Correspondência Epistolar entre o Bispo Manuel Nunes Gabriel e o Bispo Eduardo Muaca

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CORRESPONDÊNCIA

EPISTOLAR

Bispo Português

Manuel Nunes Gabriel e o

Bispo Angolano

Eduardo André Muaca (1975-1993)

Ana Luísa Silva

Carlos Alberto Alves

FICHA TÉCNICA

título: Correspondência Epistolar entre o Bispo Português Manuel Nunes

Gabriel e o Bispo Angolano Eduardo André Muaca (1975-1993)

introdução e organização: Ana Luísa Silva e Carlos Alberto Alves

edição: Edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)

revisão: Beatriz Oliveira

arranjo de capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

1.ª Edição

Lisboa, maio 2024

isbn: 978-989-9198-07-4

depósito legal: 530621/24

© Ana Luísa Silva, Carlos Alberto Alves

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

ÍNDICE

Introdução 7

Reflexões sobre Angola

Relatos de Turbulência e Resiliência

Testemunhos e Desafios de uma Época Conturbada

Diálogos e Desafios em Tempos Conturbados

Reflexões e Atualizações

Testemunho de Fé

Troca de Notícias e Preocupações

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Introdução Preview

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Este livro é o primeiro de um conjunto de publicações que estão a ser preparadas contendo o espólio do bispo missionário português Manuel Nunes Gabriel (1912-1996), o qual foi legado à diocese de Portalegre-Castelo Branco, no Seminário do Imaculado Coração de Maria, onde o bispo missionário português viveu e veio a falecer. Deste modo, fica acessível aos investigadores e ao público em geral parte da correspondência trocada entre o bispo português e o bispo angolano Eduardo André Muaca (1924-2002) no período entre 1975 e 1993. Publicam-se aqui 64 cartas e 2 telegramas da dita correspondência, das quais somente uma das cartas que o bispo angolano escreveu não se encontra datada.

A pertinência da publicação deste livro deve-se ao facto de que este tipo de fonte primária ser geralmente de difícil acesso, fornecendo informações sobre a Igreja católica angolana no pós-independência, permitindo, assim, com recurso a outras fontes documentais e orais, perceber a atuação da Igreja angolana naquela época. Ora, ficam de fora deste livro cartas e escritos que o bispo missionário escreveu e recebeu de leigos/as, de missionários/as e de bispos, que serão publicados noutro livro. Os escritos pastorais e outros documentos serão publicados em livro de forma a permitir, novamente, o acesso de investigadores e do público em geral aos discursos, saudações, cartas, exortações e notas pastorais, assim como as circulares, as provisões, os decretos, as instruções, as portarias, os comunicados, as mensagens, as entrevistas e textos publicados em revistas e jornais pelo bispo missionário português.

Num outro livro, em preparação, iremos reunir um conjunto de cartas pastorais, de mensagens, de comunicados, de circula-

res, de exortações pastorais que o bispo português escreveu com os outros bispos de Angola e S. Tomé (em 1972, por exemplo, Angola não tinha mais de 10 dioceses e apenas o bispo Eduardo

André Muaca, auxiliar da arquidiocese de Luanda, e o primeiro bispo de Benguela, bispo Armando Amaral dos Santos [19291973], eram naturais de Angola). O conjunto de cartas pastorais e outros documentos que iremos reproduzir no livro em preparação foram escritos entre 1958 e 1975, ano em que Angola, como corolário da luta dos Movimentos de Libertação de Angola e da Revolução Portuguesa, ocorrida no dia 25 de Abril de 1974, se tornou um Estado independente.

A correspondência e os telegramas reunidos neste livro, e os escritos a serem posteriormente publicados, constituem uma excelente fonte documental, que poderá ser cruzada com outras fontes documentais primárias e secundárias que se encontram noutros países e em Portugal, de modo que seja possível estudar a ação missionária católica durante o período de tempo em que D. Manuel Nunes Gabriel foi missionário em Angola, nomeadamente o seu papel como missionário em Luanda desde 1933.

