Folhas de Plátano

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«Invade-me um pensamento exótico, um estranho desejo: o de seguir em frente, em linha reta, sobre aquela areia indefinida. Caminhar, apenas caminhar. Eu e o vazio. Em frente, para lugar nenhum, dissolvendo-me lentamente naquelas infinitas e quentes quantidades de nada.» Namíbia, 2014 «… senti-me como um alpinista sobre quatro rodas e só não fechei os olhos nalgumas curvas suicidas porque não convém fazer isso enquanto se conduz.» Canárias, 2013 « … musgos ondulados que apetecia acariciar, espelhos de água onde brincavam imagens e reflexos, sebes de azáleas que dançavam entre trilhos, pinheiros sublimemente esculpidos … e, sobretudo, uma sensação de bem-estar, de que não faz sentido sair dali para qualquer outro lugar.» Japão, 2014 «… além de exalar inúmeros e violentos hálitos esbranquiçados e de mostrar na sua caldeira principal pequenas zonas alaranjadas borbulhantes, alimentava rios de lava acinzentada com várias frentes ainda incandescentes. As escorrências rochosas dizimavam lentamente uma zona florestada, numa imagem de destruição implacável…» Havai, 2015 «Avistam-se de longe, como dois seios proeminentes de uma ilha-mulher deitada, belos, intrigantes, desejáveis, impossível não os olhar e admirar, difícil não querer chegar perto e contemplá-los, de norte para sul, de sul para norte, entre ambos, um à direita, outro à esquerda.» Santa Lúcia, 2013 «Teria entrado numa ofuscante nave espacial, um espaço tão misterioso quanto belo, quase sobrenatural, apenas explicável pelo engenho de seres alienígenas? Seria aquele espaço uma espécie de País das Maravilhas, imaginário, feérico, a ponto de me pôr a cabeça a rodopiar, perfeitamente siderado por tanta beleza?» Irão, 2015 «Com um carro nas mãos e centenas de quilómetros desconhecidos pela frente, limpos de tudo, incluindo de excessos de gente, percorrendo mesclas recônditas de prados, florestas e lagos, tinha todas as condições para ser feliz. E fui.» Finlândia, 2014

JOÃO ANTÓNIO TAVARES

A absurda capital do Turquemenistão, os fascinantes desertos da Namíbia, as longas estradas até ao Cabo Norte, os recantos menos conhecidos da Guatemala, são exemplos dos temas que integram os sedutores roteiros que João António Tavares nos convida a fazer An pelo planeta, ao longo de 21 crónicas de viagens que se procuram focar no interessante, no belo, no que nos enche a alma. Viajar é uma experiência de sentidos, em que se destacam as imagens, em «Folhas de Plátano Plátan - Crónicas de Algures» materializadas pela inclusão de numerosas fotografias; e é também uma experiência de sentimentos, partilhados pelo autor na sua forma pessoal de celebrar a vida e o mundo.

JOÃO ANTÓNIO TAVARES

«… os passarões eram tantos que mal se viam os ramos e arbustos em que pousavam: pelicanos, garças, abutres, anhingas e outras aves mais pequenas distribuíam-se por todos os recantos, compondo um quadro excêntrico de árvores carregadas de frutos com asas e bicos». Guatemala, 2013

João António Tavares nasceu nas Lajes das Flores em 1961, tendo vindo para o continente com cinco anos de idade e vivido desde então, quase ininterruptamente, no concelho de Oeiras. É licenciado em Ciências Militares pela Escola Naval, licenciado em Organização e Gestão li de Empresas pelo ISEG e mestre em Ciências Empresariais pelo ISCTE. Foi oficial da Marinha Portuguesa, consultor em Gestão e Tecnologias da Informação e, durante dez anos, administrador em Portugal de uma empresa multinacional de Consulemp toria, Tecnologia e Outsourcing. Conhecer o mundo sempre foi, desde muito cedo, a sua paixão, pelo que foi ao longo do tempo fazendo numerosas viagens aos cinco continentes, tentando gradualmente men materializar os seus sonhos. Nos últimos anos, tem-se dedicado à escrita como hobby, com interesses na escrita de viagens e na ficção. Três anos depois da edição de «De Mapas a Tesouros – Crónicas de Algures», este é o seu segundo trabalho de escrita de viagens. joao.a.m.tavares@gmail.com www.facebook.com/folhasdeplatano



