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Parténon® título: Luísa – Uma escolha, um destino, uma descoberta autora: Catarina Vieira da Silva Patrícia Espinha Patrícia Andrade paginação: Paulo S. Resende revisão: capa:
1.ª edição Lisboa, março 2017 isbn:
978-989-8845-12-2 415547/16
depósito legal:
© Catarina Vieira da Silva publicação
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capítulo um E lá estava ela. Ocupava todos os dias o mesmo banco de pedra, cinzenta e fria. Achava-se idêntica à pedra, nunca encontrara o caminho para colorir e aquecer a sua vida. Sentava-se ali por esse motivo, gostava daquele banco, gostava de sentir o frio passar-lhe pelo tecido da saia do uniforme até chegar à sua pele pálida. Quando chovia, o momento tornava-se ainda melhor. Ela abria o guarda-chuva e deixava-se ficar na mesma pedra dura e gélida. Ouvia as gotas baterem no tecido fraco que envolvia as varas do pequeno guarda-chuva e sentia a humidade passar do seu pequeno banco para as suas roupas, deixava a chuva inundar-lhe os pensamentos. Quando se levantava, ao som do primeiro toque de entrada, observava o lugar onde estivera sentada, marcado naquela pedra por um cinzento menos escuro que o restante. Pensava em como era magra e encaminhava-se para a sala de aula. Alguns dias passavam mais rapidamente do que outros, mas, na verdade, todos lhe pareciam demasiado longos. As aulas pareciam-lhe todas iguais. Embora aprendesse com 7
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facilidade todas as matérias, nunca se interessara particularmente por nenhuma. Certa vez, a professora de matemática falara de inequações fracionárias. As duas palavras chamaram-lhe a atenção. Inequação – com o prefixo in-, o que revela negação ou oposto; tal como ela era o oposto do que deveria ser. Fracionário – em que há fração, ou numeral que indica fração; não lhe ocorrera uma definição que não fosse matemática, então ela imaginou-se como um número. Ela, que era só uma fração do que sonhava ser. Identificou-se com a expressão e guardou-a no pensamento. Gostava de pensar em si como uma “inequação fracionária”. Mas a verdade é que só isso lhe despertava interesse, apenas a expressão que dava nome ao exercício e não a expressão que tinha realmente de resolver. Parecia-lhe tão fácil, e de facto era. Resolveu-a em 30 segundos, ou talvez menos. Não era um desafio, não a punha à prova. Depois desta aula, ela pensou que talvez nem fosse desinteressada pelos números, por Camões ou pelo sistema endócrino. Talvez o seu desinteresse fosse pela vida. Guardou este pensamento consigo. E voltava a ele nalgumas manhãs de chuva, sobre a pedra ríspida. Quanto mais refletia sobre isso, mais achava estar certa. Afinal, como poderia ela ter qualquer interesse pela vida sobrevivendo a dias cinzentos, acompanhada de pensamentos, e tristeza? 8
capítulo dois 30 de janeiro de 1995 Dalila chegou ao hospital. Devia ser madrugada, ninguém sabe ao certo. O que todos recordam é o quanto chovia nessa hora, as urgências estavam desertas. Mesmo se alguém se sentisse mal, talvez nem se atrevesse a sair de casa com aquele temporal. O espanto foi unânime entre médicos e enfermeiros que se aproximaram da entrada para ver chegar Dalila. A mulher aproximava-se da porta sem qualquer proteção da chuva. Viram-na sair do carro cinzento mal estacionado com a matrícula quase ilegível, que ela própria conduzira até ali. Dalila caminhava com alguma dificuldade, talvez por trazer um bebé dentro de si ou porque as dores a impediam de andar direita. Trazia sobre a pele clara, um vestido de seda com mangas compridas, um casaco longo de veludo, uns botins brilhantes que realçavam as suas pernas magras e um anel de ouro na mão direita que se podia ver a brilhar a alguma distância. O cabelo estava exageradamente arranjado, apanhado no cimo da cabeça, com dois feixes de cabelo pendendo sobre a face rosada e maquilhada. Todos diriam 9
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que se enganara na morada do seu destino, não fosse a pressa que trazia em entrar pela porta do hospital. Todos os responsáveis das urgências permaneciam imóveis de espanto, e foi, por isso, Dalila a primeira a falar. Os presentes deram um pequeno salto e estremeceram um pouco a cabeça, como se estivessem a dormir em pé e um som repentino os tivesse acordado. Foi então que um dos médicos se apercebeu do que realmente estava a acontecer na sua frente, olhou para a recém-chegada e viu escorrer o sangue por baixo do curto vestido cor de framboesa. Iniciou-se a correria no pequeno hospital, perdido no tempo e no espaço. Uma enfermeira, que dava pelo nome de Viviana, apressou-se na busca por uma cadeira de rodas para colocar ao dispor da mulher em apuros. Enquanto isto, o enfermeiro presente que, se bem me lembro era o Artur, perguntava os dados à desconhecida que apenas forneceu o seu nome e a data de nascimento. Artur necessitava de contactos de alguém próximo para preencher a ficha de entrada no hospital, mas Dalila apenas disse que estava sozinha no mundo. Por muito que o rapaz insistisse, ela respondia, serena, as mesmas palavras. Dalila, com a sua seriedade e classe características, disse a Vânia, uma enfermeira presente: 10