D. Manuel Nunes Gabriel nasceu a 20 de dezembro de 1912 na freguesia de Fundada, concelho de Vila de Rei, distrito de Castelo Branco. Era descendente de uma família de agricultores, com sólidos princípios cristãos.

Durante a sua infância, colaborando nos trabalhos da agricultura e no rude viver do campo, adquiriu a energia e a robustez que o preparou para ser mais tarde um grande caminheiro: enquanto guardava o seu rebanho de cabras estava sempre a cantar, a dureza do trabalho parecia não o incomodar.

Sentindo-se, desde a infância, chamado ao Sacerdócio e até às Missões, entrou no seminário do Gavião com dez anos. Ali fez os cursos de Humanidades e Filosofia, terminando os estudos preparatórios no ano letivo de 1927/28. O seu nome aparece na lista dos alunos matriculados no Seminário de S. José de Alcains, no ano letivo de 1928/29. Em Cucujães, fez o 1.º ano de TeoPreview

logia, e no Seminário de S. Pedro e S. Paulo, em Portalegre, os restantes três anos.

Na adolescência, aos 14 ou 15 anos, ao ler um pequeno livro, Civilizando Angola e Congo1, teve o seu primeiro contacto com a ação religiosa e civilizadora dos Missionários do Espírito Santo em Angola.

No ano de 1932, terminou o 3.º ano de Teologia com distinção (15 valores), e, com vinte anos, terminou o curso com 16 valores (1933). Sendo apenas minorista e não podendo ordenar-se por não ter idade canónica, requereu a sua transferência para Luanda.

Foi nomeado auxiliar das Missões por Portaria a 07 de agosto de 1933, embarcou no Colonial a 14 de outubro de 1933 e chegou a Luanda a 29 de outubro do mesmo ano.

Ainda seminarista e compreendendo a necessidade de esforço e sacrifício para a formação do clero nativo, fez com que o Seminário de Luanda recuperasse a sua finalidade exclusiva, cujo plano foi sabiamente traçado pelo prelado. Foi professor de instrução primária na escola anexa ao mesmo e nas escolas das missões, onde foi muito útil o seu trabalho.

Ordenado Subdiácono em 30 de janeiro de 1934, foi em junho desse ano nomeado substituto do escrivão da Câmara Eclesiástica, notário do Tribunal e secretário-tesoureiro dos Indultos Pontifícios.

Recebeu a Ordenação Sacerdotal a 7 de julho de 1935, na Catedral de Luanda, pelo Senhor Dom Moisés Alves de Pinho, o qual teve sempre como mestre, experiente conselheiro e guia.

Em 1936 foi encarregue de acompanhar o primeiro grupo de seminaristas que iniciaram os estudos secundários, passando depois a reitor do Seminário.

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1 Correia, Joaquim Alves (1922). Civilizando Angola e Congo: os Missionários do Espírito Santo no padroado espiritual português. Braga: Tipografia Sousa Cruz.

Segundo o Dr. José Maria Félix2, “bem depressa se revelou o seu zelo extraordinário e incansável na preparação dos jovens chamados por Deus para o ideal sacerdotal”.

“Homem providencial, cheio de boa vontade e otimismo, um clérigo dinâmico e zeloso. Todos quantos passaram por este Seminário, pronunciam com respeito e piedade filial o nome de Monsenhor Nunes Gabriel”.

Não foi o único missionário natural das freguesias de Vila de Rei que esteve em Angola, país onde estiveram, entre 1860 e 1970, 11 sacerdotes do clero secular e, entre 1940 e 1970, cerca de 10 irmãs doroteias naturais das freguesias de Vila de Rei. Os padres Anastácio Luís Rosa, Alberto Domingos Barata, Júlio Patrício de Oliveira e Manuel Nunes Gabriel nasceram na freguesia da Fundada; José Caetano Farinha e Francisco José de Moura são naturais da freguesia de S. João do Peso; Joaquim de Oliveira e Moura, Pedro Lourenço Viana, Manuel do Rosário Jacinto, António da Silva Prior e Manuel Nunes Cardiga nasceram na freguesia de Vila de Rei3. As irmãs doroteias Maria Celina da Silva Viana, Maria do Rosário da Silva Viana, Ludovina da Silva, Maria Adelaide Pereira Martinho, Margarida Gaspar e Silva, Zulmira de Oliveira, Luísa Alves, Clementina Martins Pinto, Beatriz Martins Pinto e Emília Martins Pinto nasceram na freguesia de Vila de Rei4 .

