Fausto Dias Uma história de amor protagonizada por dois jovens em plena guerra, com os exércitos napoleónicos a caminharem irrestivelmente até à vitória final em Austerlitz.
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“Algures ao fundo da escada, o som de um relógio batendo as horas veio quebrar o pesado silêncio em que a casa mergulhara. – Vejo-a amanhã, antes de partir? – perguntou Adrien, em voz rouca. O “sim” débil que Grace murmurou valia por uma confissão. Uma sombra de tristeza velava os seus grandes olhos negros, tornando-os ainda mais belos e Adrien não conseguiu resistir. Trémulo, segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a apaixonadamente. Anelante, Grace entregou-se àquele beijo com a mesma paixão, como se, através dele, os dois pudessem ficar unidos para sempre.”
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O Sol de Austerlitz Romance
O Sol de Austerlitz
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Publicado no ano em que se comemora o bicentenário da morte de Napoleão, O Sol de Austerlitz revela-nos até que ponto a figura aureolada de glória do imperador soube congregar à sua volta todos aqueles que, atraídos pela carreira militar, ansiavam por servir sob as suas ordens e, se necessário fosse, sacrificar as suas vidas para maior glória da França.
Fausto Dias
FAUSTO DIAS Nascido em Lisboa, cedo se dedica ao estudo da música, tendo concluído o curso de harpa do Conservatório Nacional em 1958, ano em que dá início a uma intensa carreira de solista e instrumentista de orquestra. Em 1983, é convidado a ingressar como professor na nova Escola de Música do Conservatório Nacional, lugar que ocupa até à sua aposentação, em 1999. Desde então, tem vindo a dedicar-se à investigação histórica – é licenciado em História pela Universidade Nova de Lisboa – e ao estudo e ensino de temas relacionados com a Cultura Portuguesa. A partir de 2009, a escrita tem sido uma ocupação cada vez mais absorvente, tendo preparados, para publicação, os romances As Doces Manhãs de Maio (2012), A Casa da Música (2013) e O Homem Que Lia Jack London (2015).
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Sol de Austerlitz Dias edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) autor: Fausto
Ângela Espinha Paulo Resende
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1.ª edição Lisboa, outubro 2021 isbn:
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capa:
978‑989-8986-50-4 488564/21
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depósito legal:
© Fausto Dias
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.
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Para a minha irmã Wanda
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Advertência
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Ao Serviço do Imperador, ao contrário do que muitos poderão ser levados a pensar, não é um romance histórico. Falta-lhe para isso o rigor e a verdade indispensáveis a uma obra desse género. Veja-se, por exemplo, a viagem de Adrien em busca de um imaginário 15.º de hussardos que, na realidade, só existiu episodicamente durante a I Guerra Mundial, ou, ainda, a posterior movimentação desse regimento, nem sempre coincidente com a realidade histórica. No seu papel de ficcionista, o autor limitou-se a recuar até ao início do século XIX para contar a história de Adrien e Grace Marie. Uma história de amor vivida em pleno romantismo, tendo como cenário uma Europa percorrida pelas ideias revolucionárias que as tropas napoleónicas vão ajudando a difundir. Escusado será dizer que, à vasta galeria de personagens históricas que surgem no decorrer do romance, se juntam muitas outras que devem a sua existência, exclusivamente, à imaginação do autor. Identificá-las é tarefa que deixo ao leitor.
