ODia Seguinte Romance
António Martins Matos
O Dia Seguinte Preview
FICHA TÉCNICA
título: O Dia Seguinte autor: António Martins Matos edição: edições Vírgula ® (Chancela do Sítio do Livro)
arranjo de capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira
1.a Edição Lisboa, Setembro 2022 isbn: 978-989-8986-64-1 depósito legal: 503145/22
© António Martins Matos
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À memória dos pilotos do Curso Caldas Xavier:
José Lemos Paula; Francisco Lopes Manso; Cláudio Pereira Ascenção; Francisco Lino Neto; Hermínio Almeida Oliveira…
… e a tantos outros… … que não suportavam a ideia de estarem colados ao chão.
Eu fiz um acordo com o Tempo...
Nem ele me persegue, nem eu fujo dele... Qualquer dia a gente se encontra e, Dessa forma, vou vivendo Intensamente cada momento... Mário Lago 1911-2002
Prólogo
Caro Leitor
Neste nosso Mundo de Descobertas, todo o “Conhecimento” tem sido construído aos poucos, o Fogo, a Roda, o Ferro, o Átomo, quase sempre em franco progresso, aqui e ali com alguns retrocessos, normal mente resultantes de complicadas crenças ou dogmas variados.
As coisas em que já acreditámos! Que a Terra era plana, que o Sol e as Estrelas giravam à nossa volta, o Centro do Universo, o Átomo indivisível!
O avanço da Ciência tem percorrido um Caminho demasiadamente tortuoso, com muitos dos habitantes deste planeta queimados em fogueiras, ou vítimas de algumas outras tristes e sádicas situações. Só depois de finalmente termos conseguido ultrapassar o período negro da Inquisição, nos últimos séculos o Conhecimento tem conseguido avan çar de um modo bem mais acelerado.
Com esta evolução de tipo exponencial, no momento presente e por mais voltas que tentemos dar à imaginação, não sabemos, nem sequer conseguimos adivinhar, para onde todos estes novos Caminhos nos irão levar, já que todos os dias estamos encontrando muitas novas “Descobertas”.
No avançar de todo este Conhecimento, Albert Einstein1 veio com plicar o que até essa data era tido como simples, acrescentando-lhe algumas novas Teorias e Dimensões, nunca antes referidas, o Espaço e o Tempo, a Gravidade, o Electromagnetismo, a Mecânica Quântica.
Nada a contestar, mas não são essas as Dimensões que, de momento, lhe pretendo apresentar. Tenho de começar pelo princípio, pelas mais
básicas, as que Euclides2 definiu lá na Grécia Antiga, o Comprimento, a Largura e a Altura.
Durante demasiados séculos rastejámos ao longo de dois eixos, impossível fazer algo diferente. Na vã esperança de tentar dominar a terceira dimensão, muitas experiências foram entretanto acontecendo por esse mundo fora, Portugal não foi excepção.
Segundo o jornalista Albino Lapa (1898-1968) no seu livro “A Avia ção Portuguesa3, o autor refere um tal João de Almeida Torto, enfermeiro e natural de Viseu, que no dia 20 de Junho de 1540, munido de umas asas rudimentares, se lançou do alto da Sé de Viseu, vindo a “aterrar” num telhado contíguo. Tal façanha ter-lhe-á sido fatal. Do seu ousado gesto apenas terá conseguido uma magra compensação, o ter sido reconhecido por alguns como sendo o “primeiro aviador português”.
Esta história, apesar de devidamente representada na entrada do Museu da Força Aérea em Sintra, carece de fundamento. Em abono da verdade, nem há a certeza de este João Torto ter existido, apenas uma figura do imaginário nacional.
Assunto devidamente certificado foi o caso daquele padre português, nascido no Brasil e de nome Bartolomeu de Gusmão, com a sua Pas sarola Voadora (1709). O homem demonstrou na Corte que havia um meio alternativo para se conseguir subir no ar. Ficou conhecido como sendo o “Padre Voador”.
Já todos sabemos que os ingleses nunca gostam de ficar para trás, de imediato a apresentarem o seu George Cayley4 . O homem terá estudado os vários princípios da aerodinâmica e inventado o aeroplano (1853). Ponto importante e que não lhe permitiu avançar para grandes feitos, faltava-lhe um propulsor.
O mesmo problema com os Irmãos Wright. À falta de melhor, resolveram socorrer-se de uma catapulta. Um pequeno voo de alguns metros e sempre em frente, de imediato a vangloriarem-se do feito (1903).
Foram contestados pelos brasileiros. Segundo eles, o Santos Dumont é que foi o primeiro homem a voar num aparelho, levantando voo pelos
Euclides – Matemático Grego, 300AC, o Pai da Geometria
Imprensa Libânio da Silva, 1928
https://en.wikipedia.org/wiki/George_Cayley
seus próprios meios, sem a necessidade de um qualquer auxiliar para os ajudar no lançamento (1906).
Diziam eles, os brasileiros, “Com uma fisga até uma pedra voa”. Acho que tinham toda a razão, acabaram por ser vítimas do marketing e da propaganda americana.
De um modo ou do outro, a partir desse momento a Terceira Dimen são passou a estar ao nosso alcance. Aos poucos lá fomos progredindo, uns primeiros aviões de pau e trapo, dirigíveis, hidroaviões, motores turbo-hélice, a jacto, turbo-fan...
Nos dias de hoje vamos de Lisboa a Tóquio em apenas algumas horas, apaparicados por umas lindas hospedeiras, com uma pequena paragem para verter águas, comer um cheeseburger ou uma salada vegan e comprar uns “recuerdos” no enorme free-shop do Dubai. Ou, se ainda quisermos ser mais radicais e viajarmos mesmo até aos antípodas, em pouco mais de trinta horas podemos estar a passear de cabeça para baixo em Wellington, capital da Nova Zelândia.
