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A CEGONHA
título: A
Cegonha Énio edição: Edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro)
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autor: Osvaldo
Catarina Resende Ângela Espinha paginação: Paulo Resende imagem de capa: capa:
1.ª edição Lisboa, julho 2020 isbn:
978‑989-8867-96-4 470347/20
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depósito legal:
© Osvaldo Énio
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Nota: Por opção do autor, a obra não foi redigida segundo o Acordo Ortográfico de 1990.
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A CEGONHA
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ew Prefácio
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Para quê? Para quê o nascer, se o amanhã é insondável, inexprimível, a finitude, o terminar de tudo, é o acabar aprazado, se para alguns o corpo e o espírito são simultaneamente perecíveis, e para outros não? Numa mesma galáxia, ou mais modernamente no mesmo espaço cósmico, a Humanidade debate-se perante uma interrogação ou apenas por uma interpretação que se eleva por efeito dum pecado. Um presente da Natureza com data de validade. Um trauma interno que se torna hereditário. É a individualidade que provém da herança biológica do indivíduo. Para quê? Para quê o viver, se a vida é “a essência do ser”, o equilíbrio físico e magnético, se a qualquer instante ela pode ser cativa, desligada, por uma grandeza desconhecida e ilimitada, quer eu faça parte do lado bom ou do lado mau da Humanidade. a c e g o n h a | 7
Caminhar sob um tronco hercúleo dum embondeiro igual ao das chanas da nossa terra, que foi ramificando com as dores da maternidade, as armadilhas e as adversidades, sem conhecer o tempo da caminhada, é percorrer o escuro em busca da luz que me manterá energia no infinito.
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Da nossa união, entrelaçada pelas mais impolutas emoções,
agrestes contrariedades e derrotas, ao fim de tantos anos (porquê sessenta e seis… e sim nenhum?) estou eu, coisa perecível, tor-
nado espiritualmente metade pela lâmina afiada duma gadanha
sinistra, elaborado sobre um passado que já não importa, vivendo um presente que não seduz, e tu, a outra metade, espírito ou energia após a morte do cofre, o futuro que virá a ser presente quando
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nos reunirmos se por ventura esse encontro existe, como afirmam os filósofos não niilistas, tais Sócrates e Platão.
Se nos incutiram ou aceitamos de livre vontade a asserção dos
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niilistas, então tudo cessa com a morte do corpo, seguida do “crepúsculo da morte”, um limbo a que sucede o início da decomposição do corpo espiritualmente inane. Epicuro confronta as afirmações de Sócrates e Platão, e justi-
fica que “a morte é uma quimera: porque enquanto eu existo, ela não existe; e quando ela existe, eu já não existo”. Estudos científicos diversos aceitam por comprovada a recor-
dação de experiências de vida já passada, embora alguns mais cép-
ticos classifiquem o fenómeno como alucinações, autoindução, coincidências ou fraudes. 8 | o s v a l d o
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Não se encontra ainda hoje nenhum indício científico de que a “alma” exista ou de que a mesma possa sobreviver à morte do corpo e o lugar onde vai morar. “A alma é diferente do corpo e usa-o como instrumento para a realização dos seus desígnios”, ensina Platão A alma é um ser vivo que entra num corpo e o corpo toma emprestada a vida da alma. Quando se separam, seguem seus próprios caminhos. Por erro adâmico o corpo retorna ao pó e a alma retorna junto às almas – paraíso ou inferno. Nas suas lições Aristóteles afirmava que “o que caracteriza a alma humana é a racionalização, a inteligência, o pensamento pelo que é espírito”. Então a pergunta “há vida após a morte” não faz sentido? Sim, há vida após a morte: o que morre está morto (o corpo) e o que está vivo, vive (a alma) e viverá eternamente. As emoções, memórias, relacionamentos, sabedoria, as dores e prazeres, todos vivem, pois são aspectos da vida, o ADN da alma. O Homem, com a racionalidade que lhe foi atribuída, passou a ter um constante medo da morte quando compreendeu que é apenas “um ser-para-a-morte”. Para ti, Quiquinha, o curso da tua vida terrestre findou imoderadamente depressa. Precisava da tua companhia por mais tempo. Fiquei só, falando para ti. Não sei se me ouvirás. Não sei nada, sou ignorante, estulto e no que andei buscando saber, não encontrei uma verdade consolidada nem consoladora. a c e g o n h a | 9
