STRATUS VERITAS
JORNADA POR UM MUNDO MAIS JUSTO Preview
FICHA TÉCNICA
título: Stratus Veritas – Jornada por um Mundo Mais Justo autor: Ricardo Salgueiro Roque edição: Edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)
revisão: Patrícia Espinha arranjo de capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira Lisboa, dezembro 2022 isbn: 978-989-9028-73-9 depósito legal: 507406/22
© Ricardo Salgueiro Roque
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IEra de manhã bem cedo, os primeiros laivos de azul e laranja tinham acabado de tingir o céu, no entretanto era ainda a luz das estrelas que iluminava o caminho. A neblina corria fina e fresca, ao sabor do vento. As nuvens tinham descido à terra e voavam baixinho, junto ao chão passavam lentamente. Um enorme rochedo rasgava o solo até se perder para lá das nuvens do céu. Aquele bloco de rocha maciça perdia-se de vista, tanto em comprimento como em altura. Fazia fronteira entre um enorme pântano e um jardim deslumbrante que se situava do lado de lá.
Na base do rochedo, junto a uma das encostas, encontrava-se o que parecia ser um velho ancião. De cabelo todo branco, vestido apenas com um manto da mesma cor, descalço e com os pés na terra, parecia estar a cuidar das suas flores.
Pelo caminho vinha um pobre diabo, um desgraçado que a cada passo dado se afundava no lodo. Este desgraçado, cansado de vaguear pelo pântano, muito se espantou ao ver ali aquele homem. O Ancião estava de costas quando, ao longe, o pobre diabo o chamou.
Pobre diabo — Ó tu de manto branco, o que fazes? Quem és?
O Ancião nada respondeu. Continuou compenetrado na sua jardinagem, alheio às perguntas daquele caminhante de pântanos. Já mais próximo dele, o pobre diabo insistiu.
Pobre diabo — Ó homem de cabelo branco, estás a ouvir-me? Quem és e o que fazes? Nunca encontrei ninguém por estas bandas, és o primeiro! Que alegria finalmente cruzar-me com alguém!
O Ancião, por fim, lá respondeu ao pobre diabo. No entanto, quando o encarou, o seu cabelo deixou de ser branco e passou a púrpura escuro, e afinal também não era velho, mas jovem, e os seus olhos, da cor do sol, acenderam-se como duas tochas de fogo. O pobre diabo assustou-se e ficou aterrado com a súbita transformação do Ancião. Como se não bastasse, de um emaranhado de flores de jasmim que subiam desde o sopé até ao cume ainda surgiu um enorme leão, todo ele de pêlo roxo-escuro. A sua juba era malhada de preto e os seus olhos brilhavam no mesmo tom dos olhos do cuidador de flores. O pobre diabo estremeceu da cabeça aos pés. Afinal quem seriam aqueles dois que subitamente lhe apareceram entre o nevoeiro? O pobre diabo, inquieto e apavorado, estava intrigado. O leão, embora tenha rugido alto e em bom som ao caminhante do pântano, permaneceu deitado aos pés do Ancião. Assustado, o pobre diabo começou a pensar em fugir, mas a lama ao seu redor era tanta e tão movediça que de nada lhe adiantaria. O Ancião, sereno, acalmou-o com uma abordagem cordial.
Ancião — Olá, Injustus. Como estás?
Injustus — Injustus? Por que me tratas por esse nome?
Ancião — Porque é o teu verdadeiro nome. Por aqui damos o nome de Injustus a todos os homens que cometem injustiças.
Injustus — Pois só podes estar enganado, o meu nome é outro!
Ancião — Enganado certamente não estarei… Habitua-te, Injustus, este será o teu nome por tempo indeterminado. Agora chega-te aqui, quero mostrar-te as minhas flores. Preview
Injustus — Deves estar a delirar, só pode ser isso… Ok, meu caro delirante, eu vou até aí. Mas tem paciência, como vês demoro algum tempo a deslocar-me, o terreno é lamacento e, a cada passo que dou, enterro-me todo.
Ancião — Experimenta agora pousar o pé a ver se ainda te enterras…
Injustus — Olha que estranho, estou aqui há séculos e nunca houve passo que desse em que não ficasse enterrado pelo menos até ao joelho. Que satisfação é encontrar terra firme!