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R esenha Histórica
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A campanha de Ulm
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1805 é o ano do regresso de Napoleão aos campos de batalha. Incapaz de se opor à supremacia naval inglesa e sentindo-se ameaçado pela aliança prusso-russo-austríaca, Napoleão não hesita em utilizar o grande exército reunido no Campo de Bolonha para invadir a Inglaterra – há quem defenda que essa intenção não passou de um estratagema de Napoleão –, de modo a fazer frente àquela ameaça. São cerca de 400 canhões e 180.000 homens, organizados em seis grandes corpos de exército, aos quais se juntará um sétimo corpo vindo de Brest. Sob o pretexto da entrada do exército austríaco na Baviera (aliada da França), esses homens recebem ordem, a 24 de agosto de 1805, para atravessar o Reno. Na Alemanha daquela época, dividida em cerca de 300 estados independentes – submetidos, todos eles, ao poder despótico dos grandes senhores feudais –, vivem-se os primeiros anos do romantismo. As novas ideias, que irão influenciar a arte, a política e os costumes de uma Europa em rápida transformação, circulam por todo o lado. Jovens, artistas e intelectuais saúdam, na Revolução Francesa, o triunfo da humanidade sobre o jugo do Antigo Regime. Para muitos, Napoleão é aquele que traz consigo o anúncio dos novos tempos, a liberdade e a esperança dos povos. É isto que explica o bom acolhimento com 11
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que, de início, as águias napoleónicas são recebidas no solo germânico. Será preciso esperar pelos desmandos e pelas extorsões levadas a cabo pelos franceses, para que as populações comecem a reagir contra os seus “libertadores”. Este ano de 1805 é marcado pelas grandes vitórias obtidas por Napoleão, imperador dos franceses desde 1804. Após a capitulação de Ulm, a 15 de outubro, e a rendição do exército austríaco, a batalha decisiva de Austerlitz força a Áustria a aceitar a Paz de Presburgo, que vem pôr fim à campanha de Ulm, ou da Baviera.
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Em busca do regimento
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cabo acabou de carim-
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bar os papéis e entregou-os a Adrien: “Pronto, meu alferes! Aqui estão as suas guias de marcha. Faça boa viagem.” Seguido por Rolin, o soldado que lhe servia de ordenança, o jovem alferes saiu da secretaria sob o olhar compadecido do escriturário. “Vão cada vez mais novos para a guerra. Pobre rapaz!” pensou ele, voltando a sentar-se à secretária. Chegados cá fora, os dois homens prepararam-se para montar. Ia começar a grande aventura. Adrien recebera ordem para se juntar ao 15.º regimento de hussardos que, há dois dias, saíra de Paris. As instruções que tinha eram simples: encontrar o regimento que já devia ter atravessado o Reno, em Estrasburgo, e apresentar-se ao seu comandante, o coronel Leclerc. As guias de marcha que levava autorizavam-no a alojar-se em qualquer ponto do percurso e Adrien não hesitou em utilizá-las logo que anoiteceu, pernoitando numa casa à beira da estrada, pertencente a um negociante de vinhos. O proprietário, homem já de certa idade, viúvo, era pai de um rancho de filhos que, à ceia, submeteram Adrien e Rolin a um verdadeiro interrogatório. Fascinados com as belas fardas dos dois hussardos, 13
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os rapazes queriam saber tudo e mais alguma coisa: se o sabre cortava dos dois lados, quanto é que se ganhava na cavalaria, que estudos eram precisos para entrar na escola militar… Enfim, um nunca acabar de perguntas a que eles, divertidos, iam respondendo com infinita paciência, sob o olhar amoroso das duas filhas mais velhas que, excitadas e curiosas, procuravam informar-se acerca dos vestidos e das danças mais em moda nos salões de Paris. Para o dono da casa, a grande preocupação eram os austríacos. Não haveria o perigo de atravessarem a fronteira? Estariam muito longe? Inquieto com a aproximação da guerra, foi retendo Adrien à mesa – já depois de Rolin se ter ido deitar –, querendo saber por que razão os austríacos não gostavam de Napoleão e porque obrigavam a França a fazer a guerra aos outros povos, tudo isto acompanhado por sucessivos brindes à paz e à concórdia entre as nações. Já a