Teatro em Portugal

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Maria José Baião

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TEATRO EM PORTUGAL

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Uma Abordagem Cronológica

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FICHA TÉCNICA título: Teatro em Portugal – Uma Abordagem Cronológica autora: Maria José Baião edição: Edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)

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1.ª Edição Lisboa, dezembro 2023

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imagem de capa: Personagem da peça de Mário Cláudio “A Ilha do Oriente” – Pomona, deusa da mitologia romana – interpretada por Maria José Baião, Acarte, Fundação Gulbenkian, 1989 grafismo de capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

isbn: 978-989-9028-88-3 depósito legal: 523075/23

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© Maria José Baião

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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publicação e comercialização:

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Ao meu Filho, pela Força que me incute!

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ÍNDICE 11 11 15 17 17 21 24 25 31 31 34 37 37 41 45 45

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1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.1 A preparação de um espetáculo teatral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Século XIII a.C. – Origem das origens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Séculos XV / XVI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.1 Festividades cíclicas na Corte Portuguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.2 Gil Vicente – autor de transição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.3 A escola Vicentina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.4 Proposta para uma leitura iconográfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Séculos XVI / XVII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.1 Passagem para um teatro urbano fixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.2 Apogeu e declínio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. Século XVIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.1 A Reforma Pombalina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2 Anos cinzentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. Século XIX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.1 A Reforma de Garrett . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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6.2 A valorização patrimonial e artística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 7. Século XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 7.1 Modernismo e outros “ismos” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 7.2 Do Estado Novo ao estado atual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 8. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 9. Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 9.1 Reprodução de gravuras referenciadas no texto . . . . . . . . . . . . 75 9.2 Rextos relativos a atividades parateatrais . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 9.3 Cópia do Alvará de 17 de Julho de 1771, relativo à subsistência dos teatros públicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 10. Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

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PREFÁCIO

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Começo por saudar a coragem da Autora, minha querida Amiga Maria José Baião Lourenço, por se aventurar em domínio tão vasto. E escolho a palavra “aventurar”, porque o tema Teatro abre caminhos de investigação que não cessam de desafiar quem transponha as suas portas, sagradas ou profanas. Sei que, na longa prática de jornalismo, a Dr.ª Maria José criou um enorme poder de síntese e que, como pedagoga generosa, percebe que um faminto, ainda que de saber, não deve ser alimentado com pesada refeição! Sensível à generalizada ignorância sobre o Teatro em Portugal, entendeu ser útil uma proposta séria, documentada em estudo aturado, mas de “digestão fácil”! Daí nasceu este livro que muito útil será a estudantes de Teatro e ao público em geral, opção que tenho como deveras inteligente. O Teatro como expressão de ideias, do eu profundo, tem potencial para transgredir a ordem estabelecida. Viveu avanços e recuos, foi conquistando direitos, numa luta contra preconceitos, censura religiosa e política, falta de apoios, de oportunidades, de apreço. A viagem foi longa mas está contida neste trabalho da Dr.ª Maria José. Aliás a A., ao concluir, afirma que não se propôs apresentar uma enciclopédia, mas uma recolha seleccionada. Ainda bem! Já

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NINGUÉM lê Enciclopédias e TODO O MUNDO prefere Histórias Breves! Com todo o meu apreço.

beatriz basto da silva

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Coimbra, Outubro de 2023

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Personalidade com vasta e meritória intervenção cívica e política, Historiadora distingue-se, igualmente, no âmbito das Artes e da Escrita.

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1. INTRODUÇÃO

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Teatro deve ser um acontecimento para fruir e refletir. Quando vamos ao Teatro, a ideia de ir ver um espetáculo prevalece sobre a ocupação do espaço, que depende da época em que foi concebido. Tão importante como a atuação, subsiste, pois, a noção do lugar que, nos primórdios, era um local de culto religioso. Há constantes no ciclo de produção de um espetáculo que, da incipiência original, passaram a engenhosos recursos e sofisticadas invenções, até às regras a seguir para que um espetáculo funcione. Regras que evidenciam os diferentes graus de metaforização em múltiplos contextos. A maior parte dos espetadores escolhe um espetáculo e comenta-o, desconhecendo a estrutura que o pôs em cena, vasta e variada. 1.1 A preparação de um espetáculo Todo e qualquer projeto assenta em vários ciclos, envolvendo várias pessoas, materiais e investimentos. Assim:

– Pré-produção: contempla contatos e contratação de direitos de representação, planificação geral, até à aquisição de materiais. 11

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– Produção: compreende a preparação do guarda-roupa, adereços, cenografia e respetiva integração no espaço cénico.