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Assim, por ventura ingenuamente, submetido aos ritmos e fluxos do Universo, entendo sentir a tua existência na minha existência, enquanto for corpo animado. Na premissa do não encontro, se não mais ouvir a tua voz doce e meiga, aqui deixo ficar, pelo percurso que unidos pisámos, este meu reconhecimento, esta gratidão, a minha essência holística, por tudo o que soubeste ser, exemplar filha, mãe cuidadora, carinhosa avó e companheira presente, conselheira, resoluta, e pelo muito amor que oferecemos um ao outro. As emoções e os sentimentos ditaram escrever este livro, que é apenas uma singela homenagem e o afectuoso agradecimento pelo que foste, protegeste, sofreste e com intensidade soubeste querer. Mas suplicando que o encontro seja sim, quero sentir o teu sorriso alegre, a suavidade do teu olhar e pousar com meiguice os meus lábios nos teus e voltarmos a ser os mesmos amantes e companheiros de outrora. Mantenho a busca do meu equilíbrio físico, mental, emocional. Nesse sentido pratico a sofrologia. Embora lutando, sou apenas um ser vivo, incapaz de afastar esse final, essa meta, ou mudar o caminho. Os amigos abraçam-me e para me darem conforto, afirmam que tudo é obra do destino. Mais tarde, solitário, em epifania interpelo o espaço que me cerca. Mas afinal o que é o destino? E vou encontrá-lo como a resultante do determinismo, que vem do anterior, já está definido quando me torno ser, composto 10 | o s v a l d o
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por circunstâncias ou acontecimentos, do livre-arbítrio e do libertismo mediante o que afirmam diferentes pregadores, pensadores, correntes filosóficas e religiões que defendem estas concepções distintas. A doutrina do Carma (elaborada há mais de 3 mil anos na Índia), afirma que o que somos resulta do passado e quem vive o presente é quem vai determinar o futuro. Porém, mesmo aceitando o livre-arbítrio crêm de que nada acontece por acaso. O livre-arbítrio acarreta implicações morais, psicológicas, filosóficas, científicas e mesmo tecnológicas. Por isso, competirá a cada um de nós a responsabilidade de construir o futuro que desejarmos ou pudermos. Deus tem o conhecimento de tudo o que faremos e de tudo aquilo que vai acontecer, mas não lhe pertence provocar esses acontecimentos. Acredito que todos temos um ponto de partida e um ponto final, e que são o nascimento e a morte, e a uni-los um caminho a ser percorrido e marcado de acordo com a nossa vontade. O Cristianismo rejeitou qualquer tipo de destino que governaria as sortes dos homens; reconhece, sim, a Providência Divina, sábia e santa, que acompanha o homem com bondade e amor através dos tempos. Em muitas culturas e para muitos filósofos e pensadores, o destino é entendido como uma sucessão contínua de acontecimentos, os quais se encontram relacionados a uma ordem cósmica. Será assim ela a única responsável por conduzir a vida de todas as pessoas. a c e g o n h a | 11
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Já na antiguidade clássica ou seja, na literatura greco-romana, competia aos deuses apontar esse caminho, o destino que tinha de ser cumprido independentemente do que eles praticassem. Uns acreditam que é Deus o responsável pelo destino de cada um; outros que estaria traçado nas estrelas e há ainda os que afirmam que o destino não existe, sendo apenas o ser humano o responsável pelo seu percurso ao longo da vida. Por seu íntimo entendimento muitos pensadores e filósofos apontam o destino como sendo algo a que o indivíduo está predestinado, não importando o seu comportamento na terra. Por outro lado, no campo da ciência o destino seria regido consoante as leis imutáveis e eternas da natureza. De acordo com o Cristianismo, por exemplo, o tão proclamado destino não existe, é apenas a vontade de Deus que controla e determina todos os acontecimentos. Há um final inevitável e para todos imprevisível no respeitante à sua temporalidade. Embora lutando, sou apenas um ser vivo, incapaz de afastar esse final, essa meta, ou mudar o meu caminho.
