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Neste romance cruzam-se três gerações de uma pequena família – dispersa por Portugal, Açores e EUA. Um jovem universitário procura conhecer um ramo da sua genealogia, cujos primórdios lhe foram sonegados, por razões que desconhece. Entretanto, nesse processo de indagação, desvendam-se-lhe histórias de amor e germina uma amizade sólida e cúmplice. “Diálogos inter-geracionais em torno de algumas questões centrais do mundo contemporâneo”, poderia ser o subtítulo desta obra onde a fragilidade das relações amorosas e a força dos livros e da literatura têm lugar de destaque.
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Não é esta a primeira vez que Luís Souta escreve num registo ficcional: fê-lo anteriormente em Escola da Nossa Saudade (1995) «memórias ficcionadas» e em Fa[r]do Escolar (2014) «episódios etno-ficcionados»; assim constava nos subtítulos desses livros. Usou a escrita narrativa em outros dois: Bichos à Solta (2016) e Pedagogia S. (2019). Este é, todavia, o seu primeiro romance. Dele haviam sido publicados, em primeira mão, textos avulsos, nos anos de 2001 e 2002, nas revistas O Escritor, Mealibra, Ave Azul, Boca do Inferno (anunciados como «capítulos de um romance em preparação»). Foi longo o interregno… Entretanto, prioridades circunstanciais levaram-no a editar outros livros.
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Romance no Espólio
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Verdade e ética intelectual são questões centrais em Romance no Espólio. As fronteiras da ética são porosas mas o filósofo Mário Sérgio Cortella, no programa de Jô Soares na TV Globo (04/11/10), sintetiza, com humor, em 37 segundos, «esse conjunto de valores e princípios que usamos para decidir sobre as grandes questões da vida: o quero, o devo, e o posso. Tem coisa que eu quero mas não devo, tem coisa que eu devo mas não posso, tem coisa que eu posso mas não quero. Você tem paz de espírito quando aquilo que se quer é o que você pode e o que você deve» Alguns personagens deste romance ‘querem’, ‘podem’ mas, ficamos na dúvida, será que ‘deviam’?
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ROMANCE NO ESPÓLIO
título: Romance
no Espólio Souta edição: Edições Vírgula® (Chancela Sítio do Livro) autor: Luís
posfácio:
Salvato Teles de Menezes Ana Maria Pessoa e André Carmo desenho de capa: Luana Costa arranjo gráfico de capa: Ângela Espinha paginação: Paulo Resende
isbn:
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1.ª edição Lisboa, Dezembro, 2020
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revisão:
978‑989-8986-37-5 477362/20
depósito legal:
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© Luís Souta
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.
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Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência. Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao seu autor, a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. publicação e comercialização:
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(+351) 211 932 500 O autor não segue o AO90; redige segundo a antiga (e identitária) ortografia.
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À Evamaria que me trouxe das terras do Sul a quentura, a paixão, a (tardia) serenidade…
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Pr «escrever um romance é como colar tijolos.» (Gabriel García Márquez, “Como se escreve um romance”, 1984)
ÍNDICE
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ABERTURA
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LEVANTAR A PEDRA
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ESGRAVATAR NO PASSADO
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DÁDIVAS 177 APÊNDICES
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GLOSSÁRIO
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NOTAS
SIGLAS
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POSFÁCIO “Romance no Espólio ou Espólio no Romance?”
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Morreu cedo o meu pai. Com ele tudo foi prematuro: casou aos 18 anos, aos 19 era pai, aos 40 avô; aos 60 foi-se para sempre. Vivia então na sua companhia, numa casa antiga, caiada de branco, num lugarejo junto ao mar, onde se refugiou da vida e preparou a morte. Eu tinha acabado de me divorciar. Daquele retiro, onde os dois procurávamos a convalescença (ele a física, eu a mental), acabámos por sair com desfechos bem diferentes. Meu pai deixou-me, como herança, não uma casa, um carro ou qualquer outro bem patrimonial, mas um espólio que se resumia a uma centena de DVD, perto de 500 CD, centenas de slides, uns 3000 livros, meia dúzia de baús repletos de papéis, um computador iBook (também nisto, alinhava pelas minorias) e um estranho pedido: publicar o romance em que tinha andado enredado e que, segundo ele, estava praticamente concluído. Nunca me tinha falado de semelhante intento editorial. Durante a sua vida, só publicara ensaios. E como cumprir o que ele me solicitava, no meio de uma dupla tristeza, difícil de sarar, e uma enorme dificuldade em mexer no seu velho computador (eu que sempre trabalhei com PC)?
