Carta ao meu Pai

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ao meu Pai

Filomena Leal

Carta ao meu Pai

Vivência Revolucionária

(1974-78)

Filomena Leal

FICHA TÉCNICA

título: Carta ao meu Pai – Vivência Revolucionária (1974-78)

autora: Filomena Leal

edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)

fotos: Luís Matos

arranjo de capa: Ângela Espinha

paginação: Alda Teixeira

1.ª Edição

Lisboa, julho 2024

isbn: 978-989-9198-09-8

depósito legal: 533334/24

© Filomena Leal

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

NOTA: A autora não segue o AO90; redige segundo a antiga (e identitária) ortografia.

EDIÇÃO PARA CELEBRAR OS 50 ANOS

DO 25 DE ABRIL DE 1974

Publicar a «Carta ao meu Pai»1 com o subtítulo «Vivência Revolucionária», pretende celebrar os 50 anos do 25 de Abril de 1974, com o selo de gratidão a todos os que lutaram para que fosse possível este tempo de eleição, tão magicamente vivido… Já antes (em 2007) a editara para alguns amigos e familiares. Passados tantos anos, quando se celebram os 50 anos do 25 de Abril, não podia deixar de contribuir com escritos do Tempo Real Vivido, em dar a conhecer a magia duma época ímpar e de certo, irrepetível.

Dela se destaca o SENTIR DA LIBERDADE com relevo para a Mulher, até aí amarrada por leis desumanas, tornando-a sempre pertença de alguém. Sem autonomia e sujeita àquilo que a sociedade dominada pelo homem lhe destinou, VEM ENTÃO PARA

A RUA e solta-se através da PALAVRA, reivindicando os seus DIREITOS.

Uma Revolução Social, em que «nunca antes tanta gente decidiu e aprendeu a decidir o que e como fazer o que era fulcral e urgente para o país».

Após um período salazarento de miséria e atraso cultural (48 anos), o imaginário entrou com grande pujança nesse mísero real, criando um REAL OUTRO, em que mudanças possíveis se realizaram de imediato.

Todo este sabor de LIBERDADE e partilha de sonhos passíveis de concretizar, fez dizer a um dos CAPITÃES DE ABRIL

(Carlos Matos Gomes) numa entrevista ao DIÁRIO de NOTÍCIAS DE 7/4/2024:

«Nunca vivemos uma democracia tão alargada quanto a que existiu entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro»

Senti isso sim, como muita gente, envolvida na resolução de problemas sociais urgentes que até nos faziam esquecer os nossos (pequenos ou grandes).

Mas a verdade é que os 50 anos da Revolução dos Cravos mudaram de tal modo a vida do País, que quase parece impossível ter existido a miséria e falta de Liberdade d’outrora.

Contudo, nada é eterno e os valores fundamentais da Democracia têm de ser defendidos. Um ALERTA contínuo, pois os sinais de regresso a um passado de real pobreza e repressão, surgem com linguagem mascarada e falaciosa.

No entanto, ao olhar para as vagas de gente animada e com garra a defender o 25 de ABRIL e a Liberdade, na Manifestação dos 50 anos, é caso para acreditar que continua a vigorar o Sentir Grato de tudo o que ABRIL nos trouxe e potencialmente nos continuará a trazer.

E persiste ainda na minha lembrança toda a música que então se ouvia, e aquela frase batida que mui recentemente tenho ouvido com insistência, e de que é autor o grande e talentoso SÉRGIO

GODINHO:

«HOJE É O 1.º DIA DO RESTO DA TUA VIDA»

Maio de 2024

Maria Pedro L.

Falaria do júbilo, do frenesim, da glória e da coragem do acontecer. Mas calo-me. Antes olhai.

Pois que tudo aconteceu tão pleno, o Quê? Ah sim, era ainda Abril, as pessoas Sorrindo, mesmo ali, iam e vinham ao longo Da rua, seiva no emaranhado das pálpebras, Estrépito de muitas emoções rolando corpo inteiro.

oLga gonçaLves (in Ora esguardae)

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NOTAS INTRODUTÓRIAS

Foi na Livraria de que sou sócia, que encontrei o primo padre da Família. Era um dia de sol quente e brilhante. Gostei de o ver naquele sítio. Um dos meus oásis na vida.