Santo André, Março 2020 teu Quiquinho
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Capítulo I
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Cidade de Viseu. Freguesia Ocidental. Sob a sombra acolhedora da vetusta Sé ou Catedral, erguida no século XII por vontade de el-rei D. Afonso Henriques, num emaranhado expresso de casas velhinhas espreitando o largo D. Duarte, feitas de argamassa e paus, com soalhos de madeira já um pouco carcomida, deu o seu primeiro sopro de vida a pequenina Cila, num quarto modesto e simples, onde a Ti Gertrudes, a parteira daquela gente sem recursos, mandara colocar um alguidar com água tépida e umas toalhas, material sempre imprescindível para o seu delicado trabalho. Eram 12h05 daquele dia 01 de Junho de 1934. Cortado o cordão umbilical, D. Conceição oferecia ao mundo o seu primeiro filho, a quem os anos seguintes vieram juntar duas irmãs e um irmão. Família modesta, compelida a distribuir os parcos recursos provenientes do esforço do Pai como auxiliar de tipógrafo pelas necessidades diárias, obrigado desde jovem a trabalhar para prover o sustento da Mãe e de dois irmãos mais novos após a c e g o n h a | 13
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a morte trágica de seu pai como combatente na primeiro guerra mundial, o que fez germinar uma personalidade dura e autoritária, como se veio a constatar ao longo da vida. Era o único jornal da terra na altura, o Jornal da Beiras, ali passando o dia e parte da noite a juntar as letras em relevo feitas de ferro para transformá-las em palavras, na composição e impressão dum texto para que no dia habitual, após o visto do famigerado lápis azul da censura, o público ler as notícias, principalmente as dedicadas aos acontecimentos importantes da terra e seus apreciados “mexericos”, sempre comentados e aumentados nas conversas de café e tabernas. A Mãe, Conceição, logo que sentiu forças voltou à máquina de costura como costureira de alfaiate que era, pondo toda a atenção nos trabalhos que tinha de entregar sempre a horas, tais como arranjos e acertos normais, fazendo bainhas e o mais difícil, confeccionar calças e camisas para o Sr. António vender na sua loja, um pequeno espaço que alugara na concorrida Rua Direita. O seu Pai, e antes o Avô, foram orgulhosamente, até à idade o permitir, bombeiros municipais, tendo tido diversas e difíceis acções durante todo esse tempo. A preparação técnica e a qualidade dos equipamentos mais não permitiam. Apenas a dedicação e o respeito aos seus concidadãos superavam as deficiências. A Cilinha, deitada no seu modesto berço, bem agasalhada porque o frio se fazia sentir com intensidade, após a hora da mamada ali continuava sossegada e sozinha, pois a Mãe não podia dispor de outro tempo para a mimar. 14 | o s v a l d o
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Os anos foram decorrendo com o mesmo monótono ritmo, trazendo o ano de 1940 a segunda filha a quem foi dado o nome de Virgínia, que ao longo da vida passou a ser conhecida por Gina. O seu nascimento foi em casa e similar ao de sua irmã, pois ali estivera presente a dirigir todos os cuidados a vizinha Ti Gertrudes, que por aquelas redondezas ajudou a nascer tantas crianças. Como a Mãe não podia dedicar à recém-nascida a atenção e os cuidados necessários, coube à Cilinha executar esses trabalhos, pelo que muito cedo se viu empenhada em tarefas tão difíceis e delicadas. Assim, criança ainda, começou a moldar o seu temperamento, inteligência, criatividade, competência social e inteligência emocional, motivos e interesses, estilos de superação, atitude e postura, o “eu” e o “mim” e a auto imagem, a auto estima, a estabilidade e os distúrbios de uma pessoa, que bem consistente veio a manter durante toda