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edição: João

António Tavares de Plátano – Crónicas de Algures autor (texto e fotografias): João António Tavares título: Folhas

Patrícia Andrade Patrícia Espinha paginação: Paulo S. Resende capa:

revisão:

1.ª edição Lisboa, junho 2017 isbn:

978­‑989-20-6973-9 429964/17

depósito legal:

© João António Tavares impressão e acabamento:

Printer Portuguesa


Índice

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Folhas de plátano (Introdução) 1 Ver para crer (Índia) 2 Estradas para norte (Noruega) 3 Recantos especiais (Guatemala) 4 Gás evaporado (Turquemenistão) 5 A beleza dos vazios (Namíbia) 6 Entre desníveis (Espanha – Canárias) 7 Amigo (Timor-Leste) 8 Ouro para garimpar (Brasil) 9 Ilhas globalizadas (EUA – Havai) 10 Planuras bálticas (Estónia, Letónia e Lituânia) 11 Educação sem perfeição (Japão) 12 Paquetes, paisagens e prémios (Santa Lúcia) 13 Trilogia balcânica (Albânia, Macedónia e Kosovo) 14 Cidades surpreendentes (Uzbequistão) 15 Notas leves leves (São Tomé e Príncipe) 16 De pinhais a corais (Belize) 17 Gália conquistada (França) 18 Fácil de gostar (Butão) 19 Camadas de História (Colômbia) 20 Espelhos mágicos (Irão) 21 Felicidade nórdica (Finlândia)

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Folhas de plátano Introdução

Terminei «De Mapas a Tesouros – Crónicas de Algures», o meu primeiro trabalho de escrita de viagens, há cerca de três anos. Na altura, encarei a sua publicação como uma aventura, de certa forma equivalente a uma viagem, uma vez que representou uma incursão em domínios que me eram, até então, desconhecidos. Desde então, tenho tido o privilégio de continuar a viajar. Devo dizer, aliás, que as viagens são para mim mais do que um prazer, são uma necessidade, um remédio para a espécie de claustrofobia, porventura patológica, que sinto ao fim de algum tempo passado na Lisboa de que tanto gosto. O que sei é que há que ir. Ir para lá do horizonte, depois das montanhas, além dos mares. A escrita de crónicas tornou-se um prazenteiro subproduto desta atividade. Permite-me prolongar a experiência, manter-me noutras paragens enquanto preparo, redijo e revejo os textos. Não fiz quaisquer planos quanto a este exercício, sabia apenas que, a dada altura, teria material equivalente ao que utilizei em «De Mapas a Tesouros». E assim foi: esse momento chegou e a vontade de partilhar o que produzi é muita. Não vou repetir o que escrevi na «Introdução» do meu trabalho anterior, sendo que tudo o que aí mencionei se mantém atual. Recordo apenas a minha condição de turista-tão-viajante-quanto-possível e a minha costela geográfica, que me faz apreciar de tudo um pouco nas viagens, mas sentir com especial emoção a transformação dos mapas, conhecimentos abstratos, em tesouros, uma vez convertidos em memórias concretas depois de visualizada a realidade neles representada. 11