Embora continuasse na direção do Seminário, por ausência do pároco efetivo da Sé, a portaria de 8 de abril de 1937 nomeava-o Vigário Ecónomo da freguesia de Nossa Senhora dos Remédios e capelão-cantor da Sé Catedral. Manteve-se no cargo até ao regresso do Pároco da Sé, ficando depois apenas com a direção do Seminário.

2 Félix, José Maria (2013). Vila de Rei e sua Gente (2.ª edição). Vila de Rei: Câmara Municipal de Vila de Rei, p. 25.

3 Félix, José Maria (1971). Vila de Rei e sua Gente, Vila Nova de Famalicão: Centro Gráfico, 1971, pp. 29-115.

4 Ibidem, pp.117-139.

A 26 de março de 1943 foi nomeado Cónego capitular da Sé de Luanda.

A ordenação de alguns dos seus alunos que acabaram os estudos fora uma consolação, mas em janeiro de 1946 essa consolação subiu de ponto quando receberam o presbiterado os dois primeiros nativos, Domingos Gaspar e Alfredo Osório, enchendo de júbilo o seu coração. Nos anos seguintes sucederam-se as ordenações dos seus alunos a um ritmo regular.

A 8 de abril de 1946, passou a teologal e a chantre, por Rescrito da Dataria Apostólica, em 3 de fevereiro de 1948.

Foi Promotor da Justiça, Defensor do Vínculo e, posteriormente, oficial da Cúria, desde 1948 Chanceler da Arquidiocese de Luanda.

Desde a morte do Mons. Alves da Cunha, exerceu as funções de Governador da Arquidiocese, na ausência do Exmo. Prelado, entre 1947 e 1953

Desde 1947 e durante 10 anos, foi Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Luanda e do Asilo D. Pedro V.

Em 1950, de novo em gozo de licença graciosa, acompanhou o Sr. Arcebispo, D. Moisés Alves de Pinho, na sua visita ad Sacra Limina. Por essa ocasião, passou dois meses no Seminário de Issy, nos arredores de Paris, com os Padres Sulpicianos, que se dedicam especialmente à direção de Seminários e formação de sacerdotes.

Por Rescrito da Santa Sé, a 12 de maio de 1950, foi nomeado Camareiro Secreto de Sua Santidade Pio XII, com o título de Monsenhor. Regressou a Luanda a 1 de março de 1951 e reassumiu as funções de Reitor do Seminário.

Foi Vogal do Conselho Legislativo da Província de Angola, de 1955 a 1963.

Em abril de 1956 esteve em Nova Lisboa, na reunião dos Representantes dos Prelados de Angola com o Diretor Geral do Ensino no Ministério do Ultramar, Dr. Braga Paixão.

Pela Bula de 5 de dezembro de 1957, o Sumo Pontífice Pio XII nomeia-o Bispo, Monsenhor Manuel Nunes Gabriel, de entre o clero de Luanda, onde era cónego e reitor do Seminário.

Recebeu a ordenação episcopal na Sé de Luanda a 21 do mesmo mês, cerimónia a que presidiu D. Fernando Cento, Núncio Apostólico em Portugal, em visita a Angola, sendo con-consagrantes D. Moisés Alves de Pinho, Arcebispo de Luanda, e D. Daniel Gomes Junqueira, Bispo de Nova Lisboa. À cerimónia assistiram uma representação de Malanje, o Governador-Geral de Angola e os Governadores dos distritos de Malanje e Luanda.

A Bula Inter Sollicitudines foi executada pelo Núncio Apostólico em Portugal, a 11 de fevereiro de 1958, e a 22 tomou posse da diocese por seu procurador, Padre Angelino de Oliveira Guimarães.

