MEMÓRIAS D’AQUÉM E D’ALÉM MAR
edição: Edições
Ex-Libris® (chancela Sítio do Livro)
título: Memórias autor: Francisco
d’aquém e d’além-mar
Costa
Revisão: Patrícia Espinha Capa: Patricia Andrade paginação:
Paulo S. Resende
1.ª edição Lisboa, setembro 2017
isbn:
978‑989-8867-08-7
depósito legal:
430530/17
© Francisco Costa
publicação e comercialização
www.sitiodolivro.pt
FRANCISCO COSTA
MEMÓRIAS D’AQUÉM E D’ALÉM MAR
É com grande gratidão que dedico este livro das minhas memórias a António Francisco Sequeira Costa, meu irmão mais velho, falecido em 7 de Junho de 2011, com quem partilhei uma grande amizade fraternal, de proximidade e de entreajuda durante a sua vida.
Preâmbulo
Este livro tem como principal objectivo retratar, através das memórias do autor, os acontecimentos mais marcantes da sua vida, antes e depois da sua migração com a família, assim como as vicissitudes daí resultantes, saindo de uma aldeia do Baixo Alentejo para a região de Lisboa, numa época de grandes dificuldades económicas para a população em geral, que deram origem a grandes migrações e emigrações. Logo após ter concluído a instrução primária, com apenas dez anos, começou a trabalhar numa pequena oficina em Linda-a-Velha, depois da sua família se alojar em Queijas. São aqui também realçadas as dificuldades que se lhe apresentam a partir daí, assim como as recordações que trouxe consigo daquela época de grande atraso económico e de miséria em que os trabalhadores viviam, com maior incidência no Alentejo, província onde predominava o grande latifúndio, sendo o trabalho dos camponeses pago à jorna.
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I
No dia 15 de Dezembro do ano de 1951, vim ao mundo em Baleizão, com o nome de Francisco José Sequeira Costa. Baleizão é uma aldeia que é sede de freguesia, fazendo parte do concelho de Beja. Fui o terceiro de cinco filhos, quatro rapazes e uma rapariga. O primeiro filho acabaria por morrer prematuramente, com alguns meses de vida. Para meu padrinho de baptismo foi convidado o meu tio paterno, José Baião Costa, e para madrinha a sua esposa, Natércia Caeiro Costa. O meu pai chamava-se José Francisco Baracinho ou Costa, pedreiro de profissão, que, por negligência de alguém, tinha dois nomes diferentes na Conservatória do Registo Civil de Beja, daí, ter sido acrescentada a conjugacão “ou” entre os dois apelidos no Arquivo de Identificação de Lisboa, para resolver o imbróglio. A minha mãe chama-se Gertrudes Margarida Sequeira, trabalhou na agricultura em regime sazonal, como era característico daquela actividade. No Inverno trabalhava na monda, trabalho que consistia na extração das ervas daninhas que cresciam
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junto dos cereais, e no Verão fazia a ceifa dos mesmos, que de seguida eram encaminhados para a debulha, para serem extraídos os cereais. Que me desculpem os leitores com esta supérflua descrição, mas esta minha esmiuçada referência foi feita a pensar naqueles menos ligados a esta área de actividade. O trabalho agrícola, nas grandes propriedades do Alentejo que pertenciam aos latifundiários, era efectuado por grupos de homens e mulheres, sendo naquela época feito através de meios manuais. Mais tarde apareceriam as máquinas agrícolas, com o objectivo de substituir o trabalho manual para maior rentabilidade dos seus proprietários. Naqueles tempos, as famílias da aldeia viviam com grande dificuldade e a maioria delas vivia no limiar da miséria, pois o seu único rendimento vinha do trabalho do campo, enquanto concomitantemente era exercida sobre a população uma excessiva autoridade, por parte das forças da ordem, que na aldeia era efectuada pela Guarda Nacional Republicana, que usavam a força que o poder lhes conferia sobre as pessoas de baixa condição social, na sua maioria camponesa. A casa onde morava, com os meus pais, dois irmãos, uma irmã e a minha avó materna, de seu nome Teresa Maria Marques, a quem a casa pertencia por herança directa, estava situada numa rua conhecida como Rua da Varanda, nome que lhe deram devido a terem construído
