M
Y
CM
MY
CY
CMY
K
www.sitiodolivro.pt
Daniel Silves Ferreira
A CAUSA de Tobias Seleiro
A CAUSA de Tobias Seleiro
C
Caco assistia a uma reunião dos Círculos Cabo-verdianos para a Democracia que se opunha ao regime de partido único, quando António, seu pai, o surpreendeu. A longa conversa do dia seguinte leva Caco aos anos da adolescência e ao despertar do interesse para questões proibidas pelo regime colonial então vigente. Na decorrência vêm-lhe à mente as peripécias nas quais o Tobias Seleiro se viu metido, e a responsabilidade de alimentar um grupo de combatentes desembarcados e escondidos nas montanhas de Santiago. Homem que tinha conhecido vários infortúnios, Tobias Seleiro, com sentido de dever, mobilizou um grupo sólido, inicialmente para o apoio e, posteriormente, para o grande encontro entre os defensores da Causa e os combatentes da Libertação, que veio a realizar-se na noite do dia 4 de julho de 1971, depois de um aturado trabalho de organização. António constatou que o filho Caco estava ao corrente da situação e dos acontecimentos. Então, resignado e sem desencorajá-lo definitivamente, pediu-lhe que, pelo menos de imediato, se abstivesse de todo o envolvimento político por serem graves os riscos. Estranhamente, um pedido bastante semelhante volta a ser feito anos mais tarde, num contexto que devia ser completamente diferente. Depois da reunião de jovens estudantes opositores ao regime, ele aconselha o filho a priorizar os estudos e a protelar o envolvimento nas lides políticas clandestinas. Porém, tal como no primeiro pedido, Caco não pode responder ao pedido, pois está demasiado comprometido com a Causa de Tobias Seleiro, que admira e acredita não estar ainda plenamente realizada. Embora compreenda as inquietações do pai, que estima muito, não lhe é possível recuar.
Daniel Silves Ferreira é cabo-verdiano, nascido em 1958 na Cidade da Praia onde vive. Médico Psiquiatra de profissão, é também um cidadão atento à situação política, social, económica e cultural do seu país.
Daniel Silves Ferreira
ew
A CAUSA
Pr e
vi
de Tobias Seleiro
título: A
causa de Tobias Seleiro Silves Ferreira edição: Edições Vírgula® (Chancela Sítio do Livro) capa:
ew
autor: Daniel
Ângela Espinha Fotografia de Martin Widenka (unsplash.com) paginação: Paulo Resende imagem da capa:
1.ª edição Lisboa, outubro 2021 isbn:
978‑989-8986-49-8 488547/21
vi
depósito legal:
© Daniel Silves Ferreira
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.
Pr e
Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao seu autor, a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. publicação e comercialização:
www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500 NOTA: Este livro foi escrito em desacordo com a ortografia aprovada em 1990 e ratificada em 2008.
ew
Daniel Silves Ferreira
A CAUSA
Pr e
vi
de Tobias Seleiro
ew
vi
Pr e
ew
Pr e
vi
Aos meus, aos de sempre, aos dois bons amigos que, em momentos diferentes, acompanharam a gestação deste texto e àqueles que, de uma forma ou de outra, se (re)vêm nestas páginas que são nada mais do que o fruto de lembranças, certas vivências e uma imaginação livremente distorcida.
ew
vi
Pr e
ew
CAPÍTULO I
Pr e
vi
Eram quase todos jovens estudantes universitários e estavam sentados, na sua maioria, no chão, sobre uma alcatifa verde-escura, muito gasta, e encostados à parede da ampla sala, praticamente sem móveis. A reunião prevista para aquela tarde no apartamento do 10.º andar daquele prédio na Venda Nova ainda não tinha começado. A conversa, porém, estava animada e fluía de forma desorganizada. Alguém falou de poesia e Miguelinho pegou da sua pasta que continha muitos documentos, a começar pelos estatutos e programa dos CCPD (Círculos Cabo-verdianos para a Democracia) e textos de apoio para a reunião convocada por aquela organização clandestina que se opunha ao regime instituído em Cabo Verde desde a Independência. Devagar, folheando os documentos todos, quando estava praticamente no fim, ele retirou duas folhas e segurou-as, enquanto fechava a pasta. Fez-se um silêncio na sala e Miguelinho, que muitas vezes dirigia a reunião, levantou a cara, percorreu a sala com um olhar evasivo, pôs-se de pé, susteve a respiração e começou a recitar:
9
Daniel Silves Ferreira
da esperança
ew
Aqueles que em potência têm mais capacidades de exercer, de objetivar, de realizar, não se devem preocupar, porque as suas potências não são inúteis; pois as energias desse absoluto, sem o saberem, são utilizados pelos deuses da criação nos seus reinos, nos mais belos e desejados sonhos. do estar
Pr e
vi
A ausência do seu ser em cada ato que pratica é uma cómoda forma de (ñ) estar no tempo é uma longa prece dos sentimentos a um deus perdido no movimento contínuo das coisas é a transpiração de uma febre dispersa à procura da justificação da própria vida é a translação da sua dor para a distância oculta que mina os seus olhos.
