Por século e meio

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Alberto Branquinho

OUTRAS OBRAS DO AUTOR: PROSA - CAMBANÇA – Guiné: morte e vida em maré baixa

Alberto Branquinho O AUTOR É natural do denominado “Douro Superior”. Esteve na guerra colonial, na Guiné. Tem publicações sobre esse tema em blogues e em livros.

- Contos com encontros

Terminado o serviço militar, voltou a Coimbra.

- Parições & aparições

Vive em Lisboa desde 1970.

Por século e meio

- Cambança final – Guiné/guerra colonial - Filhos d’outrem ou d’algures - Por século e meio C

- Sótão, rés-do-chão e outras vidas

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- Deixem a guerra em paz

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POESIA - Sobre Vivências - Quasoutono?!

www.sitiodolivro.pt

Depois de várias andanças e cambanças, acabou sendo advogado, envolvido em relações e contratos internacionais.

Romance

Por século e meio 2.ª edição

Andanças de uma família em terras do Douro de meados de oitocentos até ao início do século XXI.

Publicou romance, novela, livros de contos e poesia.



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POR SÉCULO E MEIO


título: Por

século e meio Branquinho edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) imagem de capa:

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autor: Alberto

Pixabay Ângela Espinha paginação: Paulo Resende capa:

2.ª edição Lisboa, dezembro 2021 isbn:

978­‑989-8986-53-5 490819/21

depósito legal:

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© Alberto Branquinho

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.

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Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao seu autor, a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. publicação e comercialização :

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500 NOTA: Por opção do autor, este livro foi escrito em desacordo com a ortografia aprovada em 1990 e ratificada em 2008.


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ALBERTO BRANQUINHO

POR SÉCULO E MEIO

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ROMANCE

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2.ª EDIÇÃO (REVISTA)


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Por terras do Douro desde meados de Oitocentos até ao início do século XXI.


ie w OBRAS DO AUTOR

Prosa:

– CAMBANÇA - Guiné /morte e vida em maré baixa – CONTOS COM ENCONTROS – PARIÇÕES & APARIÇÔES

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– CAMBANÇA FINAL - Guiné (guerra colonial) – FILHOS D’OUTREM OU D’ALGURES – POR SÉCULO e MEIO

– SÓTÃO, RÉS-do-CHÃO e OUTRAS VIDAS – DEIXEM A GUERRA EM PAZ – Guerra colonial/Guiné

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Poesia:

–  SOBRE VIVÊNCIAS

(identificado como Alberto Abrunhosa)

– QUASOUTONO?!


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I.  MEADOS de OITOCENTOS

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O homem, de avançada idade, estava sentado num banco junto à casa. Colocou a bengala tosca entre as pernas e baixou a aba do chapéu para cortar o sol poente, que lhe causava incómodo. Observava o neto que chegava da vinha, a arrumar a carroça ao lado do telheiro e a desatrelar os machos. Ele acenou para o avô, que lhe correspondeu. (– O rapaz é desembaraçado. Graças a Deus que a minha Adelina arranjou um bom homem que não se importou de ela já ter um filho de outro. E trata o rapaz como se fosse filho, sem fazer diferenças dos outros dois, os dele.) Suspirou. (– As guerras ‘inté já tinham acabado há tanto tempo, p’ró que é que aquela gente ‘inda andava naquelas vidas?) Mudou de posição no banco, mudou a posição do chapéu, tentou afastar as recordações, mas não conseguiu. Não sentia remorsos, era… era… nem sabia bem o quê. Pior era nos sonhos, que o atormentavam de vez em quando.

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Anoitecia. Regressava a casa. Ele e os dois filhos. Vinha à frente, trazendo o macho pela rédea e os filhos lá mais atrás, quando viu ao longe, no monte em frente, três cavaleiros, a passo, que vinham na direcção da casa. Porque estavam na penumbra do poente, os cavaleiros não os tinham visto. Estavam em terreno mais elevado, mas tinham o sol a bater-lhes nos olhos. – Vós dois, agachai-vos! E ide-vos de volta, com cuidado. Escondei-vos. Evitava, assim, que fossem arrebanhados para as guerras que ainda havia, apesar de, há muito, ter sido assinada a Convenção de Évora-Monte. O pai continuou a caminho de casa. Foi descarregar o macho. Estava a meio do trabalho quando chegaram os outros, que pararam a alguma distância. Adiantou-se um, que montava um bonito cavalo. – Ó da casa! Tirou o chapéu, observou-os, mais as armas que traziam. – Sim, meu senhor. – Quem tens na casa contigo? – Despois da morte da minha mulher, que Deus tenha e despois que me levaram o filho para as guerras que aí vão, sou só eu e a filha, que é quem me vale. – Chama lá a tua filha. – Ó Adelina, anda cá fora que estão aqui estes senhores. A rapariga apareceu à porta, limpando as mãos ao avental. – É bem… bem apessoada, sim senhor. – É quem me tem valido despois da morte... – Dás-nos gasalho por esta noute? 10