Assim é que, numa conversa sobre livros, publicações, jornais, ele me pergunta se não tenho nada escrito para publicar (referia-se assim à minha fama de “escrevinhadora” na tão rebelde adolescência e mais calma juventude!) Que sim, dissera-lhe então, mas não propriamente para publicar (imaginava eu!!!). Tão só (e comecei a fazê-lo com obstinação após o 25 de ABRIL por sentir Urgência em registar os MOMENTOS EXTRAORDINÁRIOS duma ÉPOCA-ÚNICA.

Tudo o que pensava (e com que emotividade!) era dirigido ao meu Pai. Ia comentando factos do quotidiano febril, dum período em que todos os sonhos eram ou pareciam realizáveis. Comparava épocas, hábitos, mentalidades, através de vivências passadas, com memória e sonho a fundirem-se, numa alquimia libertadora.

Mas... tudo era pretexto para EXALTAR e sempre a GRANDIOSIDADE, LIBERDADE E POTENCIAL SOLIDARIEDADE em que o TEMPO PURO espreitou. E em que todo o ambiente transbordava então de PROMESSAS, sentidas no ar que se respirava.

E foi neste tom exaltante que falei. E fora este o espírito que presidira aos meus escritos. E a coincidência do meu momento Preview

subjectivo resultado duma evolução pessoal, com aquele momento histórico, tornara tudo extraordinariamente mágico.

Porquê dirigir-me ao meu PAI?

É que desde aquele Momento Trágico que ambos vivemos, sós, desamparados, uma ligação caldeada através do tempo se foi cimentando. Como se de imperativo moral se tratasse, fui recriando a sua Imagem diluída pelo tempo e pessoas. Evocando-o, a partir do tempo de vida que foi o seu e imprimindo-lhe a dimensão do Futuro nele contido.

E fazendo-o EXISTIR NARRATIVAMENTE naquele passado/ presente de pouca duração, procurei recuperar todo o seu Potencial, aquele que poderia tê-lo feito vibrar no Tempo em que tudo renasceu e eu tive a dita de VIVER (eu própria fora recriando o meu eu a par do DELE). Muito do que vivi/vivemos foi incorporado em território ficcional, imaginário, movediço embora. Há cenas marcadamente vividas mas alteradas por “um tempo de experiência feito” e outras que de real só têm a possibilidade de PODEREM TER SIDO. É a nostalgia Pessoana do que se poderia ter tido e não se teve? Do que poderia ter sido e não foi?

É afinal e também, o resultado de perspectivas e contextos diferentes. Como poderia num presente tão febrilmente revolucionário evocar o que foi, de modo objectivo e desapaixonado? Os factos reais ou seja, aqueles cuja existência se manifesta de modo mais concreto, são o esqueleto, a ossatura duma vida passada, mas a carne, a seiva duma outra realidade ajustada àquela, é produto dum imaginário” vivido” no presente.

Encontrar então o nexo lógico das vivências dos vários tempos.

Unir todos os retalhos encontrados e ordenar o caos interior.

Não será este um dos principais objectivos da escrita?

Foi neste trabalho árduo de “escavar” sempre e mais, que me surpreendi com Revelações e Sentidos. A força que acabou por me libertar afinal do excesso de circunstancialismos...

(Umas nuvens no Céu, que começou por ser limpo e luminoso, também foram sendo registadas.)

O meu primo padre escutou-me com os olhos a brilhar. A relação que fui construindo com o meu Pai, já sem ele e no seu vazio existencial, impressionou-o. Era um tio que venerava. Insistiu comigo em escrever/ publicar um livro. Prometi pensar no assunto.

Passou algum tempo.

Num dia de nevoeiro cerrado, a convidar à solidão da Escrita, reli o que escrevera então. E eis que o processo oficinal começa: organizar, compor, anotar algumas reflexões actuais.

Trabalho infindo, consegui finalmente dá-lo como “acabado”?!!! E a atitude ingenuamente emotiva, face ao deslumbre dum tempo demasiado significante, não deixa de me ser sentida neste presente já distanciado...

E assim, A CARTA AO MEU PAI aí vai, em direcção ao seu próprio e incerto destino, movida por um atrevido acto em ME DIZER, ao DIZÊ-LO.

Dezembro 2005

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SE EU NÃO NOS DISSER

QUEM NOS DIRÁ?

RETER em tempo Real o que vivi num tempo Mágico, é deixar TESTEMUNHO PESSOAL duma época Vivida por muitos, de muitas e SOLIDÁRIAS maneiras.

Só lamento profundamente que o meu Pai, a quem dirijo esta Carta, não tenha vivido um Tempo destes, Único numa vida.

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«Escrevo para subir às fontes e voltar a nascer.»

(Eugénio de Andrade)

«A Poesia está na rua.»