Atrevidos que nós éramos, somos e vamos continuar a ser. Até já pisámos a Lua, chegámos a Marte e enviámos umas Sondas para fora do Sistema Solar. Se houver por aquelas longínquas paragens algumas criaturas pensantes, com uns olhos facetados a meio da cara e umas antenas no alto da testa, num outro planeta algures no meio do Uni verso, talvez, neste preciso momento, os seus habitantes estejam a ten tar descobrir a origem de, segundo eles, terem acabado de avistar um UFO5.
Em resumo, poder-se-á dizer que as usuais três Dimensões estão totalmente dominadas. Mas, agora sim, o momento de voltar a Einstein, ainda faltam muitas outras.
Os Físicos actuais, os que estudam estes assuntos, estimam haver, no mínimo, mais umas outras oito Dimensões, sete de Espaço e uma de Tempo. É sobre esta última, o Tempo, que pretendo avançar com algu mas ideias e uma pergunta:
Será que, conforme vem descrito na Teoria Geral da Relatividade de Einstein, a Dimensão Tempo é elástica e moldável?
Entre 1959 e 1964 os americanos estrearam na televisão uma série de ficção científica denominada “TWILIGHT ZONE”. Foram inúmeros programas de puro deleite, a preto e branco, grosseiramente traduzidos para português com o título de “ A 5ª Dimensão”. Lembro-me de alguns episódios.
“The Last Flight”, um piloto que, durante a 1ª Guerra e num voo pelos céus de França, se perde no meio de um cerrado nevoeiro. Assustado e após algumas desesperadas tentativas, acaba por conseguir regressar ao local de onde partira, quarenta e dois anos depois;
“The Odyssey of Flight 33”, um jacto comercial do tipo DC-8 que, depois de ter sobrevoado uma tempestade e ao vir aterrar a New York, descobre ter regredido no tempo;
“A Kind of a Stopwatch”, um homem possuía um relógio, com o qual tinha vindo a descobrir que podia fazer parar o “Tempo”.
Deve ter sido por uma qualquer avaria num relógio desse tipo que um navio saído do porto de Amsterdão no ano de 1680, ainda hoje con tinua perdido por esses mares fora, sempre a navegar contra o vento, tentando encontrar um porto de abrigo. Chamaram-lhe o “Holandês Voador”6. Talvez este caso até tivesse ficado esquecido, não fosse um senhor chamado de Wagner o ter imortalizado numa ópera. E que dizer daquele espantoso filme “O Estranho Caso de Benjamim Button” (2008)7, com o Brad Pitt e as lindas Cate Blanchett e Tilda Swinton, baseado num livro de F. Scott Fitzgerald8?
Em abono da verdade convém referir que o filme está demasiada mente adulterado e romanceado. O texto original conta uma outra história bem diferente, de um relógio que registava o “Tempo” ao contrá rio. Tinha sido projectado desse modo, para que os filhos do relojoeiro, entretanto perdidos na guerra, pudessem regressar a casa e voltar a viver as suas vidas.
The Flying Dutchman – Lenda de marinheiros holandeses séc. XVII.
Filme de David Fincher, 3 Óscares
Tales of the Jazz Age – Penguin Books ISBN 9780141197470
Ainda o cinema, “Meia-Noite em Paris” (2011), de Woody Allen, com o actor Owen Wilson no papel de um escritor frustrado que, por um mero acaso, consegue encontrar um “portal do tempo”. Esse achado vai-lhe permitir trocar ideias com os seus escritores favoritos que ele tanto admira, F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Gertrude Stein, a chamada “Geração Perdida”.
O filme tentou reproduzir os ambientes da “Belle Epoque” e dos “Loucos Anos Vinte”. Tem algumas particularidades interessantes que terão escapado à maioria dos espectadores, como seja a cantora Sonia Rolland no papel de Josephine Baker, a cantar uma canção que só seria escrita dez anos mais tarde, a Paris dos anos 20 com pilaretes nos pas seios, a então Primeira Dama de França a fazer parte do elenco.
Quanto ao guião, ter-se-á baseado no “Incidente Moberly-Jourda in”9, duas turistas que em 10 Agosto 1901 e ao visitarem o “Petit Tria non”, pequeno palácio situado nos jardins de Versailles, afirmaram, juraram a pés juntos, ao passearem no jardim terem-se cruzado com a Rainha Maria Antonieta, guilhotinada em 1793.
Dirá o leitor:
“– À excepção da linda Carla Bruni, tudo o resto é ficção científica”.
Aceito o comentário. Mas, no mundo real, há situações que, por mais que tente, não consigo compreender. As minhas dúvidas têm a ver com o aparecimento, de tempos a tempos, de inventores, cientistas e outros, com conhecimentos extraordinários, completamente fora da época e do contexto em que viveram.
Arquimedes, Leonardo da Vinci, Galileu Galilei e Albert Einstein, foram apenas alguns deles. E que dizer de um tal Nikola Tesla, (18561943), sérvio naturalizado americano, personagem que ainda hoje pou cos conhecem, apenas uma vaga ligação a uma recente marca americana de automóveis. Em 1901 já o homem planeava o que viria a ser a Internet, e em 1909, já falava em aparelhos de comunicação entre as pessoas, pelo mundo fora, os actuais telemóveis.
O interessante deste Nikola Tesla é que o homem sempre viveu na sombra, dado como meio louco, vindo a morrer na pobreza e sem que as suas invenções lhe fossem atribuídas, usurpadas por alguns outros,
os que acabaram por obter os louros e ficar na História, um tal Thomas Edison e um outro de seu nome Guglielmo Marconi.
A pergunta que não consigo responder. Onde e como teriam estes homens adquirido todos aqueles Conhecimentos?
Há quem goste de nos atirar com o exemplo da cultura egípcia e das suas pirâmides, que os seus conhecimentos para aquelas construções lhes teriam sido transmitidos por alguém de uma outra galáxia, numa eventual visita ao nosso planeta.
