Signapoesis

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Signapoesis

Uma Proposta de Tradução

de Dois Textos de Fernando Pessoa

Isabel Sofia Calvário Correia | Pedro Balaus Custódio | Pedro Oliveira

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FICHA TÉCNICA

título: SignaPoesis – Uma Proposta de Tradução de Dois Textos de Fernando Pessoa autores: Isabel Sofia C. Correia; Pedro Balaus Custódio; Pedro Oliveira edição: Edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)

grafismo de capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

1.a Edição Lisboa, setembro 2022 isbn: 978-989-9028-70-8 depósito legal: 503833/22

© Isabel Sofia Calvário Correia Pedro Balaus Custódio Pedro Oliveira

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publicação e comercialização: www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500.

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ÍNDICE

PREFÁCIO 7 NOTA INTRODUTÓRIA 9 Sobre o projeto SignaPoesis 9

CAPÍTULO I – A Carta da Corcunda para o Serralheiro: “uma boneca com os ossos às avessas” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1 . Maria José, um heterónimo (mais) silencioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

2 . A Carta: alguns processos de reflexão linguística e tradaptação . . . . . . . 22 3. Recursos Linguísticos da LGP 34 4. Considerações finais 46

CAPÍTULO II – Lisbon Revisited: Visitar Pessoa em Língua Gestual Portuguesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

1. Álvaro de Campos, o engenheiro naval . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

2 . Lisbon Revisited: do som à performance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

3. Tradaptar Pessoa: linguagens, recursos linguísticos e estratégias . . . . . . 58 4. Considerações Finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 79 Preview

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PREFÁCIO

A poesia em Língua Gestual, neste caso em Língua Gestual Portuguesa (LGP), potencia uma relação de reconhecimento e de empatia com a pessoa Surda. Qualquer poema, em qualquer língua, é uma manifestação estética em que se codificam ideias, imaginários, emoções e se labora o registo linguístico através de soluções estilísticas. A expressividade e a conjugação entre a linguagem gestual, a expressão facial e os recursos gramaticais e estilísticos são uma característica da poesia em LGP. A visualidade permite o experimentalismo que conflui numa performance estética ímpar. O recetor sente-se imerso num ritmo cadenciado de significantes visuais que, se os entender, lhe despertam pensamentos, sensações e interpretações.

A poesia em Português representa a linguagem literária assente no som e no significado. Também se sentem os ritmos, os jogos linguísticos e culturais. Quando o autor é Pessoa ou um dos seus multifacetados heterónimos, a poesia em Português toca a genia lidade. Pensava eu, do que tinha aprendido. A Poesia do meu país ainda carece de acessibilidade linguística e cultural. Na comunidade Surda emerge a poesia em LGP, mas não em Português. Além disso, traduzir poesia não é uma tarefa simples. Ao ver o trabalho dos SignaPoesis, com quem colaborei e colaboro, como poeta Surdo, redescubro sempre Pessoa.

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Este livro permite à comunidade Surda adentrar-se na imensi dão que é Pessoa através da LGP; a tradução faz-se poema, faz-se narrativa rítmica. O breve estudo que precede cada uma das propostas de interpretação, permite ler Pessoa com um olhar crítico e, também de aprendiz de literatura Ao ler e ver a tradução, fundem-se duas culturas, sendo que a linguística, deve respeitar a língua de chegada, cumprindo com a marca da visualidade. Também o mundo ouvinte fica a conhecer outra língua e outra cultura que faz parte do nosso território geopolítico. O Pessoa deste livro, ainda pouco conhecido pela maioria, faz-se língua, faz-se pátria, como era desejo do poeta luso. Desejo, também, que este seja o primeiro de muitos estudos e de bastantes propostas que nos façam aprender que uma das maiores e mais universais linguagens é, sem dúvida, a literatura .

amílcar furtado

Poeta Surdo

Professor na Escola Secundária Avelar Brotero

Professor na Escola Superior de Educação de Coimbra Preview

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NOTA INTRODUTÓRIA

Sobre o projeto SignaPoesis

O projeto SignaPoesis nasce após um desafio proposto a um intérprete de Língua Gestual Portuguesa (LGP) para apresentar uma tradaptação do poema Nevoeiro, da Mensagem de Fernando Pessoa, realizado no Instituto Politécnico de Coimbra – Escola Superior de Educação no dia da comemoração dos vinte anos da Lei 89/99 de 5 de julho, que rege as condições de acesso e o exercício da profissão de Intérprete de Língua Gestual Portuguesa. Dois amantes da poesia juntam-se para tradaptar poesia para LGP, pois sendo uma literatura que é ensinada nas escolas, os alunos surdos não têm acesso à poesia da cultura ouvinte na sua língua. Este foi o propósito deste projeto: tradaptar poemas, gravar e disponibilizar no canal do Youtube SignaPoesis para que viesse a ser um material no ensino da poesia a alunos surdos.