– Viva o nosso poeta de Ponta de Belém – gritou Mité, no meio da gargalhada geral. – É Ponta Belém em grande estilo! – Uma bela prosa poética! Miguelinho, sabia-te organizador, um bom organizador, mas desconhecia completamente os teus talentos literários. Ponta Belém bem te merece! – disse Caco. O jovem declamador sorriu com brejeirice e com o dedo indicador apontou lá para o canto: – O poema não é meu, não. É do Eurico Barros. Conversas ruidosas e alegres enchiam a sala, quando uma outra moça, estudante de Letras e apreciadora de poesia, ainda 10
A Causa de Tobias Seleiro
ew
de pé, com as duas mãos abertas e, para poder ser ouvida, disse em voz muito alta: – E tu, Eurico, não podes ficar para trás. Não! Declama mais um dos teus poemas. Sabemos que tens vários! Sentado no chão, com a cabeça entre joelhos, taciturno e meio envergonhado, o jovem Eurico que estava num dos cantos da sala, recostou-se um pouco como se quisesse recuar. – Vamos lá, insistiu a mesma voz. Eurico tentou mexer-se de forma a ajustar-se melhor ao ângulo da parede, sem, contudo, mudar muito de posição. Hesitou de início, pigarreou e, repentinamente, com uma voz clara e pausada, começou a declamar:
vi
POEMA DA VIDA
Pr e
Só na estrada odisseia viajar no tempo sonho inocente de um quadro de infância
Promessas de vida e mortes destino feito de risos e lágrimas
Narciso um desejo político diamantino ego templos e palácios de espelho uma taça de cicuta décor de Atenas. 11
Daniel Silves Ferreira
ew
Vidas sobre vidros e pedras a pureza de um pavão sem penas traduzindo a cor dos outros nas ruas psicadélicas boîtes camas billie´s blues soul classic rock n´roll no veludo sedoso da tradição. Esperança viva na luz do sol no corpo de uma mulher em telepáticos namoros na praça da mansão dos deuses.
Pr e
vi
Eurico calou-se e ficou ali, naquela mesma posição, como a querer recuar, mas firmemente impedido pela parede. As palmas foram efusivas e os comentários, sempre elogiosos, foram muitos e vinham de todos os lados. Nesse instante, António, homem maduro, pai de Caco, apresentou-se à entrada da sala. Cumprimentou todos delicadamente e adentrou-se pela sala. Ele era praticamente conhecido de todos que, aliás, o tinham em muito boa estima. – Muito boa poesia, meu rapaz. Parabéns – congratulou-se o António. Eurico, naturalmente tímido, ficou ainda mais envergonhado e sem jeito, mas ainda agradeceu, seguramente por respeito pela idade de António, que se fez de desentendido e, no meio de um sorriso, comentou: – Tenham um bom sarau. O António saiu logo de seguida e, a pé, percorreu a longa avenida até à casa onde morava na Estrada de Benfica. 12
A Causa de Tobias Seleiro
ew
Quando Caco regressou ao velho palacete em ruínas, onde o pai morava ilegalmente, ele já dormia. A noite foi tranquila para Caco, mas não deixou de achar intrigante o pai ter aparecido naquele apartamento, onde ele ia assistir a mais uma reunião dos CCPD como sempre fazia quando estava de férias em Lisboa.