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Plano de ensaios – que têm início com leituras e discussão do texto, marcação das cenas e, em fase adiantada, integração de som e luz. À Produção compete, ainda, o processo de divulgação do espetáculo, publicitação e relação com o público, através de vários serviços de apoio e arrumadores, nomeadamente.

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– Pós-Produção: engloba a desmontagem e arrumação dos diversos materiais de cena, guarda-roupa, adereços, sonoplastia e luminotecnia, a par das exigências administrativas que implicam contabilização das receitas, relatórios, balanço global. – Estrutura: uma companhia teatral com espaço próprio é diferente daquela que corresponde a uma equipa com carácter pontual.

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No primeiro caso é desejável a existência do seguinte organigrama:

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– Contra-regra: responsável pela generalidade dos adereços, respetiva localização e mudança em todos os momentos do espetáculo. – Coreógrafo: responsável pelo movimento artístico, em cena. – Costureira: confeciona os vários figurinos e/ou cortinas, sob a direção da mestra de guarda-roupa. – Ponto: colabora com os atores, lembrando-lhes as falas – atividade em desuso. Durante os ensaios pode ter essa função, para além de anotar as movimentações em cena. – Programador: define a programação de um determinado espaço, para médio e longo prazo. – Realizador de vídeo: responsável pelo registo de imagens do espetáculo em suporte de vídeo para o integrar no espetáculo ou promovê-lo.

Principais elementos físicos da estrutura:

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– Plateia: parte da sala que se estende ao rés-do-chão, desde o fosso de orquestra, terminando sob o balcão ou plateia alta. – Frisas: espaços destinados ao público situados à volta das paredes (de inspiração italiana, séculos XVIII/XIX) – Palco: espaço de representação constituído pela boca-de-cena, a parte frontal ou proscénio (que avança desde a boca-de-cena) – Fosso: espaço localizado à frente do palco, a nível mais baixo, destinado à orquestra. – Pano-de-ferro: cortina de material incombustível. – Pano-de-fundo: segue-se ao pano-de-ferro. 13

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– Pernas: fraldão de pouca largura que pende da mesma vara de uma bambolina. – Bambolina: faixa de pano ou papel montada sobre caixilhos, unindo na parte superior as “pernas”, para que não seja visto o urdimento, quando não há texto. – Urdimento: conjunto de varas, cordas e outros equipamentos que sustentam os elementos do cenário, a partir da teia. – Teia: espaço acima do Palco que fixa os refletores, cordas, cabos de aço, etc. – Refletores: equipamento para iluminação cénica. – Telão: elemento móvel constituído por uma tela de pano esticado sobre uma armação de madeira, que é pintado para simular uma parede, um muro, etc. Possui grandes dimensões (8/10 metros). Instala-se no fundo do espaço cénico, podendo ser recolhido depois de utilizado. – Direita-alta: convenção que designa a zona do palco mais afastada do público. Na perspetiva dos atores situa-se à esquerda destes. – Direita-baixa: designa a zona do palco mais próxima do público. Na perspetiva dos atores, à esquerda destes. – Esquerda-alta: define-se pelos critérios anteriores. – Esquerda-baixa: define-se pelos critérios anteriores.

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2. SÉCULO XIII a.C. – ORIGEM DAS ORIGENS

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A necessidade de comunicação do ser humano, a Festa que, antes de mais, representa um derivativo do exercício coletivo do sagrado, desenvolveu práticas que, segundo as mais credíveis fontes, remontam ao século XIII a.C., com as festas dos deuses Baco e Dionisio, respetivamente, em Roma e na Grécia. A Festa impõe-se como um apaziguamento da consciência individual na coletiva. É sentida como uma necessidade de resposta a um apelo social, partindo da ideia de que toda a estrutura social exige para manter a sua estabilidade, lugares e momentos de transgressão. Podendo apresentar desordem e caos, a Festa engendra, no entanto, o regresso à ordem, a submissão às normas sociais, na sua pluralidade de expressões. Ultrapassando os ritos primitivos do Homem, na Grécia, Aristófanes terá criado a mais antiga representação: a comédia “As Rãs”, 405 a.C., em Atenas. De índole satírica, critica as políticas e as instituições da cidade: “As Rãs”, em coro, coaxam, enquanto Dionísio é transportado numa barca, através dum pântano. São rãs/cisne, metáfora à dualidade de Dionísio, divindade frágil e medrosa. Teoriza Aristófanes: “às crianças é o mestre que lhes ensina, aos adultos são os poetas”. 15