Quanto aos historiadores, apesar de um tudo ou nada mais com os pés no chão, também não conseguem obter respostas coerentes sobre essas e algumas outras construções existentes neste nosso mundo.
Vejamos o monumento de Stonehenge10. Como teriam os habitantes da região movimentado aquelas pedras de quase cinquenta toneladas?
Teriam sido ajudados por alguém, ou todas aquelas capacidades matemáticas, de engenharia e astronomia, teriam nascido com eles?
Que nem precisamos de ser tão internacionais, temos o mesmo pro blema aqui no nosso Portugal. Basta irmos visitar o Cromeleque dos Almendres11, ali para os lados de Évora, noventa e cinco monólitos agrupados, ali colocados há uns oito mil anos. No Solstício de Verão o conjunto fica perfeitamente alinhado com um outro pedregulho, situado a um quilómetro de distância, o Menir dos Almendres.
A fazer fé nos estudiosos destes assuntos e que rejeitam teorias de “aliens”, alguns daqueles “construtores” teriam de ser de uma outra época, eventualmente mais avançada e que, por um qualquer motivo, teriam regressado no “Tempo”.
Mas deixemos o passado, reportemo-nos à actualidade. Uma criança belga, de seu nome Laurent Simons, nove anos, recebeu em 2019 o Bacharelato em Engenharia Eléctrica pela Universidade de Tecnologia de Eindhoven, na Holanda.12 Neste momento já terá completado o res pectivo Mestrado!!!
Como? – dirá o leitor.
Monumento megalítico situado nas Ilhas Britânicas.
Monumento Neolítico.
First 9-Year-Old to Graduate from University (interestingengineering.com)
Pois é, apenas nove anos, o tempo apropriado para os jovens, ditos normais, tentarem resolver aqueles muito intrincados problemas das torneiras a deitarem água para um tanque, com o ralo aberto…
Um ponto importante a reter, muitos dos chamados “encontros” que vão acontecendo ao longo da nossa vida, ocorrem apenas e só porque os “Tempos” de uns se vão cruzando com os “Tempos” de alguns outros, as encruzilhadas da vida.
Talvez a maçã que caiu na cabeça de Isaac Newton nem tenha sido importante para as suas descobertas sobre a gravidade. Já a água a transbordar da banheira do Arquimedes, o gerente da “Edison Machine Works” em 1884, a tentar convencer o Nikola Tesla a emigrar para os EUA, ou a professora do jovem belga a apontá-lo como sobredotado foram determinantes para o desenrolar dos acontecimentos.
Do que tenho lido, nem precisei de me armar em cientista para chegar a uma evidente conclusão. A Dimensão “Tempo” está obrigatoria mente colada às três velhas dimensões de Euclides, o Comprimento, a Largura e a Altura, formando como que um bloco.
À falta de melhor definição, resolvi dar um nome a esta Unidade de “Espaço-Tempo”. Chamei-lhe … EVENTO.
A maior parte dos “Eventos” até podem ser devidamente planeados, coordenados e controlados pela nossa vontade, o que fazer e quando o fazer, no ambiente familiar, na educação, as amizades, a profissão, os casamentos e divórcios, as viagens.
Mas nem tudo é assim tão previsível. Existem alguns outros Even tos do tipo inopinado. Aparecem-nos de repente e sem aviso, alterando completamente tudo o que tínhamos planeado para a nossa vida, uma doença, um acidente, uma herança, uma súbita paixão…
Quando de tendência negativa, até há muito o hábito de culpar esse malfadado Evento, o que alguns gostam de chamar de “Destino”. Estava no “local errado à hora errada”. Já o oposto é normalmente omitido, ninguém diz que estava no “local certo à hora certa”.
Os Ingleses têm a palavra apropriada, chamam-lhe “Crossroads”.
Um exemplo. O estudante dormira mal, precisava de vencer aquela forte sonolência que o incomodava. Naquela manhã, a caminho da Faculdade, decidiu ir beber um café àquele estabelecimento onde nunca antes tinha entrado. No interior deu de caras com uma linda jovem.
Ela só entrara naquela pastelaria e àquela hora pelo facto de não ter conseguido tomar o pequeno-almoço em casa. O despertador não tocara, saíra a correr. Alguns anos mais tarde, já com um neto, a come morarem umas felizes “bodas de prata”.
Que a situação era mesmo essa. Tivesse ele chegado cinco minu tos antes ou depois e não a teria encontrado. Ou tivesse o despertador tocado na devida altura e ela nem por lá teria passado.
Dá que pensar, a Vida de duas pessoas ficar completamente defi nida a partir de um fortuito e ocasional encontro, apenas porque os seus “Tempos” se tinham cruzado!
Claro que se não se tivessem encontrado, nem se teriam apercebido do assunto. Certamente que, num outro dia, teriam avançado para alguns outros Eventos, alguns outros “Crossroads”, outras histórias, paixões, casamentos, divórcios, incidentes vários. Teriam seguido alguns outros Caminhos, umas outras Vidas.
Se é assim, se tudo vai funcionando dessa maneira, talvez seja o momento de, por uma derradeira vez, recordar Albert Einstein e a sua Teoria Geral da Relatividade, com a definição do “Tempo”, elástico e moldável.
Pensamentos positivos, talvez o “Tempo” até possa vir a ser con trolado. Imaginem só as imensas possibilidades que isso nos poderá trazer…
A partir desse momento a Vida não será mais que um Jogo, talvez um pouco complexo, mas não passará de um Jogo. Às vezes os Eventos vão-se encaixando uns nos outros, avançamos num deslizar bem oleado…
Outras vezes tudo corre mal. Não temos outra solução senão o regressar à casa da Partida e … começar de novo.