***
Pr e
vi
Naquele fim de manhã de sábado, António e seu filho Caco saíram da velha casa onde habitavam, na Estrada de Benfica, viraram à direita e, um minuto depois, eles estavam no balcão da taberna do senhor Pacheco que ficava a menos de vinte metros. Aquela extensa Estrada de Benfica estava movimentada pelos carros, transportes públicos e transeuntes para cima e para baixo. O sol batia forte nas fachadas dos prédios e, sobretudo no asfalto, do qual subia um calor sufocante. – Bom dia, senhor Pacheco. – Bom dia, senhor António. Como está com este calor? Ainda não são 11 horas e veja o calor que se faz sentir. Já tinham dito que o verão este ano seria escaldante. – É calor mesmo a sério – concordou António. – É uma taça de vinho?! – perguntou o taberneiro. António confirmou com um pequeno balancear da cabeça e o senhor Pacheco colocou um copo de vinho em cima do balcão e, ato contínuo, perguntou: – E para o nosso estudante, o que é que vai ser? O taberneiro que já conhecia o Caco desde as férias do ano anterior, entregou-lhe o Diário de Notícias. Homem calmo 13
Daniel Silves Ferreira
Pr e
vi
ew
e educado, o senhor Pacheco tinha reparado que, sempre que o rapaz aparecia por lá, levava alguma coisa para ler ou pedia o jornal que lia de ponta a ponta e fazia as palavras cruzadas que, quase sempre, preenchia completamente. – Um tinto com mistura, se faz favor – solicitou Caco. Cada um com o seu copo na mão, António e o filho foram sentar-se num banco na empena da taberna, onde estava mais fresco. Beberam lentamente e ali ficaram quietos, sem trocar uma palavra. Há muito que aqueles pequenos copos estavam vazios, mas António parecia não notar nada. Finalmente, segurou no dele e voltou-se para o filho: – Vai lá buscar mais dois copos. Tens algum dinheiro?! Sem esperar a resposta, António acrescentou: – Diz ao senhor Pacheco que ponha na minha conta. Caco levantou-se preguiçosamente, entrou pela porta da taberna e dirigiu-se ao balcão. – Senhor Pacheco, são mais dois copos de vinho tinto. O meu pai pergunta-lhe se pode colocar na conta dele – disse Caco. – Ora essa, meu estudante. O senhor António, seu pai, é um fino cliente da casa há muitos anos. Daqui ele só não leva o que não quiser. Enquanto enchia os copos na torneira de uma enorme pipa quase encostada à parede, o senhor Pacheco acrescentou: – Eu sempre tenho notícias suas. É aqui, naquela mesa ali, que o seu pai responde às suas cartas. E, como somos amigos, eu pergunto por si. O taberneiro passou um pano húmido sobre o balcão, colocou ali os dois copos e, com uma clara mudança na feição da cara, comentou: 14
A Causa de Tobias Seleiro
Pr e
vi
ew
– Tenho um filho e queria muito que ele estudasse, mas ele não quis. Felizmente, tem um emprego e o ordenado não é mau. Caco saiu e voltou para o banco, lá fora, e ficaram os dois, novamente, em silêncio. O pai sabia alguma coisa. Que diria ele se soubesse do seu envolvimento em atividades clandestinas no país onde estudava? Os próprios companheiros nunca sabiam o seu verdadeiro nome. Ele usava pseudónimos que mudava com frequência. Os contactos eram estabelecidos através de um mot de passe que o contactado previamente informado sabia e para o qual teria uma resposta. – Caco, ontem estive naquele apartamento na Venda Nova, onde devia haver mais uma reunião. Não me perguntes como é que eu soube. Digo-te apenas que não é de hoje. Queria somente que tu soubesses que eu estou ao corrente. O resto depende de ti. Estranhamente, Caco ficou mais tranquilo, pois o pai resolvera falar. Assim, podiam conversar. Sempre foi muito aberto para com o pai e também não tinha razões de queixas dele. – Devias esperar pelo fim do teu curso. Primeiro, termina os estudos. O filho, sempre sentado, com o copo a meio e a cabeça curvada, olhava para a calçada feita de pequenas pedras de calcário polidas: – Pai, há situações às quais, por mais que a gente queira, não se pode fechar os olhos. Talvez o António não tivesse prestado atenção, pois continuou, como se o Caco nada tivesse dito: – No fundo, fico muito contente com aqueles rapazes e raparigas. Vejo-os sempre e muitos deles estiveram a morar lá em casa, que o Miguelinho com a sua gaiatice, tem chamado Hotel 15
Daniel Silves Ferreira
Pr e
vi
ew