madrugada ia alta, quando Adrien conseguiu libertar-se do amável hospedeiro e subir até ao quarto, onde não tardou a adormecer, apesar dos sussurros e risinhos femininos vindos do outro lado da parede. Na manhã seguinte, meteram-se de novo à estrada, mas, ao passar por Sézanne, Adrien viu-se obrigado a fazer um longo descanso para recuperar da noite perdida. Ao contrário do alferes, Rolin parecia o mais feliz dos homens, sorrindo com bonomia, ao ver os evidentes sinais de ressaca que o jovem mostrava. Depois de atravessarem Vitry-le-François sem se deter, chegaram, finalmente, a Nancy, onde pernoitaram na primeira casa que encontraram à entrada da cidade. A etapa seguinte levou-os até à fronteira, onde, a meio da manhã, apertados entre homens e animais, atravessaram o Reno a bordo de uma velha barcaça. A partir dali, teriam poucas ocasiões de voltar a ouvir a bela língua de Racine. Nenhum deles sabia uma palavra de alemão, o que, logo ao desembarcar, deu origem a um pequeno incidente com Rolin. 14
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Mal pusera o pé em terra, a ordenança comprara a um aldeão dois enormes pães e um salame, mas o vendedor recusava-se a aceitar os soldos que Rolin lhe estendia. Apontando para outras moedas que tinha na mão, o aldeão dizia qualquer coisa em tom colérico e recusava-se a pegar nas moedas francesas. “Onde é que esta gente aprendeu a falar?... Não percebo nada do que tu dizes, velho macaco!” gritava Rolin, irritado por ver juntar-se à sua volta um magote de populares de aspeto pouco amigável. Como o francês não o entendia, o homem tentou tirar-lhe o salame das mãos, o que fez com que o soldado, já de cabeça perdida, levasse a mão ao sabre, com um gesto tão violento que o aldeão se apressou a agarrar, de cabeça baixa e a tremer de raiva, nas moedas que Rolin lhe estendia. Adrien, que assistira à cena, apiedara-se do pobre homem e, sem que Rolin o visse, metera-lhe um napoleão de ouro na mão, afastando-se, antes que o atarantado aldeão tivesse tempo de lhe agradecer. O jovem alferes era, de facto, aquilo que se pode chamar uma alma nobre e não seria difícil imaginá-lo de lança em punho, revestido de reluzente armadura, pronto a defender os desvalidos da vida e as donzelas indefesas. Embora não gostasse de falar do título de visconde de Montéclair que herdara do pai – morto durante o Terror, quando ele tinha dez anos –, Adrien possuía as virtudes de um verdadeiro aristocrata e o seu trato gentil, a maneira educada como falava e, até, uma certa liberalidade em relação ao dinheiro tornavam-no simpático aos olhos de todos. Depois do incidente com Rolin, os dois cavaleiros retomaram a busca do regimento. “Para onde irão aqueles malditos?” perguntava Adrien a si próprio, metendo o cavalo a trote pela estrada de traçado sinuoso que, por entre os vinhedos recentemente vindimados, acompanhava a margem do Reno até Rastatt. 15
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Ao chegar àquela pequena cidade, um simpático burgomestre, que falava um pouco de francês, informou-os gentilmente que o 15.º de hussardos passara por ali, tendo seguido sem se deter para Pforzheim. Ansioso por encontrar os seus companheiros de armas, Adrien prosseguiu viagem até à localidade indicada, onde entrou já noite cerrada. O dono da casa onde os dois hussardos se alojaram recebera, dias antes, dois oficiais do 15.º e, graças a isso, Adrien ficou a saber que o destino do regimento era Estugarda. Mal amanheceu, os dois homens meteram-se de novo a caminho. À chegada a Estugarda, foram informados que os franceses estavam instalados a poucas léguas dali, em Esslingen. Ansioso por se reunir ao seu regimento, Adrien, sem sequer desmontar, pôs-se de novo a caminho em direção à cidade indicada, sem conseguir perceber a razão daquele estranho itinerário que parecia afastá-los cada vez mais da região onde se concentravam os austríacos. Estava escrito, no entanto, que ainda não seria desta vez que iriam encontrar o regimento. Já perto de Esslingen, dois hussardos, que vigiavam a estrada do alto de um talude, informaram-nos que o grosso do regimento devia ter atravessado, há muito, a fronteira bávara; na cidade, ficara apenas o 4.º esquadrão para manter a ordem, enquanto as novas autoridades civis não tomassem posse. Completamente exaustos, Adrien e Rolin entraram na velha cidade medieval e dirigiram-se para o largo principal, onde ficava a casa em que o capitão Duvalier, comandante do esquadrão, se instalara. Ao entrar no largo, foram surpreendidos por um espetáculo inesperado: um grupo de trabalhadores destruía, à marretada, o pelourinho que se erguia no centro da praça. Instintivamente, Adrien refreou as rédeas do cavalo e fê-lo parar, para melhor apreciar o trabalho daqueles homens que, entre chalaças e obscenidades, reduziam rapidamente a um 16