Já desde 1965, o fadista António Mourão cantava…
Ó Tempo volta para trás Dá-me tudo o que eu perdi…
Tem pena e dá-me a vida
A vida que eu já vivi
1. O Sonhador
Alexandre Ataíde era um jovem, dezassete anos bem desenvolvidos e um enorme mundo de sonhos por realizar. Morava com os pais nos arredores de Cascais, numa vivenda com piscina e outras mordomias. O pai, melhor dizendo, o padrasto, era um famoso advogado, já só mexia em Processos de muitos milhares. A mãe era a mulher do padrasto e dona de casa, tinha várias empregadas e muitas tarefas, uma das mais difíceis, podar as roseiras do jardim. Por vezes o seu pai, o verdadeiro, aparecia lá por casa, para o ver. Era um escritor famoso, trazia-lhe sempre um ou dois livros para ele folhear, o homem a tentar meter-lhe o bichinho da literatura. Que o outro, o padrasto, sempre que podia tam bém ia fazendo a sua aliciante propaganda, o Direito.
Assunto deveras difícil, tentar descobrir qual a vocação de um jovem de dezassete anos. Não tinha a mínima ideia do que fazer da sua vida. De momento o que mais gostava era de “engenharia mecânica”, passava as tardes a montar e desmontar as peças da sua bicicleta, dos rolamentos e travões até à roda pedaleira. A coisa até já se tornara conhecida entre os seus amigos, volta não volta lá vinha um ou outro a pedir-lhe para afinar o esticador da corrente ou acertar os raios de uma roda empenada.
Desde que se lembrava, tratava o padrasto por “pai”. Em boa ver dade tinha sido sempre ele que o protegera durante todos aqueles anos da infância, o verdadeiro só aparecia de tempos a tempos. Ao fim e ao cabo até era um tipo de sorte, tinha dois pais. Nunca soubera a razão dos seus pais se terem divorciado. Nesse tempo ele ainda seria uma criança de colo. Agora, quando o verdadeiro pai aparecia lá por casa, logo a sua mãe se transformava, toda “produzida”. Em tempo de verão recebia-o na piscina, um reduzido biquíni, certamente que ainda gos tava do mafarrico. Com todas aquelas cenas, já lhe tinha passado uma dúvida metódica pela cabeça, não tinha a certeza se o pai aparecia lá em casa para o ver ou para voltar a catrapiscar a mãe. Quanto ao padrasto, nessas ocasiões e coincidência ou não, nunca estava em casa. Ainda não conseguira perceber se era devido ao cuidadoso planeamento da mãe, se era ele a esquivar-se, talvez para evitar possíveis confrontos.
Lá no bairro onde morava tinha um grande número de amigos, todos da mesma faixa etária. Em tempo de férias costumavam encontrar-se na
casa ou jardim de um ou outro, sempre discutindo os grandes problemas das suas curtas vidas. O seu jardim era um dos mais concorridos, assu mia que a piscina devia ser um dos polos de atracção. Mais tarde desco brira que havia um outro, o biquíni da sua mãe. Tivera que lhe fazer um reparo. A senhora ficara surpresa, depois rira-se, o filho mais ciumento que o marido, o mundo estava do avesso. Ainda assim e para calar o miúdo, a senhora sua mãe passara a usar uns fatos de banho mais tra dicionais, excepção feita para os dias em que o ex-marido lhe aparecia. No que respeitava a namoros e correlativos, os seus amigos já tinham identificado todas as raparigas disponíveis do bairro, distribuídas entre eles segundo algum critério que lhe tinha escapado. Um ponto de con flito, todos eles ambicionavam namorar a Guida, uma vizinha, loura de olho muito azul e longas pernas. Com todas aquelas discussões, confrontos e declarações de voto, a miúda acabara por ser declarada “área interdita”, ou, dito de outro modo, “terra de ninguém”. Naquela tômbola, altamente viciada, fora-lhe atribuída uma loirita de nome Leo nor. Até nem ficara mal servido, a miúda era bonitinha, nada mais que isso. Ponto importante, aquela distribuição era feita apenas entre eles, as raparigas nem sonhavam como iam sendo sorteadas.
Ao pensar em todas aquelas estratégias, talvez ele fosse diferente dos seus amigos. Era mais maduro, com outros gostos e desejos. As jovens da sua idade não lhe interessavam, preferia mulheres mais velhas. De momento a sua eleita era uma outra vizinha, de nome desconhecido, morena, um cabelo meio assimétrico, a nuca e um dos lados muito curto, o outro lado a chegar-lhe ao pescoço, uns olhos castanhos. Com mais alguns anos que os do seu grupo, tinha carro, um Fiat500, branco e capota de lona vermelha, nem olhava para aqueles jovens, costumava passar por eles, sempre a acelerar.
Uma das vezes e num dos cruzamentos lá do bairro, ele a fazer umas pequenas habilidades com a bicicleta, ela quase o tinha atropelado. A culpa tinha sido inteiramente dele, levara com uma valente buzina dela. Ainda assim, ela pedira-lhe desculpa, apenas com os olhos, depois sorrira, continuara o seu caminho. A partir desse dia e sempre que se cruzavam, ela abrandava e sorria. Talvez por causa desses sorrisos, tivesse passado a ser a sua eleita. Ponto altamente negativo, nunca ele se atrevera a dirigir-lhe qualquer palavra.
O seu maior amigo era o Pedro, habitava na outra extremidade do bairro. Tinham o “interesse” comum das bicicletas. Com elas davam grandes passeatas, não só por Cascais, mas também por todos os arre dores, do Guincho ao Estoril, até já tinham pedalado pelas ruas de Sintra. No verão, os seus passeios mais habituais era alternarem entre as várias Praias do Guincho. Em menos de uma hora iam, um mergulho, voltavam.
Numa dessas idas à praia do Abano tinham encontrado o Fiat500 da sua vizinha, estacionado. Uma mirada pelo pequeno areal e tinham-na localizado. Um ponto altamente negativo, estava acompanhada por um “machon”, grande e espadaúdo, o estafermo a pôr-lhe creme nas pernas!