As palavras correm como as gentes, livres, soltas. A alegria e a glória dum acontecer que não se conta porque demasiado vivo. É um Abril pleno. De sonhos possíveis, de esperanças ousadas, de mudanças urgentes. É todo um futuro a vibrar de promessas.

É de ti que me lembro, Pai, neste tempo de renascimento e surpresa permanente.

É contigo que quero partilhar, através da escrita, tudo o que de exaltante estou a viver. É a LIBERTAÇÃO, o prazer desamarrado. E rimos, sim, rimos com vontade de viver a vida que Abril nos trouxe. Começámos a fazer história, nós, pobres seres arrumados numa prisão sem ar, sem luz, sem a palavra do conhecimento e progresso. Como dizia Sophia de Mello Bryner: «Apenas vejo / os muros e as paredes e não vejo / nem o crescer do mar nem o mudar das luas»

A liberdade está a instalar-se no nosso quotidiano. No meu liceu a revolução eclodiu. Os chefes da “ordem antiga” estão a ser saneados (a limpeza urge, os aranhiços são muitos!) Mas… pensando bem, nem tudo é alegria… Nesta febre justiceira, há momentos de angústia à espreita e um leve franzir de sobrolho: não será excessivo este limpar em catadupa? Quando se trata de pessoas (com direito a julgamento), tenho dúvidas e sinto um não

sei quê de indefinido… Será fraqueza? Sensibilidade paralisante? Falta de rigor?

Mas a movimentação, o prazer de falar sem medo e defender o que se julga justo, faz esquecer pruridos de quem pouco sabe de luta política.

Os tempos são históricos, intensos, únicos, diferentes da vida normal e morta que tínhamos vivido até aqui.

Nesta longa Carta te vou descrevendo e comentando o que se está a passar e a alterar!

Mas… porquê e para quê?

Tenho saudades de ti, Pai.

Dum passado que não chegou a ser futuro. Dum silêncio a pedir tempo e reflexão para ser diálogo.

Houve tanta coisa que não chegámos a dizer! 1

Toda a tua imagem está para mim carregada de um tempo que não chegaste a alcançar!

E quero falar-te de muita coisa, de tudo aquilo que vier a propósito… Não esqueço a tua imensa vontade de saber e aprender.

Presentes me são as tuas queixas:

“guardas tudo o que lês e sabes para ti” – dizias.

“Mandámos-te estudar… essa sorte não tivemos nós”. E a Mãe e os ditados… a falta de escolaridade… mas o brio em não dar erros… lacunas de conhecimento e desejo de as preencher…

Não atentei muito nisso. Também a tua energia e saber profissional me dava a ideia de pouco precisares da minha parca “sabedoria”.

1 Hoje, mais do que nunca ecoam em mim os versos do poeta Gastão Cruz “tomo consciência / de quanto em tempo útil não foi dito”.

Esta carta longa quer, acima de tudo, recuperar essa tua existência que deu força e futuro a um tempo Dinâmico, prosseguido para além da tua preocupada vida. E daí eu querer recriar-te, a partir da minha / nossa vivência. Uma urgência necessária e imperativa (quase moral) de te contar, de te fazer existir na e através da Escrita se me impôs.

Recuperar o teu Ser na memória imaginária. Dar-te lugar de relevo no pequeno / grande mundo em que actuaste como referente do Espaço / Tempo narrativo. Ficcionar o real com a dimensão dum futuro possível e naturalmente verosímil, vincadamente marcado por este presente energético e pleno duma circunstância revolucionária única: a abertura à Mudança e a todos os possíveis dum progresso sem fim.

As Razões Éticas que justificam a tua “real” existência pela escrita são óbvias.

E outras, mais pessoais ainda...

Julgo ter ido à janela. Petrificada, olho. As águas do rio Alva brilham de negras. Naquele fim de dia soturno, sem nexo nem sentido, tudo é treva. O negro instalara-se. Negro absoluto, profundo, infinito. Preview

Aquele momento trágico, de desamparo e solidão a dois, trabalhado no inconsciente ao longo do tempo, forjou uma ligação que não pode calar-se... Lembras-te?

A janela do quarto aberta deixara então entrar umas aves estranhas, agoirentas. Nem sei como surgiram tão repentinamente!!! Tu, desorientado, só querias um médico. Eu agarrava-me, sôfrega, ao sobrenatural. E fazia promessas. Muitas e difíceis. Foi tudo em vão. Ficámos orfãos.