João António Tavares

A principal diferença entre a obra anterior e esta, além da que a experiência me poderá ter dado e que não me compete avaliar, é que estas crónicas foram redigidas logo após os regressos, com um menor apelo à memória de longo prazo. Mais uma vez, disponho-as de forma assumidamente caótica, sem ser por continente, cronologia ou outro critério. É assim que a vida acontece e as viagens também. Só um país é repetido (o país, não a viagem) e continua a ser, intencionalmente, colocado em primeiro lugar. Esse país é a Índia, que considero ser o mais fascinante da Terra, o que nos esgota os adjetivos. Todos os adjetivos, não apenas os bons. A propósito, as coisas boas e menos boas vivem em paralelo, são distintas dimensões da mesma realidade. Ao longo das 21 crónicas deste livro, sobreleva uma visão positiva do mundo, a que se fixa nas belezas, nos sorrisos, no que nos enche a alma. A par, frequentemente, existem guerras, miséria, corrupção, crime, repressão, degradação ambiental. Não obstante, as coisas podem sempre ser observadas de diferentes formas. Por exemplo, quando olho pela janela e vejo o chão cheio de folhas de plátano, posso fixar-me no piso escorregadio e perigoso, em serviços públicos negligentes, nos tons taciturnos de um clima desagradável. Mas posso apreciar a brisa que as faz cair, divertir-me por pisar e tocar em objetos normalmente inacessíveis e focar-me no encanto das folhas propriamente ditas, seja a sua genial paleta de verdes, amarelos, laranjas, vermelhos e castanhos, a sua perfeita simetria, a curiosidade do seu recorte ou a elegância das suas nervuras. Talvez o mundo seja como folhas de plátano caídas: pouca influência temos em como são e como estão, mas a forma como as vemos e sentimos é nossa opção. É esta escolha pelo positivo e pelo belo, mais espontânea que racional, que subjaz a este conjunto de crónicas. Ilustro-as com várias fotografias das muitas que tenho, também elas não mais do que outro subproduto igualmente aprazível de cada viagem. Se daqui saiu um livro de textos com fotografias ou um livro de fotografias com textos, é como se queira. O objetivo da minha partilha 12


Folhas de Plátano – Crónicas de Algures

mantém-se: ajudar o leitor a passar alguns momentos agradáveis, indo para lá do horizonte, depois das montanhas, além dos mares. A ir, porque, se não em corpo, pelo menos em espírito, há que ir.

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Ver para crer Índia, 2014

«Ver para crer.», diz Ignitious, o guia, estimulando os visitantes a apreciar o monumento. Fico sem palavras, perante aquela obra notável: um templo enorme escavado num gigantesco monólito de basalto, formado por complexas estruturas de vários pisos, incluindo dois grandes obeliscos, rodeado por grutas com salas com colunas trabalhadas e todo guarnecido por milhares de esculturas e por frisos minuciosos alusivos à mitologia hindu. Mas o que impressiona é a forma como tudo foi construído, no longínquo século viii – é que não se trata de um buraco escavado na rocha, para o qual foram transportados os materiais e erigidos os edifícios, nos quais se colocaram os sofisticados adornos; aqui, a pedra foi sendo retirada de modo a que todas as estruturas ficassem com as suas harmoniosas formas, tudo feito vazando o monólito original, esculpindo o extraordinário monumento de cima para baixo. Fabuloso. Já tinha visto construções feitas desta forma, na Capadócia (Turquia) ou em Petra (Jordânia), por exemplo, mas em rochas brandas, não em basalto, e não com esta dimensão e este detalhe. Definitivamente, um lugar especial, que importa observar para acreditar. Trata-se do Templo de Kailashnatha, ou a Gruta 16 de Ellora, o conjunto de 34 grutas artificiais situado perto de Aurangabad, 300 quilómetros a leste de Mumbai. Estas grutas, construídas ao longo de uma escarpa basáltica e com três distintos grupos, o budista, o hindu e o jainista, surpreendem pela forma de construção, pela dimensão, pela beleza das suas esculturas, pela riqueza do trabalho em pedra e pela harmonia das suas salas. E para tornar a visita a esta região mais superlativa, existe, a 100 quilómetros, outro 14


Folhas de Plátano – Crónicas de Algures

magnífico complexo de grutas, as de Ajanta, todas budistas, todas construídas com a mesma extraordinária técnica, ainda mais antigas e onde sobrevivem pinturas murais lindíssimas, algumas com mais de 2 000 anos. Se Ellora tem as grutas mais majestosas, Ajanta tem um conjunto paisagisticamente mais agradável, numa escarpa em U, também basáltica, ao longo do rio Waghora. A minha incursão pela Índia do centro e do sul incluiu quatro estados: Maharashtra, onde se situam as grutas de Ajanta e de Ellora; e também Karnataka; Tamil Nadu e Kerala. Em todos fui confrontado com monumentos que se impõem pela sua dimensão e riqueza: os templos de Belur, Halebidu e Somnathpur, no Sul de Karnataka, dos séculos xi a xiii, feitos em xisto esverdeado, belos exemplos da arquitetura Hoysala, com um trabalho em pedra de tal forma notável que dei por mim de boca aberta a observar frisos, colunas e esculturas, sem saber por onde começar o meu registo fotográfico; os palácios de Mysore, com destaque para o de Amba