a sua existência, somando consequências valiosas que mergulharam na vida de seus irmãos, com benefícios evidentes para o seu crescimento físico, mental e emocional, mesmo perante as adversidades que iam surgindo com o passar do tempo. Suportaram, como todos os mais desfavorecidos, as agruras do período da guerra mundial, cabendo à Cilinha como mais velha integrar as longas filas para receber as senhas de racionamento que possibilitavam a aquisição de alguns bens essenciais para a vivência familiar. Por sorte, a sua madrinha era contínua na escola primária que frequentava, arranjando-lhe refeições mais compostas e por a c e g o n h a | 15
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vezes algum pão e açúcar, que sorrateiramente levava para casa, melhorando assim as deficientes condições alimentares que iam sofrendo. O Pai, Diamantino, salazarista convicto, depois de servir na Mocidade Portuguesa passou a envergar com vaidade e presunção a farda da Legião Portuguesa, integrando uma milícia, fazendo-se um disciplinado e aprumado legionário, cumprindo zelosamente os seus princípios em defesa da Pátria, os quais eram “defender o património espiritual da Nação, combater a ameaça comunista e o anarquismo”. A partir dos anos quarenta constituiu-se numa organização dependente do Ministério do Interior e também do Ministro de Defesa Nacional, passando a ser tida como uma nova organização de defesa civil. Era preciso proteger o povo para que este servisse com zelo e dedicação a Nação. Chegaram a integrar os quadros superiores, personalidades civis e militares que se iriam notabilizar nos anos seguintes, tais como Craveiro Lopes, Henrique Tenreiro, Humberto Delgado e António de Spínola. Com a experiência então adquirida, visando a auto defesa das populações mais afastadas dos grandes centros (população em geral e principalmente agricultores e criadores) foi decidido criar-se em Angola e depois nas outras colónias, organizações de voluntários que passaram a denominar-se OPVDCA, que chegou a merecer posição de relevo nas zonas onde a guerrilha começou a actuar, estávamos já em 1961. 16 | o s v a l d o
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A família voltou a crescer com o nascimento dum filho, a quem foi dado o nome de Diamantino, e após três anos a ele se veio juntar a terceira filha, que foi baptizada com o nome de Idalina. Todos os nascimentos tiveram lugar na modesta casita, decorrendo com normalidade, sem quaisquer sequelas para aqueles descendentes e progenitora. A situação financeira no país ia-se degradando, levando às famílias situações de grande carência pelo que foi pensada a sua ida para Angola na busca de encontrar melhores condições, pois era corrente afirmar-se que cresciam as facilidades de trabalho em Angola, bem remunerado desde que houvesse interesse e dedicação no seu desempenho. Acontecia que na cidade de Nova Lisboa, Huambo, residia já há algum tempo um familiar com quem havia relações de amizade, que para lá havia ido uns anos antes, e hoje já gozava de uma certa situação social reconhecida como “guarda livros” de uma grande empresa comercial. Com o interesse de ambas as partes, foi elaborada e mandada a célebre carta de chamada, onde se garantia o trabalho e condições de estadia e alimentação de quem pretendia embarcar, buscando um amanhã mais compensador. Escolhidas as roupas melhores e os artigos mais necessitados para a vida diária, apanharam o comboio para a capital, a enigmática e esplendorosa Lisboa, embarcando pouco depois no navio João Belo que após um mês de incomodidades e exasperação atracou no porto do Lobito, o almejado fim da sua viagem, continuando o mesmo a rota para outros portos. a c e g o n h a | 17