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– Guarde-me por favor este anel, não quero que nada de mal lhe aconteça. – E entregou-lhe o anel que custou a sair do seu dedo. Era realmente bonito, em ouro com uma joia no centro que Vânia julgou ser uma esmeralda dado o seu ar esverdeado. E a enfermeira assegurou-lhe que o guardaria como se da sua própria vida se tratasse e que lho devolveria assim que a senhora o quisesse de volta. Dalila Soares, 28 anos foi levada para o bloco operatório. Os médicos apressaram-se a corrigir a enorme hemorragia. Todo o hospital era pequeno, assim como a sala onde se encontrava Dalila, adormecida por uma anestesia. Era uma sala quadrada, as paredes encontravam-se pintadas a azul, que já começava a desaparecer nalguns cantos devido ao tempo ou talvez à humidade. No interior da mesma podia ser encontrado tudo o que fosse necessário aos profissionais para enfrentarem as situações mais complicadas. O acesso ao corredor era cedido por uma porta de metal escuro, por onde se ouviu o médico gritar: – Venham mais enfermeiras! Tragam toalhas e água quente! A criança tinha de nascer naquele momento. Mãe e filha estavam em perigo de vida. Com apenas sete meses de gravidez, estava na hora do parto. As enfermeiras não demoraram a chegar, atarantadas por nunca terem passado por tal 11
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situação. Apressaram-se a dar auxílio em tudo o que lhes era pedido. Traziam toalhas húmidas, toalhas encharcadas, toalhas secas, traziam tesouras, agulhas, linhas, traziam bacias de alumínio, traziam tudo quanto era necessário para a situação. Após várias horas de longos e complexos processos cirúrgicos, ouviu-se um bebé a chorar. O parto fora realizado e eu nasci! Todos tinham um olhar mais aliviado, talvez até feliz. Todos se emocionaram e comoveram à sua maneira. Até Dalila pareceu suspirar mesmo estando ainda adormecida. Depois do momento inicial, as enfermeiras deixaram o pequeno bloco, todas a invejar Vânia que tivera o privilégio de me carregar nos seus braços. Enquanto o médico e o enfermeiro que ficaram no bloco se preparavam para limpar e arrumar os materiais espalhados pela pequena sala, aperceberam-se de que esta história ainda não tinha chegado ao seu final feliz. O sangue continuava a escorrer, a luta de Dalila tinha terminado. Agora que sabia que a sua filha não corria perigo de vida, sentiu o seu corpo a desistir da luta que travava e morreu ali mesmo, sem que médicos ou enfermeiros pudessem alterar a sua sina. No mesmo dia em que me trouxe a este mundo, partiu para outro. 12
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Naquele momento a chuva começou a cair com maior intensidade, por mais improvável que possa parecer, dizem também que comecei a chorar, mas que Vânia logo me acalmou. Todos se reuniram e ao partilhar a triste notícia, a preocupação estendeu-se a todos os presentes. Como seria agora a vida da menina que viram nascer e já adoravam? Durante longos minutos, apenas se ouviu a chuva cair, ninguém falou, dizem que adormeci. Não sabiam quem contactar, para onde me levar, era tão pequena, sensível e frágil. Vânia sentia já uma ligação muito forte com aquele ser tão pequeno (como ela mesma me descreveu) e, talvez por isso, parecia ainda mais concentrada nos seus pensamentos do que os colegas. Presa nos meus olhos verdes que na altura eram brilhantes, teve uma ideia que não tardou em partilhar com o grupo: – Eu tenho uma amiga que... talvez pudesse ficar com a menina. Ela é freira num colégio, a educação dela seria adequada, acho eu. Ninguém mostrou muito contentamento com a solução encontrada, mas a verdade é que ninguém pensou em nada melhor para concretizar. Talvez só Vânia tenha pensado em conseguir arranjar-me um lar enquanto todos os outros apenas lamentavam a minha sorte, é o que eu penso. Vânia voltou a falar: 13
– Não a deixarei sair daqui sem um nome, é e sempre será uma lutadora, merece pelo menos isso. – Lutadora, guerreira, o nome mais adequado é Luísa!
