Ocasiões - Páginas de Memórias

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título: OCASIÕES

– Páginas de Memórias Augusto edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) autor: Adelino

foto de capa:

Adelino Augusto Ângela Espinha paginação: Paulo Resende capa:

isbn:

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1.ª edição Lisboa, setembro 2021

978­‑989-9028-30-2 486870/21

depósito legal:

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© Adelino Augusto

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Abençoada a mãe que, desde cedo, ensina ao seu filho o caminho do trabalho honesto.


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Prefácio

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Para o ser humano de equilibrado controlo racional, não haverá sentimento mais sublime e feliz do que o nascimento do seu primeiro filho. Muito antes de conhecer esse instante singular, já na fértil terra angolana davam fruto as inúmeras árvores que carinhosamente plantei, e que por lá, certamente, ainda hoje existem. Depois dos 70 anos, sonhei escrever sobre qualquer coisa. Sonhar é a tarefa mais fácil que conheço. De atributos limitados, onde iria buscar arte suficiente de modo a levar a cabo este meu tardio e arrogante devaneio? Em criança, lia apaixonadamente histórias de banda desenhada, algumas das quais ainda hoje preenchem uma parte importante da minha memória. Quantas aventuras do far west, com índios e cowboys, permanecem no meu imaginário… Por vezes, eu próprio as inventava e escrevia, brincando com os meus amigos, perdido em envolvente fantasia. Aliás, brincar deve ser sempre a prioridade das crianças. Talvez por via deste pensamento nato, sem que disso o orgulho 7


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me assista, algo me sobrou de uma breve passagem do fraco aluno que fui. Um professor de francês, solicitado a pronunciar-se acerca do meu aproveitamento, disse, num medíocre elogio, que eu era um «grande cábula». Tinha razão, o mestre. Numa prova para 20 valores, a redacção valia 10. Foi esta a minha nota. Sem ilusórias ambições, reconhecendo humildemente a fragilidade da minha capacidade para tratar as letras, como outros o fizeram, e tendo a perfeita noção da responsabilidade de enfrentar a exigente crítica literária, sem me arriscar por trilhos onde a luz está fora do meu alcance, desejando, todavia, algo fazer, optei pelo caminho mais simples — compilei essencialmente alguma «matéria-prima» antiga que a memória (ainda) retém, resultado lógico do que mais marcante me foi calhando pelo caminho, pedindo desculpa pela inevitável descontextualização de alguns temas, o que será naturalmente compreensível. Entre outros, destaco, a título de exemplo, «AS ELEIÇÕES E O MEU VOTO», que, oportunamente, mereceu múltiplos comentários dos meus amigos nas redes sociais, onde a pequena crónica foi amplamente divulgada. Aos poucos e com o determinante apoio de minha mulher e dos meus três filhos, foi ganhando corpo este discreto trabalho que baptizei de OCASIÕES. São pequenas crónicas variadas, focando, aqui e além, sentimentos e perspectivas meramente pessoais, folhas soltas da história de uma vida desigualmente repartida entre dois países. Nações irmãs, de uma original proximidade cultural 8


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e histórica muito forte, que dividem o coração do autor, que aqui se exprime na primeira pessoa. De um lado, contemplo com orgulho o chão sagrado da minha terra lusitana; do outro, o amável povo que amistosamente me acolheu quando ainda era muito jovem, e com o qual rapidamente me identifiquei, criando raízes profundas que me prenderão até ao último suspiro.

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Pai incógnito

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Este trabalho ficaria incompleto, da mesma forma que uma qualquer construção desprovida de suportes ou alicerces, se não incluísse este apontamento crucial. Uma peça importante no puzzle da vida do autor. No tempo em que me coube a vez de iniciar a viagem por este mundo de mortais criaturas, ainda que por todos apontado o progenitor, ainda que a força da genética conferisse ao recém-nascido semelhanças físicas irrefutáveis e evidentes com o autor material do «delito», desde que aquele fosse produto de uma relação extraconjugal, não havia outro remédio senão, no acto do registo, atribuir traiçoeiramente à inocente criança, o pomposo, insólito e desprezível apelido de «filho de pai incógnito». Como todos sabemos, os avanços tecnológicos no campo da biologia lograram obter ferramentas decisivas para absoluto esclarecimento de dúvidas. Até que a lei abolisse esta norma medieval, resquício de uma sociedade feudal, comodamente instalada nas conservatórias dos registos civis, sobrou-me o infeliz pesadelo 11


