O DESENHADOR 2
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edição: Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)
título: O Desenhador 2 – Interseções entre Desenho de Observação e Desenho Arquitetónico
autor: Shakil Y. Rahim
grafismo de capa: Ângela Espinha desenho na capa: Eduardo Souto de Moura
paginação: Alda Teixeira
1.ª edição
Lisboa, agosto 2024
isbn: 978-989-9198-04-3
depósito legal: 528276/24
© Shakil Y. Rahim
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Shakil Y. Rahim
O DESENHADOR 2
Interseções entre Desenho de Observação e Desenho Arquitetónico
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Aos meus alunos, e a todos os que transformam o mundo pelo desenho
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1. A Luz, o Espaço e o Observador no Desenho Arquitetónico dos Cadernos Azuis de Eduardo Souto de Moura
1.1 - Introdução
1.2 - As Tradições do Desenho na Arquitetura da “Escola do Porto”
1.3 - Cadernos Azuis I: Aspetos Formais e Metodologia
1.4 - Cadernos Azuis II: Observador e Critérios de Análise
1.5 - Cadernos Azuis III: Atmosferas e Composição Sensorial
1.6 - As Funções da Criatividade no Desenho do Arquiteto
2. Desenho, Espaço e Simplicidade Visual nas Manchas Arquitetónicas de José Pedro Croft 2.1
2.4 - O Plano, o Observador e a Perspetiva
2.5 - O Peso Visual, a Técnica e a Expressão
2.6 - O Gesto, a Abstração e a Simplicidade
3. Neufert: Arte de Uniformizar em Arquitetura 3.1 -
3.3 - Cânone: Dimensionamento e Variabilidade na Proporção Humana 87
3.4 - A Secção Áurea e o Tratado De Architectura de Vitrúvio 89
3.5 - O Homo Quadratus, o Pé do Rei e o Palmo Craveiro 90
3.6 - O Belo, a Ordem e o Humanismo de Leonardo, Alberti e Dürer 92
3.7 - De David de Miguel Ângelo às Relações Harmónicas de I Quattro Libri dell Architectura de Palladio 93
3.8 - Entre o Homem Taxonómico e o Homem Moderno do Modulor de Le Corbusier 94
3.9 - Escala Humana: Centro Fenomenológico e Centro Cartesiano 96
3.10 - Da Industrialização do Homem Coordenado à Digitalização do Homem Fragmentado 98
3.11 - A Medida Cultural e o Homem Contemporâneo no Desenho Democrático 102
3.12 - Conclusão
4. Desenho e Universalidade. Notas sobre os Desenhos de Júlio Pomar na Amazónia, 1988
4.1 - Introdução 125
4.2 - O Território, a Paisagem e o Cenário 126
4.3 - A Aldeia, o Círculo e a Luz 127
4.4 - O Desenho, a Densidade e a Composição
4.5 - O Movimento, a Expressão e a Universalidade
4.6 - Conclusão
5. As Funções do Desenho na Arquitetura de Espaço Cénico de José Manuel Castanheira
5.1 - Introdução 151
5.2 - O Desenho Arquitetónico: dos Parâmetros à Composição 152
5.3 - A Experiência do Esquiço como Metodologia do Pensamento Espacial do Arquiteto 154
5.3.1 - A Caixa de Palco e a Geometria de Cena 155
5.3.2 - As Personagens, a Plateia e o Público 155
5.3.3 - Linha do Horizonte, Perspetiva e Fugas Desencontradas 157
5.3.4 - Textura e Proporção dos Materiais Construtivos 158
5.3.5 - Desenho de Luz, Reflexos Próprios e Sombras Projetadas 159
5.4 - A Arquitetura Desenhada. A Maquete e Outras Visualizações 160
5.5 - Conclusão 161
Referências 162
6. Os Autorretratos do Arquiteto Álvaro Siza Vieira
6.1 - Introdução 169
6.2 - O Arquiteto Álvaro Siza e a Expressão da Simplicidade do Desenho 170
6.3 - Conjunto de Autorretratos: Seleção, Critérios e Metodologia 173
6.4 - O Autorretrato e a Auto-Observação do Arquiteto 175
6.5 - Os Autorretratos de Siza em Cima do Cavalo 178
6.6 - O Autorretrato nos Desenhos de Mãos que Desenham 180