capítulo três – E é isto, é tudo o que sei sobre a minha história, à exceção das minhas memórias. – Contava Luísa a uma erva bem pequena que teimara em nascer entre as pedras da calçada perto do banco que tinha como seu. – Foi Vânia quem mo contou. Ela sempre esteve muito presente, sempre se preocupou muito com o meu bem-estar. Às vezes preferia viver com ela, mas não a culpo por me ter trazido para aqui, as irmãs são simpáticas e cozinham bem. Além disso, a Vânia tem a sua própria família agora e eu sei que ela está feliz. Luísa silenciou-se. A sua história tinha chegado ao fim, era curta. Sabia pouco sobre si mesma mas nunca tentou realmente interessar-se pela história da sua vida, nunca tentou chegar à realidade que tinha vivido. Vânia oferecera-se inúmeras vezes para lhe contar tudo quanto sabia, mas Luísa sempre recusara. Nem ela própria compreendia o porquê de não ter curiosidade em saber algo tão importante, em conhecer o seu verdadeiro eu. Estava sentada no chão, onde tinha narrado o que conhecia da sua vida. Sentia o sol na sua pele, como isso era 15
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desagradável. Detestava o calor, incomodava-a sentir o sol bater na sua pele pálida. Tinha sempre a estranha sensação de que a sua pele aquecia, a sua cara avermelhava e o seu cabelo parecia ferver ao toque. No entanto, Luísa continuava a sentir uma frieza interior, a sua alma era fria. Talvez isso nem fosse possível, mas era esse o seu sentimento. Talvez os sentimentos nem fossem possíveis. Quantos pensamentos e dúvidas lhe surgiam simplesmente por estar ao sol. E não era apenas isso que Luísa detestava num dia com céu azul, nuvens inexistentes e sol brilhante. Ela sabia que em dias assim todas as alunas saiam do colégio e encaminhavam-se para o jardim acompanhadas de algumas freiras. Se o dia fosse soalheiro o suficiente para ser considerado pela maioria como um “dia bom”, as aulas decorreriam no jardim, tal como hoje. Nestes dias, estavam todas mais perto de Luísa, invadiam um espaço que esta considerava privado. Deixava de estar a sós com o seu fiel amigo de pedra cinzenta e o novo ser que se apresentava agora entre as pedras da calçada. O grupo de Clarissa insistia em sentar-se num banco próximo ao da nossa triste jovem. Elas esticavam as pernas e diziam apanhar “banhos de sol”, como se o sol fosse algo de bom ou se pudesse tomar um banho sem água. Mesmo reparando nestas impropriedades lexicais, Luísa tinha uma admiração 16
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profunda e, de certa forma, inexplicável por Clarissa. Apesar de todas as alunas do colégio vestirem o mesmo uniforme, ele parecia mais bonito no corpo de Clarissa. A saia axadrezada realçava as suas pernas claras, Luísa não conseguia olhá-las sem pensar terem sido esculpidas por anjos. A camisa também assentava perfeitamente no corpo da colega, no seu peito redondo e na sua barriga lisa. Em dias de sol, usava as mangas dobradas até ao cotovelo, o branco da camisa era complementado pelo branco dos seus braços. Os botões do decote apertava-os de uma forma que nenhuma das raparigas daquele colégio ousava imitar. Deixava o número certo de botões desapertados, não os fechava todos como as freiras tinham por hábito incutir às alunas, mas também não deixava a camisa excessivamente aberta. Luísa sabia ainda que no pulso da colega podia habitualmente ver-se uma pulseira de prata que a mãe lhe oferecera. Todos estes fatores influenciavam a admiração da jovem por Clarissa, assim como todos gostarem dela de uma forma especial. Além de ser uma das mais belas do colégio, era sem dúvida uma pessoa bondosa, ela não só brilhava como fazia brilhar quem estava perto de dela. Apesar de todo o fascínio que sentia, a jovem nunca se atrevera a falar com a colega, exceto as frases fundamentais que lhe dirigira. Todas as manhãs lhe desejava um bom dia e, algumas vezes ao recolher, dera-lhe também as boas 17