Tinham ido pela beira-mar até ao fim da praia, o respectivo mergulho. No regresso, enquanto o amigo tinha seguido pela areia molhada, junto ao mar, ele tinha aproveitado a oportunidade, fazendo um pequeno des vio, de modo a passar a não mais de uns três metros da jovem. Estava completamente estirada na toalha, o sol a bater-lhe na cara, nem o devia ter visto. O seu biquíni era preto e minúsculo, apenas uns triângulos de pano, unidos por umas guitas. No ventre, onde as pessoas costumam ter as cicatrizes das apendicites, via-se-lhe uma pequena tatuagem, o que, naquela passagem muito de fugida, lhe pareceu ser um pássaro. Algo altamente redutor, o “machon” a observá-lo.
Reunião com o amigo, ao seu ar desiludido, o Pedro logo reagira: Que estavas à espera! A tipa é demasiadamente velha, fora das nossas possibilidades. Fica-te com a Leonor, tás bem servido!
O amigo até tinha razão, mas aqueles doze quilómetros do regresso tinham-lhe parecido a subida para o Purgatório.
Alguns dias depois e por um acaso de sorte, tinham descoberto o local onde as raparigas do bairro se costumavam encontrar, uma pas telaria na zona do Monte Estoril. Naquele dia lá estavam três delas, na esplanada, a comerem uns gelados. Uma delas a reconhecê-los, a levantar-se e a fazer-lhes sinais. Tinham parado as bicicletas mesmo junto à mesa das raparigas, continuando sentados nas “biclas”. A que os chamara era a Guida, tinha-se chegado ao pé do Pedro, um breve beijo na testa. As outras duas tinham ficado sentadas, caladas. O Pedro era desinibido, atirava-lhes:
Olá meninas. Que fazem por aqui?
A Guida a rir. – Então não se vê, a comer um gelado.
Alexandre percebeu a razão pela qual a Guida era a mais requisitada no círculo dos seus amigos. A miúda era de um feitio bem aberto, sor riso sempre presente, certamente a líder do grupo. Bom, também era a mais velha e, para além das longas pernas, era a que mostrava um peito promissor, todas as outras ainda eram do tipo “tábua de engomar”.
Um pequeno silêncio, ela a voltar-se para o rapaz: Amanhã vamos à praia, querem vir?
O Pedro era desenrascado, tinha sido rápido com as respostas. Claro. Onde? A que horas?
Vamos à Praia dos Pescadores, à tarde.
Despedidas, o Pedro a retribuir o beijo, partida. A rua era a descer, já se tinham afastado alguns metros, a rapariga a gritar-lhes:
– Vou falar à Leonor, a ver se ela quer ir… Alexandre ficou petrificado. Elas sabiam da tômbola!
No dia seguinte, uns calções de ganga, bem velhos e por cima do fato de banho, uma t-shirt, toalha, havaianas e óculos escuros, o cadeado para a bicicleta, a caminho da praia, a pedalar furiosamente pela colina abaixo.
Tudo tinha corrido bem até quase à chegada ao destino. Numa daquelas ruas estreitas da velha Cascais aconteceu o acidente. Um cão, minúsculo e do tipo rafeiro, certamente sem dono, tinha-lhe saltado ao caminho, a ladrar-lhe às canelas.
O inevitável. Tinha feito um aparatoso voo, acabando por se vir a estatelar no meio da rua. Completamente atordoado, por uns breves ins tantes até julgou ter perdido os sentidos. Aquela frase habitual e cor riqueira de “ter ficado a ver as estrelas”, ele tinha ultrapassado todos esses limites, todo o infinito a passear-se à frente dos seus olhos. Ao tentar recuperar a consciência e ainda um pouco sem ter bem a noção do que lhe teria acontecido, tinha-se apercebido de estar a ser socorrido por um grupo de jovens que, naquele momento, estariam a passar por perto.
Estava ele ainda a tentar recuperar o fôlego, a identificar as diversas feridas daquela violenta queda, a sangrar da cabeça, mais a perna direita e o braço desse lado bem esfolados, e já uns olhos muito azuis tinham aparecido perto dele, a cara de uma jovem, loura, com muitas sardas e um ar de grande aflição. Logo de seguida e ao seu lado, uns outros
olhos, castanhos e metidos no meio de uma cara redonda, umas grandes olheiras, um bigode farfalhudo que mal deixava ver os contornos da boca. Todos a mirarem-no, a ver se ainda respirava.
Num primeiro momento aqueles ocasionais socorristas tinham querido chamar a ambulância do 112, achavam que o seu estado inspirava sérios cuidados. Muito encabulado e talvez ainda em estado de choque, lá lhes dissera não ser preciso, estava bem, eram só uns arranhões…
Tinham-lhe dado água, ajudado a levantar-se. Preocupados com o seu estado, tinham-no levado a uma farmácia próxima. Uns primeiros curativos, o limpar das feridas, meter uma ligadura no braço esfolado, uma outra na perna, um penso para proteger o corte da testa, umas pasti lhas para as dores. Um pouco mais tarde um outro homem, sem bigode, mas com um cabelo do tipo “zangado com o barbeiro”, tinha carro, prontificara-se a levá-lo a casa, a ele e à bicicleta; a roda da frente ficara na forma de um verdadeiro oito.
Ao chegarem às proximidades da residência, o jovem já estaria um tudo ou nada menos atordoado, pedira para o deixarem a alguma distância do portão, não queria afligir a família. Tinha entrado em casa de um modo um tudo ou nada meio escondido, uma corrida a fechar-se no quarto.
Ao recordar o acidente e apesar de todas as dores que ia sentindo, a visão daqueles olhos azuis da jovem loura e sardenta fora algo de sublime. Por breves momentos julgara ter morrido e chegado ao Céu. Certamente que não fora um cão que se lhe atravessara ao caminho, antes o Cupido que lhe atirara uma das suas famosas setas. Má pontaria, falhara o coração, certamente que a dita se devia ter emaranhado nos raios da “bicla”.
O coração a gritar-lhe, não tinha sido atingido. Estava receptivo a levar uma nova flechada, o mafarrico que apurasse a pontaria.