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uma varanda defronte das portas da frente das casas construídas no lado direito da rua, sendo na aldeia a única rua com esta forma, uma vez que as casas ficavam a uma cota superior, de cerca de dois metros, em relação ao nível do piso empedrado da rua, assim como das respectivas casas do outro lado da mesma, logo, a sua construção, tinha uma arquitectura pouco vulgar. Devo até acrescentar que na aldeia não havia outra rua com uma arquitectura que se assemelhasse à minha, embora, em abono da verdade, não possa afirmar com rigor que não existem outras ruas semelhantes, por essas aldeias e vilas pelo nosso país fora, como é natural. A varanda, estendia-se paralela às casas térreas do lado direito, onde ficava a minha casa (como eram quase todas as casas da aldeia) num comprimento de cerca de uma centena de metros entre as duas extremidades, com um parapeito a acompanhar todo o comprimento da varanda, formando um corredor com cerca de um metro e alguns centímetros de largura, cujo piso era em pedra de calçada. O corredor entre as casas e o parapeito da varanda, conforme já foi mencionado, servia para resguardo e protecção das pessoas, tendo em conta a altura da varanda para o piso da rua, que ficava por baixo da mesma, e também ao mesmo nível das casas do outro lado. O parapeito era constituído por dois tubos de ferro, sobrepostos horizontalmente, distando cerca de 30 a 50 centímetros entre eles, ligados nas extremidades aos pilares de alvenaria,em forma quadrada. No topo de
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cada pilar, ao centro, havia uma cavidade de forma cilíndrica, com cerca de um palmo de diâmetro e de igual medida de profundidade, de onde saía do fundo da cavidade um tubo que ligava a cavidade ao exterior do pilar, que decerto servia para escoar as águas da chuva, e também presumo que essa cavidade tenha sido construída para ali serem plantadas flores, ou então para aproveitamento da água da chuva, mas estou mais inclinado para a hipótese da plantação de flores, embora não me recorde de ter lá visto alguma vez flores em qualquer uma das cavidades dos pilares. Para além destas particularidades, as duas extremidades da varanda terminavam numas escadas em pedra, às quais nós na aldeia dávamos o nome de escaleiras. Ao meio da rua e da varanda, havia um patamar, mais avançado, que sobressaía horizontalmente para fora do corredor, que era servido por duas escadas de acesso em cada lado, dando uma forma trapezoidal ao patamar visto do lado de fora da rua. A altura do parapeito, em frente da porta da minha casa, conforme antes mencionado, devia rondar os dois metros. Em relação ao piso da rua, aos poucos, enquanto crescia ia-se formando em mim um desafio, o de tentar saltar do parapeito para baixo – mais a mais com a minha característica de aventureiro que começava a despontar em mim naquela idade – o que viria a acontecer com o passar do tempo, até se tornar numa rotina. Só que um dia, o salto do parapeito não me iria correr bem, devido
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a um imprevisto e à minha falta de precaução. Essa situação, aconteceu no final de uma manhã soalheira de Verão, quando ao saltar do parapeito não reparei que vinha um homem montado num burro, junto à parede da varanda para apanhar a sombra, não me sendo possível visualizar o homem montado no animal, devido ao ângulo de visão que o parapeito formava. De tal modo que ao efectuar o salto caí na frente do burro, o animal assustou-se e pregou com o homem no chão empedrado da rua, tendo levado este ficado encolerizado, ao ponto de me arremessar o guarda-sol, que trazia na mão, atingindo-me nas costas, mas acabei por sair incólume do impacto do mesmo, apesar do arremesso ter sido feito a curta distância. O homem, depois de se ter levantado, montou-se de novo no animal e foi vociferando, e lá continuou no seu caminho. Outra situação causada por estes meus saltos aconteceu com um dos cães de um vizinho, que era caçador e morava na casa em frente à nossa. O animal rosnava-me hostilmente, sempre que passava perto dele, certamente por não gostar dos saltos que eu dava, do parapeito para baixo. Na infância, já manifestava possuir um temperamento irrequieto e irreverente, que dava azo a acontecerem quezílias, que acabavam em briga, mas não direi que era frequente. Recordo que só andei à luta apenas duas vezes na minha infância, e com rapazes diferentes. Porém, este meu temperamento que me levava a manifestar uma
