada. No contexto da referida publicação, o autor esteve em Portugal no ano de 2013, circunstância que impulsionou o meu interesse e reflexão sobre a cultura e a Comunidade Surda portuguesa, sendo que obra que, no presente, público é a materialização do amadurecimento destas questões.
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Ao Professor Doutor António Pedro Dores e ao Professor Doutor José Casanova, professores orientadores da minha dissertação, muito agradeço o apoio, a partilha do saber e os importantes contributos para o trabalho. Acima de tudo, muito obrigado por acreditarem na minha perspetiva e na da Comunidade Surda que se contrapõe, em muitos aspetos, à visão médica e social. Agradeço igualmente pela disponibilidade para escrever a nota de apresentação e prefácio do presente trabalho. À Tânia Laima, à Susana Rebelo e à Ema Marquês, agradeço os tempos que me dedicaram do livro. Sou muito grato a todos os meus familiares e amigos pelo incentivo recebido ao longo destes anos. Ao António Cabral, o meu agradecimento pelo fantástico trabalho de ilustração da capa deste livro. Sou muito grato pelo esforço e pela coragem ao conseguir transmitir o estado de espírito da nossa comunidade perante o desafio que representa o reconhecimento público do conceito Surdidade. O caminho já se iniciou com alguns de nós e, embora seja um processo complexo, acreditamos que em breve seremos bem sucedidos. À Professora Doutora Isabel Correia, como coordenadora do Núcleo de Investigação em Educação, Formação e Intervenção (NIEFI) do Instituto Politécnico de Coimbra, o meu maior agradecimento por tanto que contribuiu para o meu crescimento académico e profissional, incentivando-me para a publicação deste livro, pelo apoio constante e pela disponibilidade para escrever o posfácio do presente trabalho. À Paula Fernandes, ao Bernardo Morais, à Joana Mouro, ao Luís Araújo e ao Guilherme Araújo o meu muito obrigado pelo tempo, pela confiança e pelo amor de família.
Amílcar José Morais
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ÍNDICE 11
PREFÁCIO
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RESUMO
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ABSTRACT
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NOTA DE APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO GERAL
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CAPÍTULO I: DEFINIÇÃO DA COMUNIDADE SURDA E DO SEU PONTO DE VISTA
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1.1. A discriminação e as lutas dos Surdos 1.2. O Oralismo e a Deficiência 1.3. A Língua Gestual e a sua Cultura 1.4. A escolarização 1.5. Formação profissional e o mercado de trabalho 1.6. O papel das ciências sociais 1.7. Movimento associativo CAPÍTULO II: FUNDAMENTAÇÃO TÉORICA SOCIOLÓGICA E ENQUADRAMENTO METODOLÓGICO
CAPÍTULO III: ANÁLISE DAS ENTREVISTAS 3.1. Síntese de Análise
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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POSFÁCIO
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BIBLIOGRAFIA
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GLOSSÁRIO DE SIGLAS
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ADA – American Disability Act APS – Associação Portuguesa de Surdos; CDLGP – Comissão para a Defesa de Língua Gestual Portuguesa CPL, IP – Casa Pia de Lisboa, Instituto Público; CRP – Constituição República Portuguesa CRPDDPS – Comissão para o Reconhecimento e Proteção da Língua Gestual Portuguesa e Defesa dos Direitos das Pessoas Surdas EUA – Estados Unidos da América IC – Implante Coclear; IC´s – Implantes Cocleares; ILGP – Intérprete de Língua Gestual Portuguesa L1 – Primeira língua L2 – Segunda língua LG – Língua Gestual LGP – Língua Gestual Portuguesa LG´s – Línguas Gestuais LP – Língua portuguesa; OMS – Organização Mundial de Saúde CIES – Congresso Internacional da Educação dos Surdos ONU – Organização das Nações Unidas SNS – Serviço Nacional de Saúde
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NOTA DE APRESENTAÇÃO