6.7 - O Desenho do e ao Espelho – Autorretrato no Hotel Mediterrâneo, 1982 184
6.8 - O Autorretrato como Topografia do Corpo-Casa-Paisagem 187
6.9 - Conclusão 191
Referências 192
7. Os Arquivos de Desenho e a Valorização do Património
das Cidades através do Diário Gráfico: o caso dos Urban Sketchers Portugal
7.1 - Introdução 207 7.2 - O Diário Gráfico como Arquivo de Desenho 208
7.3 - As Funções Físicas e Fenomenológicas do Diário Gráfico 216
7.4 - O Desenho de Observação e a Experiência da Comunicação Digital 220
7.5 - Caso-Estudo: os Urban Sketchers Portugal 224
7.5.1 - Urban Sketchers e a Valorização do Património Urbano e Cultural 224
7.5.2 - A Ação dos USk em Portugal 228
7.6 - Conclusão 234 Referências 235
8. Experiência Abstrata da Arquitetura na Síndrome de Hipervisibilidade do Observador: Recortes Geométricos de Roma, Florença e Veneza
8.1 - Introdução 253
8.2 - A Síndrome de Hipervisibilidade do Observador e a Experiência do Excesso 255
8.3 - A Abstração da Experiência da Arquitetura e da Atmosfera 258
8.4 - Roma: a Cidade Eterna, a Monumentalidade e o Império 260
8.5 - Florença: o Mecenato, o Humanismo e a Proto-Perspetiva 262
8.6 - Veneza: o Grande Canal, o Espelho e o Labirinto 263
8.7 - Conclusão 265
Prefácio A antologia de textos O Desenhador 2 – Interseções entre Desenho de Observação e Desenho Arquitetónico é a natural sequência do volume anterior, publicado em 2018, com o título O Desenhador – Estudos Cognitivos, Artísticos e Fenomenológicos. Prossegue desta forma a minha investigação centrada nos processos, meios e modos de desenhar como atividade do pensamento e da cognição humana, e das interligações entre os recursos da perceção, da atenção e da motricidade com a criatividade visual e espacial do desenhador.
Os oito textos selecionados oferecem uma visão panorâmica sobre como essas duas práticas mutuamente se informam, desaPreview
As interseções entre desenho de observação e desenho arquitetónico situam-se em vários níveis de transferência, por processos conceptuais e operativos que despertam o sentido dos elementos e da composição do espaço arquitetónico. Evidência expressa pelo fluxo de esquiços que desencadeiam a ação do pensamento visual numa testagem de hipóteses sem precedentes, e visíveis nas soluções técnicas e práticas da antecipação formal e material do projeto de arquitetura e da sua visualização e construção. A interseção é um lugar de partilha e para o arquiteto esse cruzamento serve um sem fim de situações de compatibilização de escalas, sombras, texturas, volumes, contrastes, proporções, perspetivas e atmosferas, só para nomear algumas onde a participação é direta. Por sobreposição de circuitos, a identidade do arquiteto desenvolve-se por funções estruturais e associativas assistidas pela interpretação cultural da composição do gesto, onde se intercetam capacidades, desvios e expressões gráficas do desenhador.
Y. Rahim
fiam e se complementam. A amplitude dos textos confluem para o lugar da interseção como unidade temática, e a seleção organiza-se por critérios de relevância e qualidade, com objetivo de uma visão abrangente das metodologias, das estratégias e das análises críticas que definem a interação entre as duas modalidades de desenho. As citações e autores, que variam desde postulados teóricos até estudos de casos práticos, refletem a diversidade de perspetivas que enriquece o debate e expande os horizontes dos campos disciplinares.