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hiperactividade, tanto em casa como fora dela, em relação aos outros rapazes da minha idade, chegou ao ponto de a minha mãe me dizer algumas vezes que tinha sido mal baptizado. Não sei se o dizia com base nalguma lacuna que aconteceu no meu baptismo, ou se era uma forma de persuasão, para eu mudar o meu comportamento. Esta sua opinião era-me transmitida quando fazia qualquer traquinice em casa, enquanto ela andava no seu afã doméstico ou a preparar o almoço ou o jantar. Estas características do meu temperamento levaram-me a participar nessas duas brigas com rapazes da minha idade, e uma delas, que nunca esqueci, aconteceu durante uma briga muito acesa, de tal modo que durante o calor da refrega, depois de pontapés e de nos engalfinharmos, dei uma dentada no braço do meu contendor, deixando-lhe uma marca bem visível dos dentes no seu braço –o que me valeu a alcunha de “bruteza”, dada pelos outros rapazes do meu grupo de amigos, apesar de nunca mais ter repetido este tipo de agressão. Este incidente ficaria sanado sem grande constrangimento entre as nossas mães, porque elas eram grandes amigas e comadres desde muito nova – termo este que era devido a um pacto perenal, feito entre as nossas mães e que era tradição ser feita entre raparigas ou entre as mulheres, tendo como objectivo o respeito e a amizade entre ambas – tendo elas aceitado o incidente, como briga normal entre crianças daquela idade e daquele temperamento. Logo
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em pouco tempo tudo voltou ao normal e não mais se repeteria aquele meu acto censurável, não me livrando de uma grande reprimenda da minha mãe, ainda mais porque a mãe do meu adversário de briga era uma senhora muito afável, com grande estima na aldeia, tendo a pouca sorte do marido ter enlouquecido e se suicidado, deixando-lhe um filho e uma filha ainda pequenos. A sua filha não cheguei a conhecer, não sei se foi viver para casa de uma pessoa de família ou para alguma instituição de acolhimento. O seu filho, com quem briguei, chamava-se Manelinho dos Santos, mais tarde quando vim de visita à aldeia encontrámo-nos e ficámos amigos, era um rapaz alegre e animado, infelizmente vim a saber que faleceu quando já contava cerca de cinquenta e poucos anos de idade. A casa ao lado esquerdo da nossa pertencia à tia da minha mãe, que era também sua madrinha e, como tal, era tratada por madrinha por mim e pelos meus irmãos. Ela era irmã da minha avó Teresa, o seu nome era Maria da Graça e o do marido Francisco Bonito. Não tinham filhos e foram os primeiros da família a virem viver para Queijas, uma aldeia no concelho de Oeiras. Quando saíram da aldeia, alugaram a casa a um casal de meia idade que tinha três filhos, porém, só o mais novo vivia com os pais, os outros dois já eram casados, um vivia na Amadora e o outro em Beja, como vizinhos eram excelentes pessoas, sempre disponíveis para ajudar em qualquer situação que estivesse ao seu alcance. Na
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casa do lado direito da nossa vivia uma senhora idosa com aspecto lânguido e débil, esta idosa na aldeia tinha a reputação de possuir poderes sobrenaturais, para muitas pessoas era tida como bruxa, tinha o particular hábito, quando vinha junto da sua porta, ao ver-me no corredor da varanda perto da porta da minha casa, de me pedir com algum carinho para eu soprar no tubo de ferro, que ligava a cavidade do pilar para o exterior com a extremidade sobressaída, com a finalidade de ouvir o som emitido pelo sopro no tubo, um som com uma tonalidade grave e rouca, semelhante ao som de um búzio grande quando é soprado, e era notória a sua satisfação com que ficava ao ouvir aquele som. Embora