Padjinha. Converso com eles e acho que, no fundo, têm razão. Vão ser advogados, engenheiros, economistas, médicos, arquitetos, professores. Fico muito feliz com isso. O argumento apresentado não teria sido convincente e Caco percebeu-o. Porém, notava também que o pai estava dividido, por isso entendia que ele estivesse metido em atividades políticas contrárias às vigentes no país. – Vejo-te com eles e isso me traz felicidades. Eles são teus colegas e amigos. Estás lá por teu próprio mérito. Tu, também, serás um bom profissional. Mas, convém que tu te lembres que ainda és estudante. Termina primeiro os teus estudos. O filho já levantava a cabeça e, embora estando ao lado dele, o António esforçava-se para ver-lhe a cara. – Podes vir a ser um bom profissional. Eu creio que sim. Sempre foste inteligente. Isso depende de ti. Deves concentrar-te naquilo que é mais importante para ti. O resto, a política, pode ficar para depois. A mão direita de António procurou o copo que levou à boca, balbuciou qualquer coisa que Caco não percebeu e repetiu: – Termina primeiro os teus estudos, o teu curso. O tempo passa tão depressa. – Pai, é difícil fingir que não está a acontecer nada. O raciocínio do António estava construído e a afirmação do Caco não o fez mudar de direção. Então, pôs-se a relatar eventos passados, muitos deles decorridos havia muito tempo: – Não sei se te lembras, mas, certa vez, o senhor Augusto Barros, teu professor na escola primária, disse-me, na tua presença, que vendesse as calças e te pusesse na escola. 16
A Causa de Tobias Seleiro
Pr e
vi
ew
Tranquilamente, António respirou como que se estivesse a reviver aquele momento de alegria, mas também de desafio e de responsabilidade que acreditava ter assumido plenamente: – Não imaginas o orgulho que eu senti e sinto até agora. Não me deste razão para não ser assim. O copo que segurava com a mão direita impedia que tivesse grandes gestos, pelo que o António, apenas com a mão esquerda, pôde fazer pequenos movimentos lentos, antes de suspirar profundamente e prosseguir: – Aguenta um pouco, rapaz. Aguenta um pouco. Deixa a política para depois. Agora, tu é que deves escolher. O olhar terno e compadecido de António deixava transparecer um genuíno amor paternal, e Caco percebeu-o bem. – Não é de hoje que reparei que gostas destas coisas. Digo até que tens alguma queda para isso. Ainda eras rapazinho quando eu constatei isso. Tu é que nunca soubeste que eu sabia. Foi por isso que ontem ficaste espantado quando eu fui ter contigo àquela reunião. Caco não podia imaginar como é que o pai pudera lá chegar. Ele nunca tinha dito nada. As reuniões eram em lugares diferentes. Ele mesmo já estivera na Quinta do Charquinho, numa rua perto do Instituto Português de Oncologia, na outra banda, e na Venda Nova, como no dia anterior, num apartamento habitado por jovens cabo-verdianos, universitários, todos afetos à Causa da liberdade e da democracia e, por isso mesmo, todos contra o regime de partido único instalado em Cabo Verde. Muito calmo com o espírito próprio à meditação, Caco sentiu que também nutria um grande amor pelo pai. Tinha por ele um respeito digno de um bom filho. Ele admirava-o na sua forma de se relacionar com ele. 17
Daniel Silves Ferreira
Pr e
vi
ew
António recordou-lhe a estória que lhe tinha contado sobre o tuga que assassinara a Alice na esquina da rua do hospital e que o Juvenal Cabral tinha relatado por escrito e, como se fora no dia anterior, enfatizou as perguntas e os detalhes que o Caco quisera saber. Chamara-lhe muito a atenção a curiosidade do Caco em relação ao filho do autor daquele opúsculo, o Amílcar Cabral, que todos conheciam, mas muito poucos ousavam pronunciar o nome, mesmo no mais recôndito isolamento. Sempre na mesma toada, António informou o filho que não lhe tinha passado despercebido a curiosidade que ele tivera pelo texto do Amílcar Cabral, publicado muitos anos antes no Boletim de Cabo Verde, mais pela satisfação em ler um nome proscrito do que pelo interesse do próprio texto da parte de um adolescente. Procurando encadear uma ideia à outra, ele referiu-se à atitude do filho quando ouvia as queixas dos militares cabo-verdianos que trabalhavam em posições subalternas na messe dos sargentos situada lá na Rua Cândido dos Reis, mesmo em frente da oficina de sapataria, quando lá iam para uma meia-sola ou algum conserto das botas. Subitamente, do outro lado da avenida, José Caranguejo, vizinho do hotel Padjinha, onde moravam, apressado, gritou: – António, como é que estás? Espera por mim. Já venho tomar um copo. Não demoro. E tu, Caco?! António acenou apenas e continuou na mesma toada. Lembrou ao filho o interesse que tinha demonstrado pela história dos presos políticos de 1961, a ponto de decorar os nomes de todos eles, e pelas proezas do Dr. Rosinha que aceitou defendê-los, quando o Dr. Baltazar Lopes, o primeiro contactado, declinara o convite por ser funcionário público. 18