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amontoado de pedras e ferros retorcidos o odioso símbolo de tantos anos de servidão. “Quantos cidadãos, alguns inocentes – quem sabe –, terão sido aqui mortos ou supliciados?”, interrogou-se Adrien, pensando na enorme transformação que a velha Europa estava a sofrer às mãos de Napoleão que, com o seu génio político e militar, ia criando nações e libertando outras da tirania do Antigo Regime. Graças ao novo código civil napoleónico, a tortura e os castigos corporais tinham sido proibidos e as nações libertadas pelos exércitos do imperador eram dotadas de cartas constitucionais que lhes garantiam os direitos essenciais. A pensar em tudo isto, o jovem alferes meteu o cavalo a passo para se afastar dali. Tinha de se apresentar ao comandante do esquadrão, que estava instalado com os seus oficiais na casa de uma rica proprietária da região, viúva de fresca data, que tudo fazia para agradar aos oficiais franceses que a tinham escolhido para hospedeira. O capitão Duvalier era um hussardo típico: alto, forte, de aspeto desembaraçado e amigo de praguejar. Sentado a uma secretária transbordando de papéis, levantou-se para aceitar a apresentação de Adrien e, logo a seguir, pegando-lhe familiarmente no braço, fez-lhe várias perguntas sobre a família e a escola militar que frequentara em Paris. Depois, obrigando Adrien a sentar-se num sofá, em frente da parede onde estava pendurado um grande mapa da Europa, começou a explicar-lhe em que consistiam as ordens que o regimento recebera ao sair de Paris. “O nosso amado imperador,” dizia ele, cofiando o imponente bigode louro, “ordenou que nos dirigíssemos para o local de concentração das forças francesas, entre Donawörth e Ingolstatt, a este da cidade de Ulm, nas margens do Danúbio, descrevendo, porém, esta enorme curva que está a ver,” apontou ele no mapa. “É aqui que os austríacos 17
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estão entrincheirados. O que nós estamos a fazer, tal como a cavalaria de Murat, que está na Floresta Negra a levar a cabo incursões rápidas e desgastantes sobre o inimigo, é tentar arrastar para aqui os austríacos, levando-os a desguarnecer a cidade de Ulm sobre a qual cairemos em breve. Uma bela estratégia, com mil raios! Fixe bem. Será em Ulm que tudo se irá resolver!” exclamava o capitão entusiasmado, batendo com o pingalim no cano das botas vermelhas à Souvaroff. – Quantos dias traz de viagem? – perguntou inesperadamente o capitão, vendo Adrien quase a cabecear. – Quatro, meu capitão – respondeu Adrien, levantando-se para evitar que o sono se apoderasse dele. – Então, acho melhor que se vá deitar. Está a cair de sono… A entrada de uma mulher ainda nova, de carrapito louro e seios generosos, veio interromper Duvalier, que ficou a olhar para ela sorrindo. Depois, virando-se para Adrien, acrescentou: – Aqui, a Anne Louise – era assim que ele chamava a todas as mulheres com quem dormia – arranja-lhe qualquer coisa para comer, quando acordar. Vá dormir! Adrien estava tão cansado que adormeceu logo que chegou à cama, não se dando sequer ao trabalho de se despir. Foi Rolin que, sem ele dar por isso, com desvelos de pai, o tapou com um cobertor, ficando a contemplá-lo, enquanto pensava, “É teso, este meu oficialzinho. Tão novo e já metido neste inferno de vida!”. De manhã, já recuperado, Adrien deu ordem a Rolin para preparar tudo para partir e foi despedir-se do comandante do esquadrão. Este ainda estava no quarto e, quando ele abriu a porta, Adrien teve tempo de ver, deitado sobre a cama, o corpo alvo e carnudo de uma mulher loura. Fechando a porta atrás de si, o capitão, de roupão e barrete de dormir, saiu para o corredor e encarou Adrien com espanto. 18