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Outro dos seus marcantes textos tem como alvo os juízes atenienses, “Vespas”, 422 a.C. Sentencia: “Daqui para o futuro, meus amigos, quando encontrarem poetas capazes de dizer e criar alguma coisa de novo, deem-lhes o vosso amor e o vosso carinho. Guardem-lhes os pensamentos, metam-nos em arcas perfumadas de alfazema. Verão que, assim, durante anos, hão-de manter a roupa com um bom cheirinho a talento.” Das narrativas míticas iniciais passa-se à reflexão ditada pelas mudanças sociopolíticas e culturais da época. Entre os séculos VI e IV a.C., a “tragédia” grega expressa, no seu auge, os conflitos da alma humana continuando a ser aplaudida nos dias de hoje, particularmente, Ésquilo (“Os Persas” e “Trilogia Agnamoniana”); Sófacles (“Antígona”) e Eurípedes (“As Bacantes”). O Teatro grego representava-se, inicialmente, em festivais religiosos. Dionísio era celebrado como o deus do Teatro, da Natureza e dos excessos, em que o vinho transportava os atores a estados irreais. Também na Roma Antiga se destacaram, entre outros, Plauto e Lívio Andrónico, por alturas de 240 a.C. Referência especial merecerá Séneca, cujas “tragédias” são um grito contra a tirania e violência atávica do Homem. Apresentadas sempre com carácter pedagógico-didático, ditado pelo modelo de pensamento estóico, em que sentimentos como o amor, o ódio, a piedade são considerados culpados da irracionalidade humana. 16

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3. SÉCULOS XV / XVI 3.1 Festividades cíclicas na Corte Portuguesa

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Com o advento do Cristianismo, o Teatro foi considerado pagão e extinto. Renasce, paradoxalmente, na Idade Média transportando-nos ao período pós-conquista. Há conhecimento de existir um teatro religioso e popular que consistia na representação da vida de Cristo, dos Santos e de passagens dos Evangelhos, sendo o lugar de representação o interior das igrejas e, posteriormente, os próprios adros. Não existem textos escritos. Há vestígios na tradição oral e cartas pastorais proibindo as representações nas igrejas. Data de 1467 esta determinação do Cardeal de Alpedrinha, na visitação à igreja de Óbidos, conforme se lê na “Revista Arqueológica e Histórica, Lisboa, 1887: 139”: “Cantam dentro nas ditas igrejas cantigas mundanaes e de muytas vaydades nas quaes não convem para taes lugares e saltam e balham e fazem jogos desonestos as quaes pouco vee a propósito (…) sob pena e excomunhom que cessem de fazer em as ditas igrejas e nom cantem nem balhem nem façam jogos desonestos como dicto he e fazendo ho contrayro mamdamos aas curas que lhe publiquem este capítulo evitem por excomungados”. 17

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A representação da matéria eucarística através da alegoria tomou, entretanto, proporções de competição em celebrações cíclicas, como as procissões de que há relatos surpreendentes. A procissão do Corpo de Deus, nas principais cidades do Reino, mobilizava todo o povo e todos os setores de atividade, que competiam nos desfiles, trajando a rigor, exibindo adereços sofisticados e danças coreografadas, sob regulação do Senado da Câmara e “a confirmação do Rei através de alvará”. No primeiro quartel do século XVI, nomeadamente, havia o seguinte regimento de procissão do Corpo de Deus, na cidade de Coimbra, como relata Fortunato de Almeida na sua “História da Igreja em Portugal (1910-28)”, vol. II, Lisboa, Livraria Civilização 1968, pg. 559/61: “Primeiramente, os forneiros e carniceiros e telheiros e caixeiros e lagoreiros da cidade (…) e nom serom menos dos ditos seis homens, sob pena de incorrer em quinhentos reis para a Câmara de dita cidade e nem serem obrigados a levarem bandeira. E aqui se começa a dianteira da Prociçom. (…) os barqueiros da cidade e termo seram obrigados de fazerem hum S. Cristovam muito grande, com hum menino Jesus ao pescoço, todo bem corregido e todos de redor dele (…). As regateiras e vendedeiras de pescado e de fruita (…) ham de correr pela preciçom cada huma para seu cabo, que nam vam juntas e cada huma hade levar uma gaita ou tamboril sob pena das mordomas pagarem quinhentos reis pera a cidade. Os alfaiates e alfaiatas e tecedeiras de tear (…) som obrigadas de fazer um Emperador com uma Emperatriz, com oito damas, 18