Uma decisão do tipo imediato e de alta prioridade, precisava de a voltar a encontrar. Tinha uma vaga ideia de a jovem ter aparecido ime diatamente a seguir ao acidente. Talvez morasse por ali, ou estivesse empregada em alguma das lojas ou escritórios daquela rua, era tão só uma questão de procurar…
Três dias depois e com a ajuda de umas pastilhas, as dores estavam mais ou menos controladas, o único penso ainda visível era o da cabeça, Preview
foi o momento de voltar ao local do acidente, à busca da dona dos olhos azuis.
Não a viu, nem nos dois dias seguintes. Ao quarto dia ouviu um grito: Olha o Kamikaze!
O cara redonda, o do bigode farfalhudo e olhos castanhos, estava sentado na pequena esplanada de um café, a acenar-lhe. Cumprimentos e sorrisos variados, as perguntas da praxe…
– Que tal o braço? Ainda lhe doía? E o galo na cabeça?
Perguntas de circunstância, claro que lhe doía, o corpo todo, de cima a baixo. – Tudo bem obrigado, e obrigado também pela ajuda.
Agora que o via com mais calma, Alexandre calculou que o “cara redonda com bigode” era bem mais velho que ele, um homem feito, no mínimo teria para aí uns … vinte e um anos. A pergunta que há quatro dias lhe andava a moer o juízo:
E aquela jovem de olhos azuis? A que me levou à farmácia? Gos tava de a ver, para lhe agradecer…
Os que te levaram à farmácia foram o João e a Ema. Mais tarde foi o Fred que te levou a casa, é o único aqui do grupo que tem carro.
Moram aqui perto?
Alguns sim, outros não. Às sextas-feiras ao fim da tarde costuma mos passar aqui por esta esplanada. Eu moro mesmo aqui ao lado. Sou o Carlos. Aparece por cá, vão gostar de te ver.
Sentimentos contraditórios. Um fino grupo de Universitários, em discussões variadas e de alto nível. O que um rapazito de dezassete anos ia fazer no meio de todos aqueles Doutores? A voltar lá seria só, única e exclusivamente, por causa da Ema, a loura das sardas e dos olhos azuis.
Situação lixada. A única maneira de a voltar a ver era visitar aquela Tertúlia ou Grupo, ou lá o que era. Ir ou não ir? A indecisão instalou -se na sua cabeça, durou-lhe toda a semana. Pela sexta-feira à hora do almoço decidiu… ir.
A “bicla” ainda estava por consertar. E, para além disso, estava fora de questão, era um ponto negativo. Só os miúdos é que andavam de bicicleta. Mais valia aparecer de mansinho, a pé. Podia ser que conse guisse falar à jovem, numa de privado e fora das vistas. E se a visse, o
que lhe ia dizer, um jovem imberbe, a botar faladura com uma mulher daquelas? Banalidades?
Foi. Ainda estava a alguma distância da esplanada e já o homem grande e “zangado com o barbeiro” se levantava da cadeira e gritava: Olhem quem ali vem, o Puto Kamikaze.
Houvesse um buraco naquela rua e o “Puto Kamikaze” tinha-se enfiado por ele abaixo, envergonhado. Aquilo não estava a correr bem, mesmo nada bem. Mais tarde verificou ter sido um erro de análise. Tinha sido recebido como um herói, sorrisos e abraços. Cuidado que o rapaz ainda devia estar dorido, duas raparigas a darem-lhe uns ruidosos beijos na face.
De seguida, a cereja no bolo, aquela aparição divinal, uns olhos muito azuis a aproximarem-se, todos os ruídos da rua a desaparecerem… Olá, sou a Ema. Alexandre.
Uma primeira desilusão, não tinha havido nenhum beijo, apenas um simples e desenxabido aperto de mão.
O Grupo era alegre e ruidoso. Explicaram-lhe que, normalmente se encontravam naquele café nas tardes das sextas-feiras. Juntavam duas mesas, cadeiras à volta, grandes discussões sobre os temas do momento ou alguma outra coisa que lhes interessasse, política, religião, ecologia, música e todos os seus derivados. Quando só havia rapazes no Grupo os assuntos divergiam um pouco, focando-se mais em automóveis, rapa rigas e futebol. Os rapazes estavam sempre em maioria, normalmente três ou quatro, um dia de casa cheia equivalia a uns cinco. As raparigas nunca chegavam a mais de três, o máximo quatro. A que só excepcio nalmente aparecia era a Ema, a loura dos olhos azuis, ponto de partida para o coração do jovem acelerar o batimento.
Passara a frequentar aquele Grupo de estudantes Universitários, todos bem mais velhos que ele, uns quatro ou cinco anos, um fosso abismal naquela fase da vida. Ficara com a impressão que o tinham adoptado. Isso fazia-o sofrer, viam-no como um miúdo. Não conseguia estar ao nível deles. Não era por mal nem para se armarem, acontecia, eram mais velhos. De uma maneira involuntária, iam-no ensinando, dando-lhe umas dicas, especialmente nas áreas da política e da socio logia. Por vezes as conversas divergiam para o libidinoso e o erotismo,
algumas malandrices, anedotas porcas e beijos roubados, tudo isso no meio de grandes risadas.
Algumas das raparigas eram mais permissivas que outras. Nesses jogos eróticos o Kamikaze era demasiadamente jovem, não tinha lugar. Eram os seus momentos mais sofridos lá no meio do Grupo, ainda que a sua amada, a Ema, não alinhasse naquelas confusões.
Um dia, o Carlos tinha dado uma Douta Directiva. Tinham de tirar uma foto do Grupo, para a posteridade, para quando, mais tarde, fos sem Ministros e Doutores, para o reles do gentio os poderem recordar, os elementos daquela Tertúlia, a mais afamada de Cascais e Arredores.