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À medida que me embrenhava naquela papelada (des)organizada em n dossiers, e, em especial, nos infindáveis ficheiros informáticos, fui sendo enleada num mundo de que só vislumbrara alguns contornos, numa ou noutra conversa que com ele partilhei, no último ano da sua vida, naqueles breves passeios no areal imenso ou nos acomodados serões a jogar Scrabble. Quando, por fim, consegui abrir o ficheiro, intitulado, simplesmente, “Romance”, foi um resvalar de surpresa em surpresa: encontrei referências a livros que me foi sugerindo e às músicas ouvidas, em conjunto, vezes sem conta (naquela casa, gravador ou leitor de CD estava sempre ligado; a música foi a sua ‘companheira’ permanente). Só ligava o rádio para ouvir, na Antena 2, “Questões de Moral” de Joel Costa. Apesar da minha relutância inicial, não pude deixar de cumprir, com zelo e, depois, até agrado, a testamentária tarefa. Da minha lavra muito pouco há nas páginas que se seguem: completei algumas lacunas (nas secções “Notas” e “Siglas”), revi o texto, procedi à formatação final. Mas afinal, o que havia de autobiográfico naquele romance? Lugares e personagens não tinham qualquer relação com a nossa história familiar, tanto quanto eu julgava saber. Já não podia recorrer à minha mãe para o confirmar pois falecera três anos antes. Terá sido a sua morte a espoletar esta escrita romanesca? O seu desaparecimento libertou-o, finalmente, para confessar o que fez ou para imaginar o que desejaria ter realizado? Ou o projecto já se arrastava há muito? (a iliteracia computacional da mãe deixava-o descansado das suas eventuais indiscrições). Se calhar, não passava tudo de imaginação; as duas epígrafes, com que abre e fecha o romance, são um aviso (dúbio) ou um simples elemento literário?
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Enfim, a velha e relha questão das fronteiras entre o real e a ficção, o autobiográfico e o romance. Devia levar em consideração a advertência de Rubem Fonseca (Diário de um Fescenino, 2003: 110): «Não procure me entender pelo que escrevo nos meus livros, por favor.»? Todavia, após a leitura daquelas 210 páginas, a dúvida instalou-se em mim: será que nos andou a enganar a todos?
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«todos os episódios e personagens desta narrativa foram totalmente inventados, para serem mais reais e verdadeiros.» (José Gomes Ferreira, Tempo Escandinavo, 1969)
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«Só me interessa o que os outros não disseram, A vida obscura que se desconhece»
(Domingos Monteiro, “Sinfonia da Primavera” in Evasão, 1953)
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1. MIGUEL [história de vida]
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Tenho que controlar esta ânsia de tudo querer saber sobre si. O livro é a metáfora que me ajudará a não ter pressa: a história nunca está no prefácio; um grosso volume deve ser lido ao ritmo dos longos dias de Verão; a leitura quer-se pausada, atenta, cuidada, com sublinhados e notas à margem. Está decidido: é assim que o quero descobrir. Sou um cientista social, em tirocínio, a querer elaborar a sua história de vida. E vem nos livros (desde Os filhos de Sánchez de Oscar Lewis, 1961): a intimidade abre sótãos, alçapões, velhos baús. Não é conveniente forçar entradas. Elas acabam por se entreabrir, lentamente, basta demonstrar curiosidade, colocar uma pergunta, fazer um gesto intencional… Por isso, nada de impaciência. Sei a tarefa que me proponho realizar. Espero escrever, com rigor e disciplina, as tais três páginas por dia que todo o orientador exige para um trabalho proficiente ser concluído em tempo útil. «É preciso trabalhar sem pressas e sem pausas», bom lema, o de Goethe.
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Cresci com o Charles River por perto. Boston é a minha cidade. Por cá se fixaram os meus pais quando decidiram emigrar (ainda eu não tinha feito três anos). Omissos nas razões dessa partida. Foram, e de vez. Cortaram com a família. Nunca mais a contactaram. Meus pais devem ter selado um pacto de silêncio sobre o seu passado em Portugal e, pelo menos na minha presença, nunca o violaram. Minha mãe – fria, cerebral, dominadora – impôs uma ligação à pátria unicamente através da língua: “nesta casa, só se fala em português!” (apesar de meu pai ser americano, natural de Vermont). Ele, de tanto a amar, cedia e não a contrariava. Davam-se bem naquele ambiente de palavras escassas. Por vezes, tinha a sensação de estar a viver com surdos que comunicavam entre si numa língua gestual desconhecida. Ouvi, uma vez por outra, referências a nomes de pessoas portuguesas mas nunca compreendi quem eles eram, qual o contexto e a relação que, em concreto, tiveram com os meus pais. A minha natural curiosidade embatia sempre numa barreira de não respostas. Logicamente, nunca fomos de férias a Portugal. Não compreendia bem aquela persistente negação. Havia sempre argumentos (da minha mãe, claro) para esse impedimento de viajar para a Europa. Andámos pelo Canadá, México e corremos alguns países da América Latina; mas nunca atravessámos o Atlântico. Após a conclusão da parte curricular do mestrado, decidi escolher como orientador um prestigiado professor luso-descendente que coordenava o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros. Já no 2º semestre, no decorrer do primeiro seminário, quando cada um dos mestrandos fez a sua apresentação ao orientador, questionou-me sobre a origem do meu apelido; partilhei