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de carregar esse humilhante fardo, infestado de vergonha e complexos, provocador de mutações orgânicas no que respeita à cor do rosto, sempre que era interpelado, por vezes de forma irónica ou vexatória, no sentido de mencionar o nome do pai. O INEM, criado somente no início dos anos 80, dispõe hoje de psicólogos para algumas emergências. Esta estaria, seguramente, na lista de prioridades. Sociedade retrógrada, ignorante e injusta que se recusa (ou recusava) a perceber que, em qualquer caso, o «produto» resultante do binómio causa-efeito não tem a remota possibilidade de modificar a sua própria origem. Pobre, mas abençoada mãe que, com escassos teres ou haveres, teve a arte e a força necessárias para, com o amor que só uma mãe possui, orientar o seu único filho, de cabeça bem levantada, pela vereda certa da vida.

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A rifa

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O Verão acabara de chegar e, com ele, as tão esperadas férias grandes. O menino de 10 anos fizera, com aprovação, o exame de admissão. No bolso dos calções de ganga guardava, orgulhosamente, uma moeda (das brancas) que ganhara como prémio. Alegre e feliz, descia a avenida para norte. Atravessou a ponte sobre o Pavia, pouco se importando com o odor fétido das águas residuais do pequeno rio, que de rio pouco tem que justifique esse nome. A proximidade da feira previa-se pelo progressivo aumento de pessoas num frenético vaivém. Ao longo da estrada, as tradicionais barracas expunham os mais diversos artigos e os vendedores chamavam os clientes em ruidosa gritaria. O menino de 10 anos previa uma manhã plena de alegria. Com dinheiro no bolso, iria, talvez, jogar matraquilhos com os amigos ou, quem sabe, alugar uma bicicleta para pedalar por ali perto. Podia, ainda, comprar um bolo. Isso… um caramujo, que só de pensar lhe fazia crescer água 13


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na boca. Porém, nem sempre as coisas correm como mais se desejam. Numa das barracas da feira, algo em particular desperta a curiosidade da criança. Um pequeno cesto, contendo uns papelinhos enrolados. Era uma RIFA, que tanto podia indicar como prémio um dos valiosos artigos expostos, como estar em branco e não valer nada. O dono da barraca, apercebendo-se do interesse do garoto, chamou-o e disse-lhe, sorridente: — Queres experimentar? Não pagas nada por isso… O menino pegou num dos muitos papelinhos do cesto e entregou-o ao feirante, que, após habilidosamente desenrolado, continha escrito no seu interior o nome de um magnífico prémio. Entusiasmado, o garoto não pensou duas vezes. Entregou a moeda ao ardiloso feirante, e o pior aconteceu…! Por mais academias e faculdades que se conheçam, há uma escola que nos ensina muito mais — a escola da vida.

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A chegada

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Que força inexplicável, que misterioso sonho aventureiro levou um jovem, de 18 anos, a partir para um país distante e desconhecido, deixando para trás tudo quanto a vida lhe tinha dado até então?

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Lobito, Angola, 11 de Fevereiro de 1963 O paquete VERA CRUZ dobrou a ponta da restinga e entrou nas águas calmas da baía. Ao aproximar-se do porto, evidenciou a sua opulência com um ronco sonoro prolongado, anunciando a chegada. Não tardaria a atracar perante a ansiedade dos passageiros e da multidão que os aguardava no cais. A meio da manhã, o sol brilhava forte e quente, proporcionando um colorido tropical à bela cidade portuária. Na época, uma pérola de inestimável valor e beleza na costa ocidental africana. O navio, carregado com passageiros, que cerca de 11 dias antes saíra de Lisboa, com breve escala pela capital angolana, encostou finalmente ao cais. 15