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Perguntou, enquanto desmontava, mantendo-se os outros dois a alguma distância, montados e de armas empunhadas, com as coronhas apoiadas no selim. – É uma honra, meu senhor. – Olha lá! A que horas é a primeira barca amanhã para as bandas de lá? – Ao romper d’alva, meu senhor. – E há barqueiro? – Na semana passada havia. – Mostra lá onde nos podemos aboletar e dar cobertura às montadas. – Se fosse mais cedo matava um chibinho. – Deixa lá, homem. Chega o que tens na salgadeira. Tens presunto, toucinho e umas chóriças? – Sim, meu senhor. – E um bocado de pão e vinho. E… bonda. – Ora, mostra lá donde se pode lavar a cara. Retirou a arma e um saco de dentro dos alforges e entregou as rédeas do cavalo ao da casa. Os outros dois seguiram-no, sempre de armas na mão, depois de amarrarem também as suas montadas ao lado do outro cavalo e retirarem os alforges. – Adelina, põe lá na mesa pão, vinho, presunto, queijo. Tudo o que havêr. Encaminhou-os para a fonte, atrás da casa. Enquanto esperava que os três se lavassem, viu, com preocupação, o filho mais velho sair do palheiro, cosido com as sombras, entrar em casa e voltar ao palheiro, com os mesmos cuidados. Quando regressou, levava uma caçadeira. O pai encaminhou-os para dentro de casa. Ofereceu o seu próprio quarto ao chefe, o último, ao fundo do corredor. 11


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Era o quarto maior. Depois, disse aos outros que se acomodassem à sua vontade. Entraram os dois para o quarto que ficava ao lado e atiraram com os alforges para cima da cama. Sentaram-se e começaram a descalçar as botas. – Vossas senhorias estejam à vossa vontade. A casa é vossa. É tudo muito pobrezinho, mas de gente honrada. Eu vou ter com a minha Adelina para ver se há vinho que bonde. Saiu da casa com as vasilhas para o vinho, mas, disfarçadamente, levou pão, conduto e vinho que deixou à porta do palheiro. Regressou rapidamente com mais vinho para que a filha não ficasse só com os três homens, que estavam já sentados à mesa, na cozinha, com as armas em bandoleira. Observavam a moça, que ia cortando pão, presunto, queijo. O pai pousou as vasilhas com o vinho em cima da mesa e ateou o lume por baixo da chaminé. Depois, foi aos fundos, à casa da lenha, buscar mais uns gravetos e cavacas. Eles comiam e bebiam conversando, em linguagem quase cifrada. O que seria o chefe fez perguntas ao dono da casa sobre quem costumava passar por ali, se vinham armados, se eram muitos, se passavam para o outro lado do rio, se vinha gente de Espanha, se viam passar gente para Espanha. O homem respondia quase sempre que não sabia, que não saía dali, do amanho da terra e do trato da vinha, a não ser quando ia ao mercado à vila, da dificuldade em arranjar homens para o trabalho do campo. Comeram e beberam bem e demoradamente. Foi-se instalando um ambiente de mais confiança, embora sempre altaneiro da parte dos forasteiros e receoso dos da casa. – Ó homem! Tanta acelga, tanta acelga que ali tens. Para que é que queres tanta acelga? 12