No entanto, e tratando-se de um empreendimento sem apoio financeiro, acabou por se difundir num projeto que faz apresen tações e leituras performativas bilingues de poesia encenada, não tendo colocado de parte o seu objetivo e foco inicial.

Estas apresentações têm sido realizadas no Centro Cultural Penedo da Saudade em datas comemorativas e alusivas da comunidade surda portuguesa ou do Português. Algumas delas podem ser Preview

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(re)vistas na página do Facebook do Centro Cultural. As escolhas poéticas para estas leituras têm vindo a incidir na poesia homónima e heterónima de Pessoa, tendo originado um ciclo de apresentações intitulado Descobrir Pessoa, onde os autores em cada exibição apresentam um heterónimo diferente da poesia pessoana, pois muitos de nós focam-se apenas na heteronímia de Pessoa como Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, esquecendo outros heterónimos.

As duas propostas incluídas nestes capítulos que compõem este volume partem de dois textos apresentados neste ciclo de apre sentações. O texto A Carta da Corcunda ao Serralheiro, assinada por Maria José, o único heterónimo feminino de Fernando Pessoa, conhecido até hoje, deu início a esse ciclo. Foi esse, aliás, o motivo principal pelo qual optamos por abrir esta etapa à descoberta de Pessoa .

O seguinte, Lisbon Revisited do heterónimo Álvaro de Campos constitui a segunda tradaptação capaz de levar o universo hetero nímico pessoano até um público surdo. Como se depreende, estas leituras têm sempre uma forte componente performance, como é possível observar nos vídeos das apresentações realizadas até ao momento.

Contudo, este projeto não se tem limitado à literatura de Pessoa. Numa outra apresentação intitulada Poesis, em 2020, no Cen tro Cultural do Instituto Politécnico de Coimbra, para assinalar no Dia Nacional da LGP, 15 de novembro, foi produzida uma leitura mais formal de dois sonetos, Erros Meus e Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades de Luís Vaz de Camões. De igual modo, foi mostrado um poema intitulado Multidão escrito pelo poeta surdo Amílcar Furtado especialmente para este dia, tendo sido realizada Preview

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a tradaptação de LGP para Português escrito. Esta exibição também pode ser vista on-line . Assim, ambas as sugestões que aqui se descobrem constituem formas possíveis, e nunca exclusivas, de fazer transitar entre duas línguas o excecional, complexo e desafiante mundo poético de Fernando Pessoa. Esta tarefa está longe de estar terminada, pois cada texto nos impõe e reclama novas formas de o lermos, vermos e interpretarmos .

Escola Superior de Educação

Instituto Politécnico de Coimbra, junho de 2022

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CAPÍTULO I

A Carta da Corcunda para o Serralheiro: “uma boneca com os ossos às avessas” Preview

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1. Maria José, um heterónimo (mais) silencioso

Consabidamente, a produção literária de Fernando Pessoa constitui um complexo poliédrico de imagens espelhadas, refrações de diferentes pessoas, olhares, personalidades e almas que permitem um prolífico desdobramento heteronímico de proporções singulares no panorama literário português. Mais do que rostos ou de más caras, o que o poeta nos oferece são novas identidades. Como refere a vasta crítica pessoana existente, a heteronímia de Pessoa não se circunscreve aos três heterónimos mais (re) conhecidos. Ela desdobra-se também numa cornucópia de outros geralmente considerados “menores” ou os “semi-heterónimos”, os “sub-heterónimos”, ou “personalidade literária”, de entre outras designações.