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Foi uma viagem feita nas piores condições acomodatícias, com o ar ambiente quente e saturado de cheiros, pois o pecúlio até ali amealhado apenas permitia a viagem na terceira classe. Já manifestando o seu espírito alegre, socializante e gosto pela aventura, a Cilinha trepava à segunda classe onde passava grande parte do dia a brincar, pois ali tinha a companhia de mais crianças, espaço e equipamentos para se divertir. A primeira paragem deu-se na ilha da Madeira, podendo todos contemplar aquela nova e diferente paisagem. – Parece um monte nascido no meio do mar, cheio de caixinhas e árvores, dizia a Cilinha para os irmãos, correndo de um lado para o outro do corredor, cheia de contentamento. Para aquecer o leitinho para a Lina beber, com toda a gracilidade conquistou a simpatia dos cozinheiros, que, com alegria e complacência atendiam o pedido, o que passou a ser usual durante todo o percurso. Possuindo já apreciáveis conhecimentos sobre os trabalhos de cozinha, pois por vezes era ela quem preparava a comida em casa, numa dessas curiosas ocorrências conheceu o Chefe dos cozinheiros, o senhor Aníbal, com quem entabulou conversação sobre o serviço em causa, acabando por granjear a estima e amizade do mesmo. Em resultado, começou a gozar de melhor alimentação (como era lógico a diferença era grande entre a qualidade das refeições servidas em cada classe) chegando a levar dissimuladamente para o beliche que ocupavam comida de melhor qualidade, doces 18 | o s v a l d o
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e frutas, que muito ajudaram a vencer as carências que as suas idades faziam realçar. Com os imprescindíveis enjoos e náuseas continuadas, principalmente ao atravessarem a zona do golfo da Guiné, com o mar picado e as deficientes condições do navio, a viagem tornou-se mais desagradável e depressiva. O aviso da chegada breve a Luanda, depois de terem ficado um dia ao largo em S. Tomé, que alguns viajantes aproveitaram para visitar aquele deslumbrante pedaço de verdura brotado em pleno mar e apreciar a sua biodiversidade, com grande expressão para o cacaueiro, tornou a família Monteiro mais aliviada e alegre. Dias depois surge a grande cidade de Luanda onde o navio aportou, pois havia boas condições para tal manobra, começando a desembarcar muitos passageiros com as suas malas, debaixo dum sol quente, tal como já ouvira dizer que iria encontrar. Era naquele tempo o temido calor de Angola, um dos causadores de diversas doenças que amedrontava os demais, principalmente os menos esclarecidos. Após o desembarque, chegou a necessidade de se arrumarem as malas e as caixas, pois no dia seguinte chegariam ao final da sua demorada, exaustiva e depauperante viagem, a cidade do Lobito, com a sua linda baía e insólita língua de areia, conhecida e muito frequentada quase ao longo de todo o ano, com as suas casuarinas, uma protecção natural dos habituais frequentadores contra a intensidade dos raios solares. a c e g o n h a | 19
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Nessa noite hospedaram-se numa modesta pensão, incomodados com a temperatura ambiente elevada e os mosquitos que levavam os seus habitantes a passear pelas ruas e sentarem-se nas muitas esplanadas já existentes, para gozarem um pouco da brisa que o mar a todos oferecia. Tomado o mata-bicho à pressa, ocuparam os lugares escolhidos à vontade, pois não havia marcações numa das carruagens do Caminho de Ferro de Benguela (CFB) que no seu trajecto atravessava Angola de oeste a leste, seguindo para o Congo Kinshasa, também conhecida como a estrada de ferro de Katanga - Benguela, numa extensão de 1.860 quilómetros. Goza ainda de uma interconexão ferroviária do Cabo (África do Sul) ao Cairo. Tornou-se o mais