a mim me parecesse um pouco estranho, acabava por achar piada àquele invulgar pedido, suponho que era a única pessoa que contactava com ela, ainda que por breves momentos, pois não me recordo de lá ter visto alguém a visitá-la ou talvez nunca coincidisse com essa situação. Nunca cheguei a saber se esse dom que a idosa possuia teve influência sobre o que ocorreu numa certa noite, quando acordei pela noite dentro e vi aquela débil criatura junto ao guarda-fatos do quarto onde eu dormia, e também os meus pais, porém em camas diferentes. Recordo-me de vê-la num movimento lento junto à porta do quarto deitado na cama ao lado da dos meus pais, separadas por um pequeno espaço, onde havia uma mesa de cabeceira (a que nós davámos o nome de banquinha), entre
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as cabeceiras das camas e sobre a mesma havia um candeeiro a petróleo donde saía uma luz muito fraquinha, nesse momento fiquei estarrecido, contive-me e fingi que dormia, sentindo um arrepio que me percorreu o corpo. Ainda hoje me questiono se o que vi naquela noite foi fruto da minha imaginação, provocado por qualquer distúrbio de origem psicológica, ou se foi obra do poder sobrenatural daquela mulher. Com todo o respeito, nunca tive qualquer motivo de queixa da mesma, desejando que descanse em paz. Decorrido algum tempo, nunca mais vi essa idosa, não chegando a saber o que lhe aconteceu, o mais provável foi ter deixado a casa por motivo de doença relacionada com a sua avançada idade, não me recordo depois de ter ouvido qualquer referência sobre a idosa senhora.
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II
Naqueles últimos anos da década de 50 e início da de 60 do século passado, vivíamos na aldeia um período de excessiva autoridade e até de alguma repressão exercida por parte da GNR sobre a população, cuja maioria era pobre, e que jamais poderia olvidar, o que já não era alheio às crianças com a minha idade. Embora já habituado a esta autoridade severa, não tinha a menor noção do que levava a tal procedimento, só alguns anos mais tarde relacionei que a razão daquela autoridade exagerada se relacionava com as eleições presidenciais, que ocorreram por essa altura e também devido a uma actividade clandestina por parte de pessoas antifacistas ligadas ao PCP na clandestinidade, que durante a noite espalhavam panfletos pela berma da estrada, com inscritos contra a ditadura e contra o estado de pobreza em que o povo vivia. Uma dessas arbitrariedades da GNR, que eu presenciei, aconteceu durante um Verão muito quente, quando as famílias vinham apanhar um pouco de ar fresco às suas portas, assim que começava o crepúsculo,
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após o pôr-do-sol, descansando, sentadas nos portados das casas, no pleno direito da sua réquia, eram mandadas de modo autoritário recolher para o interior das suas casas pela patrulha que passava na rua a fazer a ronda, nem havendo lugar a qualquer explicação por parte desta. Como também ninguém se atreveria a pedir esclarecimentos, porque corriam o risco de sofrerem represálias e irem presos, era como fosse um recolher obrigatório na aldeia – foram estas situações a par do atraso económico, sem perspectiva de emprego nestas zonas rurais do Alentejo, que provocou o êxodo da sua população. Durante a frequência da escola primária, os meus tempos livres fora da escola eram ocupados a jogar à bola, num campo de futebol de terra, com as mínimas condições e ligeiramente inclinado, com pequenas pedras soltas, situado ao lado do cemitério. Quando estavámos na escola tínhamos um recinto para as brincadeiras durante o recreio, havia um alpendre nas trazeiras da escola, já degradado pelo tempo, onde nos abrigávamos quando chovia, no tecto do alpendre havia uma colónia de ninhos de pardais, que deixavam no chão os seus excrementos e as palhas dos ninhos. Das minhas professoras primárias, a que mais me recordo foi a que tive na 3.ª classe. Ainda hoje guardo em casa o certificado da passagem da 3.ª para a 4.ª classe, com a sua assinatura do seu nome, Custódia Isabel Casadinho Barrocas. Uma recordação que fiquei da despedida dela, foi a de ter ido