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Assustou-se, receando que ele tivesse concluído ser hortaliça de mais só para duas pessoas. – Eu e a minha Adelina comemos acelga todos os dias e a toda a hora. Até mesmo à ceia. É muita boa para a tripa e para os resfriados. E para mais outras cousas. Já o meu pai e a minha mãe, que Deus tenha, faziam o mesmo. – Ó homem, o teu vinho é bom, mas está quase a acabar. Tens mais, com certeza? – Tenho sim, meu senhor. Então não havêra de ter? Vou por mais. – Tens uma boa vinha. Grande… – Não, meu senhor. É pequena. – Eu bem vi lá de cima, quando chegava. Vai até ao rio. – Parece, porque as terras lá mais p’ra diante abaixam munto p’ró lado do rio. Vou por mais vinho. Agarrou as duas vasilhas que estavam vazias e saiu. Ainda não tinha chegado à adega, quando ouviu os gritos da filha. – Não!!! Não!!! Ai!! Ai!! Acuda, meu pai! Acuda!!! Voltou para a casa, a correr. Tentou abrir a porta da casa, mas não conseguia. Estava trancada por dentro ou alguém a bloqueava. A filha continuava a gritar, quase sem fôlego ou com a voz abafada. Continuou a empurrar a porta, até que ela cedeu. À entrada estava um dos dois acompanhantes, que o empurrou para fora. Caiu. Depois disparou a arma para o ar. Pelos gritos da filha constatou que estava a ser violada. Caiu de joelhos: - Não desonrem a minha filha! Não... O indivíduo colocou-lhe um pé na cara e empurrou-o. Voltou a cair. Não conseguia falar. O choro embargava-lhe a voz. 13


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Outra vez os gritos da filha se tornaram mais audíveis. – Acuda! Acuda! Ai! Ai! Não! Não! Tentou erguer-se, mas já um outro veio de dentro da casa e deu-lhe uma sapatada num ombro, fazendo-o, de novo, cair. Empunhava a arma com uma das mãos e com a outra puxava as calças para cima. A filha tinha, agora, um choro sofrido e quase inaudível. Teve um ímpeto de raiva e atirou-se contra as pernas do que estava junto à porta. Ele pontapeou-o e disparou para o chão, mesmo ao seu lado. O pai berrava: - Filhos de puta!! Grandessíssimos filhos de puta!! Adelina surgiu, descomposta, fugindo para o escuro da noite, passando pelo pai sem o ver. A porta foi, então, fechada com força. Ela fugia pelo terreiro sem ouvir o pai, que a chamava. Quando conheceu a voz do pai, parou. Abraçaram-se e, abraçados, perderam o equilíbrio e caíram no chão, a chorar. O pai levantou-se, ajudou-a e fugiram para a adega. Tentava confortá-la. Quando entendeu que estava mais calma, levou-a para mais longe, para junto de uma árvore de grande porte. – Ficas aqui escondida só um poucachinho, que eu venho logo. – Meu pai, não me deixe aqui sozinha. Vamos fugir daqui. – Só vou falar com o Manel e o Augusto que estão além escondidos. E venho logo. Foi ao palheiro para falar com os filhos. Movimentou-se cuidadosamente e, pelo caminho, espreitou a casa. Estava tudo em silêncio, como se nada tivesse acontecido. Voltou para junto da filha, que chorava baixinho. Assustou-se com o vulto do pai. 14


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– Pai, vamos fugir daqui. – Sim. Vamos para a casa dos arrumos, que fica mais longe e tem muito onde a gente se esconda. Depois… veremos.

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A noite ia já alta. A filha dormitava e acordava em sobressaltos. O pai manteve-se acordado todo o tempo. Acordou-a e disse-lhe para se manter ali escondida e não sair a não ser que ele ou um dos irmãos a viesse buscar. Saiu e, com cuidado, encaminhou-se para o palheiro. Bateu levemente: - Sou eu. O filho mais velho, ao reconhecer o pai, baixou a caçadeira. – Manel, quantos cartuchos tens? – Seis, meu pai. Mais o que já tem. – Augusto, vamos levar uma roçadeira cada um. Das novas, que têm fio. Manel, levas a caçadeira. Mete três cartuchos no bolso e dá cá os outros três. Vamos entrar pelas traseiras, pela casinha da lenha. Despois, vemos o que se passa lá dentro, a ver se estão a dormir. Despois, entramos pela porta dos fundos. É milhor ser eu a levar a caçadeira. E vou à frente. Vós dois levais as roçadeiras. Vai o Manel atrás de mim. Deixa ver a caçadeira. Se me acontecer alguma coisa, tu tens os outros três, não te esqueças. Já está carregada? – Sim senhor, meu pai. – As roçadeiras, vá. Esperou. Os filhos voltaram. Cada um com a sua. Saíram cuidadosamente e deram uma volta larga, a caminho das traseiras da casa. O pai disse para pararem: – Vou ver como está a Adelina, que está ali escondida. 15