Injustus, após séculos esquecido naquele terreno tão encharcado de água estagnada, milénios talvez, conseguiu pela primeira vez, na presença do Ancião, dar alguns passos firmes até à beira do pequeno jardim a que este último se referia.
Ancião — Observa bem as minhas flores, Injustus. Gostas?
Injustus — Confesso-te, ó desconhecido, não sou apreciador de flores, nunca fui, pouco ou nada me dizem.
Ancião — É uma pena, pois não sabes o que perdes.
Injustus — Eu? Com certeza não perco nada de importante!
Ancião — Nota, ó Injustus, como as minhas flores são todas diferentes. Ora umas são maiores, outras menores. Umas precisam de mais água, outras de menos água. Umas são de uma cor, outras são de outra cor, algumas são de várias cores. Umas aceitam melhor o sol, outras nem tanto.
Injustus — Que disparate! Pouco me importam as tuas flores, homem! Por quem me tomas?!
Ancião — Sim, já percebi que não, há muito… Mas repara, todas estas flores, embora diferentes, têm uma coisa em comum, é Preview
que todas elas são flores. Todas se encontram neste meu pequeno quintal, e todas elas, se eu parar de as regar, morrem.
Injustus — Então e porque te dás tu ao trabalho de as regar? Deixa-as morrer! Afinal de contas, o que é que as flores te dão em troca dos teus cuidados? Nada! Tanto quanto vejo, é uma relação inútil. Dás, mas nunca recebes.
Ancião — Não podias estar mais enganado, Injustus. É que eu amo estas flores, todas elas sem excepção, por alguma razão as plantei. São como invólucros de beleza. Se me perguntares de quais gosto mais, não te consigo dizer, pois amo todas por igual. Todas possuem características muito próprias. Acima de tudo, é precisamente o facto de todas possuírem características muito próprias que as torna exactamente iguais entre si. Consoante a sua natureza, cada uma destas espécies ocupa uma zona específica deste jardim, juntas adornam todo este quintal.
Injustus — Sendo assim, se fosse comigo, preferia ter apenas um tipo de flores e todas da mesma cor. Assim, poupava-me ao trabalho de oferecer cuidados diferentes e específicos a cada uma em concreto. Até porque, se queres saber, não gosto cá de misturas!
Ancião — Nesse caso terias um jardim monocromático, o que resultaria bastante fastidioso para a vista. Já o meu jardim, repara bem nele, é cheio de cor, cheio de vida! É difícil encontrar jardins desta beleza! De facto, amo as minhas flores e não preciso de que as minhas flores me amem de volta, basta-me que existam para eu contemplar a sua beleza. Este é um amor incondicional que, sei bem, não conheces nem compreendes. Principalmente porque mais do que criar te dedicaste a destruir. Porque fui eu quem plantou estas flores, em certa medida, são minhas filhas. Acompanhei o seu crescimento desde o princípio e assisti a todas as suas fases.
Exactamente por tê-lo feito também muitas vezes me entristeci, é que houve fases em que foram atacadas por vermes, bichos e outras pragas desse género… Contudo, no término de cada ciclo desse crescimento acabaram por se tornar sempre mais fortes, mais floridas, mais belas e resistentes a esses males. No final de tudo, alegrei-me. Realmente, amo as minhas flores e tu devias aprender a amá-las também.
Injustus — Deves-me estar a confundir com alguém, ou pensas que sou desses que gostam de flores? Ó desconhecido, por quem me tomas?
Ancião — Tomo-te por aquilo que és, por Injustus.
Injustus — Meu caro, receio que o odor das flores te tenha deixado senil! Dar-te-ei um desconto, pois já percebi que não podes estar bom da cabeça.
Ancião — Obrigado, Injustus, é muito amável da tua parte. Já agora, diz-me lá, o que procuras tu neste pântano?
Injustus — Procuro o outro lado do rochedo, só que nunca encontrei o caminho certo para lá chegar. Tanto para a frente como para trás, os muros desta pedra são intermináveis, arrisco a dizer intransponíveis! Pensei em subir até ao outro lado, mas também sem sucesso. Não encontrei nenhum ponto que me permitisse escalar, trepar ou contornar este enorme e aborrecido rochedo.
Ancião — Hum, compreendo…E o que procuras tu do lado de lá desta rocha?