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então, com o grupo, a minha proveniência, o desconhecimento que tinha dos meus familiares portugueses e a vontade de descobrir essas raízes lusas. A reacção do orientador surpreendeu-me. <Por que não vai à Europa e opta por fazer o seu trabalho de campo sobre um professor-escritor português?> Mas eu não conheço lá ninguém. <Posso sugerir-lhe um> e calou-se esperando, talvez, um sinal meu. <Não é muito conhecido, mas tem vários livros publicados (em pequenas editoras) e bastantes artigos editados (muitos em blogues e revistas online). Julgo ter-se reformado há pouco. Não o apanha nas redes sociais (nem eu tenho o e-mail dele), mas se contactar a escola onde ele trabalhou, com certeza lho facultarão. Logo ali, combinámos o dia em que passaria pelo seu gabinete para me mostrar alguns livros do meu futuro ‘objecto’ de estudo. Saí do seminário entusiasmado: decidido quanto ao tema e escopo da tese, e encorajado para o embate familiar que teria forçosamente de travar. Andei semanas a imaginar diálogos sobre o que lhes dizer, principalmente, como contornar os entraves que meus pais (bem, a mãe) iriam levantar: a questão financeira seria o cerne da inevitável ‘chantagem’ já que a minha idade tinha deixado de constituir um óbice. Tentei de imediato o apoio da FLAD e da Fulbright. Pela primeira vez, vi a minha origem nacional como uma vantagem: a concessão de uma bolsa acabou por me fornecer o ‘escudo’ que rechaçaria os expectáveis argumentos da senhora minha mãe. <Ensandeceste?! Quem te meteu essa ideia tonta na cabeça? Isso não faz qualquer sentido. Bolas! num país como a América não te devem faltar temas e individualidades para investigar. Precisas de ir a Portugal para
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fazer um mestrado? Ainda se fosse um doutoramento… E deves pensar que somos ricos para te custear viagens e estadia, durante todos esses meses! Achas? Se teimares nessa aleivosia, vais por tua conta e risco. Não contes connosco para esse projecto absurdo!>
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E aos 22 anos desfiz-me, finalmente, do que restava do cordão umbilical. Meus pais cumpriram a ameaça: não me deram qualquer informação prática para a viagem pois não queriam facilitar em nada a minha estadia; tinham a vã esperança que, nos contratempos iniciais, desistisse (afinal, era a primeira vez que viajava só). Mas o que mais os preocupava eram os meus propósitos de arqueologia familiar, a desocultação do nosso passado comum. Coisa que eles temiam. E eu continuava sem saber bem qual a razão. Aterrei no aeroporto de Lisboa num dia seco, de início de Verão. Que contraste com o calor húmido de Massachusetts! E que confusão naquela longa bicha para apanhar um táxi! O motorista, ao verificar a língua comum, tornara-me, de imediato, num ‘muro de lamentações’: a Uber que lhe estragava o negócio, a cidade sempre em obras, as mordomias dos políticos, o Sporting que nunca mais ganhava um campeonato… Saltava de um assunto a outro em cada semáforo, e explorava, sem escrúpulos, a minha ignorância geográfica da cidade. É o taxi driver globalizado. Tardou a chegada ao hostel! Aqui ficaria em trânsito enquanto não alugasse um estúdio. As minhas pesquisas na net haviam sido infrutíferas: o Professor (nos seus livros e artigos aparecia sempre, e só, Emílio S.) não andava pelo Facebook, não tinha página Web, não integrava o LinkedIn nem qualquer outra rede
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social, e recusava a socialização dos contactos pessoais; até nos artigos, depois do seu nome, não indicava o e-mail. Ao contactar a sua Faculdade, comunicaram-me não estarem autorizados a facultar o número de telemóvel ou o endereço (“lamentamos, são ordens expressas do Professor”). Tentei, de seguida, a editora que publicara os seus dois livros mais recentes. A resposta foi semelhante. Raios, mas este homem é um eremita!? Quando (quase) tudo se partilha, levando o privado a confundir-se com o público, o Prof. parece andar em contra-ciclo. Fecha-se no seu casulo, permanece incomunicável. Um resistente, um conservador ou apenas alguém fora deste tempo? Sentia-me num deserto: as buscas sobre o meu ‘sujeito de estudo’ não traziam novidades; este roadless deixava-me paralisado, sem saber que direcção tomar. Via o tempo passar e, de útil, não fazia mais do que ler livros e artigos do Prof. Emílio, alguns dos quais trazidos de Boston. Começava a ficar desesperado… Liguei o Skype e lancei um SOS ao orientador. Ficou apreensivo. Prometeu fazer diligências junto de outros colegas portugueses das universidades da Califórnia e de Providence. Cinco dias depois, recebi um e-mail seu dando-me o contacto de um ex-bolseiro pós-doc da Universidade de Wisconsin-Madison e que era (ou fora?) amigo muito próximo do Prof. Emílio. Graças a esse académico, cheguei, finalmente, à fala (pelo telefone fixo) com o Professor. Conversa difícil: mostrava-se relutante em receber-me. Tive que ser persistente. Só o senti quebrar quando lhe disse: Professor, vim de propósito dos States para o entrevistar. Não me posso dar ao luxo de regressar de mãos vazias. E muito menos mudar o tema da tese numa