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noites. Fora estes pequenos cumprimentos, nunca tivera um assunto que lhe desse segurança para manter uma conversa com Clarissa. A confusão instalou-se no jardim, formavam-se grupos compostos pelas várias turmas do colégio, cada um deles organizado por uma das irmãs que se preparavam para iniciar as aulas. Luísa apenas continuava sentada no chão, perto da pequena erva que já alguém pisara enquanto admirava Clarissa uma vez mais. Ouviu ao longe alguém chamá-la: – Luísaaa! A aula vai começar! Luísaaa! – A voz vinha do lago, onde ela podia avistar um grupo constituído pelos membros da sua turma, perto dos peixes que nadavam e dos sapos que saltavam no pequeno lago daquele jardim. Quem a chamava era a irmã que se preparava para dar a aula, mas a verdade é que Luísa não queria ouvir uma freira falar sobre peixes, ou do sermão que estes um dia ouviram. A jovem não queria aprender português ou matemática ou qualquer outra disciplina. Então, sem que ninguém se apercebesse, Luísa voltou ao colégio. O caminho era curto, bastava-lhe atravessar a estrada para estar de volta ao colégio, o que ajudava a ser pontual, mesmo quando passava os intervalos entre as aulas no jardim. Assim que chegou, desceu as escadas da entrada para seguir pelo corredor da cave até à biblioteca. 18
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Encontrou-se com uma das irmãs que ficaram no colégio e esta preocupada dirigiu-se à recém-chegada: – As aulas hoje são no jardim. Não estavas lá, Luisinha? – Sim, mas estava a sentir-me mal. A irmã sabe como o sol me prejudica. – E muitas pessoas no teu espaço também, não é querida? Luísa apenas lançou um sorriso, nada mais foi necessário para que a irmã entendesse que o seu palpite estava certo. A jovem gostava muito dela, a irmã Carina era sempre muito compreensiva e salvava sempre as meninas de serem repreendidas, a não ser que a sua ação fosse mesmo muito errada, nesse caso, ela própria falaria com a aluna em questão. E todas preferiam que assim fosse, Carina tinha uma forma muito delicada de falar com as jovens discípulas, era muito carinhosa e aconselhava-as sempre de forma muito extremosa. Luísa já conseguia imaginá-la a dizer às restantes freiras que a Luisinha, como ela gostava de dizer, não se estava a sentir bem quando chegou ao colégio e decidiu ir ler para curar a alma. O que não era totalmente mentira, afinal Luísa estava a sentir-se mal, quebrada na alma, sentia o seu espaço invadido, a pele quente, o sangue efervescente. Chegada à biblioteca, encaminhou-se para a estante que as colegas da sua turma mais visitavam e leu todos os títulos, observou a capa daqueles cujo nome lhe despertou 19