A tríade principal de rostos pessoanos exibe uma distinta, mas ainda assim comum, complexidade. No texto quase programático sobre a génese dos heterónimos, a célebre carta a Adolfo Casais Monteiro de 1935, Pessoa não distingue entre essas personalida des e não reserva o termo “heterónimos” a Caeiro, Reis e Campos. Nesse trecho, Pessoa persiste na ideia de que os heterónimos não são seus . Segundo Pessoa, eles apareceram-lhe.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me Preview

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parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria. (Quadros, 1986, p. 227)

Ora, de entre tantas que nos deixou e que ainda hoje habitam as nossas melhores páginas de literatura, destacamos uma figura feminina, uma mulher corcunda que, presa no seu corpo deforme, se revela incapaz de despertar o amor de alguém. Esta jovem de 19 anos é, aparentemente, o único heterónimo feminino das máscaras pessoanas e um quase estranho desconhecido. Esta revelação heteronímica veio até nós pela mão de Teresa Rita Lopes, em Pessoa por conhecer I e II (1990) .

O texto aparenta uma inspiração nos modelos canónicos da tra dição epistolar amorosa, e traduz-se numa invocação pungente, sob a patética forma de uma carta de amor. Como refere Lopes (1990, p. 142), “A comiseração de pessoa por si próprio vai atingir o seu mais alto grau e a sua expressão mais despersonalizada no monólogo duma Maria José, que incarna de forma extrema, metaforicamente, o ser aleijado, aborto do destino (...).” Para a insigne investigadora, “Maria José é a voz feminina que, como tal, mais longamente se faz ouvir no universo pessoano. É a metáfora de uma “alma à janela”, como a do monólogo em situação incluído no Livro do Desassossego mas que é muito mais do que a página escrita de um diário (...).” (Lopes, 1990, p. 142)

De facto, “se a nossa vida fosse um eterno estar à janela, se assim ficássemos, como um fumo parado, sempre, tendo sempre Preview

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A Carta da Corcunda para o Serralheiro: “ uma boneca com os ossos às avessas ” o mesmo momento de crepúsculo dolorindo a curva dos montes.” (Quadros, 1986, Vol. I, p. 312)

A voz feminina que se ouve neste pranto é a da jovem corcunda e tuberculosa, que sabe que o seu amor jamais será correspondido. Ele é fruto apenas de uma contemplação passiva, “Senhor António: O senhor nunca há-de ver esta carta. Nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba [...]” (Pessoa, 1990, p. 256). Talvez o único motivo que a prenda à vida seja esta figura masculina do serra lheiro, uma corporal sombra chinesa que atravessa a seus olhos todos os dias.

Ora, esta peculiar fisionomia feminina capta o mundo de um lugar outro, da sua janela, e nesse observar há um secreto desejo de ela própria se transmutar em outra forma. A jovem, figura já de alma e corpo precocemente corcovado, é assolada não só por uma deformação física como por uma outra de etiologia menos corpórea: uma paixão ascética pelo Sr. António, esse serralheiro que todos os dias passa sob a sua janela. Não tendo a ousadia ou a coragem para lhe falar, dado o seu estado e a forma de se olhar e sentir, decide escrever-lhe uma carta onde lhe confessa o seu mais puro e ingénuo amor.

Esta carta nunca chegará a ser enviada. Curiosamente (ou não), este é o único texto escrito por esta voz e marcada por este rosto. Único e irrepetível na multímoda e copiosa produção pessoana, este curto texto é, na opinião de Lopes (Lopes, 1990, p. 143), uma possibilidade de um autorretrato mais acabado de uma grande alma que, afinal, se sentia “ninguém”.

A comiseração de Pessoa por si próprio vai atingir o seu mais alto grau e a sua expressão mais despersonalizada no monólogo de Preview

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uma Maria José que incarna de forma extrema, metaforicamente, o ser aleijado, aborto do destino, que se vê ser n´A Carta da Cor cunda para o Serralheiro . Este monólogo inspirado nos modelos canónicos da tradição epistolar amorosa é um ato enunciativo em que se exprime um amor que jamais será correspondido; é uma via de sentido único de um coração que procura a catarse pelas palavras e pela assunção íntima de uma afeição e de um frémito sem eco nem retorno. Por todas as razões, a voz plangente de Maria José é o clamor feminino que mais ressoa na obra pessoana. Esta carta de despedida personifica nesta figura feminina um dos temas caros ao poeta: o lamento excruciante de não existir, e a iminência de deixar de ser .