A Causa de Tobias Seleiro
Pr e
vi
ew
– Eu via a tua curiosidade pelos assuntos da política quando estavas comigo na oficina de sapataria. Foi por isso, que eu te levava comigo durante as férias. Via também o teu interesse por certas leituras. Por vezes, até parecias ver outras coisas para além daquelas que lá estavam escritas. Caco manteve-se atento o tempo todo. Agora, sabia mais do que nunca que a comunicação com o pai tinha sido boa. Ele percebera tudo, mesmo aquilo que não tinha sido dito expressamente, mas de algum jeito foi transmitido. O pai contou como a vizinha e amiga abrira freneticamente a meia-porta e entrara pela oficina adentro e, praticamente sem cumprimentar, fora logo a anunciar: – Teu primo Ilídio, filho do Virgílio, está no hospital. Trouxeram-no do Tarrafal para a consulta. Ele levantara-se e fora atrás da senhora. Caco quisera segui-los e o pai o repreendera com voz ríspida: – Fica aí, não vais a sítio nenhum. Há muito que Caco sabia que, desde 1962, Ilídio, primo de seu pai, estava preso por atividades políticas no Campo de Chão Bom e queria conhecê-lo pessoalmente. – Passaste o dia aborrecido. Nem uma pergunta, nenhuma conversa. O teu comportamento disse-me tudo. Eu queria preservar-te daquelas questões para as quais não estavas preparado. O frescor naquela empena era muito agradável e contrastava com o calor intenso que se fazia sentir naquela manhã de agosto. António parou um pouco e Caco, sorridente, aproveitou a oportunidade: – Observavas todos os meus passos, pai?! Nenhum te escapou! – Claro, rapaz – respondeu o pai com um sorriso maroto. 19
Daniel Silves Ferreira
Pr e
vi
ew
A pequena pausa só serviu para António continuar a conversa que, pela forma como estava a ser conduzida, Caco constatava claramente ter sido preparada quase ao pormenor. – O Tobias Seleiro era um bom amigo. Tinha lá os seus problemas com a bebida. O filho Salvador vinha pedir ajuda e eu tentava junto dos amigos do hospital. O primeiro internamento foi por causa de bebidas alcoólicas. O outro foi bem diferente – prosseguiu o António. As ideias vinham-lhe com grande facilidade, umas ligadas às outras, numa impressionante sequência cronológica e António dirigia-se ao filho com a mesma concentração: – O segundo internamento do Tobias Seleiro deveu-se a umas ideias que o Salvador, filho dele, não acreditava e que alguns achavam ser por causa da bebida, apesar de, na altura, não estar a beber. No início, eu também não acreditei. Depois, foi bastante diferente. Caco sorveu um pouco de vinho e concentrou-se ainda mais nas palavras do pai que avançava com a narrativa de uma forma tranquila e organizada que muito impressionava. O horário das visitas era à tarde, mas António, conhecido dos funcionários do Serviço, ia lá ver o Tobias Seleiro depois do fim do trabalho. Caco era seu companheiro habitual. – Lembras-te como ele estava? – perguntou António. Caco não tinha dificuldades em recordar aquele quadro que o marcou definitivamente. Tobias Seleiro, com um pijama de cor branca com riscas azuis, estava deitado, muito agitado, contido com ligaduras reforçadas nos quatro cantos do leito, banhado em suores e com tremores grosseiros por todo o lado. Tinha um tubo na veia que estava ligado a um frasco com um líquido amarelado. Não reconhecia as pessoas nem sabia onde estava. 20
A Causa de Tobias Seleiro
Pr e
vi
ew