Injustus — Procuro um belo jardim, um muito melhor, maior e mais belo do que todos os jardins! Sobretudo maior, melhor e mais belo do que este que me mostras. Numa velha noite sonhei com esse jardim… No entanto, tenho vindo a desistir desse sonho… Talvez não tenha sido mais do que um mero sonho, talvez não passasse disso Preview
mesmo, um simples sonho. Estou neste pântano há tanto tempo que já nem sei há quanto tempo aqui estou.
Ancião — Injustus, embora passados todos estes séculos ainda não o mereças, tentarei ajudar-te. Existe um rapaz conhecedor do rochedo, ele conhece o caminho até ao outro lado. Talvez ele te possa ajudar a lá chegar. Talvez sim, talvez não. Confesso, não deposito muita esperança em ti, Injustus. Mas se queres tanto chegar ao outro lado, jamais o conseguirás fazer sem esse guia da montanha.
Injustus — Ai sim, ó jardineiro… Então e onde é que ele está? Aceitaria a sua boleia de bom agrado!
Ancião — É raro ele aparecer por aqui, mas já o chamei, ele vem aqui ter contigo. Não é comum pormos-lhe a vista em cima, costuma ele dizer que não é defeito, é feitio…
Injustus — Mas porquê? É tímido?
Ancião — É ele próprio, é da sua natureza, e como ele é fiel à natureza... Gosta de andar entre os pingos da chuva, por detrás das neblinas, ao sabor do vento, para lá das nuvens... O que é que se há-de fazer? Ele é como é. Nós gostamos dele assim.
Injustus — Ok, cada um é como cada qual, desde que ele me leve ao outro lado está tudo bem… Já agora, nós quem?
Ancião — Esquece, Injustus, não irias compreender… Deixa-me, antes de mais, dar-te um conselho para a viagem.
Injustus — Diz homem chato, diz! Mas diz rápido porque quero sair deste pântano o quanto antes!
Ancião — Injustus, nunca, por razão alguma, pises as minhas flores…
Injustus — Porquê? Vais-me impedir? Não sabes que tudo posso? Que em tudo mando? São os outros que não podem nada, não eu! Claramente não compreendes quem manda aqui! Pois repara bem Preview
como as irei esmagar, e com todo o prazer! Quero lá eu saber das tuas flores, seu fraco! Só por causa disso vou destruí-las, uma a uma!
II
Em jeito de provocação, Injustus, como um louco, desatou a correr pelo quintalejo destruindo todas as flores que conseguiu. Quando terminou tinha esborrachado todas e nem uma se aproveitava. O jardim estava completamente arrasado. Injustus sentia-se vitorioso, forte, grande, poderoso, como se tivesse conseguido um grande feito ao deixar um enorme rasto de devastação naquele que era um quintal tão estimado pelo Ancião. A obliteração daquilo que os outros amavam e estimavam sempre fez Injustus sentir-se superior.
Quando o surto de maldade e violência abrandou, olhou à sua volta incrédulo e com uma enorme sensação de vazio. O Ancião já lá não estava, nem ele nem o leão. Por outro lado, a descer o rochedo, por um lanço de escadas ocultas sob as flores de jasmim, chegava o tal guia da montanha que o Ancião lhe tinha prometido. Pelo visto, o caminho certo esteve o tempo todo justamente à sua frente, mas o pobre diabo nunca reparou nele.
Enigmaticamente, desde que o Ancião desaparecera, Injustus tinha voltado a ficar atolado na lama, e foi quando o tal rapaz lhe estendeu a mão, dizendo-lhe para se segurar bem, pois ia tentar puxá-lo para cima onde havia degraus.
Após retirá-lo do lodo, apresentou-se. O seu nome era Máximo. Máximo Veríssimo.
Máximo — Então tu é que és o famoso Injustus? Preview
Injustus — Pelo visto, por aqui todos me conhecem por esse nome. A mim pouco me importa!
Máximo — Pensa assim, não és o primeiro Injustus por estas bandas e, porque há vários tipos e graus de Injustus, certamente não serás o último a receber esse nome. Sendo assim, bem-vindo, bem-vindo a Stratus Veritas!
Injustus — Deixa-te de estórias, rapaz! Ainda agora começaste a falar e já estou cansado de te ouvir. Leva-me o quanto antes até esse famoso jardim que, sei muito bem, se esconde para lá deste fastidioso bloco de pedra!