No dia seguinte e momentos antes de embarcar no avião, emitiu uma saudação de despedida da cidade de Luanda aos microfones da Emissora Oficial. Nessa saudação despediu-se da cidade onde viveu 24 anos e que considerava como segunda terra natal.

A 13 de fevereiro de 1962, por Bula, D. Manuel Nunes Gabriel foi transferido para Arcebispo titular de Metimna e Preview

A 30 de abril de 1961, em Malanje, na cerimónia de adoração ao Santíssimo Sacramento, D. Manuel condenou a onda de violência a que se vinha assistindo e exortou a todos que se aplanassem os caminhos da paz. No final da cerimónia, descalço, partiu da capela do Bispado com o Santíssimo Sacramento na mão até ao quartel Militar de Malanje. Tinha-se apercebido da condenação à morte de muitos malanjinos inocentes retidos nesse quartel. Durante o deflagrar do terrorismo e da repressão do mesmo, assistiu e lamentou muitos dos excessos cometidos, vindos de diferentes lados, e contra eles protestou. Inevitavelmente sofreu na pele as consequências destes acontecimentos, recebendo cartas anónimas, cheias dos mais baixos insultos e de ameaças. Não lhes ligou importância, na certeza de que os ânimos acabariam por acalmar e tudo passaria.

Quando muitas pessoas viam terroristas em toda a parte, procurou ir a quase todos os pontos da Diocese de Malanje, tendo em vista, nestas viagens, por vezes nada cómodas, levar a todos um testemunho de confiança, de caridade e de esquecimento pelas ofensas passadas, cometidas de parte a parte.

nomeado Coadjutor, com a futura sucessão de D. Moisés Alves de Pinho, Arcebispo de Luanda. Tomou posse a 2 de junho seguinte, ficando ainda também Administrador Apostólico da Diocese de Malanje até à tomada de posse do seu sucessor, em 9 de março de 1963 . Nesse ano participou na assembleia de dirigentes dos Organismos Juvenis da Ação Católica Portuguesa, no colégio de S. José de Cluny, e nela proferiu um discurso onde examinou alguns dos problemas e fatores que exerciam influência na juventude de Angola e de Moçambique.

A primeira visita que realizou à Vila de Maquela Zombo foi em agosto de 1962. Durante a celebração eucarística, em que administrou o Santo Crisma a várias crianças, lamentou os acontecimentos que enlutaram a Província e lembrou a todos a necessidade de contribuírem para a paz, pela prática da justiça e da caridade. No dia seguinte realizou uma romagem ao cemitério de Maquela, a qual decorreu num ambiente de respeito e religiosidade.

Sentindo a necessidade de confortar as populações recém-chegadas do Congo ex-Belga, para se refugiarem das barbaridades do terrorismo, visitou Beu e Cuilo Futa, alterando assim o programa da visita.

A 17 de novembro de 1966, D. Manuel Nunes Gabriel sucedeu a D. Moisés Alves de Pinho, quando o Sumo Pontífice aceitou a resignação deste. Na mesma data, foi nomeado administrador apostólico de S. Tomé, ad nutum Sanctae Sedis . Entre 1967 e 1975, foi presidente da Conferência Episcopal de Angola. Em representação de todo o episcopado de Angola, participou nos seguintes eventos:

1.º Sínodo Episcopal celebrado em Roma, de 29 de setembro a 29 de outubro de 1967. Os temas tratados foram: a reforma do Código de Direito Canónico; o ateísmo hodierno; os seminários; os matrimónios mistos e a liturgia; Preview

Sínodo Episcopal Extraordinário, de 11 a 26 de outubro de 1969, no qual se tratou o tema: a função apostólica e pastoral dos bispos;

Sínodo dos Bispos, realizado no outono de 1971, onde foram abordados os temas do sacerdócio e da justiça.