A máquina fotográfica era do Carlos, tinham chamado o empregado, todos a posicionarem-se. Só nessa altura o Kamikaze tinha descoberto ser um jovem requisitado, todos a quererem que ficasse ao lado deste ou daquele, oportunidade única para ser fotografado ao lado do seu amor. Depois de todos devidamente arrumados, tinha acabado por ficar entre a Ema e uma de nome Ana, a mais novita do grupo. Segundo as directi vas do empregado, para caberem na foto tinham de se encolher. Do lado da Ana nada de especial tinha acontecido. Já do lado da Ema, a t-shirt era curta e por fora das calças, a mão tinha-lhe resvalado, os dedos a sentirem-lhe as costas nuas, a pele era macia como cetim.
Os tempos da “bicla” tinham terminado, o padrasto comprara-lhe uma motoreta. Bom estudante, o tempo sobrava-lhe, gostava de fazer desporto, de nadar e patinar. Um dia aparecera ao Grupo de patins em linha, fizera sucesso. O amigo Fred observara-o a fazer umas habilidades. De seguida pegara nele e tinha-o levado aos Salesianos do Estoril, só para o verem a dar umas voltas nos patins. Lá no Clube alguém lhe dera uns patins do tipo standard e um stick, a ver como se ajeitava com aquelas ferramentas, uma bola… “ Vê lá se acertas naquela baliza”…
Uma semana depois estreava-se a jogar pela equipa dos “juniores”, o treinador à espera que fizesse os dezoito anos, a querer pô-lo a jogar na equipa principal, o ALEX, o puto da equipa, com um grande futuro na modalidade.
Na sexta-feira seguinte o Fred mandou um “Silêncio ao Grupo”, algo difícil de se conseguir. Mas depois de todos se terem calado, com um ar de grande solenidade afirmou:
Caros amigos, hoje é um dia muito importante. Temos uma Promoção no nosso Grupo. Há duas semanas levei aqui o Puto Kamikaze aos “Salesianos”. Mostrei-o ao treinador. Ontem, aflitos que nós estáva mos, meteu o golo da vitória. A partir de hoje mais ninguém o chama de Puto Kamikaze que o jovem acaba de ser promovido. A partir de hoje passa a ser o… ALEX KAMIKAZE.
Palmas e abraços, os clientes do café a associarem-se, o jovem con tente e muito encabulado. Mas o melhor ainda estava para vir. A Ana deu-lhe um abraço, segurou-lhe a cara, um beijo, o seu primeiro beijo a sério. A Sara imitou-a. Faltava a Ema.
Olharam-se nos olhos, todos os ruídos do café e da rua a desapare cerem uma outra vez, as vozes da malta a diluírem-se, apenas alguns murmúrios, lá muito ao longe…
Beijo, beijo, beijo…
Os dois, a não mais que uns trinta centímetros de distância, um tudo ou nada envergonhados, com a claque a puxar. Estava mais que visto, iam dar um beijo na cara… A ocasião ia perder-se. Ia ser mais um fracasso, outro a juntar a uma já longa série…
Num movimento de completo desespero, tinha voltado a cara, acer tado em cheio na boca da jovem, talvez por um segundo…Ou não, talvez tivesse sido uma hora… o tempo tinha parado.
Impressão sua, pareceu-lhe que, muito ao longe, uma multidão o estava a aplaudir!
Quatro meses depois a paixão pela jovem continuava a arder em lume brando. Contudo, aparte as conversas dentro do Grupo e aquele beijo sob os holofotes, nunca tivera um diálogo “apenas e só” com ela. Tinha medo de ser rejeitado, de a perder. Tinha que reagir, a situação não se podia eternizar! Lembrou-se de lhe mandar um bilhetinho, uma declaração de amor, anónima, não podia arriscar. Ao ler a missiva talvez ela levantasse os olhos para ele, à procura do seu misterioso apaixonado.
Nos livros guardados numa das estantes lá de casa, iniciou uma busca aos de poesia, algum poema apropriado para tentar descrever o terrível momento em que se encontrava. Acabou por encontrar os ver sos certos num dos livros que o pai lhe oferecera, nas palavras do poeta Nuno Júdice:
“Lembro-me agora que tenho de marcar um encontro contigo, num sítio em que ambos nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma das ocorrências da vida venha interferir no que temos para nos dizer. Muitas vezes me lembrei de que esse sítio podia ser, até, um lugar sem nada de especial, como um canto de café, em frente de um espelho que poderia servir de pretexto para reflectir a alma, a impressão da tarde, o último estertor do dia antes de nos despedirmos, quando é preciso encontrar uma fórmula que disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É que o amor nem sempre é uma palavra de uso, aquela que permite a passagem à comunicação ; mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale, de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio ser, como se uma troca de almas fosse possível neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, isto é, a porta tinha-se fechado até outro dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que é também a mais absurda, de um sentimento; e, por trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros”.
Alexandre saboreou os versos, as palavras, uma por uma. Não havia qualquer dúvida, era o poema apropriado para a ocasião. O passo seguinte foi copiá-lo para uma folha de papel, dobrada em quatro. O mais difícil vinha depois, arranjar uma maneira de, disfarçadamente, lhe entregar o papelito. A missiva andou no seu bolso durante umas duas semanas, amarrotada, teve de ser substituída. Mas a tão desejada oca sião acabou por chegar. Um acaso de sorte. Um dos rapazes do Grupo a mostrar a sua motoreta e as suas habilidades, um outro kamikaze. Um cavalinho mal feito e a estatelar-se no pavimento. Todos a correrem para socorrer o rapaz, os livros da Ema abandonados e em cima da mesa. Muito a correr, tinha-lhe metido o papel no meio das páginas de um dos seus livros.
O rapaz da motoreta não se tinha aleijado, todos a regressarem às mesas. Só nesse momento Alexandre se apercebeu do erro que acabara de cometer. Não se lembrara de identificar o papel, ela não ia saber que era dele. Podia ser de um outro qualquer, eventualmente lá da Faculdade.