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– Não me diga que se vai embora. Não seria melhor fazer o resto da viagem connosco? Daqui para a frente, pode haver surpresas pelo caminho! E, como Adrien insistisse em partir, o capitão comentou, com uma risada: – Estes jovens, estes jovens… sempre ávidos de glória. Aprecio, aprecio… escusado será dizer que lhe desejo boa viagem. Até breve… *
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Há mais de duas horas que Adrien, seguido por Rolin, cavalgava através dos campos solitários de Bade-Vurtenberga. Até então, ainda não tinham visto um único ser vivo. Tudo à sua volta indicava a proximidade da guerra. A ridente exuberância dos campos por onde tinham passado nos últimos dias ficara, definitivamente, para trás. Iam em direção de Göppingen, mas, muito antes de lá chegar, deviam – assim lhes fora dito – meter por um caminho que, serpenteando por entre os campos, os levaria à estrada por onde o regimento seguira em direção à fronteira bávara. À volta dos dois cavaleiros, apenas se via a desolação dos campos ressequidos que as populações tinham abandonado, quando, ainda frescos e viçosos, deliciavam, com a beleza das suas cores outonais, aqueles que por ali passavam. No final de setembro, porém, a chegada dos austríacos viera pôr fim à paz campestre em que ali se vivia. De longe em longe, a visão sinistra de uma casa em ruínas, com as paredes enegrecidas pelo fogo, ou o vulto grotesco de um enforcado, pendente dos esqueléticos ramos de uma árvore meio seca, testemunhavam eloquentemente a passagem pela região das tropas austríacas. Ao ver estas trágicas imagens da guerra – as primeiras que via –, o rosto juvenil de Adrien contraía-se, numa expressão dolorosa, como se 19
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fosse ele o culpado de tudo aquilo que os seus olhos viam. Para a alma sensível e pura do jovem alferes acabado de sair da escola militar de Fontainebleau, a guerra não devia transformar as populações – homens, mulheres e crianças – em bode expiatório das contendas entre as nações. Sonhador e idealista, a vida militar era, para ele, demasiado bela para ser conspurcada por atos como aqueles que vira desde que saíra de Esslingen. “Eu nunca consentiria que os meus homens praticassem atos destes!” e, ao pensar assim, Adrien via-se já à frente dos soldados que iria comandar, logo que se juntasse ao regimento. Inquietou-se. “Como é que eles me irão receber? São capazes de julgar que ainda sou um garoto!” Instintivamente, olhou para Rolin, que galopava a alguns metros de distância. “Será que, também, ele me vê assim?” Vendo o oficial virar-se para trás, a ordenança fez um gesto fugidio, como que a assegurar que estava tudo bem. Aquele gesto devolveu a Adrien a sua habitual confiança. “Como eu sou pateta!” recriminou-se ele, sentindo vergonha daquele momentâneo sintoma de fraqueza. Chovera durante a noite e a estrada de terra batida, empapada em água, tinha troços que obrigavam os cavaleiros a desmontar, para que os cavalos não se atolassem na lama. Esslingen ficara, há muito, para trás e o cansaço começava a fazer-se sentir. Avistando ao longe uma granja meio arruinada, Adrien gritou para Rolin: – Vamos parar lá adiante… os animais precisam de descansar. Homem de poucas falas, a ordenança limitou-se a acrescentar em voz baixa, “E nós também!” Adrien foi o primeiro a alcançar a granja. Descobrindo entre os escombros um recanto onde o sol não penetrava, levou para lá o cavalo e prendeu-o numa trave escapada milagrosamente ao fogo que destruíra a maior parte da casa. 20
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Um sol forte de outono inundava, agora, a imensa planície, secando rapidamente as terras saturadas de água. – Se continuar assim, daqui a uma hora ou duas, já poderemos voltar à estrada – disse Adrien para a ordenança, que acabara de desmontar. Rolin acenou com a cabeça e, sem dizer nada, prendeu a montada junto do cavalo de Adrien. Corpulento, com o cabelo precocemente embranquecido, o hussardo teria uns quarenta anos. Alistara-se como soldado, no ano em que se dera a Revolução. Simples e rude, nunca aprendera a ler, o que impedira a sua promoção a cabo. Indiferente às mudanças políticas que se tinham dado em França, servira sucessivamente o rei, a Assembleia Constituinte, a Legislatura, a Convenção, o Diretório, o Consulado e, finalmente, o Império. Depois de ter dado de comer aos cavalos, Rolin foi buscar, a um dos alforges, o salame comprado na fronteira e o pão que ainda restava e começou a cortar grossas rodelas que