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curiosidade e leu algumas palavras de dois livros que lhe pareceram intrigantes. Mas a verdade é que nenhum dos livros lhe despertou tanto interesse como ela desejava. Deslocou-se por mais algumas estantes, leu alguns títulos, nenhum verdadeiramente bom, nenhum realmente mau. “Santos de Calça Jeans” de Adriano Gonçalves, leu numa lombada; “A Alegria que Não Passa” de Dom Cipriano Chagas, leu noutra. Nesta biblioteca não existia o que Luísa procurava, algo que lhe despertasse verdadeiro interesse, algo que a transportasse para uma vida de sonho, uma vida que lhe desse prazer viver em cada palavra, cada linha lida, procurava um livro que a emocionasse, que a integrasse no mundo existente entre as páginas. No fundo, ela procurava algo que lhe pudesse dar alento enquanto se encontrava presa entre as quatro paredes daquela sala repleta de livros, que nunca admirara. Ela nem gostava de ler, não entendia porque tentara procurar um livro que lhe mostrasse que talvez pudesse apreciar a leitura. Já tinha lido vários livros, de leitura obrigatória no colégio, mas nunca achou qualquer interesse naquelas histórias monótonas. Decidiu, por fim, seguir até uma estante que estava encostada à parede na zona norte da enorme biblioteca, desviou-a com o maior dos cuidados para que nada saísse do seu lugar habitual e tirou do seu esconderijo uma caixa que 20
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guardara lá há tantos anos que já nem tinha memória. Era uma caixa de tamanho consideravelmente grande, em tempos uma Luísa, ainda criança coubera lá dentro e servira-se desse facto para se esconder de todos. Este deixou de ser um local para se esconder quando a deixaram atravessar a rua sozinha e descobriu as maravilhas do banco de pedra num jardim repleto de folhas verdes e pequenos seres vivos que raramente a incomodavam. Agora, utilizava a caixa para guardar alguns dos seus desenhos mais importantes e secretos. Tirou de dentro da caixa um dos cadernos, aquele em que ainda tinha folhas prontas a serem desenhadas, na verdade, apenas duas folhas em branco restavam daquele pequeno caderno de capa preta, folhas marcadas de carvão e dobradas num canto devido às diversas vezes em que foi folheado. Nestes cadernos tinha desenhado tudo o que desejava e os pensamentos que tinha, desde criança. Naquele dia, não sabia o que desenhar, mas iria deixar o lápis mover-se pelo papel e tinha a certeza de que, no final, veria um reflexo dos seus pensamentos. Começou por escrever a data no canto superior esquerdo, como tinha por hábito fazer. “29 de janeiro de 2011” escreveu ela. Foi nesse momento que se apercebeu de que no dia seguinte seria o dia do seu 16.º aniversário. 21
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Luísa sempre prometera a si própria, e confirmara isso através dos desenhos nos seus cadernos, que no dia em que fizesse dezasseis anos escolheria entre continuar no colégio e prosseguir os seus estudos no convento para se tornar freira ou abandonar o colégio e tudo o que conhecia para ir viver com uma família de acolhimento pré-selecionada pela irmã Carina. A maioria das jovens tomaria esta decisão com dezoito anos, ou posteriormente, mas Luísa sabia que adiar esta decisão tão importante apenas faria com que a sua indecisão fosse maior na hora de determinar o seu percurso. E como esta foi a escolha de Luísa, e como ela não voltaria atrás, faltava apenas um dia para que tivesse de deslindar esta questão. A família estava escolhida e seria contactada assim que a jovem decidisse ir embora. As irmãs do convento estavam preparadas para receber qualquer nova aprendiza, guardariam certamente um quarto onde pudesse dormir sozinha, como a jovem gostava. Assim, qualquer um dos caminhos era possível e a avença cabia a Luísa. O pensamento sobre o seu futuro e a dúvida acerca do que devia escolher consumiram-na e esta acabou por não desenhar nada, quando olhou para a folha esta já estava completamente rabiscada, com riscos semelhantes à confusão na sua mente.