O livro persegue essa relação multifatorial entre observação e criação que ilumina os diferentes aspetos da individualidade dos desenhadores. No primeiro texto apresentado, os Cadernos Azuis do arquiteto Eduardo Souto de Moura formalizam a ideia de atelier portátil e investigam as relações do observador com a desenho do espaço e da luz, a diferentes escalas (panorâmica e de detalhe). Entre esquiços de perspetivas, plantas, cortes e alçados, que alternam por espaços interiores e exteriores, os desenhos arquitetónicos de Souto de Moura encontram volumes, planos, ritmos, pesos e texturas, num processo de entendimento da abstração geométrica dos elementos visuais, que o desenho procura integrar nas contingências materiais e pragmáticas do projeto, e com isso aceder à universalidade da experiência da arquitetura. São apresentados desenhos do processo criativo de diversos projetos de arquitetura como a Casa das Artes no Porto, o Estádio Municipal de Braga, a Casa Pátio em Matosinhos e a Casa do Cinema Manoel de Oliveira. O texto sobre as “manchas arquitetónicas” de José Pedro Croft estuda o debate do ‘campo expandido’ onde se intersecta desenho, arquitetura, escultura e gravura, e se funde espaço, objeto e paisagem. O arquétipo da caixa-casa e da sua desmontagem é transferida para a reconfiguração do corpo e para a fragmentação do observador, num sucessivo processo de interferências e ambigui-
dades espaciais. Com o desmantelamento da retina, os desenhos de Croft abrem janelas e ecrãs, num paradoxo de espelhos, reflexos e composição de vazios. Tensões estruturais e densidade visual aliam-se às misturas de materiais para acentuarem impurezas gráficas. A transparência do plano, a rutura com o ponto de fuga, a alteração das coordenadas e a multiplicação de infinitos, acentuam a experiência de descontinuidade e seccionam a estabilidade da perspetiva. Através das influências de Malevitch, Morris, Smithson e Judd, aparece no desenho de Croft uma simplicidade visual fundada na economia do minimalismo e das construções em série e repetições de caixas.
Em Neufert: Arte de Uniformizar em Arquitetura, uma analogia direta ao compêndio de 1936, discute-se a variabilidade da proporção humana e a organização da arquitetura pelas métricas do corpo. Os cânones e modelos ideais são revisitados através da tratadística e das noções de Belo, que remontam à venustas da tríade vitruviana e ao cânone do Policleto. A verificação da proporção áurea na Natureza e os princípios pitagóricos sobre relações harmónicas e traçados reguladores formalizaram desde a Antiguidade uma teoria das proporções. Ao longo dos séculos, diversos modelos adaptaram o corpo ao ideal de época, e na arquitetura, a cabeça, o pé, o côvado ou o palmo serviram em muitos casos como unidade de medida.
As pesquisas de Leonardo, Alberti e Durer contribuiram para o humanismo renascentista do “homem como medida de todas as coisas”, que culminou nas classes de proporção da arquitetura de Palladio ou em David de Miguel Ângelo, onde a síntese das proporções geométricas manifestam em simultâneo força e serenidade. Séculos depois, com a implementação do metro e a uniformização do advento industrial, o homem é então tabelado num sistema taxonómico e ergonómico, com consequências nos mate-
riais e sistemas construtivos. O Modulor de Le Corbusier procurou a otimização funcional do espaço a partir de princípios de proporcionalidade estabelecidos nas séries azul e vermelha, baseadas em Fibonacci. Mas ao humano cartesiano contrapôs-me um humano fenomenológico com preferência por medidas culturais, sociais, individuais e democráticas. Os desafios desta reflexão sobre para que contentor humano estamos a projetar e como o sujeito experimenta a arquitetura encontram agora novidades na fragmentação digital.