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Templo de Kailashnatha, Grutas de Ellora, Maharashtra, Índia


João António Tavares

Vista das Grutas de Ajanta, Maharashtra, Índia

Vilas, excêntrico e sumptuoso, aberto sobre uma ampla praça cheia de visitantes não menos interessantes; a grandiosa estátua jaina do século x em Sravana Belgola, esculpida num monólito de granito no topo de um morro semiesférico, acessível através de 647 degraus, um esforço que valeu a pena, pelo misticismo do local e pelas longas vistas sobre o planalto do Decão; o Templo de Kapaleshvara, o maior de Chenai, muito frequentado por devotos plenos de religiosidade; ou o descomunal e espetacular Templo de Minakshi, em Madurai, um quadrilátero com mais de 200 metros de lado, dominado por quatro gopuras (portais em pirâmide) de 50 metros de altura, e onde nos podemos perder durante horas, de tanto que há para observar e para sentir, entre fiéis, santuários, salões, esculturas, pinturas, costumes, cores, músicas e cheiros. Se muitos monumentos vi, muitos mais ficaram por ver, pois os tesouros deste subcontinente feito país não têm fim: pelos guias que consultei, pelos livros que li, pelas revistas que folheei, fiquei pasmado com o que há para admirar e com aquela sensação algo amarga de que estava apenas a arranhar mais um pouco da superfície deste admirável território. A Índia, sempre a incredible India. 16


Folhas de Plátano – Crónicas de Algures

No interior do Templo de Halebidu, Karnakata, Índia

Passado o injustificado amargo, pois o que importa é focarmo-nos no que podemos fazer, deixei-me levar pelo ambiente, pelo calor, pelos quilómetros percorridos, por tudo o que avistei e senti, terminando tão contagiado por este inimaginável pedaço do planeta como da primeira vez que o que visitei. É que os monumentos e as paisagens acabam por ser sobretudo pretextos para trazer da Índia o que ela tem de mais cativante, de mais interessante, de mais desafiante: as pessoas, o povo que brota por todos os lados, enchendo cidades e aldeias. São 1 240 milhões de habitantes e diz a estatística que deverá tornar-se, em poucas décadas, o país mais populoso do mundo, ultrapassando a China. É de facto muita gente e isso testemunha-se por todo o lado. Não obstante, com uma pressão humana tão avassaladora, a Índia selvagem e natural continua a resistir. Para além dos superprotegidos redutos dos poucos tigres e dos poucos leões asiáticos que restam, sobra ainda espaço para numerosos parques e reservas naturais na zona sul, distribuídos pelas regiões de fronteira entre os vários estados, todos abrigando numerosa bicharada. E sem sequer ter incluído no meu itinerário um desses muitos espaços, tive 17


João António Tavares

o privilégio de desfrutar de uma visão tão magnífica quanto rara: um casal de calaus-bicórneos, voando a pouca distância da estrada, lindos na sua plumagem com grandes listas negras e brancas, estendidas pelo seu metro e oitenta de envergadura. Pousaram em árvores próximas, deixando admirar o seu descomunal bico com uma protuberância superior, como se de dois bicos se tratasse. Existem em pequenas bolsas territoriais no Sueste Asiático e na Índia, onde são uma espécie ameaçada. Que sorte avistar estas aves ao atravessar os Gates Ocidentais, na estrada de Madurai para Cochim! Na Índia, o que mais releva é o seu povo, dizia. Gente, muita gente, é a sensação que se tem em qualquer cidade ou aldeia. E não são apenas pessoas, é uma turbamulta vívida, colorida, irrequieta, que enche, preenche, extasia, faz rir, arrepiar, admirar. Gente que choca, que desperta emoções. Gente, depois de um olhar mais atento, diversa de estado para estado, não só na língua e no alfabeto, mas na fisionomia, nas roupas e nos costumes. O tradicional sistema de castas, embora legalmente extinto e politicamente desencorajado, subsiste de pedra e cal nos meios rurais. E não são só as conhecidas castas principais (brâmanes, xátrias, vaixás e sudras) e os sem casta (párias ou intocáveis), há milhares de subcastas e de subtilezas tribais cuja complexidade nos excede, num caldo de diversidade que dificulta leituras simplistas e sob poderes políticos que sobrevivem graças a modelos de governação profundamente descentralizados. Em consequência, a condição de nascença continua a ter um peso decisivo nas oportunidades, mesmo quando não falta o talento. Percebi melhor essa realidade com Ganesh, um jovem de 21 anos de sorriso largo, que vendia animais em pedra que ele próprio esculpia. «Tenho nome de Deus, mas não sou Deus.», disse, acrescentando que fez seis anos de escola, mas depois perdeu a mãe, por doença; o pai, alcoólico, não lhe ligava, e salvou-se o facto de lhe ter ensinado a arte de trabalhar a pedra, permitindo que seja ele hoje o sustento de ambos, vendendo o seu artesanato junto ao grande touro de Nandi, nos arredores de Mysore. Além de canará, a língua de Karnataka, Ganesh 18