O senhor nunca há de ver esta carta. Nem eu a hei de ver pela segunda vez, porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe, ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo. (Lopes, 1990, p. 256)

Note-se que este bilhete assume alguns contornos de assinalável interesse, nomeadamente a forma vacilante como se desenvolve; entre a impossibilidade de um amor à janela, e um breve encontro de olhares, prenúncio de um não-futuro, mas apenas de um laivo fugaz de uma felicidade impossível:

Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar. (Lopes, 1990, p. 257)

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A Carta da Corcunda para o Serralheiro: “ uma boneca com os ossos às avessas ”

O que parece sempre transparecer é o apelo tentador da morte, o chamamento da aniquilação, temas tão dentro da esfera pessoana. É por isso que nesta voz feminina, disforme e desprotegida, se torna inteligível o desejo:

Eu, às vezes, dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria... (Lopes, 1990, p. 257)

Ora, porque todas as cartas de amor são ridículas, esta não poderia constituir uma exceção. Esta epístola não tem um destinatário físico; ela é apenas uma corrente de pensamento, que incomoda como andar à chuva .

Adeus, senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a ti. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir, porque eu sei que não posso esperar mais. (Lopes, 1990, p. 258)

1.2. Maria José: um espelho de um eu pessoano?

Assim, esta carta tão singular parece condensar em si múltiplos aspetos da estética pessoana, e de forma muito óbvia revela mui tos dos fragmentos temáticos que são característicos da sua poesia. Um deles refere-se à permanente angústia. Maria José crê-se semePreview

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lhante “um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.” (Lopes, 1990, p. 257)

Na verdade, esta angústia e melancolia exacerbadas estão de mãos dadas com a solidão de quem passa “todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe”; “é triste ser marreca e viver sempre só à janela.” (p. 257); “é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor...”; ou do fastidioso tédio de existir, “E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela.” (Lopes, 1990, p. 257)

Estes sentimentos aglomeram-se de modo muito indistinto, con figurando uma desconstrução integral de toda e qualquer esperança, para além de marcar a opressão de existir apenas ali, à janela do mundo, como se patenteia, nas palavras: “Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber tudo,” ou “Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim ...”; “Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez...”. (p. 256) Maria José é, de facto, uma identidade fragmentada, uma mulher que não se sabe e sente completa: “(...) eu não sou mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela (...)”. (Lopes, 1990, p. 258)

É, ainda, uma figura que não se aceita quando acentua que “Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente...uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.” (p. 256)

É por este caleidoscópio de razões que o desespero é a clave de todo esta missiva confessional, uma epístola a si própria, num Preview

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A Carta da Corcunda para o Serralheiro: “ uma boneca com os ossos às avessas ”

monólogo em que todas as verdades se assumem como possíveis, e sobretudo a da própria morte. Não se estranhe, pois, que todo o tom doído desta epístola termine com a descrição dilaceradora de Maria José que se sente ninguém, e saúda ou despede-se desta silhueta masculina sabendo que ela jamais perceberá a sua existência. Esta compaixão, presente em outros heterónimos masculinos, é também uma marca pessoana, um eixo longitudinal na sua poética; ser nada nem ninguém, um apagamento de identidade. Mas não se confunda esta figura com o autor que a cunhou. Como refere Vila Maior (2002, p. 132),

Entretanto, não se confunda o eu que aqui se lamenta com o cidadão Fernando António Nogueira Pessoa. É conhecida a única relação amo rosa que teve Fernando Pessoa, com Ofélia Queirós (ligação onde, aliás, não raras vezes se insinuou o fingimento e a simulação). É igualmente conhecida a presença (e a ausência) do sentimento amoroso na obra do poeta português – uma obra onde com frequência Pessoa empresta à vivência amorosa atributos de essencialidade. No entanto, Maria José é um outro eu de Pessoa – o mesmo Pessoa que, em registo pseudonímico, assinou outros textos com dezenas de outros nomes, o mesmo Pessoa que criou os heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Neste sentido, e porque de alguma forma encerra a noção de disfarce, podemos então considerar A Carta da Corcunda para o Serralheiro num outro plano teórico: o que diz respeito, directamente, à noção de alteridade estético-literária e, indirectamente, à noção de pluridiscursividade.

Também Lopes (1990, p. 145) considera que esta figura feminina é uma parte pessoana, “por mais estranho que pareça”, mas

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