Máximo — Injustus, Injustus…Temo que a entrada nesse jardim te esteja vedada... Nesse caso terás feito toda uma caminhada para nada. Contudo, levar-te-ei comigo até onde for possível. Mas aviso-te já, desconfio de que Stratus Veritas não será lugar do teu agrado!
Injustus — Enganas-te, insolente! Ficas sabendo que nada em parte alguma me está vedado! Ouviste? Se conheces o caminho até esse jardim, então irei contigo e contigo entrarei nele, nem que para isso tenha de arrombar os portões! Uma vez lá, cada um seguirá o seu caminho. Apenas preciso de ti para lá chegar, nada mais do que isso! Para mim não és mais do que um meio para atingir um fim!
Máximo — Pobre Injustus… Como estás iludido e vais ao engano. Há coisas, Injustus, que são muito maiores do que tu, as quais, tenho a certeza, estás muito longe de compreender!
Injustus — Sim, está bem, é isso…
Máximo — Diz-me lá, Injustus, o Ancião disse-te alguma coisa antes de te deixar?
Injustus — Por acaso até disse… Outro patético como tu, ridículo até, disse-me para que nunca pisasse as suas flores. Preview
Máximo — Ai sim? E que fizeste tu?
Injustus — Fiz precisamente o contrário! Destrui-lhe as flores que tanto estimava só para no final olhar para a cara dele. Eis o meu espanto, quando me voltei já lá não estava. Deve ter ficado cheio de medo e fugiu!
Máximo — O que foste tu fazer, Injustus… Ninguém pisa as flores do Ancião, é absolutamente proibido!
Injustus — Alto aí! Primeiro que tudo, ele não é nenhum Ancião, tem um ar tão jovial quanto tu. E ainda te digo mais, tanto tu como ele têm idade para ser meus filhos. Sou muito mais velho do que vocês! Dois tolos, é o que vocês são! E vê se entendes, nada me é proibido! Sou poderoso, o mais poderoso de todos e faço o que bem entender!
Máximo — Ó pobre Injustus, mas sabes que as aparências iludem… O Ancião, de facto, parece jovem, só que na verdade é pretérito a tudo quanto possas imaginar. Deixa-me que te diga, não te iludas, cometeste um enorme erro logo no preciso momento em que lhe pisaste a primeira flor. Ao pisares-lhe o jardim todo conforme pisaste, então nem quero imaginar… E ainda por cima não o fizeste inocentemente, mas com maldade. Não imaginas o quanto o Ancião reprova a maldade, reprova-a acima de tudo!
Injustus — E eu muito preocupado com o Ancião… Achas que a mim isso me importa para alguma coisa? Quero lá saber se reprova ou deixa de reprovar! Fiz o que me apeteceu e pronto, está feito. Deixa-te de cantigas, vamos é arredar pé daqui que já estou aborrecido!
Máximo — Tu é que mandas, Injustus. Vamos! Preview
Foi por onde Máximo desceu que este pretendia levar Injustus. Só que havia um pequeno pormenor no lanço de escadas, é que este era muito íngreme, quase a pique. Máximo subia cada degrau com enorme leveza, de tal ordem que quase se esquecia de Injustus. Quando olhou para trás à procura do caminhante de pântanos, viu que aquele, com grande dificuldade, ainda tentava subir os primeiros degraus. Máximo, uma vez mais, desceu até chegar perto do pobre diabo.
Máximo — Então, Injustus, o que se passa? Tiveste tanta força para destruir o jardim do Ancião e agora não consegues subir uns meros degraus? Nem parece de um tipo destemido e tão poderoso como tu!
Injustus — Não entendo, não sei o que se passa, parece que tenho mil quilos agarrados a cada perna…
Máximo — Se fossem só mil quilos…
Injustus — Como é possível que subas as escadas com tanta facilidade? É que eu faço um esforço tremendo para subir cada um dos degraus.
Máximo — É simples, é que eu, Injustus, estou leve, tu, pelo contrário, estás muito pesado…
Injustus — Também não sei o que se passa com a lama daquele abominável pântano onde passei uma eternidade! A porcaria da lodo não me sai do corpo, por mais que lhe passe a mão, não sai. Que coisa tão estranha… Dizes-me que estás leve e eu pesado? Aposto que tanto o meu peso como o teu não devem andar muito longe um do outro. Não fazes sentido algum, para que te dou ouvidos!? Preview
Máximo — Não entendes o que se passa, Injustus? É que carregas sobre os teus ombros o peso dos milhares de vidas humanas que roubaste. Mulheres, crianças, idosos, homens, uma infinitude de pessoas a quem tiraste algo de absolutamente sagrado — a vida. Em Stratus Veritas esse peso que trazes sobre ti nota-se e muito, não imaginas o quanto...