O texto sobre os desenhos de Júlio Pomar na Amazónia é uma análise dos registos das estruturas de movimento do corpo, da luz e do espaço, na representação dos rituais e práticas locais e a sua transferência para os indicadores comuns e intemporais da experiência humana. No Xingu, Pomar encontra o contraste entre a luz-visibilidade da aldeia e a luz-invisibilidade da floresta, e a partir destes fenómenos organiza as relações de claro-escuro, natureza-cultura e estrutura-entropia. O traço é gestual e desassossegado, com linhas e densidades gráficas que investigam o nu individual e o corpo coletivo através da composição da anatomia, do volume, da sombra, da perspetiva, da escala e da proporção. Nos então designados desenhos revisitados, os ritmos e as tensões visuais sucedem-se por acumulações entre observação e memória. Com o registo dos resíduos do movimento como estruturas da perceção e aceleração visual, Pomar sintetiza o ‘modelo reduzido’ de Lévi-Strauss. Dessa forma comprime a transferência gráfica através da perspicácia da sua atenção espacial e interpretação temporal. No capítulo 5, o foco centra-se no trabalho do arquiteto e cenógrafo José Manuel Castanheira, para quem a atividade de desenhar tem importante presença na procura de soluções para os projetos de arquitetura efémera que desenvolve. Castanheira usa as funções e a expressão do desenho como modo de visualização de atmosféricas
de espaços cénicos, onde estuda formas, cores, materiais, texturas, luzes, sombras e movimentos, que se organizam por relações entre o tempo, o temporário e a temporalidade. O ensaio aborda a experiência do esquiço e da maquete como metodologia do pensamento espacial, através da composição dos seguintes fatores: i) caixa de palco e geometria de cena, ii) as personagens, a plateia e o público, iii) linha do horizonte, perspetiva e fugas desencontradas, iv) textura e proporção dos materiais construtivos e v) desenho de luz, reflexos próprios e sombras projetadas. Observa-se um desenho arquitetónico de múltipla perseguição cónica que relaciona o espaço-luz, o espaço-fuga e o espaço-háptico
O texto Os Autorretratos do Arquiteto Álvaro Siza Vieira mostra-nos a versatilidade do arquiteto-desenhador que ultrapassa as fronteiras disciplinares. Siza, conhecido pela valorização do desenho arquitetónico que permite a experiência sensível e o pensamento criativo, tem no meio dos seus esquiços, uma atividade de retratista que não passa despercebida. E de entre estes, os desenhos de autorretrato ocupam um lugar próprio. Do rosto ao corpo, de frente ou de perfil (de pé, sentado ou deitado) Siza Vieira observa-se e desenha-se na evidência do quotidiano, com a fluidez orgânica da linha fina e da simplicidade como critério e como atributo. O arquiteto desenha-se com vários traços individuais de reconhecimento e parecença-presença (óculos, orelhas, nariz, barba), e por vezes de rosto aturdido e espantado como se encontrasse um outro paralelo dentro da moldura-espelho, tornando-se na fronteira ótica do reflexo e na ficção do ‘ver-se-visto-sem-ser-visto’ de Derrida. Também o cavalo, frequente em Siza, está presente nos autorretratos e o arquiteto aparece montado e em movimento, num alter-ego heroico e aventureiro. O retrato estende-se ainda aos ‘desenhos de mãos que desenham’ (em primeiro plano), e acentuam a presença espacial do desenhador e uma perspetiva policêntrica com multiPreview
plicação de pontos de observação. Às mãos juntam-se os pés e os panejamentos, que enfatizam o corpo inteiro, em sucessivos desdobramentos da linha que lembram curvas de nível a mapear o rosto como território, numa intensa aprendizagem de escala e proporção que integra corpo-casa-paisagem.