importante meio de escoamento de mercadorias e ferro do interior para o mar, proporcionando o alargamento e apetrechamento moderno do porto do Lobito, a sua porta de ligação com o mar imenso. Deve-se a Cecil Rhodes a construção dos caminhos de ferro na África Central com o objectivo de ligar o Cabo ao Cairo, desejo que se tornou célebre pela designação “C to C” de maneira a poder explorar com maior facilidade as riquezas do solo africano. Em 1897 incumbiu Robert Williams, cujo nome foi mais tarde dado em sua homenagem à Vila da Caála, no Huambo, de explorar os territórios vizinhos para prolongamento da ferrovia, tendo resultado desse estudo a descoberta dos maiores jazigos de cobre de África, localizados entre a Rodésia do Norte e o Katanga. 20 | o s v a l d o
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Para que todas as possibilidades fossem ganhas e prósperas tornava-se indispensável uma linha férrea que ligasse essa zona até ao mar. Pela orografia dos terrenos e distância a percorrer optaram pela costa ocidental, e nesta o porto do Lobito que tinha condições para ser aumentado e tecnicamente apetrechado para promover mais melhorias condizentes com a movimentação que passaria a manobrar. No seu início estava previsto transportar 40.000 toneladas por ano de minério de cobre. Por escassez e inaptidão de mão-de-obra local viram-se na necessidade de contratar 7.000 nigerianos e senegaleses e 2.000 indianos, e suas famílias, que se haviam revelado mais aptos no andamento de tais trabalhos. Ganhou relevo especial na contratação dos mesmos o jovem advogado indiano Gandhi (1869-1948) a quem viria a ser atribuído o título de “Mahatma”, o que quer dizer em sânscrito “A Grande Alma,” nacionalista e anticolonialista, adepto da não violência, assassinado quando defendia a liberdade para o seu povo e a independência do imenso país. Perante os constrangimentos que foram surgindo nas relações humanas que teve de enfrentar, mormente a justiça e a equidade, regressou à Índia, tornando-se o grande líder pacifista que todo o mundo celebrou e admira. Para apoiar os outros animais de carga e tracção (pois não havia estradas) principalmente no transporte de água, bastante escassa, e de materiais para a construção de linha, foram a c e g o n h a | 21
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importados camelos do norte de África, dadas as suas peculiares características. Para garantirem a frente da obra e a sua consolidação os transportes eram feitos em carros bóeres e a participação de 2.0000 trabalhadores. A necessidade de se montar um acampamento de apoio com condições, após vários estudos e comissões de trabalho e por já existir um aglomerado populacional com alguma relevância na região do Huambo, entendeu-se por bem promover-se aí a sua instalação, ficando alojados entre 200 a 300 europeus e 2.000 a 3.000 nativos. Este facto trouxe como consequência que se determinasse de imediato a criação de uma nova cidade por decisão do Governador Geral Norton de Matos e excluir o uso e abuso do inglês em documentos oficiais, que eram endereçados a “Pauling Town - Angola”, o principal construtor da obra. “Perante a admiração de todas as hierarquias ordenei que as cartas assim endereçadas fossem devolvidas à procedência com a indicação de destino desconhecido, e ali, perante a existência dum pequeno forte onde feitos heróicos tinham sido praticados, e perante ainda a sua situação geográfica sob os diversos pontos de vista - o político, o económico, o militar - decidi a 8 de agosto de 1812, após vários diplomas legislativos por mim publicados, que ali fosse criada a cidade do Huambo.
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A 23 de novembro de 1912 foi oficialmente inaugurada a cidade”.