Injustus — Deves ser mesmo muito ingénuo. Que tolo! Pois não as roubei por acaso, tinha os meus planos e todos quantos se atravessaram no meu caminho pagaram o devido preço!
Máximo — A sério? Acreditas mesmo nisso? Parece-me mais que és intolerante à mais pequena coisa que te contrarie. Caro Injustus, estás mais perdido do que alguma vez imaginei… Esse mal a que te entregaste é o mal que corresponde à perdição total das almas. Roubaste a vida a mães, a esposas, a pais, a maridos, a avós e avôs, roubaste a vida a filhos, a netos, a sobrinhos, a irmãos e irmãs, roubaste a vida a mulheres grávidas e a recém-nascidos. Pilhaste, violaste, arrasaste, torturaste, destruíste com absoluta crueldade e brutalidade. Representas tudo o quanto há de mal no mundo... Sem piedade nem hesitação violaste todos os preceitos divinos, as regras de ouro do Todo-Poderoso, tão nobilíssimas e sagradas. Roubaste a vida a pessoas de todos os tipos, raças e religiões. Um pouco por todo lado, por esse mundo fora, semeaste a venenosa semente do mal, a do diabo, essa que te caracteriza e que facilmente se vê em ti. Os frutos da tua semente são a mentira, a manipulação, a coerção, a chantagem, a ameaça, a corrupção, o suborno, a intriga, a mesquinhez, a intolerância, a violência, a morte, a destruição de tudo o que é justo por tudo o que é injusto. A tua semente brota de um grande mal e tu és a representação desse mal absolutamente diabólico. A tua solução para qualquer confronto foi sempre a violência, Preview
a destruição total a partir de uma posição privilegiada de poder. Ainda por cima, de poder ilegítimo. E tal não só é claro como é óbvio e evidente, porque os factos não mentem e a verdade é tudo o que mais odeias, pois a essa, meu caro, não podes fugir. Tudo e todos quantos representem o Bem te causam alergia. A liberdade, a justiça, a tolerância, a união do mundo sob as premissas da paz, do bom relacionamento, da empatia, da compreensão e respeito mútuo acima das diferenças entre os povos são valores que desprezas. Foram as tuas acções diabólicas a tua perdição. Funcionaste sob as premissas do mal, da desonra e da cobardia, e fizeste-o durante um enorme período da tua vida. O mal sempre foi a tua assinatura, a tua marca, e o Bem nunca o compreendeste… Quando olho para ti, não tenho dúvidas, vejo um demónio.
Injustus — E quem és tu para me dar lições de moral? Quero lá saber do que pensas, para mim és-me indiferente! Não és mais do que um insecto!
Máximo — Bem sei que sim… Mas sem mim também não poderás subir estas escadas. E há ainda outra coisa que não sabes, é que em Stratus Veritas a verdade é a verdade e não há como a contornar... Daqui acompanhámos todo o teu percurso e desde cedo percebemos que te irias tornar uma marioneta do maligno.
Injustus — Parece-me, ó Máximo, que a verdade para ti não é o mesmo que a verdade para mim.
Máximo — Disso tenho eu a certeza! Bem sei que, para ti, a verdade é o que te convier, normalmente é a mentira. Felizmente, aos olhos da maior parte do mundo, a verdade ainda é a verdade. Não te esqueças, Injustus, a verdade é como o sol, pode estar oculta durante muito tempo, mas nunca para sempre, mais tarde ou mais cedo nascerá um novo dia… Estejamos nós onde estivermos, seja Preview
em que parte do mundo for, o sol é sempre o sol, todos sabem que é o sol. Poderíamos até chamar-lhe outra coisa, poderíamos até dizer que o sol que ilumina uma parte do planeta é diferente do sol que ilumina outra parte. Alguns, poucos, até poderiam não saber que aquela estrela que brilha lá no alto é o sol, mas tal nunca iria alterar o facto de que essa estrela, de facto, seja o sol. Com a verdade acontece precisamente o mesmo. É que ao contrário do que pensas, o mundo não é tolo, e a grande maioria da população mundial sabe distinguir o Bem do mal, tal como toda a verdade sobre as tuas descaradas mentiras.