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Voltou. Retomaram a marcha. Lenta, com o pai à frente, colando-se às sombras, como nos tempos de militar, quando era rapaz novo. Fez-lhes sinal para esperarem. Avançou sozinho até à porta do anexo, nas traseiras da casa. Cuidadosamente correu o ferrolho de madeira. Depois, com as pontas dos dedos dentro do buraco, correu o ferrolho de dentro, que fez um pequeno ruído. Estacou, encostado à parede. Ficou à escuta. Nada do interior. Abriu a porta lentamente para evitar que chiasse. Ficou novamente à escuta. Voltou para junto dos filhos. Fez-lhes sinal para o seguirem. – Lá dentro, cuidado com os pés, não vão bulir com a lenha ou tombar alguma cousa. Entraram na casa da lenha, até ao pé da porta de ligação, no fundo do corredor. Ouvia-se alguém ressonar. O pai, novamente segurando a arma com a mão esquerda, tacteou e abriu os ferrolhos de madeira, ainda com mais cuidados. Quando a porta estava já um pouco aberta, escutou, durante cerca de um minuto, o ressonar, alternado, de dois, que dormiam profundamente. O pai espreitou e viu a suave iluminação do corredor, que vinha do braseiro através da porta da cozinha. O corredor estava vazio. Com a caçadeira apontada para a frente e dedo no gatilho, fez, lentamente, os três ou quatro metros que distavam da porta do quarto grande, onde tinha ficado o chefe. Os filhos seguiam-no. Ao chegar junto à porta do quarto, parou. A luminosidade ténue vinda da porta da cozinha, denunciava a presença deles no corredor. Escutou o ressonar profundo e espaçado que vinha de dentro do quarto. Então, entregou a caçadeira ao filho mais velho, trocando com a roçadeira. Fez sinal ao filho para lhe passar à frente, para se colocar para além da porta do quarto 16


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e ficar atento ao corredor. Levantou a roçadeira acima da cabeça, empurrou, cuidadosamente, com o pé direito a porta do quarto, entrou e colocou-se junto à cama. Apurou o ouvido para localizar bem a cabeça do que ressonava e desferiu um golpe nessa direcção e, logo a seguir, outro. O homem atingido produziu um “hum” bem audível no momento do primeiro golpe. Imediatamente surgiu um vulto na porta da cozinha. O filho mais velho disparou contra ele, que caiu no corredor. – Carrega-a já, Manel! – berrou-lhe o pai. O terceiro elemento do grupo disparou duas vezes de dentro do outro quarto contra o vão da porta e, depois, surgiu a correr por esse mesmo espaço, tentando alcançar a porta da rua. Foi atingido por segundo tiro da caçadeira, tropeçou no outro caído à porta da cozinha e ficou tombado contra a porta da rua, a gemer. – Carrega-a já, Manel! Ambos os atingidos com os tiros de caçadeira davam sinais de vida. O filho mais novo descarregou a raiva sobre o que estava caído à porta da cozinha, golpeando-o com a roçadeira repetidas vezes. – Já chega, Augusto! Já chega! Vai à cozinha e traz a candeia. Retiraram-lhes as armas. Quando o rapaz regressou com a candeia já acesa, ela baloiçava-lhe na mão como se estivesse a ser batida pelo vento. O pai foi ao quarto grande. O chefe tinha um golpe na cabeça e outro num ombro. Voltou ao corredor. O homem que estava caído contra a porta da rua agonizava. – Arrastem estes dois lá para fora, que eu já venho. 17


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Correu para junto da filha, que gritava desesperadamente. Abraçou-a: - Prontos, Adelina, prontos. Acabou-se. Acabou-se tudo. – Que foi aquilo, meu pai? – Acabou, acabou-se. Estão todos mortos. Os três. Vamos. Amparada ao pai, caminharam para a casa. Ao chegarem, pressentindo os dois irmãos, abraçou um, chorando. Chegou-se o outro e, abraçados, choravam. O pai olhava a cena, segurando a candeia. (– Nunca mais há paz e sossego. No tempo do meu pai foram os franceses, depois foi a guerra e agora estes filhos de puta! Nunca mais há sossego nesta terra.) Abraçou-os também e foi dizendo em voz baixa: – Vá, vamos lá! Temos que os tirar dali. Temos que os enterrar antes da aurora. Separaram-se, limpando as lágrimas. – Vá. Estes dois já cá estão fora. Temos que ir buscar o outro lá dentro, Manel. Esse tem que vir em cima do colchão. – Do colchão, meu pai? – Sim, o colchão deve ter a palha cheia de sangue. Vamos lá ver. Augusto, tu vais levar as cavalgaduras deles até ao pé do rio. Mas bem p’ra lá. Longe. E vais a pé. Em chegando lá, soltas os três, separados, um para cada lado. Mas não os amarres. Percebestes? Sem os amarrares. E nunca ates as rédeas umas às outras. Sempre separadas. E se sentires alguém, largas as rédeas, soltaze-os e fuges com cuidado. Vá, vai. Manel, vamos buscar cá p’ra fora o colchão, com o morto em cima. Despois, vamos puxar os três até ao pé do curral dos porcos. Aí a terra é mais de feição. Abrimos uma cova para enterrar tudo: os mortos, alforges, armas, tudo. E tu, Adelina, quando 18