O diário gráfico e as suas funções nos processos experimentais do desenhar atravessam o capítulo 7, com o texto Os Arquivos de Desenho e a Valorização do Património das Cidades através do Diário Gráfico: o caso dos Urban Sketchers Portugal. Aqui estuda-se o caderno como arquivo de desenhos, nas suas potencialidades enquanto ferramenta de pesquisa e produção de conhecimento visual (científico e artístico). Ao longo da História, o diário gráfico tem servido vários propósitos, que vão desde desenhos de estudo do natural, a registos preliminares para outras obras, desenhos de viagem ou outros desenhos sem fim óbvio. Esta conjugação do diário-processo com o diário-objeto é uma evolução do acesso e portabilidade dos suportes e materiais através das revoluções tecnológicas (papel, imprensa, indústria, fotografia, transportes, eletricidade e digital). Mas também é a valorização das coordenadas fenomenológicas do desenhador e do interesse e utilidade da recolha de informação gráfica (física e emocional).
Os Urban Sketchers são um dos exemplos da partilha comunitária dessa atividade (local, regional e internacional), com o objetivo de mostrar e valorizar o património das cidades (natural e construído). Associados à observação in situ e às particularidades do registo do desenhador, fazem recurso das redes digitais para publicar desenhos e promover encontros. Nesse contexto, os Urban Sketchers Portugal são a extensão portuguesa da organização internacional, com forte representatividade e com uma comunidade ativa de desenhadores reconhecidos. Os desenhos publicados podem ser entendidos como uma base de dados sobre
património, arquitetura e paisagem para entender e divulgar as cidades portuguesas.
No último texto, Experiência Abstrata da Arquitetura na Síndrome de Hipervisibilidade do Observador: Recortes Geométricos de Roma, Florença e Veneza, investiga-se como a homogeneização cultural e a urgência social da condição pós-moderna criaram um observador frenético e hiperativo, num estado de sobressalto e exaustão, em permanente exposição e excesso de informação. Estado a que se chamou ‘síndrome de hipervisibilidade’: condição de mal-estar que afeta as funções cognitivas, reduz a disponibilidade mental e aumenta a ansiedade, com sintomas de desorientação, desrealização, frustração, melancolia, dispersão visual, atenção dividida, e súbito interesse por Arte. Contrária à ‘síndrome de Stendhal’, na ‘síndrome de hipervisibilidade’ não há alteração psicossomática pela qualidade e valor da obra artística; a alteração deriva da sobrecarga atencional do excesso de luz e transparência, que na urgência de “ver tudo” desencadeia uma hipovisualidade que reduz a espessura e a textura da arquitetura, tornando-a lisa, positiva, plana e uniforme.
O consumo da arquitetura e do património desencadeado pela promoção do marketing e pressão turística das cidades, tem transformado os centros históricos e desvirtuado a identidade, a experiência e fruição dos lugares edificados. A abstração da experiência planificada separa os sentidos do corpo, com dissociação cognitiva dos elementos arquitetónicos e da composição atmosférica, num evidente desajuste entre tempo real e espaço ficcionado. Emerge a fobia ao aborrecimento num desassossego de contínua falta de tempo, justificado pela busca da “experiência do inesquecível”. A abstração espacial tem como metáfora os postais ilustrados de modelos 3D planificados em miniatura, que reproduzem recortes de fachadas e invólucros vazios, num fetiche de verosimilhança
Y. Rahim
que elimina o volume, a sombra e a profundidade. O exemplo das cidades italianas, como Roma, Florença e Veneza, permite intersetar a perfusão de obras de excecional valor arquitetónico e cultural com a composição de percursos patrimoniais, a identidade do lugar e a experiência individual da hipervisibilidade do observador na multidão.