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em tal maneira que com a Emperatriz sejam nove mossas as quaes serem todas nossas mestras e gentis molheres e bem ataviadas. Os carrieiros sam obrigados de fezerem S. Sebastiam, homem que seja bem disposto e alvo, com quatro frecheiros e huma bandeira rica (…) e entram os cerigueiros e latueiros e bordadores y asy adegueiros e aqui hiram os livreiros e merceeiros. Os careeiros sam obrigados de fazerem Santa Maria (…) e sua bandeira rica e hamde ir apo-los careeiros e com estes vam os boticarios.” Igualmente, em Lisboa e Porto a competição era renhida, havendo representações alegóricas de reis, princesas, mouros, S. Jorge a cavalo, a nau de S. Pedro, N. Senhora e S. José com o menino e um jumento, São Cristóvão, São Sebastião, tendo como figurantes representantes de todas as classes e profissões, devidamente ensaiados e ataviados. As festas do povo eram verdadeiras manifestações para-teatrais, competindo com as festas cíclicas da Corte, a partir do surgimento de um Teatro profano e palaciano. Inicialmente, representações de tipo satírico, com música e imitações burlescas, arremedilhos e momos, por jograis e bobos. Durante, ou no intervalo dos banquetes palacianos, aconteciam representações alegóricas com personagens simbólicas, pequenos textos designados entremezes, de que existem alusões no Cancioneiro geral e numa crónica de Ruy de Pina. “Chronica d’El Rey D. João II”, excerto: “(…) como ouve, na salla de madeira excelentes y muy ricos momos (…) veo primeiro momo, envencionando Cavaleiro Cirne com muita riqueza graça e gentillezas porque entrou pelas portas 19

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da sala com hua grande frota de grandes naaos, metidas em pannos pintadas de bravas e naturais ondas do mar com grande estrondo d’artelharias e trombetas e atabales e manistrees que tangiam com desvairadas gaitas e alvoroços d’apitos de fengidos Mestres, pileotos e sedas e verdadeiros e ricos trajes d’Alemães. Os toldos das naaus eram de brocado e as vellas de tafeta branco e roxo e a cordoalha d’ouro e seda (…). A bandeira e os estandartes das gaveas eram das Armas d’El Rey e da Princesa.” Recuando ao cronista-mor do Reino, Fernão Lopes (1434-48) também dá conta da festa havida no casamento de D. João I com D. Filipa que “(…) fez boda na cidade do porto.”, sendo elucidativo este excerto da “Chronica de D. João I (cap. 96, da segunda parte)”: “(…) as gentes da cidade juntas em desvairados bandos de jogos e danças per todas as praças. As principais ruas per hu esta festa avya de seer todalas eram semeadas de desvairadas verdures e cheiros (…) enquanto o espaço de comer durou, faziam jogos asi como trepar em cordas e tornos de mesa e salto reale e outras cousas de sabor as quais acabadas, alçaram-se todos e começaram a dançar e as donas em seu bando cantando arredor com grande prazer.” O fausto do matrimónio da irmã de D. Afonso V, D. Leonor, com o imperador Francisco III, é descrito em vários documentos de época. Não sendo Teatro, porém, todos os acontecimentos são muito teatrais, como transparece deste excerto do relato de Luciano Cordeiro, em “Uma sobrinha do Infante, Imperatriz da Alemanha (Lisboa, 1894) pg.85-2”: “A 13 de Outubro daquele ano de 1451, 20

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D. Leonor foi solenemente levada ao palácio real (…) acompanhavam-na D. Afonso V, seu irmão, o Infante D. Henrique, seu tio, e outra muita gente ilustre (…). Chegaram pretos e mouros, com uma coisa à maneira de dragão, dançando todos ao seu estilo (…) entraram igualmente alguns selvagens com danças admiráveis (…)”. Os entremezes representados durante os esponsais de D. Leonor com Frederico III, terão sido, posteriormente, considerados mais inspirados que os primeiros textos de Gil Vicente.