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acompanhá-la no fim do ano lectivo com o José Morais, por nossa livre vontade, à estação de comboio da aldeia, que ficava a alguns quilómetros de distância. No nosso regresso fez uma grande trovoada, que resultou em que chegássemos a casa todos encharcados, mas foi com todo o prazer que o fiz, penso que o José Morais também, pela consideração que a professora nos merecia. Da professora da 4.ª classe apenas recordo o seu primeiro nome, que era Nelma, e a sua grande aplicação e empenhamento para irmos bem preparados para o exame, dispensando algum do seu tempo livre a dar-nos explicações em sua casa. O exame foi efectuado em Beja, recordo da minha mãe lhe ter ofertado meia dúzia de ovos de galinha, como cortesia e tradição. Baleizão era uma povoação formada por duas aldeias: uma situada num plano mais alto que tinha o nome de aldeia nova, que declivava para a outra aldeia que ficava mais abaixo, que era chamada de aldeia velha ou aldeia de baixo, porém em termos admnistrativos era uma única aldeia. O que era inevitável era a existência de uma rivalidade quando íamos jogar à bola, ainda na idade escolar. A aldeia de cima quando ia à aldeia de baixo jogar contra esta, independentemente do resultado do jogo, o final acabava à pedrada uns contra os outros, o mesmo acontecia quando os da aldeia de baixo iam jogar à aldeia de cima, no dia seguinte na escola, era como nada tivesse acontecido. Os amigos que mais recordo, que
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habitualmente acompanhava durante as férias escolares, eram o Manuel António, o Alvarinho e o José Morais, sem pretender omitir outros com quem convivi e cujas casas frequentava, como era o caso do Tói Lopes e do João Pires. As férias de Verão, passava-as na maioria do tempo a jogar à bola, no campo de futebol antes citado, ao lado do cemitério, muitas vezes com rapazes mais velhos do que eu. Depois dos jogos, chegado a casa, ouvia a minha mãe em tom de reprimenda: “Vens esbraziado. Dás cabo do calçado todo”, ficando por ali a sua repreensão. Hoje compreendo a razão daquela sua preocupação. Para além de jogar à bola, também ocupava algum tempo no campo, mais concretamente no azinhal, a apanhar grilos para trazer para casa dentro de uma caixa, quase sempre de fósforos, e na altura das boletas colhíamos as mais doces, pois já sabíamos as azinheiras que tinham as melhores para comer, mas eram apanhadas furtivamente, porque a GNR fazia uma vigilância frequente aos azinhais e aos montados das herdades. Isto para não falar no nosso instinto predador de ir aos ninhos, em que os mais procurados eram os de rola, embora não me recorde de trazer alguma para casa. Recordo com alguma nostalgia os costumes e algumas tradições, que tínhamos na aldeia, as mais marcantes eram aquelas que aconteciam no mês de Junho, em que os largos da aldeia eram enfeitados com mastros e canas verdes em volta dos paus que os escoravam, com o chão coberto de flores do campo,
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donde sobressaía o cheiro a rosmanhinho. Nas noites dos tradicionais Santos Populares, acendiam-se fogueiras de alecrim na rua, para junto das mesmas ser colocada uma bacia com água, para quem saltasse a fogueira olhar para a água da bacia antes ou depois de saltar, a fim de ver o seu rosto reflectido na água, o que era prenúncio de ter vida até ao resto do ano segundo a crença popular, o que levava os mais novos a saltarem a fogueira com grande entusiasmo e a demonstrarem toda a sua energia. Uma pessoa, que ficou guardada na minha memória, apesar da minha tenra idade e, com a qual convivi apenas durante um curto período da sua vida, antes do seu falecimento como é lógico de constatar, foi o meu avô paterno, de seu nome António Costa Baracinho. O pouco tempo que passámos juntos foi na sua horta e tratava-me com alguma ternura, demonstrando uma intenção de modo a prender-me a atenção no seu trabalho da horta, onde passava o tempo a cuidar das plantações e da rega das mesmas. Na horta, havia uma variedade de árvores de fruto: figueiras, marmeleiros, romãzeiras e ameixoeiras. A água da rega corria em pequenas levadas, era tirada do poço da horta por um dispositivo de madeira, que tinha o nome de cegonha, e percorria todos os canteiros onde estavam as variedades de hortaliças plantadas. O nome que puseram à horta foi “o coranchoso” porque era o nome que eu às vezes ouvia pronunciar. Esta ficava situada a poucos