Muitos dos textos descritos foram publicados em revistas cientificas, e seguiram o respetivo caminho de disseminação de conhecimento e partilha em sistema público e aberto. A reunião num mesmo volume dirige-se agora tanto a académicos, alunos e professores quanto a um público mais alargado, como desenhadores, arquitetos ou entusiastas de desenho. Quero agradecer a todos os que, direta ou indiretamente, tornaram este projeto possível, assim como aos autores e às entidades que permitiram o acesso às fontes. Estendo o agradecimento à FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia e ao CIAUD – Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, pelo apoio e financiamento.
A par dos objetivos de divulgação, a compilação desta antologia é também o reconhecendo das tradições do desenho no desenvolvimento da arquitetura e das artes visuais, ao mesmo tempo que olha para o futuro, e espreita direções e possibilidades para a reinvenção dos lugares de interseção. Em O Desenhador 2 estuda-se como a prática do desenhar pode servir de ponte entre o que se observa e o que se imagina, entre o que se pensa e o que se constrói, entre o que é ideal e o que é real. Forma de resgatar os valores da arte na produção arquitetónica.
As interseções entre Desenho e Arquitetura partilham fundamentos epistemológicos, conforme se sublinha nos textos aqui apresentados, e revelam o potencial do desenhador enquanto mediador da experiência sensível do espaço arquitetónico e da Preview
abstração intelectual do conhecimento. Sabemos que o desenho arquitetónico é uma expressão onde se incluem vários tipos de representação, que se organizam em diversas categorias, técnicas e subclassificações, para além de que em cada fase de criação os objetivos do projeto modificam a natureza dos desenhares. Neste espetro, potenciamos, definimos e impulsionamos as convergências e os encontros metodológicos entre o desenho de observação e o desenho projetual.
Com frequência, o arquiteto faz uso de exercícios de registo de observação como parte de aferição do lugar, conhecimento do contexto ou treino direto de calibração visual. Ao que se unem sentidos de interpretação e ideação através de croquis e esboços, gestos rápidos que procuram antecipar soluções, misturar ideias, comunicar o projeto, experimentar novos significados. Estas possibilidades enrolam-se umas nas outras, e intersetam-se por sucessivos critérios que podem levar a representação visual a reposicionar a criatividade arquitetónica. Os critérios são para o desenho arquitetónico o filtro visual com que se constrói a fantasia da observação. Em Portugal, entre outros usos, o termo Desenhador foi empregue em arquitetura para designar quem executava os desenhos de entrega e apresentação técnica de um projeto. Com o advento da sociedade digital e a migração para o desenho vetorial, apesar de mudança de meio continuar a manter a função, o uso do termo voltou a designar a dimensão artística e intelectual do projetista. Agora e numa altura em que a inteligência artificial se posiciona como um novo paradigma dos meios de produção e como um assistente a alta velocidade, resgatar o prazer e a síntese da confluência criativa do olhar e da mão pode ser um convite irresistível.
Lisboa, fevereiro de 2024. Shakil Y. Rahim
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1. A Luz, o Espaço e o Observador no Desenho
Arquitetónico dos Cadernos Azuis de Eduardo
Souto de Moura1
1.1 - Introdução
Eduardo Souto de Moura (Porto, 1952- ) é um arquiteto português de renome internacional (Prémio Pritzker, 2011; Prémio Piranesi, 2017; Leão de Ouro da Bienal de Veneza, 2018), com uma alargada produção de obras, projetos e espaços, numa diversidade de programas, clientes e propostas.
A arquitetura de Souto de Moura, entre lugares construídos e tempos intuídos, fundamenta-se na reinterpretação histórica resgatando ideias, exemplos e instrumentos para sublinhar e renovar a cultura arquitetónica. O encontro com a escala do lugar, o rigor nos detalhes da construção e a análise do programa funcional, são fatores transversais à sua metodologia projetual, que em articulação à tríade vitruviana “procurou exprimir e tornar legível (…) os valores civis e sociais implícitos na sensibilidade emergente” (Angelillo, 1996, p. 9).