Em fevereiro de 1975, deslocou-se a Roma, onde foi recebido pelo Santo Padre ao qual solicitou a nomeação de um Coadjutor com direito a futura sucessão para a Arquidiocese de Luanda, solicitando ainda que o mesmo fosse africano. Pedido esse que foi aceite pela Santa Sé, tendo a escolha recaído sobre Dom Eduardo Muaca.

Estando à porta dos 63 anos e com 42 de permanência em Angola, D. Manuel considerou ter chegado o momento de passar a ombros mais fortes a cruz do episcopado e a mãos mais jovens de um bispo africano o básculo pastoral da Arquidiocese de Luanda, que era também a Igreja metropolitana de Angola. Essa decisão já vinha sendo pedida desde os 60 anos. Tencionava passar alguns meses de férias na sua terra natal, longe do bulício dos grandes centros, dos tiros que estava habituado a ouvir quase diariamente e das preocupações do governo diocesano. Regressou a Portugal em 28 de novembro de 1975 e, para não esquecer Angola, trouxe consigo abundante documentação. A 20 do mês seguinte o Sumo Pontífice aceitou-lhe a resignação que havia solicitado, passando o governo da Arquidiocese de Luanda a ser exercido por D. Eduardo André Muaca.

Recolhido na sua terra natal – Fundada –, a atividade que o ocupou durante os primeiros anos foi sobretudo a oração de cariz contemplativo, a convivência com os familiares e os habitantes da aldeia e, sobretudo, a escrita da História da Igreja em Angola. Posteriormente, quis ser acolhido no Seminário diocesano, em Portalegre, onde ainda viviam alguns Seminaristas, uma Comunidade de Irmãs da Congregação da Divina Providência e da Sagrada Família, e um bom grupo de Padres da Diocese. Aí continuou ativo ao serviço da Igreja, da Igreja em Angola e da Igreja da Diocese: tanto substituía o Bispo na ação pastoral

específica de Bispo, como substituía os párocos que solicitassem a sua colaboração. A pregação fez sempre parte deste seu serviço e sentido missionário.

A Igreja em Angola – o seu povo, os seus Catequistas, as suas Religiosas e Religiosos, os seus Bispos e Padres, as suas Instituições – marcava o ritmo do seu coração: com ela se alegrava, com ela sofria, por ela trabalhava quanto lhe era possível em Portugal. Mas nunca se adaptou a esta realidade muito diferente da que viveu desde novo em Angola. Passados alguns anos ofereceu-se para regressar a Angola e ficar como simples capelão do Hospital Maria Pia (hoje Josina Machel). Vivia no antigo Carmelo então ao cuidado das Irmãs do SS. Salvador que trabalhavam nesse hospital e recebiam missionários do interior de Angola que vinham a Luanda. Daí assistia os doentes. Ia e vinha a pé duas vezes por dia: de manhã e de tarde. Para além do conforto espiritual, ainda repartia com os doentes mais abandonados parte do seu magro sustento. Comunicava às irmãs os casos mais complicados para que elas, juntamente com o corpo clínico, pudessem dar resposta a esses casos graves. Dedicava também algum tempo a orientar retiros às irmãs que o solicitavam. Aí viveu alguns anos em total escondimento e dedicação. Apenas ia fazer alguns crismas na ausência ou impedimento do Arcebispo de Luanda, sempre a seu pedido.

Teve que regressar já tomado pela doença e com idade avançada. Mas a sua vontade era ficar para aí morrer.

No dia 20 de outubro de 1996, Dia Mundial das Missões, enquanto jantava com sacerdotes, no Seminário de Portalegre, a sua morte inesperada surgiu à mesa.

No dia seguinte, realizou-se uma missa de corpo presente, na Sé Catedral de Portalegre, presidida por D. Augusto César e concelebrada por cerca de trinta sacerdotes.

Na homilia, D. Augusto César salientou as qualidades e virtudes de D. Manuel, a sua simplicidade, humildade, disponibilidade e o seu espírito superior e brilhante.

No dia vinte e três, realizaram-se as celebrações fúnebres, na sua aldeia da Fundada, sendo sepultado na campa da família, como era seu desejo.