foi metendo dentro do pão, cortando-o, depois, ao meio. Sempre em silêncio, estendeu uma das metades ao alferes e, destapando o cantil que trazia a tiracolo, bebeu um longo trago. A seguir, limpou o gargalo com a mão e passou-o a Adrien, dizendo: – É bom. Enchi-o em casa daquele homem que tinha muitos filhos… e uma criada que ia dando cabo de mim – acrescentou Rolin, em voz baixa, como era seu hábito. Adrien riu-se. Achava graça àquele “velho” hussardo, que tinha idade para ser seu pai. – Os austríacos não devem estar longe. Temos de estar atentos. – Oh! São uns bons cães, esses velhacos, mas não mordem. Os generais deles não prestam…! – exclamou Rolin, dando uma risada. Depois, lembrou-se de qualquer coisa e perguntou – Afinal, para onde é que o nosso regimento vai? 21
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– Vai juntar-se às tropas, que estão no local de concentração, a leste de Ulm, onde estão os austríacos. Se seguirmos sempre por esta estrada, vamos cair no meio deles. Temos de meter pelo tal caminho, que vai sair à estrada por onde os nossos seguiram. Rolin ouvia-o com atenção, sem perceber bem a razão de todas aquelas andanças. – Disseste-me que já tinhas lutado contra eles, não foi? – inquiriu Adrien, que gostava de ouvir a ordenança falar das batalhas em que estivera. – Sim, há cinco anos, em Marengo. Fazia parte da meia brigada comandada por Murat. Se não fosse o nosso imperador, tínhamos lá ficado todos, mortos ou prisioneiros. A certa altura, a fusilaria era tanta que as nossas fileiras começaram a abrir brechas. À medida que revivia aquele dia, Rolin tornava-se mais loquaz: – A infantaria acabou por ficar sem munições e, pelo meio-dia, começou a recuar ordenadamente. O nosso coronel estava desesperado, sem saber o que fazer. Nessa altura, chegou a guarda consular… oitocentos homens, trazendo grandes sacos com cartuchos, que foram logo distribuídos pela infantaria. Era vê-los, já aos tiros, parados, sem recuar, fazendo frente aos austríacos. – E o imperador? – quis saber Adrien. – Bonaparte, como lhe chamávamos, surgiu nessa altura. No seu cavalo branco, rodeado pelo estado-maior, parecia uma aparição. Começou logo a dar ordens. Mandou a guarda entrar em linha e deu ordem de avançar. Era ver os austríacos a cair como tordos. Depois, vindos não sei de onde, surgiram os granadeiros a cavalo, de espada em punho e estandartes ao vento, e, logo a seguir, a cavalaria ligeira, com os hussardos à frente, rápidos como flechas. Logo na primeira carga que fizemos, levei com uma sabrada que quase me cortou o pescoço. A minha 22
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sorte foi trazer um travessão de metal a prender o rabicho que amorteceu o golpe. – Deixou-te uma bela cicatriz! – disse Adrien, olhando para a marca que o sabre deixara. – Já tinhas visto o imperador antes desse dia? – Algumas vezes, ao longe, mas, só em Marengo, é que tive a sorte de o ver a poucos metros de mim. Fomos os primeiros a receber ordem para avançar e tivemos de passar junto a um cabeço, onde estava o cônsul sozinho, sentado sobre uma pedra, de cabeça baixa, como se estivesse a pensar, com as rédeas do cavalo na mão, a bater com o pingalim no chão, fazendo voar as pedras à sua volta. Quando nos viu, montou a cavalo e partiu a galope. Ao passar por nós, gritou-nos, “Coragem soldados, os reforços estão a chegar. Mostrem-lhes o que valem!” E, ao ouvi-lo, todos nós gritámos, “Viva Bonaparte!” – Deve ter sido lindo! – exclamou Adrien entusiasmado. Um relincho de Odin, o cavalo de Adrien, fez com que ambos se calassem. “Será que vem aí alguém?” pensou o jovem alferes, levantando-se de um salto para espreitar por trás do muro, onde se tinham encostado a comer. A estrada estava deserta, mas, por precaução, Adrien deu a volta à casa. Dali, a imensa planura estendia-se até à mancha sombria da floresta, lá ao longe. Com a estranha sensação de ser o único ser vivo no meio de toda aquela vastidão, Adrien voltou para junto da ordenança. Rolin acabara de comer e preparava-se para acender um comprido cachimbo de louça. Sem saber o que fazer, Adrien aproximou-se de Odin e começou a afagar-lhe as crinas, com gestos lentos e suaves. – Tem aí uma bela estampa de cavalo! – disse Rolin, em tom apreciativo. – É, não é? – retrucou Adrien. – Já tem cinco anos. Foi a minha mãe que mo ofereceu, quando entrei para a escola militar.