Os meus olhos estavam secos. Só via a tua figura a andar pela casa como fantasma, espalhando espanto. Os gestos eram desordenados, e os teus olhos gélidos não ousavam ver a negritude real. Estendemos o corpo na cama e o silêncio de som, pesadamente dramático, exalava de certo, o ar dum desespero contido. Teria sido realmente o que parecia ser, na sua verdade crua e nua?........ Sim, era a Morte, o grande, o enorme Problema do Homem, a atingir-nos como grande pesadelo e a ecoar num Espaço Fantasmagórico.

E todo o resto era um longínquo rumor. Ficámos fora do instante... para continuarmos vivos? Nem sei... era tudo tão negro...!!! Passados uns dias a escorrer fel e com um sol cruel a invadir a casa, subi duas a duas as escadas do andar dos quartos. Chamo pela Mãe. Ninguém responde, torno a chamar, deito-me em cima da passadeira do corredor e só então consigo chorar. É um chorar de violino, aquele violino que encontrara em tempos no sótão e te pedira para tocares.

É estranho que só agora, num tempo tão gloriosamente radiante, eu evoque estas cenas ao dirigir-me a ti. É que os factos realmente importantes na vida são os únicos a vir à superfície e a não fluir como a água corrente. E há memórias que só podem contar-se quando se escreve.

E o som do teu violino (será sonhado?) continua-me presente, ecoando lá longe, num tempo em que eu te via de olhos fechados, a tocar uma melodia de ritmo lento…

Eu ficava emudecida de espanto ao ver o arco a mover-se com segurança e o tema para mim indefinido a impor-se. Depois, era a vibração prestes a calar-se e tu ainda de olhos fechados. Alheio Preview

a tudo, envolto na melodia que tocavas, terminavas com os últimos e suaves toques do arco e a toada afinada.

Era um alto voo num ambiente marcadamente utilitário. Seria com certeza Inverno e a lareira estava acesa... Não sei bem... Por esse tempo, nos serões de sonho em que tu tocavas, todos os elementos naturais e pragmáticos se aliavam numa harmonia “perfeita”... e tudo parecia (ou era?) irreal de bom: era a neve a cair devagar, com vontade de se ficar. O uivar longínquo dum lobo esfaimado, parecia ligar-se ao tom queixoso do violino. E a Mãe: “escuta....” (um apelo ouvido mil vezes na memória) – atenta à música e a todos os sons que o silêncio ensonado da montanha fazia ecoar.

“Escreve aí a lista do que precisamos. – dizia – Esta semana as vagonetas têm de ficar prontas sem falta. As Minas não esperam… temos que motivar os operários...” (falava-me em voz baixa, enquanto o violino me arrastava e o resto me aborrecia).

Presente a urgência de que lhe falaras... Mas também sentia quão bem te faria esquecer um pouco esse mundo do trabalho e do ferro! Entravas e fazias-nos entrar no mundo da Arte, com todo o sentido existencial que ela imprime. Era o imaginário a encontrar no real aquilo que lá não estava e a preencher o” vazio” duma vida centrada em grandes e absorventes ocupações materiais. Mas a transfiguração de um metalúrgico profissional e responsável por outros, em violinista, não podia durar muito. Outra realidade mais dura o esperava. As mesmas mãos que tocavam as cordas plangentes do violino, iriam pegar agora no duro ferro.

(E penso nos músicos a quem os nazis cortaram as mãos. O sentir pleno e suave que o violino provocava nos judeus, enchia os desumanos “homens” duma ira mostrenga… Entendo

a emoção envolvente dos judeus...e como lhes era absolutamente necessária, para superar a situação horrenda daqueles campos de morte e sofrimento) Terminavas então...e todo o teu ar mudava: era o trabalho da forja e o malho-pilão a entrar em cena. A exigir já não a suavidade rítmica do violino, mas um ritmo potente e duro a que não eras nada alheio.

Trabalhar com os operários espicaçá-los, era preciso! Ralhar, barafustar, era preciso! “Só assim se conseguia vencer” – clamavas – “lutando e preparando-os para a luta.” E eram mecânicos, torneiros, serralheiros, fresadores, bate-chapas, a sair aptos a ganhar salários mais apetecíveis do que aqueles que lhes davas. “Eram os do mercado” – afirmarias tu hoje? “E segundo os ganhos e produtividade” – clarificaria a Mãe? Seria ela a “mandante”? Que sim, murmuravam alguns. E digo murmurar, porque ninguém conseguia dizer bem alto e com segurança, que um homem enérgico e decidido como tu, podia não mandar em casa (naquele tempo isso afectava o bom nome dum “chefe de família”2, embora o código machista tivesse criado o perspicaz dito “cá em casa manda ela, mas nela mando eu”). – Que não, digo eu.