Estiveram presentes na celebração eucarística catorze bispos, três dos quais de Angola (Cardeal Alexandre do Nascimento, D. Fernando Kevano e D. Eduardo Muaca), setenta sacerdotes, entre eles de várias ordens religiosas missionárias, muitas outras religiosas e um grande número de cristãos, sobretudo da paróquia e do concelho.

D. André Muaca, arcebispo emérito de Luanda, na homilia evidenciou a figura ímpar, para Portugal e, sobretudo, para Angola, de um homem, um sacerdote, um bispo extraordinariamente bom5. Como missionário deixou marcas na Igreja de África e especialmente em Angola.

Os seus restos mortais seriam posteriormente trasladados para Malanje em 2013. Ano da Fé promulgado por Bento XVI, a Arquidiocese de Malanje celebrou o Centenário da Missão Católica do Espírito Santo dos Bângalas, fundada pelos Missionários da Congregação do Espírito Santo em 1913, a partir de Malanje.

No dia 21 de novembro de 2013, chegaram a Luanda os seus restos mortais. No dia 27, fiéis da Arquidiocese de Luanda realizaram uma homenagem na Igreja dos Remédios, presidida pelo Arcebispo de Luanda, D. Damião. Segundo o mesmo, “D. Manuel foi um homem que se revestia de uma força física em prol do bem-estar”, “veio ao mundo não apenas como peregrino, mas como alguém que quis traduzir o sentido da sua vida pelo amor”6 .

5 Recorte de Jornal Reconquista (1996). Faleceu Arcebispo Emérito de Luanda – D. Manuel Nunes Gabriel.

6 Carvalho, Vanda (2013). Restos mortais de Dom Manuel Nunes já se encontram na catedral de Malanje. Consultado a 15/10/2023. Disponível em http://www.radioecclesia.org/index.php?option=com_flexicontent&view=items&cid=248:movimientos&id=13797:restos-mortais-de-dom-manuel-nunes-ja-se-encontram-na-catedral-demalanje&Itemid=746#.U_iBifmwLX0.

Nos dois dias seguintes realizaram-se as homenagens em Malanje.

Durante uma missa celebrada pelo Arcebispo da Arquidiocese de Malanje, D. Benedito Roberto, o prelado venerou e glorificou na sua homilia a figura e a alma de D. Manuel Nunes Gabriel, pedindo aos crentes no sentido de persistirem na salvação de almas perdidas no mundo.

Para o arcebispo, recompensar e seguir o exemplo do primeiro Bispo de Malanje devia ser modelo para todos os católicos, no sentido de unificarem e contribuírem para o desenvolvimento da nação e usufruir da vida próspera concedida por Deus, todo-poderoso.

No dia 30 do mesmo mês, na Catedral de Malanje, por ele restaurada, celebrou-se a missa de sepultamento, presidida pelo Arcebispo do Saurimo, D. Manuel Imbamba, ficando sepultado num túmulo do lado direito do altar central da Igreja da Sé Catedral de Malanje.

A cerimónia foi testemunhada por milhares de fiéis católicos, em que estiveram presentes o Governador Provincial Norberto dos Santos, o presidente do Tribunal de Contas Julião António, outros membros do governo e população em geral.

O Governador Provincial Norberto dos Santos, no final da celebração referiu: “É uma data histórica e que prestigia a população de Malanje, pelo facto de os restos mortais do primeiro bispo católico de Malanje estarem a repousar nesta igreja”7. Destacou a sua figura, pela defesa daqueles angolanos que lutaram contra os colonialistas portugueses, pela conquista da independência de Angola em novembro de 1975.

7 ANGOP (2013b). Malanje: Sepultamento de Dom Manuel Nunes Gabriel considerado histórico. Consultado a 15/10/2023. Disponível em http://www. portalangop.co.ao/angola/pt_pt/noticias/sociedade/2013/11/49/Malanje-Sepultamento-Dom-Manuel-Nunes-Gabriel-considerado-historico,6fe1246d-57c7-40e0-af62-db63806d5b33.html.