O topo da gopura Sul do Templo de Minakshi, em Madurai, Tamil Nadu, Ă?ndia


João António Tavares

Arredores de Mysore, Karnakata, Índia

fala um inglês perfeito e arranha o francês e o espanhol. É visivelmente esperto, educado, batalhador. Teria todas as condições para ir longe na vida, mas infelizmente a sua condição social não lhe abrirá muitas portas, nem mesmo as das numerosas universidades e institutos que proliferam por toda a Índia, como a de Mysore, tão próxima, com 85 000 estudantes. É que o país é hoje o maior formador mundial de engenheiros, informáticos e médicos, alimentando uma exuberante atividade de prestação de serviços para todo o mundo, em modelo offshore, com expoente justamente nas principais cidades do sul, como Bangalore, Chenai ou Hyderabad, todas com aeroportos cheios de sujeitos engravatados vindos dos quatro cantos do globo. Perturbado pela Índia das castas, no sentido negativo, cedo me perturbo, no sentido positivo, com outra Índia, a Índia das festas. São muitas, sempre coloridas, barulhentas, intensas; ao longo das estradas, por várias vezes vi grupos de pessoas dirigindo-se para o templo mais próximo, transportando frutas, flores e oferendas 20


Folhas de Plátano – Crónicas de Algures

No teatro Kathakali, Cochim, Kerala, Índia

Mulheres a caminho das festas, Tamil Nadu, Índia

diversas, que podem incluir uma cabra para o devido sacrifício. Seguiam, em geral, bem vestidas, as mulheres sempre elegantes nos seus saris garridos e na exuberância das suas joias, não fosse a Índia o maior importador mundial de ouro, prata e pedras preciosas. Aliás, podemos estar a atravessar aldeias pobres cheias de lixo,

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João António Tavares

mas não faltam avantajados cartazes de publicidade com mulheres cobertas de adornos milionários. Em Srirangapattana, perto de Mysore, terra do Sultão Tipu, conhecido por «Tigre de Mysore» pela resistência que ofereceu ao poder inglês, havia festas religiosas junto ao seu vasto templo, dedicado a Vishnu. Foi mais uma vez um momento de sorte: grandes carruagens de madeira (rathas) muito enfeitadas, transportando divindades, vendedores, muitas flores, fumos, música e, claro, gente, muita gente. Junto ao templo testemunhei uma religiosidade profunda, ainda que, como em todo o lado, a dimensão religiosa conviva com a lúdica, não faltando famílias em passeio e diversão. Uma coisa engraçada, comum a toda a Índia do sul, foi a curiosidade com que o pequeno grupo de ocidentais era observado, sendo fácil entabular conversa e gerar sorrisos cativantes. E várias pessoas pediram para tirar fotografias comigo, no que me senti equiparado a uma celebridade de Bollywood, digna de figurar nos registos de quem me fotografava. Já tinha testemunhado este tipo de curiosidade no Turquemenistão, mas não na Índia do Norte, mais turística. Nestas festas, a curiosidade foi mais longe e um homem colocou sorridentemente nos meus braços a sua filhota de cerca de três anos, fotografando-nos com visível regozijo. Deambulámos algum tempo entre cores, fumos, músicas e batuques. Atirámos pequenas bananas com um cheiroso raminho de artemísia espetado numa ponta para a figura de Lorde Ranganatha (uma representação de Vishnu reclinado), colocada no topo de uma carruagem espampanante, muito alta, o que permitiria, a quem acertasse, receber uma importante bênção. Após várias tentativas frustradas, que isto de receber contemplações divinas tem o que se lhe diga, voltámos à estrada, a caminho de Bangalore e Chenai. Onde há gente, muita gente, há comércio, muito comércio. Lojas e lojinhas, muitas pouco mais do que barracas atamancadas, vendedores de ruas e de cantos, esplanadas com cadeiras de plástico decrépitas e ar improvisado, oficinas fuliginosas, tendas de fritos 22