Esse peso que sentes sobre ti, na verdade, é o peso de uma alma putrefacta, arrasada pelo maligno. Imagina tu como Deus vê as tuas acções… Como pensas tu que Ele vê todo esse inferno do qual foste condutor e veículo, o qual levaste a milhares e milhares de pessoas, milhões!! Como julgas tu que Deus, a Origem de todo o Bem, de toda a paz e tolerância, o Deus da amizade e do amor, o Dono da razão, da sensibilidade, da empatia, da capacidade de se rever no outro, o Mestre da piedade, da compaixão, da clemência, da tolerância, como pensas tu que Ele te olha?
Injustus — Olha-me este tonto, saíste-me cá um anjinho! Pois fica sabendo que durante toda a minha vida, o que fiz foi pelos interesses do meu país, em nome da grandeza da minha nação!
Máximo — Acima de tudo foi pelos teus próprios interesses, pela tua tão ficcionada grandeza! Isso sim! Claramente te esqueceste da grandeza das outras nações! Pois compreendeste tudo mal, Injustus! Distorceste a realidade, a verdade e a história a teu bel-prazer e fizeste-o de tal ordem que te convenceste de que eras mais do que os outros, superior a todos eles, que pela manipulação, pela força e poder poderias subjugar tudo e todos. Pois tinhas tudo e tudo perPreview
deste. Como todos os mais perversos tiranos ao longo da história, tu não foste diferente, pela mania das grandezas te perdeste, e, tal como eles antes de ti, não tiveste sucesso nos teus planos injustos, ilegítimos, sujos, sombrios e corruptos.
Houve algo do qual não te lembraste, é que aqueles que são como tu e se fazem demasiado grandes na Terra, maiores do que todos os outros, aqui, em Stratus Veritas, são os mais pequenos de todos. E essa lama que não te sai do corpo, jamais irá sair por muito que a esfregues. Talvez assim nunca te esqueças de todo o mal que fizeste, de toda a desgraça, pânico, sofrimento, crueldade e agonia da qual foste o principal responsável, dos rios de lágrimas e sangue que fizeste derramar, não só nos que morreram como nos que ficaram para carregar a tristeza dos entes queridos que lhes roubaste. Exististe sem nenhuma sensibilidade, humanidade ou piedade. Stratus Veritas, ó Injustus, é a terra da verdade, e esse jardim que procuras duvido que algum dia o encontres. Ainda assim, levar-te-ei comigo enquanto for possível para veres o que nunca viste.
Injustus — Já percebi que não podia ter arranjado pior guia! És um chato! Como te digo, não gastes o teu latim comigo, és-me indiferente. Sou muito maior do que tu e podia esmagar-te como esmaguei todos os outros!
Máximo — Injustus, pobre Injustus, pensas que a violência e a repressão tudo resolvem… Quando olho para ti sinto pena. Poderias ter sido um homem melhor, muito melhor. Tiveste, ao longo da tua vida, a oportunidade de fazeres coisas maravilhosas, grandiosas! Imagina os feitos que terias alcançado na história da tua nação se tivesses poupado o dinheiro das tuas sangrentas e implacáveis guerras. Poderias ter sido um homem bom, poderias ter investido no teu país e ajudado o teu povo. Os recursos que desperdiçaste na guerra, Preview
a quantidade de vidas que deste à morte, tudo foi uma desgraça. E mesmo assim nada te chegou, nunca nada te chega, tinhas de querer também o que pertencia aos outros. A tua ignorância impediu-te de compreenderes a história, por que razão todos os impérios caíram? Porque eram injustos! Porque não viraste as costas a todo o mal procurado alguma redenção, nem que fosse a meio da desgraça. Mas não, não tiveste a grandeza de alma suficiente para compreenderes o quão errado estavas. Essa humildade para reconheceres os teus erros, as tuas falhas, essa nunca a tiveste! Sempre foste demasiado orgulhoso, escravo do ego, escravo de ti próprio, demasiado vaidoso e arrogante, como se todos os outros não fossem mais do que utensílios que usas e descartas para teu proveito. Pois fica sabendo que o que pensavas serem os teus pontos fortes, afinal, eram os teus pontos fracos.
E por tudo isto te digo, não terás nenhuma hipótese de subir estas escadas sem me dares a mão.