“A Arquidiocese de Malanje sente-se agradecida a Deus por ter podido trazer para junto dos seus, e dos angolanos em geral, uma relíquia da fé em Cristo e da cultura histórica de Angola, que muito vai ainda dar aos estudiosos da História de Angola e da África.

Que, junto de Deus, D. Manuel guarde a sua primeira Diocese, hoje Arquidiocese de Malanje, e também Angola no seu todo”8 . O bispo angolano Eduardo André Muaca nasceu em Cabinda, aldeia de S. Miguel, missão católica do Lucula. Com seis anos de idade, em 1930, ficou órfão de pai (Gervásio Muaca) e de mãe (Isabel M´Paci). Esta, no leito da morte, pediu ao superior da missão católica do Lucula, padre alsaciano Henrique Gross (missionário espiritano falecido em 1967, já idoso), que cuidasse do seu filho. Este foi acolhido na missão católica pelo padre Gross, tendo sido enviado alguns anos mais tarde para o Seminário de Malanje, de onde passou para o Seminário de Luanda, onde concluiu os estudos de Filosofia e de Teologia, sendo reitor na altura o padre português Manuel Nunes Gabriel, que foi seu professor entre 1945 e 1953. Nesse ano, a 18 de janeiro, com 28 anos, Eduardo André Muaca foi ordenado sacerdote, tornando-se professor no Seminário de Luanda até 1959, altura em que foi enviado para a missão do Maiombe, em Cabinda.

Em 1961, ano em que alguns cristãos e seus ministros (entre os quais o cónego Manuel das Neves e outros sacerdotes angolanos) foram presos por razões políticas e exilados para Portugal, o padre Muaca, com 37 anos de idade, foi transferido para Luanda e nomeado cónego capitular de Luanda, onde foi assistente provincial da Mocidade Portuguesa e professor de Moral e Religião no Liceu Paulo Dias de Novais; em 1964 e 1966 foi vice-reitor

8 Silva, A. (2017). D. Manuel Nunes Gabriel – Uma Vida Cheia de Doação e Simplicidade. Lisboa: Roma Editora. p. 141.

do Seminário de Luanda, e no ano letivo 1964/1965, o padre Muaca foi reitor do Seminário de Luanda.

Em carta datada de 2 de outubro de 1965, o padre Muaca escreveu ao Dr. Gustavo Neto de Miranda, Presidente da União Nacional, em Angola, apresentando as razões pelas quais declinava o convite endereçado pela União Nacional para apresentar a sua candidatura a deputado pelo círculo eleitoral de Angola: “Sei que a maioria dos sacerdotes que aceitaram funções meramente civis ou de carácter político acabaram por abandonar a Igreja e o serviço das almas”.9 A carta de onde retirámos estas palavras será reproduzida na íntegra noutro livro que disponibilizará a correspondência enviada e recebida pelo bispo missionário Manuel Nunes Gabriel. Em 1966, ano em que completou 42 anos de idade, o padre Muaca foi enviado para Roma para estudar Filosofia, na Universidade Gregoriana, e diplomar-se em Teologia Pastoral pelo Instituto Leão XIII, em Madrid. No ano em que completou 46 anos de idade, em 1970, o padre Muaca foi nomeado bispo auxiliar de Luanda pelo Papa Paulo VI que, no dia 1 de julho daquele ano, veio a receber em Roma os líderes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Agostinho Neto, da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), Marcelino dos Santos, e do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Amílcar Cabral, que participaram na capital italiana na conferência de solidariedade com os povos das colónias portuguesas. O padre Muaca tornava-se, na realidade, o primeiro sacerdote negro do clero secular da ex-colónia de Angola a ser sagrado bispo. Na cerimónia, realizada no dia 31 de maio de 1970, na Igreja de S. Paulo, em Luanda, D. Manuel Nunes Gabriel, Arcebispo de Luanda após a resignação de D. Moisés Alves de Pinho, em 1966, proferiu as seguintes palavras: “A vetusta diocese do Congo, de

9 Arquivo Histórico Ultramarino. Ministério do Ultramar; Gab. do Ministro; Processo A/10/3 (5), Mg 2.33.03/007.00248.

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