Folhas de Plátano – Crónicas de Algures

Trânsito engarrafado em Chenai, Tamil Nadu, Índia

gordurentos, de frutas, de roupas, de utensílios, muita cor e muito bulício. E feiras e mercados locais sempre interessantes, onde o que mais me surpreendeu foi o comércio de flores, um perfeito espetáculo. Visitei mercados em Mysore, Chenai e Madurai, e em todos admirei ruelas inteiras de vendedores de flores, com dezenas de homens manipulando jasmins, cravinas, crisântemos, rosas, flores-de-lótus e outras, fazendo fios, coroas e enfeites diversos, tudo para alimentar as omnipresentes tradições religiosas, não havendo casa, loja, carro ou templo que não tivesse, em algum lado, fios ou adornos de flores dedicados a uma divindade. Ademais, muitas mulheres usam adornos de flores nas suas lindas e longas tranças negras, outro importante mercado desta curiosa indústria. Tudo é cor na Índia, um deleite fotográfico permanente, pois além das flores são os saris, as casas, os carros, os cartazes, a roupa estendida. E sons, claro. Das sonoridades enigmáticas da música indiana, com o delicioso ritmo de tablas e mridangams, ao burburinho das multidões e dos veículos nas ruas. «Palam, palam, palam, palam!», diziam os vendedores de frutas numa rua de Chenai, enquanto poliam freneticamente as suas laranjas e tangerinas, que 23



Festas em Srirangapattana, Karnakata, Ă?ndia


João António Tavares

já brilhavam mais do que os cromados dos tuk-tuks. E buzinas, nem mais, o instrumento precípuo da condução indiana, importando começar a apitar mesmo antes de se começar a andar. A propósito, «Blow Horn», «Sound Horn» ou «Horn Please» eram frases indispensáveis nas traseiras de qualquer camião, embora deva dizer que apenas os vi desviar-se quando lhes apetecia e não simplesmente porque uma qualquer insignificante viatura decidia apitar-lhes na retaguarda. Por outro lado, recordo também alguns inenarráveis sinais de «obrigatório apitar», colocados em estradas com alguns ziguezagues, mas onde nem por isso se apitava, porque a buzina é para ser partilhada com os tímpanos de alguém e não apenas porque surge uma solitária curva ou uma desprezível obrigatoriedade. Sim, porque as regras na Índia não são para cumprir. O salário mínimo, por exemplo, existe, mas apenas as multinacionais e outras companhias mais escrupulosas o aplicam. Toda e qualquer regra que se veja escrita é olimpicamente ignorada, e a fiscalização policial é objeto de natural negociação, como qualquer coisa transacionável. «Pode-se estacionar aqui?», pergunta o forasteiro. «Não, mas paramos.», responde o motorista local, sabendo que se aparecer a polícia o assunto se resolverá por algumas rupias. Os preços destas «multas», creio, estarão equilibrados pela mão invisível de Adam Smith, não faltando oferta de infrações nem procura de subornos. Além de gente, muita gente, vê-se sempre lixo, muito lixo. Apenas em «ilhas» civilizadas como hotéis, monumentos e alguns espaços públicos (não todos), onde alguém, veja-se só a excentricidade, paga para que o espaço seja mantido limpo, é que o lixo está ausente. Não é por falta de mão-de-obra, certamente, nem de tempo livre, que povo ocioso é coisa que não falta, é pura e simplesmente porque o lixo é ignorado, faz parte, esteve, está e estará lá. É um pouco como as vacas, que emprestam à paisagem urbana indiana o seu caráter único, sendo uma delícia observar a dialética entre os tranquilos bovinos e o frenético trânsito. Só mesmo 26