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Alguns passageiros acenavam para a multidão, que correspondia igualmente. Aqui e ali, gritava-se pelos nomes. Outros, curiosos, procuravam vislumbrar alguém conhecido. Havia até quem chegasse movido pelo espírito de aventura, procurando vida nova em terra promissora. Do alto do convés, vislumbrei no cais um grupo de pessoas. Alguém que mal conhecera em Portugal. Não havia dúvidas. Estavam à minha espera. Nesse grupo, que me pareceu uma família, distingui uma menina que aparentava 12 ou 13 anos. Com um semblante alegre, trajava um vestido leve, de flores vermelhas. Os cabelos soltos caíam-lhe sobre as costas. O seu olhar tímido, mas risonho e jovial, acrescentaria encanto ao mais belo rosto feminino. A escada de evacuação foi colocada e, imediatamente, alguns estivadores subiram a bordo. De tronco nu e brilhante de suor, amáveis e sorridentes, transportavam, num vaivém constante, a bagagem dos passageiros acabados de chegar. Neste meu primeiro contacto africano, desvaneceu-se a imagem que, negativamente, me tinha sido incutida na Metrópole. Timidamente, desci para o cais. As pessoas que me esperavam, após um breve cumprimento, ordenaram o meu encaminhamento. Antes, porém, os olhos da jovem menina cruzaram-se casualmente com os meus, mas quem havia de imaginar que aquela criança iria ter influência decisiva no meu futuro? Tão decisiva quanto uma mulher pode ser na vida de um homem feliz. Mãe dos meus dois filhos, dedico a ela, em especial, com o devido respeito pelos meus caros leitores, esta pequena crónica, cuja inspiração narrativa fico a dever a um dia 14 de Fevereiro de um ano já esquecido. 16


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A primeira noite

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Ainda mal refeito do melancólico adeus aos familiares mais queridos na minha terra natal, encontro-me desde ontem na cidade de Benguela, aqui mesmo ao lado do Porto do Lobito, onde desembarquei há menos de 24 horas, após uma viagem marítima de cerca de 11 dias. O calor é sufocante. Transpiro e tenho o coração apertado de saudade. Não gostei da comida e a minha primeira noite em solo firme africano foi inacreditavelmente horrível. Benguela parece uma cidade encantadora, onde é evidente a forte presença colonial portuguesa. Logo à tardinha, alguém me transportará para o interior, onde irei trabalhar numa fazenda de sisal. No escritório, segundo me disseram. Espero não desiludir. A honestidade e a vontade de trabalhar e vencer são as minhas credenciais. Entretanto, vou procurar os correios para enviar uma carta para a família, dizendo que cheguei bem. Se for por via aérea, estará lá dentro de 4 ou 5 dias. Acabo de fazer, perante o leitor que neste momento me honra com a sua presença, um breve retrato escrito, 17


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extracto das minhas primeiras horas em Angola, possuído por um estado de espírito bem peculiar de qualquer jovem emigrante. Porém, não é propriamente este o objectivo desta pequena crónica. Perdoe-se-me também o título, cuja imaginação imediata do leitor pode eventualmente apontar para um tema completamente diferente, quiçá mais apetitoso. Há, na introdução deste singelo texto, uma pista que me traz à memória uma bizarra e inesperada situação que jamais esquecerei. Mal acabara de jantar, fatigado e desejoso de uma cama mais cómoda que o estreito beliche do navio, dirigi-me para o quarto que me foi destinado na pensão barata onde alguém me alojou. Passou mais de meio século, mas lembro-me que o quarto era pequeno e abafado com uma janela de rede que dava para um pequeno quintal. Lado a lado, duas camas. Uma (a minha) de solteiro, a outra, um pequeno divã cercado com um mosquiteiro branco de rede. Despi-me à luz débil de uma lâmpada pendurada no tecto, deitei-me e adormeci imediatamente, indiferente ao odor pestilento das almofadas enxovalhadas. Pouco tempo depois, qualquer coisa estranha me perturba o sono. Uma comichão irritante ataca-me o pescoço e toda a parte superior do meu tronco nu, como de uma reacção alérgica se tratasse. De súbito, alguém acende a luz que me fere os olhos e vejo, assustado, um homem africano desconhecido entrar no quarto. O homem despiu-se e, sem dizer palavra, deitou-se no divã. Foi uma noite em vão, como se costuma dizer. Não tanto pela presença do estranho deitado ali ao lado, mas, 18