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nós sairmos com o colchão, vais limpar tudo com baldes de água e a vassoura. Antes que o sangue comece a coalhar. A rapariga deu um grito de horror. – Adelina!! Já estão mortos, prontos! Não pode ficar sangue à vista. Quando nós pudéremos, tamém vamos-te ajudar. E o Augusto também, quando vier.

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O pai e o filho mais velho abriam a cova, com os mortos e os seus pertences arrumados a alguns metros. Quase a acabarem, fizeram medições, a passo, da largura e comprimento e a altura do fundo. Chegou o filho mais novo. – Então, ficaram de ao pé do rio? – Sim, meu pai. – E cada um longe do outro? – Sim, meu pai. – Está bem. Agora vai ajudar a tua irmã.

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Quando a cova parecia ser já suficiente, tanto em larguras como em fundo, o pai disse: – Vamos. Primeiro as carabinas e as cartucheiras. – Ah meu pai, posso ficar com uns zagalotes? – Para que é que tu queres os zagalotes? Para mostrares ou para os verem? – P’ra lembrança. – Isto não é para lembrar, é para esquecer. – Atão e o dinheiro? Se tiverem dinheiro... Vasculharam os bolsos dos casacões. A carteira do chefe estava bem recheada de notas. Colocou-a ali ao pé, em cima 19


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de uma carroça. Estava já tudo bem acomodado dentro da cova, tanto os mortos como os seus pertences. O filho ia começar a enchê-la. – Espera aí. Vai lá buscar a criolina. – Criolina?! – Vamos por um bocado. Ajuda a tapar o cheiro, não venha p’raí algum bicho a cheirar, a querer desenterrá-los. O cheiro da criolina enxota-os. Depois da cova bem coberta e aplanada, espalharam palha por cima, para disfarçar. A suave luminosidade do dia que se anunciava permitia ver bem, ali ao pé, o colchão manchado de sangue. Com a enxada o pai desfazia e disfarçava os rastos de sangue deixados pelos corpos arrastados até ao pé da cova e, vendo que o filho não o ajudava: – Que estás para aí, especado, a fazer? – Atão, meu pai?! E o colchão? Fica ali? – Não. Vamos queimá-lo já. – Queimá-lo? E se alguém vê o fumo? – Nós dizemos que tivemos que o queimar porque os percevejos já eram muntos. E vamos, também, queimar a tua roupa e a minha, toda a que tiver sangre. E a da Adelina e do Augusto. Vamos ver isso quando hóver mais luz. Despois, p’rá semana, vamos à vila comprar roupa.

Fixou o horizonte do lado nascente, já com farrapos de nuvens escuras tingidas de cor avermelhada e disse: – Vamos lá ver o dinheiro e queimar o que tiver sangre. Foi à carroça buscar a carteira que era do chefe. Sentou-se a contar as notas, que eram muitas. Olhou o filho: - É assim, 20


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Manel. Depois, lá para riba, deitam as culpas todas para cima do Zé do Telhado.

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II.  FINAIS de OITOCENTOS

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Era noite. Chovia e trovejava ao longe. Os cães começaram a ladrar. De dentro de uma das casas um homem espreitou o exterior. Os cães continuavam a ladrar. Berrou: – Quem é lá? – Dá lecença qu’a gente se recolha? – Quem és tu? – Somos dois. Eu e o mê amigo, que tostegou um pé. – A esta hora?! – Estávamos a voltar do outro lado de lá do rio. – Espera aí. Saiu de caçadeira empunhada. Sossegou os cães. – Chega-te aqui ao pé. Aproximou-se um homem carregando um saco. Um outro, com outro saco, vinha amparado a ele. – Qu’é que vocês andam a fazer por aqui a uma hora destas? 23


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