Folhas de Plátano – Crónicas de Algures

na Índia se pode observar um belo carro de bois, com dois magníficos exemplares de cornos pintados, placidamente parado no meio de um colossal engarrafamento, no caso no centro de Chenai, uma metrópole de dez milhões de habitantes. Ao longo de cidades e vilas, não me cansei de observar, admirar, escandalizar e sorrir com o que vi, num rol de imagens infindável de que aqui assinalo uma pequena parte, de uma forma tão caótica como as registei na memória: os numerosos acampamentos de famílias nómadas que vivem numa completa imundície, mas que alegram as beiras das estradas com tendas de panos coloridos e com os seus rebanhos desorganizados; as motorizadas carregadas de pessoas e de mercadorias, três, quatro e até cinco almas encavalitadas sobre as duas rodas, circulando no meio da bagunça, se necessário com o condutor a falar ao telemóvel e a guiar apenas com uma mão, crianças e bebés entalados entre adultos, sentados 27

Lavador em Cochim, Kerala, Índia


João António Tavares

sobre pernas, sobre o guiador, sobre a carga, em qualquer dos casos desafiando todas as possíveis leis da Física; os vendedores de pratos feitos com grandes folhas secas, numa espécie de louça descartável (e biodegradável) de origem ancestral; uma loja especializada em convites de casamento, completos e detalhados, repletos de cores, brilhos, arte e tradição, os mais faustosos expostos nas vitrinas; as carruagens para noivos, prateadas, reluzentes, à espera dos sorrisos dos próximos pares de clientes e dos seus numerosos convidados; os papagaios que tiram as cartas da sorte do baralho com os seus bicos, antes de voltarem voluntariamente para a sua minúscula gaiola, competindo ao seu dono interpretar o sentido das cartas, satisfazendo a curiosidade dos seus clientes ansiosos quanto ao seu futuro; os Kolam, desenhos feitos com farinha de arroz ou giz, às vezes com pós coloridos, dispostos no chão à entrada de casas e estabelecimentos, para proteção divina, complicados mas harmoniosos; os grupos de crianças uniformizadas visitando os monumentos, ouvindo ordeiramente os seus mestres ou circulando em fila (indiana), enchendo os séculos das pedras com cor e vida, inundando-os de lindos sorrisos abertos sob grandes olhos negros; uma lavandaria pública, com vários velhotes escanzelados batendo energicamente os seus panos encharcados em tanques, antes de os estenderem num extenso descampado cheio de filas garridas de roupa a secar; os babilónicos edifícios pintados de cores pastel, enegrecidos pela humidade das monções, cheios de aparelhos de ar condicionado decadentes e de cartazes publicitários espalhafatosos que misturam políticos, mercadorias e negócios; os pequenos templos à beira das estradas, nas várias aldeias, muito variados, exibindo de torres cónicas brancas a gopuras coloridas; as plantações de chá nas vertentes ocidentais dos Gates, com os arbustos aparados em círculos muito certinhos, como mantos de bolinhas verdes cobrindo o ondulado dos terrenos; as inúmeras igrejas cristãs de Kerala, algumas bem mantidas, pintadas de branco ou de cor-de-rosa, alegrando o verde-escuro da paisagem, visão bizarra numa terra dominada por outras crenças; o exótico teatro Kathakali, de 28


Folhas de Plátano – Crónicas de Algures

Kerala, onde se contam histórias com movimentos de olhos arregalados e curiosos esgares faciais, feitos por atores carregados de uma maquilhagem que levam uma hora a colocar; os pormenores dos diferentes trajes, dos topi brancos dos homens das aldeias de Maharashtra (bonés tipo bivaque, celebrizados por Gandhi e Nehru), aos dothis subidos, tipo fralda, de muitos transeuntes de Karnataka, Kerala e Tamil Nadu; ah, e os inesquecíveis pedacinhos de presença portuguesa, mais visível em Cochim, por exemplo, na igreja de São Francisco, onde está assinalado o primeiro túmulo de Vasco da Gama, mas também em Chenai, na igreja de Nossa Senhora da Esperança («Senhora da Expectacao, 1523», escrito no seu interior), na colina onde, diz a tradição, pereceu o apóstolo São Tomé. A Índia é tudo isto e mais, muito mais, sempre mais do que se possa imaginar. E dela pode-se dizer, em geral, o mesmo que se disse das grutas de Ellora, em particular: ver para crer.

Pescadores no lago Vembanadu, Kerala, Índia

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