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Os movimentos sociais de emancipação das Pessoas Surdas distanciam-se de abordagens meramente biológicas e médicas à situação da pessoa surda, enfatizando perspectivas mais globais que considerem aspectos culturais, sociais, políticos e económicos nessa situação, mas contêm modos diversos de afirmação. Alguns desses movimentos subscrevem reivindicações comuns noutros movimentos sociais nas sociedades contemporâneas, nomeadamente de pessoas com deficiências e incapacidades, requerendo apoios directos dos Estados e/ou reclamando a institucionalização de direitos e deveres específicos. Outros dão maior saliência à condição cultural das Pessoas Surdas e à diferença entre esta condição e as de outros sectores sociais com maiores ou menores deficiências e incapacidades, desenvolvendo processos identitários em que a Língua Gestual tem um papel decisivo e estrutural. É este último o objecto de estudo da presente publicação em livro de Amílcar Morais, com base numa dissertação de Mestrado em Sociologia defendida com sucesso pelo autor em 2019 no ISCTEInstituto Universitário de Lisboa. Num primeiro capítulo o autor dá conta dos problemas enfrentados pelas Pessoas Surdas na vida social 11
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e das suas lutas em modos diversos contra a discriminação e pela afirmação na sociedade, bem como dos papéis das ciências sociais e dos movimentos associativos neste processo, mobilizando para o efeito diferentes tipos de documentos. O segundo capítulo explicita as bases teóricas no âmbito da sociologia do estudo, e os métodos e técnicas utilizadas na pesquisa. E no terceiro capítulo analisam-se os resultados de entrevistas em profundidade com recurso à Língua Gestual Portuguesa a quatro Pessoas Surdas que são observadores privilegiados e activistas. Amílcar Morais conta ainda no seu currículo com uma experiência variada, rica e sistemática em que se conjugam uma licenciatura em Língua Gestual Portuguesa, docência e formação em Língua Gestual Portuguesa, conhecimentos em Línguas Gestuais Americana, Brasileira e Espanhola, várias publicações sobre as temáticas da língua gestual e envolvendo as Pessoas Surdas, e cargos de responsabilidade em diversas organizações e associações representantes das Pessoas Surdas e de pessoas com deficiências e incapacidades, além de ser um cidadão com activismo político mais abrangente. Enquanto coordenador e docente do Mestrado de Sociologia do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa foi com muito prazer, e constituiu um verdadeiro privilégio, poder reconhecer o desassombro do Amílcar Morais no confronto com o enquadramento ainda muito débil que o ensino superior vai facultando às Pessoas Surdas, tê-lo acompanhado nesse processo contribuindo para melhorar tal enquadramento no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, e ter estado envolvido na formação conseguida pelo Amílcar Morais ao longo do Mestrado em Sociologia e na elaboração da sua dissertação. É com prazer acrescido que colaboro agora numa apresentação brevíssima deste livro e do autor, e no convite para uma leitura atenta. 12
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Entretanto, novos desafios despontam nos movimentos sociais em geral, nos das Pessoas Surdas, e no seu estudo. É premente ter em conta que o sucesso de cada um dos movimentos sociais dependerá em larga medida da solidariedade entre todos eles, circunstância a suscitar desenvolvimentos futuros para o trabalho agora publicado, como o aprofundamento do estudo das questões relativas às Pessoas Surdas no quadro da interseccionalidade, integrando articulações com as desigualdades de classe, de género, de etnia, etc. E a militância cívica e política floresce sempre mais a par de uma militância científica, neste caso sociológica, ao requererem ambas autonomia relativa, igualdade de estatuto. O caminho faz-se caminhando, já se sabe, e este livro é mais um passo. José Luís Casanova
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Professor Associado do Departamento de Sociologia do ISCTE-IUL Diretor e docente do Mestrado de Sociologia do ISCTE-IUL Co-coordenador da área de Desigualdades, Migrações e Território, Presidente da Assembleia Geral da Cooperativa, e investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia-IUL
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PREFÁCIO