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capítulo quatro Amanheceu. Naquela manhã o sol despertara com pouco brilho, as nuvens cobriam o céu tornando-o pálido. Luísa acordara ao ouvir as suas colegas conversar e caminhar pelos corredores. Pareciam atarefadas a realizar algo proposto pela irmã Carina, que dava as instruções. Luísa conseguia ouvi-la mas não decifrava quais as ordens recebidas pelas restantes alunas, o que a deixava numa enorme curiosidade. Depois de algum tempo a prestar atenção ao burburinho vindo de fora do quarto, levantou-se. «Como é possível não me terem acordado à mesma hora que as outras alunas? Será que estou de castigo por ter faltado às aulas ontem? Ou pensam que estou mesmo doente?» – pensava a jovem enquanto se aproximava do roupeiro. Ao preparar-se para vestir o seu uniforme, reparou que não tinha nenhuma saia axadrezada ou camisa branca prontas para vestir. Além disso, estava na presença de roupas que não se lembrava de alguma vez ter visto. Encontrava ali várias camisolas de um cor-de-rosa muito claro e suave, outras numa cor pastel, algumas brancas e encontrou até 23
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camisolas com um brilho que não podia reconhecer de lugar algum. Do lado direito do armário descobriu saias, calças de ganga, meias, leggings. Tantas coisas que ela nunca tinha vestido. Apesar de ter acesso a todo esse luxo, Luísa preferia gastar o dinheiro que as irmãs lhe facultavam em CD das suas bandas preferidas e cadernos para preencher com os seus desenhos. Tinha uma coleção de CD de fazer inveja e começara a construí-la desde a primeira visita ao centro comercial mais próximo, o qual visitava quase todos os meses. As suas colegas corriam para as lojas de roupa da moda, ela preferia as lojas de música antiga. Mas naquele dia, o seu roupeiro parecia ter sido invadido por todas as roupas que nunca comprara e Luísa sentiu-se vaidosa por uns minutos. Vestiu uma saia que encontrou, era num tom de vermelho tão escuro que quase chegava a parecer um roxo, ou cor de vinho – ela não entendia muito de cores… ou de roupas. De seguida, vestiu uns collants pretos que deixavam transparecer um pouco a cor pálida que era normal nas suas pernas magras. A blusa que decidiu usar era preta, preenchiam-na umas palavras que formavam a frase “Follow Your Dreams”. Por fim, calçou os ténis que habitualmente usava; os seus All Star pretos, com a medida certa para cobrir os tornozelos, que Luísa teimava em esconder. 24
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Por fim, olhou-se ao espelho. Examinou com atenção o seu reflexo. Observou a saia e o quanto esta assentava mal na sua anca. Observou a camisola e o quanto esta fazia sobressair o seu peito que era demasiado grande para ser bonito. Não podia sair do quarto assim! Estava horrível, era vergonhoso aquele monstro que criara com as roupas que nem podia considerar como suas. Despiu-se rapidamente e atirou as roupas para cima da cama. Sentia-se triste e enraivecida por terem desaparecido todos os uniformes que tinha e por nada assentar bem no seu corpo imperfeito. Por cima da pele apenas tinha a roupa interior. Sentou-se na cama e observou o roupeiro sem lhe tocar. Ingenuamente esperava que a combinação certa saltasse para o seu colo e que, quase por magia, se sentisse confortável e agradada ao vesti-la. Passados alguns minutos Luísa apercebeu-se de que isto não aconteceria nem no seu dia de aniversário. Então, levantou-se da cama uma vez mais e voltou a tocar todas as roupas que se encontravam penduradas na sua frente. Encontrou por entre elas, umas calças de ganga que particularmente lhe agradaram. Experimentou vesti-las e pensou ter por fim encontrado algo com que podia parecer-se uma rapariga normal. As calças eram largas e não deixavam assim revelar a imperfeição que sobrecarregava as suas pernas. Escolheu de entre as camisolas uma branca repleta 25
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de flores com cores variadas. Esta era larga e não deixava assim transparecer as inseguranças que Luísa sentia em relação ao seu corpo. Era mais comprida atrás do que na frente e, deste modo, disfarçava também o rabo, que lhe dava ainda mais inseguranças do que qualquer outra parte do seu corpo exageradamente imperfeito. Deslocou-se até à cómoda para atar o cabelo como normalmente fazia. No entanto, os seus elásticos, juntamente com os uniformes, haviam desaparecido e restavam apenas alguns dos que se encontravam partidos. A alternativa seria pentear o cabelo e deixá-lo cair sobre os ombros, tal como fez. Habituara-se a apanhar o cabelo para que não a incomodasse ao escrever nas aulas e também para que a sua cara não parecesse tão pálida como os cabelos castanhos o demonstravam. No entanto, teria de sobreviver um domingo com o cabelo solto. Ao olhar-se ao espelho, Luísa não se odiou! E isso era, sem dúvida, uma grande vitória, o que fez a adolescente sorrir. E foi um dos sorrisos mais sinceros que mostrara na sua vida. Ao acabar de se arranjar como nunca tivera oportunidade de fazer, Luísa abriu a porta e saiu finalmente do quarto. Os corredores tinham-se silenciado nos últimos minutos e agora a jovem não encontrava ninguém. Desta forma, não foi elogiada ao passar a porta, como esperava. Sentiu-se, 26