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metros do poço comunitário da aldeia de cima, que era chamado o Poço dos Alfares, situado, por sua vez, a uma curta distância da estrada nacional onde havia um parque para os carros poderem parar e para os viajantes poderem descansar, e fazer uso dele como parque de merendas. O parque tinha muita sombra feita através de um pequeno renque de faias muito altas, onde os turistas aproveitavam para se abastecerem de água para as viagens. Nas férias de Verão era frequente eu lá permanecer com outras crianças da minha idade, passando algumas horas na expetactiva de receber dos turistas algum dinheiro ou cigarros, por serem as únicas palavras estrangeiras, neste caso galicismos e anglicismos, que nos ensinaram a pronunciar: cigarrettes e money. Quando o meu avô faleceu, o arrendamento da horta passou para o meu pai, que para além da horta também tinha uma seara de tamanho médio, anexada à mesma, ou a horta é que estava no terreno da seara. Esta tinha uma forma rectangular, com cerca de 200 metros de comprimento por 100 de largura, tinha uma cerca em toda à volta, num dos lados tinha um muro de argamassa, do outro, ladeando a estrada nacional que atravessava a aldeia, tinha uma cerca formada por piteiras encostadas umas às outras, num dos topos da seara ficavam as traseiras das casas, todas elas tinham um muro a tapar a saída para a seara, com excepção de uma que pertencia ao seu proprietário, de seu nome Sr. José do
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Paço. No outro topo onde estava a horta, a vedação era feita com silvas e piteiras, a seara era cultivada alternadamente com cereais, uns anos com trigo outros com favas, para o terreno descansar e dar mais rendimento. O valor do arrendamento do terreno era feito através de um contrato com o proprietário, em função da percentagem dos cereais apurados no fim da colheita, esta situação manteve-se até a nossa família migrar para a região de Lisboa, onde já uns familiares se tinham fixado antes, tendo o meu pai, quando veio para Lisboa, deixado a propriedade com o mesmo contrato, a cargo do seu cunhado, de nome Manuel Godinho, que era casado com a irmã do meu pai, de seu nome Antónia. Mais tarde, o cunhado, a esposa e os filhos (o meu primo Manuel e a minha prima Joaquina Teresa) vieram viver para a Brandoa. Actualmente aquele terreno pertence à Casa do Povo, tendo sido lá construído um Centro Social, com o estatuto de IPSS, servindo de Centro de Dia das pessoas idosas e das pessoas com fracos recursos. O meu avô era analfabeto, porém era conhecido na aldeia como poeta popular. Da sua obra não ficou qualquer registo nem espólio poético, tendo apenas ficado alguns versos e uma estrofe na memória das pessoas que gostavam de poesia, que com ele conviveram, a maioria das quais já faleceram. Uma pessoa que ainda se recorda de uma estrofe do meu avô, a quem eu fiquei muito grato por me a ter transmitido, foi o meu amigo e conterrâneo
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Ramiro Branco. Esta estrofe deixa transparecer o seu pensamento ateu, em total desacordo com a prática dos padres da Igreja Católica da época, como é fácil de concluir pelo seu conteúdo, embora possa presumir, mas em rigor me faltem dados, para afirmar que ele tenha sido um poeta mais versátil. Passo, então, à citação da estrofe antes mencionada: “Enquanto no mundo existir Os homens da coroa feita Não acaba o fanatismo E o mundo não endireita Só se a justiça divina Ou Deus do céu, se é que o há? Vier um dia até cá Para ver se os desmagina Pregando nova doutrina Em modos de não o virem Do prenderem e ferirem Foram eles os causantes Têm culpas agravantes” “Os homens da coroa feita” é uma referência aos padres, porque usavam uma pequena coroa na cabeça, e reforçando essa sua referência fez uma quadra sobre a utilidade dos sermões:
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“Ouve-se um padre pregar São vozes! Leva-as o vento O que é que se vai buscar? Àquele estabelecimento” Atendendo ao tema focado nestes versos, sinto o dever de referir, em respeito para com os leitores, que me revejo mais próximo do agnosticismo, realçando todo o respeito para com os católicos crentes, que vêem representada na Igreja Católica a esperança e o contributo para a justiça da humanidade. Embora eu só frequente a igreja em casos pontuais como casamentos e baptizados, tenho constatado que a igreja abriu as portas a diáconos, pessoas que vieram do seio da sociedade civil, apesar de serem apenas ainda algumas excepções. Em minha opinião, penso que eles têm uma visão diferente dos padres em geral sobre a vida, por viverem no meio da sociedade real, muito diferente de outros tempos, sendo reconhecidos mesmo por aqueles que não sendo praticantes, ou que frequentam a igreja ocasionalmente, como por exemplo: batizados ou missas, de sétimo dia por alma de pessoas que morreram, contudo nunca me convenci nem vi na prática da Igreja uma acção eficaz em prol da justiça social, deixando antes transparecer uma passividade e alguma cumplicidade com as forças mais conservadoras que representam a classe mais poderosa da sociedade. O que me faz trazer à colação uma situação que pude
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constatar presencialmente durante uma missa do sétimo dia, na igreja de Laveiras, em que estive a assistir com a minha família, por morte da minha avó Teresa. Nesse dia era véspera de eleições legislativas, no ano de 1980, embora não pretenda concluir que a tomada de posição do padre tenha obedecido a uma ordem que viesse da hierarquia da igreja, fosse esse o caso ou não, não achei correcta a ocasião de aproveitar a sua homilia para referir-se às eleições que iriam ter lugar no dia seguinte, mais parecendo tratar-se de um comício encapotado em prol do seu partido, tentando influenciar os presentes a votar nuns partidos, em detrimento dos outros, porque acho que é do mais elementar direito de cada pessoa usufruir da liberdade de pensar em quem votar, e de escolher a religião que entender, só que naquela situação, durante a homilía, o padre não só não foi isento, como exortava os presentes a não votarem nos partidos marxistas, tendo-me levado a abandonar a missa indignado por ofensa à minha sensibilidade, logo a seguir também o meu irmão António abandonou a missa, e acabámos por nos encontrar na taberna mais próxima da igreja, que por coincidência era de um nosso amigo comum. Voltando aos versos do meu avô, acho que se torna oportuno salientar, que o tema que ele aborda naqueles versos mantém todo o cabimento nos dias que decorrem, no que concerne ao fanatismo religioso, a nível das religiões da humanidade, como temos vindo a assistir, de
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grandes barbaridades que vamos tendo conhecimento através da comunicação social. Poucos anos antes, daqueles anos que passei na horta com o meu avô (contava eu a tenra idade de dois anos e alguns meses), ocorreu ali bem perto do coranchoso, concretamente no dia 19 de Maio de 1954, o hediondo assassinato, da jovem camponesa Catarina Eufémia, perpetrado por um graduado da GNR, vindo de Beja, comandando um pelotão, quando no decorrer de uma reinvindicação pelos legítimos direitos laborais dos camponeses, em que ela se assumiu como porta-voz do grupo, foi assassinada, por tiros da espingarda, disparados pelo oficial que comandava a GNR. Naquela época, aquela força defendia com extrema autoridade e zelo os interesses dos agrários e latifundiários, com a cobertura do poder político vigente, enquanto os camponeses eram reprimidos, tendo como exemplo o episódio descrito anteriormente do recolher obrigatório e da prepotência exercida sobre a população da aldeia.
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