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Amílcar Morais é um activista Surdo a favor da Surdidade, aquilo que entende ser a especificidade da Cultura Surda. Tive o prazer de aprender com ele a existência de uma condição social do Surdo, porque simpaticamente fez de meu professor. Desconhecia a Surdidade, para vergonha do sociólogo atento que gosto de me imaginar ser. Introduziu-me também às lutas identitárias íntimas e profundas entre os Surdos, entre os que entendem ter ou dever ter os mesmos direitos de cidadania dos outros, os ouvintes, como é o caso do Amílcar, e os que preferem não sofrer com as ansiedades criadas pelas lutas por direitos socialmente negados, mesmo se isso implicar aceitar a menoridade cívica a que a sociedade remete os Surdos, como se fossem deficientes. A estratégia para mobilizar a Sociologia a favor da sua causa foi suscitada por literatura anglo-saxónica referida no livro. Graduou-se em Sociologia, apesar de a língua falada ser para ele, como para todos os Surdos, uma língua estrangeira. O seu sucesso no curso de mestrado em Sociologia é um segundo passo, depois da licenciatura. A escolha da Sociologia assinala a sua convicção de a maior limitação actual da condição dos Surdos não ser biomédica, mas social. Como 15
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qualquer outra pessoa, cada Pessoa Surda tem direito a usar os recursos de saúde disponíveis com o fito de melhor a condição de vida. Porém, quando o estigma da dependência para a vida, associado às deficiências, marca a vida dos Surdos e os seus mais próximos inexoravelmente, há que colocar na agenda política a demonstração que a generalidade dos Surdos não é deficiente antes de lhes ser impostas as limitações estigmatizantes (impedimento de desenvolver a linguagem, através da Língua Gestual Portuguesa, e ficar ao cuidado dependente da família e de instituições segregadoras). Serão a Sociologia e as ciências sociais mobilizáveis para mostrar o mecanismo de profecia que se auto-realiza com os Surdos, transformando-os em deficientes? O acto de publicar em livro a sua dissertação de mestrado é um passo no caminho de emancipação dos Surdos. Outros se seguirão. Enquanto orientador, encontrei as minhas limitações, que são também sociais, de comunicar Língua Gestual Portuguesa. Falámos o que nos foi possível – é sempre pouco – sobretudo por email e por vezes por meio de um/a intérprete que fez questão de reclamar, por ser seu direito. Sim, a Língua Gestual Portuguesa é língua oficial em Portugal, para efeitos de ensino. Porque é que, na escola primária, não me ensinaram rudimentos de Língua Gestual Portuguesa que me tivessem sido úteis para este trabalho de orientação? Lembrei-me de como me sinto quando encontro pessoas anglófonas que me dizem que não falam comigo porque não sei falar ou escrever correctamente o inglês (o que é decisivo para manter a carreira universitária, nos dias de hoje). Foi assim que entendi as minhas dificuldades, que foram sobretudo, claro, dificuldades para o mestrando. Do mesmo modo entendi o obstáculo social, 16
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linguístico, a que apontava e desejava poder ajudar a ultrapassar, usando a Sociologia. Amílcar Morais sabe muito bem o que tem a fazer e para que o quer fazer. Intuí isso e entendi ser acompanhá-lo nessa sua demanda um bom projecto de mestrado. Projecto de alguém profundamente só, como qualquer cientista, e intimamente solidário com a humanidade de toda a gente, na procura de resgatar Surdos. Projecto que acrescentei à minha demanda pessoal, como o mostram os capítulos 9, 10 e 11 de “Reeducar o século XXI: libertar o espírito científico”, livro publicado em 2021. O trabalho final, que aqui se apresenta em livro, foi criticado por ser ideológico, por não ser auto-reflexivo, por não ser científico. Essa crítica seria justa na boca de alguém que conheça uma maneira de dispensar as ideologias nas oficinas das ciências sociais, de como fazer ciência com um objecto tão etéreo ou mal definido como sociedade. Como diria o humorista brasileiro: “Onde estão os outros?” Há, sem dúvida, trabalho de crítica a fazer sobre a noção e os usos da Surdidade. O mérito do acto e do tempo de levantar a questão não deve