3.2. Gil Vicente – autor de transição

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Os primeiros textos com características menos simplistas surgiram com Gil Vicente (1465-1536), que terá sido inspirado pelo espanhol Juan del Encina, músico e autor de poesia profana e sagrada. São dele estes versos que transcrevemos, como mera curiosidade:

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“Las cosas qué deseamos Tarde o nunca las avemos y las que menos queremos Más presto las alcanzamos.”

Gil Vicente colhe, também, inspiração nos esboços teatrais da Idade Média. Terá tido dificuldades em chegar ao Paço, até conseguir ler o “Auto da Visitação” ou “Monólogo do Vaqueiro”, aquando do nascimento do futuro rei D. João II. 21

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Leu para o rei D. Manuel e restante família real, na própria câmara da rainha. Abordou temas simples mas de concepção humanista, nas posições críticas que ousava, alternando com conceitos típicos da religiosidade da Idade Média. Mostrou ter conhecimento dos clássicos. Escreveu obras de devoção: “Auto dos Reis Magos”, “Auto de S. Martinho” e farsas: “Farsa de Inês Pereira”; “Farsa do Juiz da Beira”; “Farsa do Templo de Apolo”. Comédias: “Comédia do Viúvo” e “Comédia de Rubena.” A sua melhor obra satírica, “A trilogia das Barcas” – as duas primeiras em português, a terceira em castelhano- são inspiradas na “Divina Comédia”, de Dante. Espírito atento, desenvolto e criativo, é autor de transição da Idade Média para o Renascimento. A crítica social ultrapassava a dos Autos. É conhecida a carta dirigida a D. João III, deste teor, por altura de um sismo em Lisboa, que muito amedrontou o Reino: “(…) não bastava o espanto da gente, mas ainda eles (os padres) lhe afirmava, duas causas que os fazia lembrar e esmorecer: a primeira que polos grandes pecados de Portugal se fazia a ira de Deos. O segundo espantalho foi que quando aquele terramoto partiu ficava já outro a caminho que seria maior uma hora depois do meio-dia. Creo o povo nisto que logo saíram a receber por esses olivais e ainda lá esperam. Sobre estas proposições lhes fiz uma fala aos frades da maneira seguinte”, e relata ao rei a forma dura como se lhes dirigiu, acusando-os de ignorância: “não compete aos homens prever o futuro. 22

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Os tremores não provêm da mão de Deos, de imprudência e de não possuírem a graça do Espírito Santo.” Gil Vicente adere, também, ao que chamou de “estilo engenhoso com alegres artíficios”: a comédia. Escreve, então, D. Duardos, em castelhano, com inovações: a Dama que nas cantigas de amigo medievais era apresentada como donzela, passa a ser objeto de amor clandestino (“Auto da Índia”). Gil Vicente pretende, por outro lado, alertar as “almas desvairadas”, ameaçadas pelas tentações materiais e carnais. Explora o “temor do povo perante Deos”, cujo melhor exemplo está no “Auto da Alma”. A virtude do sacrifício é essencial para a purificação e santificação da alma humana como se depreende das falas dos Santos, do Anjo Custódio e de Santo Agostinho. Apresenta a Igreja como a “Santa estalajadeira, um abrigo e curandeira das almas em seus destinos terrenos.” Gil Vicente defende a purificação do Homem pelo sacrifício e renúncia às tentações do Diabo. Pecado e sacrifício eram dois estigmas que pesavam nas mentalidades da época, “só redimidas pela confissão e penitência da mais pura e sagrada iguaria que é a hóstia.” Os Autos são um género em verso, com figuras alegóricas destinadas a festividades religiosas. Não apresentam a divisão em atos ou jornadas como as comédias. Gil Vicente apresenta a crítica social através da criação de personagens-tipo, raramente com nomes próprios: pastores, escudeiros, amo, moço, castelhano, parvo. 23

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