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A partir dessa data passou a ser proibida a construção de casas de adobe, pau a pique e ouros materiais de categoria inferior. Foi a esta nova cidade, já demonstrando um forte desenvolvimento cultural e social, que chegou a família Pereira Monteiro, fortalecida pela esperança de dias melhores e observando intrigadas o ambiente que as rodeava. Um novo lugar, novos costumes, outras tradições. Foram viver para um dos bairros ligeiramente afastados do centro da cidade, que um curso de água dividia e obrigava a sua travessia sobre pedras ali depositadas e alinhadas para o efeito. Todavia, na chamada época da chuva, a mesma tornava-se mais volumosa e perigosa, provocando o isolamento dos seus habitantes, sendo algumas vezes as crianças que iam frequentar as aulas amistosamente transportadas às costas pelos empáticos nativos que ali também residiam, ou viam-se perante a necessidade de andar cerca de dois quilómetros para utilizar uma estreita e frágil ponte, feita com paus entrelaçados e apertados com lianas, que amarradas a umas estacas cravadas a grande profundidade sustentavam a mesma, que baloiçava à passagem de alguém. Diamantino iniciou as suas funções na impressão do jornal local “O Jornal do Planalto”, passando a ser muito considerado pelo aperfeiçoamento que emprestava ao trabalho que ia desenvolvendo. Devido ao ambiente de liberdade e criatividade encontrados, logo pensou pôr em prática várias ideias inovadoras que a c e g o n h a | 23
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não tinham sido aceites por muito modernas no local anterior, onde o tempo parecia ter parado. A Mãe começou a ser conhecida pela perfeição que punha nos seus trabalhos, e além do mais, poucas eram as costureiras para uma população que começava a crescer. À Cilinha cabia a gerência e orientação da casa e o cuidado e atenção ao crescimento dos irmãos que se ia tornando cada vez mais exigente e absorvente. Por negligência ou ignorância, não tomaram a prevenção necessária para evitarem a malária que comummente atingia quem chegava, vindo por tal a Dona Conceição a sofrer dum forte ataque de paludismo como lá se dizia, que a levou ao Hospital em estado crítico, ali permanecendo cerca de quinze dias para tratamento. Como a alimentação não reunia as condições normais para a sua recuperação, passou a Cilinha a confeccionar uma refeição mais nutriente e calórica de acordo com a doença, levando-a todos os dias ao estabelecimento hospitalar, percorrendo uma considerável distância para o efeito. Por todos estes afazeres e os fracos recursos financeiros, a continuação dos estudos foi sendo protelada contra sua vontade, pois tinha gosto e desejo em aumentar os seus estudar e aprender. Aproximavam-se os dois anos de permanência em Nova Lisboa, quando Diamantino foi convidado a ir trabalhar para a tipografia do “Jornal Notícias da Huíla” cujo proprietário, um dos maiores empresários do distrito, tivera conhecimento das excelentes capacidades e competências do mencionado tipógrafo, pois era seu propósito aumentar e expandir o jornal, promovendo 24 | o s v a l d o
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a sua competição a nível de toda a Angola, providenciando igualmente a colaboração dum chefe redactor de mérito e novos jornalistas para a conquista dos objectivos traçados. Utilizando a carreira para o Lubango, que fazia parte da frota de viaturas de passageiros e cargas que era uma das parcelas do património do citado empresário, sofrendo uma viagem dura, incómoda, percorrendo uma estrada cheia de buracos e no tempo da chuva com lama e barro, razões porque nunca se sabia a hora de chegada, até porque na altura não havia comunicações que tal permitissem. Por isso quem ia receber alguém, familiar ou amigo, normalmente aguardava mais umas três ou quatro horas do tempo indicado no respectivo horário. Na época seca, chegavam todos cheios de pó, lembrando marionetas pintadas, onde se notavam apenas os olhos, normalmente avermelhados por irritados e os dentes. O clima de Nova Lisboa e o do Lubango eram semelhantes e por isso as adaptações faziam-se com facilidade, e assim não eram necessários grandes e outros cuidados médico-sanitários principalmente com as crianças. O Lubango continuava na sua senda de um desenvolvimento harmonioso, era a cidade estudantil de Angola por excelência, os estudantes com as suas capas negras espalhavam-se por todos os recantos, a sua gente era amiga e afável, sendo a maioria descendente dos colonos fundadores. A paz, a concórdia e a harmonia, uniam-se às cambiantes belezas naturais que a abraçavam, com realce para os seus tons variados mas onde preponderava o verde. a c e g o n h a | 25