As raparigas a apaparicarem o jovem que se estatelara no chão, todas, inclusive a sua Ema, uma ponta de ciúme a desabrochar.
Levantou-se e abandonou o café. O seu plano tinha ruído, mais depressa que um castelo de cartas. Chegara à triste conclusão que o cair da mota à frente das donzelas era uma manobra bem mais eficaz que um belo poema. Ele até já tinha uma motoreta. Se tivesse adivinhado, também se tinha atirado para o chão. Regressou a casa entre o triste e o furioso.
Na noite seguinte tinha havido jogo contra o Hóquei Clube de Sintra. Já fazia parte da equipa sénior. Ainda o jogo ia a meio da 1ª parte e já tinha sido expulso. Não conseguia acertar na bola, só nos patins e nas canelas dos adversários. Ainda assim o clube tinha conseguido ganhar o jogo.
De regresso ao Estoril tinha havido festa da rija. O Treinador não gostara da sua actuação, puxara-o para um canto, queria saber o que se passava com ele. O seu jogador mais jovem e mais talentoso andava estranho. Homem experiente, viu-lhe a lágrima ao canto do olho. Chamou o capitão da equipa, o Fred, uns alegres vinte e dois anos, com umas cinco ou seis namoradas.
Vocês vão sair? Claro, ganhámos, vamos beber uns canecos!
Façam-me um favor, levem aqui o Alex convosco. Está com uma telha do tamanho de um comboio, precisa de se divertir. Mas não mo estraguem que a equipa precisa dele.
Normalmente e depois dos jogos, o Alex costumava meter-se na motoreta e regressar a casa. Desta vez os seus colegas da equipa, os mais velhos, tomavam conta dele. Levavam o miúdo para umas come morações de gente crescida, a noite ainda era uma criança.
Acordou estremunhado, o dia a amanhecer, uma vivenda ali para os lados da Praia das Maçãs. Uma rapariga dormia ao seu lado. Não sabia o seu nome. Olhou melhor, era a Sara. Uma cabeça apareceu à porta do quarto, era o Fred. – Ó putos, acordem, está na hora de basar.
Deixara de passar no café. No hóquei tinha continuado a colecionar algumas derrotas e outras tantas vitórias, passara a fazer parte de um outro Grupo, o do “Fred and Friends”.
Dois meses depois sentia-se curado das tentativas falhadas com a Ema. Tinha resolvido passar pela esplanada, apenas e só para cumprimentar os amigos, nada mais. Mas o momento não podia ter sido o menos propício, tinha visto o seu amor abraçada ao tipo que caíra da motoreta. Desilusão completa. Ele tinha-lhe enviado um lindo poema de amor e o outro, a fingir que caía da mota, levava-lhe a donzela. Ainda assim e ao despedir-se daquela rapaziada, ficara com a impressão que ela olhara para ele, talvez de um modo diferente do habitual. Aqueles olhos azuis a mirarem-no, talvez aquela feia cena de ela agarrada ao da motoreta… talvez tivesse sido apenas imaginação sua…
Estava mais que provado, ou a moça não tinha visto o papel, ou talvez o tivesse visto e atribuído aquele gesto de amor a um outro qual quer. Agora é que era de vez, nunca mais a queria ver, ponto final. Por motivos de força maior, a Ema passava às calendas.
Apenas desculpas. A bem da verdade não a podia esquecer. Ela tinha sido o seu primeiro e grande amor, algo impossível, demasiadamente puro e etéreo, um mundo bem diferente do real. Mas quem sabe, um dia e em algumas outras circunstâncias, até poderia voltar a encontrá-la.
Sim, que há já muito tempo, alguém tinha demonstrado que a terra até era redonda.
2. O Universitário
O Liceu terminado, com o douto aconselhamento da família, seguira para o Curso de Direito. A entrada na Universidade fora algo de com plicado, nada a ver com as matérias do estudo, apenas e só o grande, o imenso problema das deslocações diárias. A morar em Cascais, a Faculdade em Lisboa, não podia ir de motoreta, pela Marginal, acima e abaixo. Além de muito perigoso era muito desconfortável nos friorentos dias de inverno, mais ainda em dias de chuva. O padrasto era amigo, a prenda dos seus dezoito anos tinha sido um automóvel, um pequeno VW, novinho em folha. Lindo, mas continuava a não resolver o problema, só se saísse de casa lá pelas sete da manhã. A partir dessa hora a Marginal deixava de ser uma via de duas faixas e, com tantos engarrafamentos, passava a ser mais parecida com um parque de estacionamento. Havia a possibilidade do comboio e transportes públicos associados, na melhor das hipóteses levava umas duas horas a chegar à Faculdade, outras duas para o regresso.
Em conversa com os seus novos colegas, todos tinham a mesma ideia, a solução mais racional seria alugar um quarto, ao pé da Faculdade.
Uma pesquisa pelos milhentos anúncios afixados na Cantina Universitária, apareceu-lhe um que logo o interessou.
“Apartamento em Alvalade, partilhado por três estudantes, de momento com um quarto livre…” Telefonou. Um primeiro andar numa pequena rua, ali mesmo ao pé da Cidade Universitária, dois colegas já devidamente instalados, um “futuro médico” vindo de Beja e um “quase engenheiro”, natural de Setúbal. Estava na cara que, por ali, faltava um ”quase advogado”. Uma semana depois e ainda que um pouco a contragosto da família, passara a utilizar aquela solução. Entre o domingo e a sexta-feira, dormia em Lisboa.
Nunca antes tinha vivido numa “Casa de Estudantes”, tudo era novo para ele, uma nova experiência, novas regras a serem cumpridas. Tinha um quarto bem espaçoso, uma boa cama, uma pequena secretária e uma estante com prateleiras, para livros. A sala de estar e respectiva televisão eram “parte comum”. Na cozinha e respectivo frigorifico, tinha direito a uma das prateleiras. A renda já englobava água, luz, gás e internet. Outros eventuais gastos eram a dividir pelos três. Quanto à