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fundamentalmente, pelos milhares de percevejos que invadiram a minha cama, deliciando-se com sangue fresco, acabadinho de chegar da Metrópole. Clarividente prenúncio de nuvens negras, carregadas de múltiplas e atribuladas dificuldades, que rapidamente se aproximavam.

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Pelos atalhos da memória

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Não foi fácil ou cor-de-rosa a Primavera da minha existência. Terá sido, no entanto, feliz. Uma criança pobre nunca precisou de muito para ser feliz. Virgem, segundo os astros, abri os olhos na presença do violento conflito mundial, com o holocausto a manchar de sangue e luto a História da Humanidade. Dividia-se o globo como no século XV com outros protagonistas, mas por razões semelhantes. Duas forças poderosas e ideologicamente opostas disputavam cada palmo de território, marcando posições, consoante os respectivos interesses estratégicos. Naquela época, sobreviver era a sorte dos pobres. Vem-me à memória alguns problemas de saúde madrugadores e particularmente marcantes, não só pela sua gravidade, mas, sobretudo, pela forma como os mesmos foram favoravelmente resolvidos. O sarampo, o trasorelho e as bexigas foram males menores, comuns a qualquer criança. Com 4 anos, contraí uma 21


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coqueluche que evoluiu para uma grave infecção pulmonar, motivo para o meu baptismo com antibióticos. Como se sabe, a milagrosa penicilina, acabada de inventar, era, naquela altura, novidade de total eficácia terapêutica para algumas doenças, até então fatais. A penicilina que, alguns anos depois, voltaria a intervir para me salvar de uma mastoidite bilateral (infecção grave dos ouvidos), com recaída no ano seguinte, consequência, segundo opinião médica, da chamada gripe asiática que chegou à Europa nos anos 50. Mais tarde, já com 18 anos, em Angola, sem família e em condições precárias, após duas semanas de elevadíssima temperatura, foi-me diagnosticada uma infecção intestinal. Valeu-me a intervenção de um velho e experiente enfermeiro que, em derradeiro momento, me amarrou à vida que estava por um fio. Lembro-me como se fosse hoje. Após tomar, sem êxito, alguns remédios indicados pelo médico, a febre cedeu, como por milagre, à primeira toma oral de um produto chamado cloromicetina (cloranfenicol), antibiótico de velha geração, muito usado na altura, mas hoje, por motivos pouco convincentes, apenas disponível em alguns países do chamado terceiro mundo. Talvez ali, os alegados nocivos efeitos secundários, obviamente de igual gravidade, não sejam tão preocupantes. Digo eu.

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O número 2

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Esta pequena crónica é um breve encontro com o passado distante e traz luz à memória, evocando um flagrante pouco feliz da minha complicada adolescência. Sobrou-me, no entanto, a lição e a certeza de que um mau aproveitamento escolar, em tempo oportuno, representa não só uma frustrante desilusão para os pais, mas também, eventualmente, um revés decisivo na vida futura do aluno. Em boa verdade, não tenho, hoje, a menor noção se aquela prova escrita me correu bem, mal ou assim-assim. Contudo, terá sido suficiente para ser chamado a comparecer, dias depois, na prova oral. Aproximava-se a hora do almoço. O resultado dos exames orais dessa manhã tardava a chegar. Talvez para atenuar a ansiedade, saí para o bem tratado jardim frontal à escola nova. Lá dentro, no pequeno átrio, os restantes alunos e alguns familiares conversavam nervosos, perante a iminente divulgação do resultado. Subitamente, alguém surge com a pauta ma mão, fixando-a no interior da vitrina. 23


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