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ew Capítulo II
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Anos mais tarde, já moradores em Sá da Bandeira, apoio e conforto similares se repetem, pois o tempo não tivera ainda a oportunidade de os alterar profundamente. Para receberem as novas campeãs nacionais de basquete feminino, as brilhantes jogadoras do Benfica que chegavam de avião, o Pai Diamantino, vibrante benfiquista e seus amigos adeptos do mesmo clube, entenderam que deviam estar presentes à chegada para as saudar com a afectividade de que eram merecedoras. Depois de uma apoteótica recepção, entusiasmados e alterados pela satisfação, quando regressavam á cidade sofrem um grave acidente de viação. Todos os ocupantes ficaram feridos com alguma gravidade, tendo o Pai Diamantino fracturado uma perna, costelas e feito uma lesão craniana. Devido ao estado que apresentava teve de ficar internado durante vinte dias. Logo que sentiu as primeiras melhoras, começou a detestar a comida do hospital, exigindo que lhe trouxessem o almoço de casa de maneira a não ficar em causa a sua recuperação, argumentava ele. a c e g o n h a | 27
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Para que a sua vontade fosse satisfeita, diariamente a Cilinha se deslocava ao hospital levando-lhe a refeição confeccionada como ele apreciava ou mesmo “à sua maneira,” como gostava de referir. Porém, vamos ter a oportunidade de conhecermos mais adiante que esta aresta da vida familiar vem marcar negativamente todos seus elementos, devido ao comportamento abstruso, coercivo, violento do Pai contra a continuação dos estudos dos filhos, embora seguindo por ironia uma prática oposta, pois apreciava a leitura e o conhecimento, que ia buscar aos jornais e revistas várias, discutindo e opinando com os amigos sobre matérias diversas. A família Monteiro veio residir para o característico bairro do Franciscão, um bairro com imensas casas construídas sob a orientação do mesmo e uns poucos serventes. Para isso tinha um terreno onde fazia os “adobes” resultantes de grandes quantidades de barro amassadas com algum capim, e depois metido numa forma rectangular de madeira e deixados ali a secar ao sol para ganharem solidez. Uma de muitas traquinices dos inúmeros miúdos que ali habitavam como eu, quando o sabíamos ausente era fazer desenhos nos adobes, provocando a ira do dono que logo nos ameaçava e afugentava com um longo pau. – Para a próxima vez levam com isto na cabeça, vociferava sempre que éramos apanhados. Vão estudar ou trabalhar que a vida não é uma brincadeira. Ou querem ser vadios e a pedir 28 | o s v a l d o
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cigarros e pão pelas ruas? Venham para aqui fazer barro para saberem o que é o trabalho. Isso não querem! Andam apenas a passear os livros e os pais a pagar! No mesmo terreno havia uma vasta extensão de goiabeiras, cujos saborosos frutos nem chegavam a amadurecer completamente. Aquecidos pelo sol e cobertos de pó eram colhidos e devorados sem pressas para gozarmos o seu sabor e aroma, debaixo duma pequena ponte de madeira feita por ele, e que dava acesso às viaturas ligeiras dos seus moradores. As dores de barriga e às vezes as incómodas diarreias eram as consequências mais imediatas dessa ingestão. Mas logo tudo era esquecido. Do lado oposto havia construído uma ponte igual que um canavial espesso e verdejante por vezes ofuscava. Várias famílias de médias condições sociais e étnicas habitavam as variadas casas e conviviam em sã harmonia e paz social. Como o bairro estava disposto em semi-círculo, havia um espaço enorme que todas as tardes era transformado em animado campo de futebol. Na época dos santos populares em substituição da bola, ali ardia uma bela fogueira para todos saltarem, cantarem e comerem um petisco. O bairro tinha particularidades próprias. Estava assente num pequeno vale, era rodeado por dois limitados percursos de água, com as margens protegidas por caniços e diversa flora autóctone, que lhe emprestava um ambiente ameno e agradável. a c e g o n h a | 29