Ele falava continuamente, de forma, muitas vezes, incompreensível, de cenas e pessoas de Covada e de outros sítios. O pai ainda tinha tentado estabelecer algum contacto com ele, mas em vão. O Tobias parecia ver coisas do outro mundo e, pelos movimentos dos olhos, adivinhava-se que via coisas e sentia algo a andar pelo corpo. O lençol estava encharcado e o cheiro a urina era intenso. – Ele estava confuso – disse António. Mas, alguns dias depois, o Tobias Seleiro era aquele homem que eles conheciam. Ainda ficou internado mais duas semanas com soros, vitaminas em injeções e comprimidos, ansiolíticos duas vezes por dia para os tremores que ainda perduraram por mais tempo, embora em intensidade nitidamente regressiva. A alta foi um processo natural pois a evolução tinha sido muito boa. Pouco tempo depois ninguém se lembrava mais daquele internamento do Tobias Seleiro que durara vinte e um dias. O pai levantou a mão direita, colocou-a na nuca do Caco e fez um pequeno movimento da cabeça dele, como que a exigir um maior contacto visual, apesar de estar certo de que o filho estava a acompanhar com a máxima atenção: – E a questão do navio Pérola do Oceano?! Naqueles dias, espantava-me ver-te, tu assim tão jovem como um bicho-carpinteiro, a querer saber o que acontecera. – Ainda tenho isso em mente, pai. Caco recordava como tinha ficado angustiado por não ter podido perceber o que realmente tinha acontecido. As conversas que tinha escutado, sempre em baixa voz, nunca eram completas nem sequenciais. No entanto, lá conseguia inteirar-se dos vários factos e de alguns atores. Porém, não conseguiu juntá-los 21
Daniel Silves Ferreira
Pr e
vi
ew
e perceber o que realmente estava a acontecer. Mais angustiado ficava ainda quando se recordava que mesmo com a queda do fascismo e, posteriormente, do colonialismo, veio a compreender realmente o que se passou. O pouco que foi dito ou escrito sobre o caso “Pérola do Oceano” perdurava num grande enigma no seu espírito. – Sim, isso me inquietava e até hoje me inquieta. Não sei bem o que teria verdadeiramente acontecido. Foi como se houvesse algo para esconder! Deverá haver alguma razão para isso. O ambiente estava animado, a conversa fluía naturalmente e estava a ser muito agradável para ambos. O António parecia inspirado e mal terminava um assunto que expunha sumariamente, passava para outro numa perfeita ordem cronológica que Caco já tinha constatado. – Assististe ao segundo pedido de ajuda e foste várias vezes comigo à Quinta-Enfermaria. Não sabia o que vinha depois. Eu acreditava que eram os efeitos acumulados do álcool. O médico também – comentou António. – Mas havia coisas por trás. – Que tu acompanhaste, sem que eu me tivesse dado conta. Antes dele vinha sempre o Salvador, seu filho. Estavas sempre por perto. Nunca tinha ligado a isso. Só depois é que fui ligando as coisas. Ficou claro para Caco que o pai não se opunha, de certa forma, até concordava, mas tudo devia ficar para o futuro, um futuro longínquo que não conseguia vislumbrar quando havia questões a serem tratadas no imediato, por isso ele não respondeu. De facto, entre eles, havia como que um acordo tácito. O pai dera as informações possíveis que o filho tanto aspirava e este 22
A Causa de Tobias Seleiro
Pr e
vi
ew
se comprometia a não falar nelas e a não se envolver em quaisquer atos que pudessem ser mal-interpretados. O pai reparara que a curiosidade do Caco era cada vez maior e coisas outras sabia sem que ele tivesse falado delas. Seguiram-se outras recordações do pai. No dia em que tinham ido despedir-se do sobrinho Santinhos que ia para a tropa em Portugal e depois, sabia-se, para a guerra no Ultramar, o Caco tinha feito umas perguntas comprometedoras no meio daquela gente toda. – É certo que ninguém deverá ter ouvido, com todo aquele barulho, mas eu percebi bem o que querias. Olhou para o filho e continuou: – Foi lá na Pousada dos Trabalhadores. Lembras-te? Mal ouviu a pergunta, veio-lhe à mente o ambiente ali reinante e a imagem do jovem músico praiense, todo aprumado e rodeado de amigos e amigas, e a frase ouvida no meio de muito barulho: – Que remédio?! Enfim, será fim sem fim! Era a primeira vez que Caco ouvira aquela expressão de que gostou e, muitos anos depois, sempre que via o então jovem, mais tarde militar de alta patente no Cabo Verde independente, lembrava-se dela e do ambiente em que tinha sido proferido. Depois veio o assunto do comunicado sobre a ida dos mil e quinhentos mancebos para a tropa colonial, que encontraram debaixo da porta, naquela manhã, quando iam sair para os trabalhos de oficina que levavam para fazer em casa, antes do pequeno almoço. – Tu leste-o comigo. Guardei-o, mas desapareceu – lembrou António. 23