A inteligência espacial em Souto Moura é herdeira do vocabulário estrutural e material de Mies van der Rohe (1886-1969)
1 artigo publicado com referência: Rahim, Shakil, “A Luz, o Espaço e o Observador no Desenho Arquitetónico dos Cadernos Azuis de Eduardo Souto de Moura”. In Queiroz, João Paulo (ed.), A via das máscaras: as artes em Congresso no CSO’2021: Atas do XII Congresso Internacional CSO, Criadores Sobre outras Obras, Lisboa: Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2021, p. 1394-1413. ISBN 978-989-99822-7-7.
que, quando conjugada com a sensibilidade volumétrica de Siza Vieira (1933-), transforma-se numa depuração e marcação rítmica de métricas e proporções. O arquiteto recupera o património, não como gesto mimético (Bogoni, 2020, p. 62), mas com a capacidade de operar soluções para as questões da contemporaneidade, que reinventa a cada circunstância.
Desafios de gravidade como as residências de Ponte de Lima (2003), a altura e duplicação das chaminés da Casa das Histórias Paula Rego (Cascais, 2009), o prolongamento especular dos muros de pedra pelos espelhos-porta da Casa das Artes (Porto, 1991), a acentuação dos retângulos alongados de inúmeros blocos (Edifício do Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, 1993; Escola de Hotelaria e Turismo, Portalegre, 2011), ou ainda a quadrícula das fachadas habitacionais (Edifício da Rua do Teatro, Porto, 1995; Edifício de Habitação e Escritórios, Maia, 2001; Edifício da Senhora da Luz, Porto, 2016), são exemplos de um alargado reportório formal, que têm no gesto contínuo o impacto visual que resgata a ideia de edifício como objeto.
Os interiores adquirem amplitude e continuidade, os panos de vidro e as fontes de luz (horizontal, vertical ou focal) modelam o claro-escuro, e o cuidado na seleção de materiais e acabamentos definem matizes e texturas contínuas. Elementos estruturais marcam ritmos e a elegância das espessuras, desde os perfis, as placas e as paredes até à caixilharia, à junta e ao mobiliário, determinam a silhueta da experiência do espaço. Como refere o júri que lhe atribuiu o Prémio Pritker: “Com frequência, geometrias simples são sublinhadas pela interação de cheio e vazio ou luz e sombra” (Palumbo et al., 2011).
A geometria e a luz na tradição da Escola do Porto são para Souto de Moura a participação do desenho no projeto arquitetónico. O recurso ao esquiço permite o diálogo de antecipação, de
ativação da memória e da resolução das extensões técnicas e materiais da identidade e da qualidade espacial.
1.2 - As Tradições do Desenho na Arquitetura da “Escola do Porto”
Eduardo Souto de Moura estudou na Escola de Belas-Artes do Porto, numa época em que o estruturalismo e as formulações semânticas ocupavam o discurso da escola, sobrepondo-se ao desenho operativo, como refere António Angelillo:
Nos anos da sua formação na Academia de Belas-Artes do Porto, marcados pela prevalência do empenhamento político e social sobre a actividade didáctica conceptual, Eduardo Souto de Moura tem, porém, a intuição de que o desenho deveria voltar a ser elemento central da arquitetura, entendida como juízo de transformação do sítio, e não como exercício puramente linguístico (Angelillo, 1996, p. 10).
O desejo de Souto de Moura no regresso do desenho está ancorado às estratégias de aprendizagem da arquitetura no Porto, onde por tradição se ensina(va) o esquiço como organização do pensamento, com finalidades conceptuais e práticas, num processo integrado de pesquisa, interpretação, decisão e comunicação do projeto.
Herança de Carlos Ramos (1897-1969), responsável pela refundação dos princípios científicos, sociais e pedagógicos do ensino da arquitetura do Porto, que transferiu os métodos do academismo francês Beaux-Arts orientados por Marques da Silva (1869-1947), para as metodologias pedagógicas de Gropius e da Bauhaus (Figueira, Preview
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