ser depreciado. Tal depreciação será facilitada pela profunda discriminação social de que são alvo os Surdos, no seu próprio íntimo. Mas nem por isso será justa ou, sequer, científica. A ciência não avança no cumprimento de receituários reproduzidos nas escolas e universidades. A ciência avança com perguntas que não podem ser respondidas imediatamente. A verdade não se produz por métodos democráticos: o facto de os oprimidos e estigmatizados estarem sossegados e incapazes de agir ou pensar, num certo momento, não significa que a opressão e a estigmatização não existam e não estejam a funcionar. O espírito científico é aberto à reflexividade, embora 17
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o seu prestígio actual – por ser uma fonte de empregabilidade e mérito para os profissionais mais bem formados – desvie a ciência do seu papel social mais relevante: fazer perguntas que ainda não têm respostas. Este livro desafia a Sociologia a impor-se à perspectiva biomédica. As Pessoas Surdas devem deixar de ser tratadas como deficientes, a quem uma prótese receitada por médicos eventualmente tornará mais parecidas com as pessoas normais. Às Pessoas Surdas, alega o livro, deve ser reconhecido, assim que nascem, a dignidade humana completa. Essa não é uma tarefa de quem trata de corpos, como os médicos. É uma tarefa de quem trata de tornar as relações sociais mais sãs. A pergunta deste livro é: será a Sociologia capaz de se impor à medicina no acompanhamento dos Surdos, integrando-os nas sociedades, como são? Será a Sociologia capaz de cumprir a promessa de trabalhar para denunciar e acabar com as exclusões sociais, não permitindo que a resignação perante as discriminações tradicionais as reproduza inconscientemente no presente? É esclarecedor, embora difícil de acompanhar, o paralelo feito entre esta demanda e a da luta anti-imperialista levada a cabo pelos povos colonizados. A tutela neocolonial não desapareceu com as independências nacionais dos países situados nos territórios anteriormente colonizados. As desigualdades sociais nos estados e nos negócios, entre nacionais desses países dependentes das suas antigas e novas metrópoles, e a tácita superioridade os nacionais dos países dominantes, na maior parte dos casos, terão aumentado ou, pelo menos, não diminuíram. É certo que há quem, à direita, diga e pense o inverso: que a globalização trouxe um mundo mais democrático e igualitário. Estamos, 18
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pois, num dos centros mais controversos das ideologias herdadas da Guerra Fria, e que persistem na sua influência estruturante das teorias e escolas de Sociologia, apesar de essa guerra ter terminado há 3 décadas (e ameaçar renascer com os novos arranjos geoestratégicos em curso). Este debate surge nos testemunhos recolhidos pelo livro. Interessante, também, é o facto de, com a pandemia, a prioridade à saúde pública ter sido dominada por médicos e profissionais da biomedicina. As ciências sociais, incluindo as suas rainhas, como a economia e as finanças, foram preteridas. Terão as ciências sociais, e a Sociologia em particular, energia para transformar o status quo? A prioridade política à biomedicina pode ser subvertida e, portanto, o resgate das Pessoas Surdas das mãos dos médicos que as tratam como deficientes poderá ser concretizado, passando as sociedades a tratá-las e educá-las com a mesma dignidade de qualquer outra pessoa? A ideia de promover a Surdidade, a especificidade da Cultura Surda separada da dos ouvintes pelas práticas discriminatórias, como quem promove a independência nacional de povos colonizados, deve aprender, no melhor e no pior, com a experiência histórica dos movimentos de libertação, antes e depois das independências das antigas colónias. Não tenho dúvidas da existência da Surdidade, a Cultura Surda. A construção da Comunidade Surda, orgulhosa da Surdidade, não deve ambicionar integrar apenas os Surdos. Pelo contrário, a viabilização de uma tal comunidade exige que toda a sociedade passe a conhecer e a utilizar a Surdidade, de uma forma tão natural e incontroversa como hoje se usam as várias línguas francas, ontem o francês, hoje o inglês, amanhã o mandarim. A diferença é que a Língua 19