Injustus — Dar-te a mão?! Falas bem, mas não me encantas! Olha olha, por quem me tomas? Deves pensar que vou subir estas escadas como se fossemos um casalinho de namorados!?
Máximo — Não sejas tolo, Injustus, se queres subir estas escadas sem sentires esse peso nas pernas só o conseguirás fazer se me agarrares a mão. Caso contrário, não verás nada do que tenho para te mostrar. Nesse caso, poderás voltar para o teu pântano, permanecendo tão ignorante quanto sempre foste.
Injustus — Convenceste-me! O que tem de ser tem muita força! Não desisto de encontrar esse jardim! Vamos lá, faço-te a vontade, não há-de ser nada! Se fui capaz de passar uma eternidade preso naquele lamaçal, também posso muito bem dar-te a mão! Preview
Injustus, descrente, contrariado e céptico, lá acabou por segurar na mão de Máximo. Rapidamente se sentiu leve, capaz de correr por aquela escadaria fora. Estranhou e até nem queria acreditar, pela primeira vez em séculos sentia-se bem. Uma sensação de alívio, de peso que lhe saía de cima percorrera-lhe a alma. No seu íntimo, Injustus reconhecia que tudo quanto saía da boca de Máximo era, de facto, verdade.
À própria consciência, em Stratus Veritas, nenhum homem poderia fugir.
Máximo — Vês, Injustus, o que te disse eu? Vais perceber que tudo quanto te digo é exactamente como te digo, isto se ainda não o percebeste já…
Injustus — Desta vez, dou-te crédito, por vezes até tu acertas! De facto, sinto-me leve, sinto-me bem! Há, no entanto, algo que me intriga. É que, ao chegar perto de ti e do Ancião, notei que o vosso cabelo se tornou púrpura e os vossos olhos transformaram-se em labaredas.
Máximo — Entendo o teu espanto… isso tem a ver com a nossa natureza. A chama do Bem vive em nós e em nós se conserva eterna. Já o cabelo é da cor do Universo. As alterações que notaste são uma reacção natural ao mal que está sobre ti. Talvez seja realmente demais para compreenderes. Suponho até que te soe ridículo, impossível, e que o negues, é natural que o faças… O facto é que o maligno ainda te controla e a sua tracção permanece em ti. Ainda assim, consigo perceber que, na verdade, no fundo és uma vítima, a maior de todas elas. És maior vítima do que todos aqueles a quem destruíste a vida, Preview
és maior vítima do que todas as famílias que magoaste, do que todos os países que arrasaste, és maior vítima do que todo o mal que impuseste ao mundo. És uma enorme vítima de um enorme mal que te ultrapassa, que é muito mais forte do que tu, muito mais antigo e maior do que tu, um mal que estás muito longe de compreenderes. A luta do Bem contra o mal é uma luta eterna. Mesmo assim, deves saber, caso a história não te tenha ensinado, que o Bem acabará sempre por vencer.
Preservo a esperança de que algures, por essa eternidade fora, encontres forma de te libertares desse mal absolutamente horroroso que tomou conta de ti, e que de ti fez o que quis. Esse o que te seduziu e assoberbou pelo poder, pelo dinheiro, pelas paixões, pelas tentações ilegítimas, pelo orgulho, pelo ego, pela ganância, pela corrupção, pela mentira, pela ambição desmesurada, pelo luxo e ostentação, pelas riquezas. E assim o mal tornou-te seu escravo, seu vassalo. Foi o mal que te subjugou e por ele subjugaste milhares e milhares, milhões! E, diz-me, onde está agora esse que te tornou seu servo? Onde está esse que te convenceu de que serias mais e maior do que todos? Mais forte e poderoso? Onde está esse que te disse que poderias destruir tudo e todos para teu benefício próprio? Olha ao teu redor, como vês, não está aqui. Pelo visto, em séculos apenas te cruzaste com o Ancião e por breves momentos, e agora comigo. Aquele que te levou ao mal já não quer saber de ti, já não lhe serves para nada, expiraste. Abandonou-te e deixou-te sozinho, esquecido nos confins de um pântano. E todo o mal que fizeste, de que te serviu? Vives no lodo há séculos… Sabe Deus quantos.
Injustus — Máximo, jovem Máximo, insistes em falar-me em fantasias. Pois não acredito em nada do que dizes! E se assim foi, então conta-me quando é que esse grande mal de que me falas se Preview