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assim, mais insegura e pensou em voltar ao quarto e desistir de toda a loucura que estava a ser usar aquela roupa e arranjar-se daquela forma. Mas algo, talvez uma voz interior, talvez a consciência, talvez a loucura, disse a Luísa para não o fazer e ela, simplesmente, não o fez. Prosseguiu e ao chegar à sala de refeições, pronta para tomar o pequeno-almoço, apercebeu-se de que nada estava preparado nesse sentido. A mesa estava composta, mas, mesmo no meio da escuridão que envolvia a sala, Luísa viu que não era com os condimentos habituais para a primeira refeição do dia. Tocou no interruptor e a sala iluminou-se. Foi então que viu que a divisão estava repleta de colegas suas. Por entre elas, surgiu Vânia que se dirigiu à jovem: – Surpresa, minha querida! Muitos parabéns! – Obrigada. – Respondeu Luísa num tom entre envergonhado e emocionado. Nunca tinha visto uma festa tão grande. Nem os seus aniversários, nem os das colegas foram celebrados de forma tão espalhafatosa. A jovem achou aquilo demasiado festivo. Ela estava feliz por ter Vânia consigo e por sentir que as colegas se preocupavam com ela, mas no fundo, como poderiam raparigas que nunca lhe dirigiram a palavra parecer sinceras ao desejar-lhe um feliz aniversário? Decidiram acender as velas do enorme bolo que se encontrava no centro da mesa, mesmo antes de a aniversariante 27
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dizer algo mais do que “Obrigada”. O bolo estava muito bonito, até Luísa tinha de concordar em relação a isso. Tinha dois andares redondos, sendo o da base ligeiramente maior que o outro. Tinha uma cobertura em pasta de açúcar de uma cor entre o branco e o cor-de-rosa. No cimo tinha algumas flores, idênticas às que invadiam a camisola escolhida por ela naquele dia. Enquanto a jovem reparava em todos os pormenores, as pessoas em seu redor começaram a cantar: – Parabéns a você, nesta data querida… – e Luísa ouvia-os enquanto pensava em como detestava aquela música. Era tão monótona, tão habitual. Quando alguém fazia anos, era previsível, aliás, era quase certo que se ouviria aquela canção irritante até mais do que uma vez. Chegaram ao fim os minutos que pareceram demasiados longos e uns aplausos barulhentos invadiram aquela enorme sala. Luísa sentiu-se a corar e, por breves momentos, esqueceu-se de que tinha de soprar as velas e pedir um desejo, daqueles que todos sabem que não se realizarão. Pensou durante alguns segundos qual seria o melhor desejo e decidiu pedir “Que este dia passe rapidamente”. Soprou o fogo que resplandecia nas pequenas velas. Mais uma vez ouviram-se aplausos. Luísa pensou que naquele dia as pessoas 28
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presentes aplaudiriam qualquer ação dela, era uma consequência de ser o seu aniversário. Uma fatia de bolo – foi o que comeu ainda em jejum. Luísa sabia que esta alimentação não era correta e que poucas horas depois de ter aberto os olhos já estava a prejudicar o seu corpo e a sua saúde num dia que deveria ser de celebração. Todas as colegas pegaram numa fatia de bolo e sentaram-se a comer e a conversar. Algumas felicitaram Luísa, outras não. Poucas tinham presentes para a jovem aniversariante, nada que ela de facto gostasse. Ninguém lhe oferecera CD ou lápis ou cadernos ou algo relacionado com qualquer tipo de arte, em vez disso, presentearam-na com acessórios como colares, anéis e pulseiras. Surpreendeu-a quando Clarissa se aproximou. Debaixo do braço levava uma caixa de cartão. Mais surpreendida ficou quando a jovem lha ofereceu. – Parabéns Luísa! Espero que gostes. – Obrigada. – Respondeu a jovem aniversariante de forma curta e quase insensível. Luísa abriu a caixa. Cortou a fita-cola com todo o custo necessário. E quando finalmente conseguiu afastar as peças de cartão que constituíam a tampa da caixa, viu tudo o que não esperava ver. Clarissa oferecera-lhe uma caixa repleta de aguarelas, guaches, pincéis e telas. Luísa nem soube como 29