Eras tão somente inteligente e sensível à capacidade de reflexão da tua Mulher.

Isso era força, era dar-lhe importância, reconhecendo-lhe as qualidades, era avançar em relação ao tempo. E um dia ela... sós os dois... Era um fim de dia quente e abafado... E negras vi as águas do Alva...

2 Na Constituição de 1976, foi abolida a figura do chefe de família: homem e mulher têm igual poder, segundo a lei.

Nesta época de grandes transformações e luta pela igualdade também dos sexos, gostava que visses! É toda uma torrente de ideias e gestos novos, libertários. Parece termos as rédeas na mão.

Tudo isto me traz dum lugar bem visível da memória toda a investida machista na mente, no psíquico e na conduta das raparigas e adolescentes do meu tempo. Tudo o que pensava e contestava nessa educação estava na linha, para mim então desconhecida, da luta feminista (que teve e continua a Ter em todo o mundo grandes mártires).3 Num encontro do movimento para a Paz, conheci há dias uma grande lutadora pelos Direitos da Mulher. A escritora Maria Lamas, duma beleza rugosa, serena, e um olhar... talvez mais penetrante que translúcido... ou as duas coisas. (Verei tudo empolado pelo sonho?).

3 O feminismo não é o contrário de machismo, como por vezes e ainda hoje é encarado. É a própria ideologia machista a ridicularizar e a deturpar a palavra. Aliás, através da história, há vários feminismos, uns mais radicais do que outros. Mas em pleno séc. XXI quem tenha sentido de justiça e dos direitos humanos, não pode deixar de ser feminista ou anti-sexista. Felizmente há hoje homens que o são, tal como continua a haver muita mulher machista.

Grita-se bem alto pelo fim da opressão feminina. É a luta declarada contra preceitos e preconceitos que roubam toda a autonomia à mulher. “Levantar a grimpa contra usos e costumes? Mas que é lá isso? uma mulher que se preza obedece aos códigos estabelecidos e é se quer ser «séria» e arranjar um bom marido!!!”.

É esse o caminho que toda a sinalética sócio – cultural, religiosa, política, lhe indica ainda como a única maneira de ser feliz. E o tão almejado casamento como “base política do modelo de repressão,” é hoje alvo de grande crítica social.

(«Quando te casas?» A sacrossanta pergunta, quando duas amigas se encontravam, inconscientes da clausura duma vida assumida como destino).

E a frase de Alexandre Dumas “as correntes do casamento são tão pesadas que são necessárias duas pessoas para as carregar e por vezes três” tem algum fundamento, mas a visão é machista. Por que não então quatro pessoas? Não seria mais leve, equilibrado e justo?

Os médicos também pactuavam… lembro-me de… como era? Ah! “Com o casamento todos os males desaparecem” face a estados depressivos e outros, das meninas de “condição”. Mas eis que me surge Emma Bovary, a célebre personagem do romance de Flaubert, casada e a sofrer de crises nervosas: “Mas comigo não apareceram até eu me casar”.

A verdade é que a relação homem/mulher, tal como o casamento a consagra, é fardo fastidioso. A paridade dos sexos e independência da mulher é essencial. O Amor é o Fundamental. E surge naturalmente o Movimento Pró-divórcio (há casais juntos e outros separados que esperam há muito pelo dia da libertação).

E questiona-se o Amor eterno, condenatório. Queremos inventar um Novo com “ilusões” lúcidas. A relação amorosa tradicional com a função de menoridade atribuída quase “naturalmente” à mulher, é discutida com imenso fragor. E toda a minha rebeldia em aceitar ser uma futura “fada do lar” encontra agora ampla justificação. Fora com DESTINOS

OBRIGATÓRIOS!!!

Temos o direito de escolher o caminho a percorrer, o trabalho a realizar. Por que razão os trabalhos domésticos não hão-de ser partilhados pelos homens? E as mulheres a realizarem-se nas suas profissões, será “Crime”? Só agora se fala no direito ao trabalho e igualdade de oportunidades. Mas o que acontece é que uma profissão, um emprego, traduz-se num duplo trabalho para a mulher: é ela a sentir-se responsável por tudo o que é do domínio da casa, como lhe foi inculcado desde menina. E é a Mãe que tem de se preocupar com os filhos. E é ela que se sente obrigada a abdicar de tudo

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