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– Começou cedo, o meu alferes – disse Rolin, com um misto de simpatia e comiseração. – Tinha dezoito anos, quando entrei. A escola acabara de abrir. Adrien parou de afagar o cavalo e veio sentar-se ao pé de Rolin que, envolto numa nuvem branca de fumo, continuava a fumar tranquilamente.
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“O primeiro dia em Fontainebleau! Nunca o esquecerei. O entusiasmo com que entrei na forma, no meio daquela parada enorme, com o palácio lá ao fundo. Sentia-me como se estivesse a fazer reviver o meu pai. Morreu tão cedo! Ainda me recordo das histórias que ele me contava acerca da Revolução Americana, onde lutara contra os ingleses. Que bem que ele montava! Parece que estou a vê-lo. Somos parecidos, diz a minha mãe. Como ele ficaria contente de me ver em Fontainebleau! Desde o primeiro dia que gostei daquela escola. Passaram tão depressa os dois anos que lá andei! Fartei-me de estudar: matemática, geografia, história…. Levantava-me às cinco da manhã e nunca mais parava: aulas de tática, esgrima, equitação, ordem unida e manejo de armas. Tratavam-nos como soldados, apesar de sermos cadetes. Dormíamos numa camarata, a farda era igual à da infantaria e fazíamos guardas e plantões, como os outros soldados. O rancho era um horror: feijão verde cozido, guisado, na sopa… era de vomitar. Que diferença do regime de luxo na antiga Escola Real Militar, em Champ-de-Mars, onde o meu pai andou, ou até nas Grandes- Écuries, de Versalhes, quando fiz o estágio na escola de cavalaria. Foi ali, no último dia, já com o meu galão de alferes, que vesti pela primeira vez esta farda de hussardo: jaqueta azul celeste, com cinco filas de botões dourados e peliça escarlate debruada a pele branca, pendente do 24
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ombro esquerdo, com a bolsa de couro vermelho, com a águia imperial e o número do regimento sobre a coxa, e, na cabeça, o colbak de pelo de urso. Não há farda mais bonita do que esta!”
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O forte odor a tabaco que o cachimbo de Rolin espalhava à sua volta tinha qualquer coisa de entorpecente e Adrien, encostado ao muro, sentia que uma irresistível sonolência se apoderava dele. – Durma, meu alferes! – era a voz de Rolin, que se levantara para ir buscar a carabina que trazia junto ao arção do cavalo. – Pelo sim, pelo não, fico a vigiar a estrada. Adrien já não o ouviu. Deitara-se no chão, com o capote amarelo a servir de almofada, e adormecera profundamente. Ao acordar, a primeira coisa que viu foi Rolin já pronto para partir, a segurar as rédeas dos cavalos. – Estava a ver que nunca mais acordava – disse ele, soltando uma risada. – Aos vinte anos, eu também era assim…, mas é melhor partirmos, se queremos descobrir o tal caminho. Um pouco envergonhado por Rolin ter tomado a iniciativa de partir sem o consultar, Adrien levantou-se e, em silêncio, prendeu o capote na garupa de Odin. Depois, pegando nas rédeas, trouxe-o para a estrada. Sem dizer uma palavra, montou e meteu o cavalo a trote. Rolin, atrás dele, ia pensando com os seus botões, “Não gostou, o alferezinho. Não querem lá ver o galaró! Já começa a mostrar os esporões!” A estrada estava, agora, em muito melhor estado e não tardaram a descobrir a clareira, onde o caminho se bifurcava. É aqui. Tenho a certeza que é este o desvio de que nos falaram – disse Adrien, quebrando o silêncio que se estabelecera entre eles. Sem esperar que o mandassem, Rolin estacou o cavalo e, desmontando, debruçou-se sobre os rastos que se viam no chão. 25