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Em lugar recôndito de bichos e homens, a chão de prover ferrados, vidas de tirar sem acrescento, feitas de preces e sinapismos, vive Ildebrando. Viúvo de Piedade, toma-se de amores por Gertrudes, mulher de Teófilo, homem de carácter acintoso. Ali se têm outros de bem e de mal e mulheres de os escorar. À força de braço e palavra que sentencia correm dias iguais que só a morte e as estações diferem. O pecado tem todos os moldes e conjuram-se perdões sãos e indevidos. Cremilde, mulher de muitos anseios e dada à lascívia, conhece segredos que não pretende guardar. Gaiatos de escola ou lavoura, quais gafanhotos de pulo lesto, permeiam alegria e tragédia em aflições de crescer, colorando em balouço de voos infindos o plúmbeo fado das gentes crescidas. Na esteira da prosa poética, este livro é também um exercício de estilo que exalta a Língua Portuguesa.

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Jorge Alexandre Gonzalez Faria nasceu em Mortágua em Abril de 68. O irreverente Maio desse mesmo ano encapelou-lhe a alcova. Professor do ensino básico há mais de um quarto de século persevera sob as quimeras de quem é entronizado na pasta ministerial da educação. Neto de um alfaiate e de um amolador galego, talvez a isso se deva o recorte estilístico e o gume aguçado das palavras. Escreve cada livro como alpondras se expusessem.



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FICHA TÉCNICA

1.a Edição Lisboa, maio 2022

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capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

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título: Espinhos autor: Jorge Gonzalez edição: Edições Vírgula® (Chancela Sítio do Livro)

isbn: 978-989-8986-59-7 depósito legal: 499547/22

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© J orge Gonzalez

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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publicação e comercialização:

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às minhas filhas

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A neve caía no chão frio, disposta a ficar para o Inverno; um manto pacífico cobriu para o sono próximo toda a terra visível, e só em torno dos estábulos a neve se derretia e a terra era negra, porque o sangue das vacas e das ovelhas se escoava por debaixo das tábuas para o exterior, pondo a descoberto os lugares de Verão. Andrei Platónov, A Escavação

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deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos encolhidos, ele dormia, não era a primeira vez que ele fingia esse sono de menino, e nem seria a primeira vez que me prestaria aos seus caprichos, pois fui tomada de repente por uma virulenta vertigem de ternura, tão súbita e insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir inteira e prematura para receber de volta aquele enorme feto.

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Raduan Nassar, Um Copo De Cólera

Eram os pêlos da cauda do cavalo, que mergulhavam na água, à maneira das amarras, ainda presas ao cais, de um navio que tivesse perdido corpos e bens. Através da superfície da água, avistavam-se dois grandes volumes serenos, e que vogavam suavemente ao sabor da corrente. A imagem do grande cavalo e do burro, afogados, de olhos abertos, era irreal, quase tranquila. Philippe Claudel, O Relatório de Brodeck

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À face do precipício afadigava nas pálpebras o tapume que não se insinuava, Ildebrando, teimando em reverter a vertigem. Recuara, descendo a inda agora íngreme ascensão, uma mariposa diurna e indecisa e mais lesta driblando os calhaus pétalas descoloradas como desgraças próprias que soçobravam e onde coçava os fundilhos das calças, Ildebrando, afincando os dentes na giesta acre pão que a charneca amassara sorvendo orvalho leite de cabra. O assobio ecoado assentava no perdigueiro desenfreado ao seu encontro língua caída e lealdade a prontos resfolegava por um pedaço de pão e um afago esquecido. Nenhum outro rumo destronou o bicho seguindo nas patas do dono com a alegria de quem segue. O caldo frio de dias parcos e a insinuante ausência de um avental bordejado de renda pobre atiçaram-lhe o frio e assim quis atiçar o fogo, Ildebrando. Sorveu morna a sopa dos dias e cortou um naco de pão pedra coração. O Fiel de melhores dentes roeu primeiro que o dono, Ildebrando, que amolecia ainda a côdea no prato esmaltado. O frugal repasto de canino e humano industriou Ildebrando e de alfaia fez lavoura que a terra tudo dá como leva. 9

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O Fiel presenciando expectante o entrar e sair no chão da enxada e farejando a imanência fez-se à tosca cruz de pau cenotáfio e uivou como se Ildebrando pudesse resgatar à terra não apenas as pedras coração amontoadas quais pirâmides anfractuosas mas a dona nas roupas e parcos pertences inumados a três palmos no linóleo coçado. Ildebrando destinou mais uma das pedras coração ao lombo malhado do perdigueiro errando com propósito, e tantas já elas eram que um dia haveria de as ir transmudar para lugar menos sacro. O astro maior depressa se lhe insinuou na tonsura e Ildebrando ordenhou duas porções de água terra na manivela que o chilrear metálico trouxera, mais do que qualquer chamamento, o Fiel de língua alongada. Beberam irmanados de malga prístina recolhendo a chão coberto chão terra desde que Piedade o deixara de calcorrear, mas conseguindo ainda fazer-se ouvir: ”Ildebrando, casa não é lugar de cão!”, e Ildebrando ulcerado com a indelével vaga teimava em opor-se-lhe. Fundo de ferro requentado mil vezes esvaziado outras tantas pau ardido debaixo pau talhado por dentro recolhendo o fundo caldo ferrugem refeição de homem e cão sorvida a gosto de saber a nada. Ildebrando prostrado o Fiel esparramado a caçadeira dependurada vazia de intenção guarnecida de munição mirando janela retirada de supetão mirando homem mirando cão bebendo óleo deposta em peças linho limpando amarelecendo ensopada a mortalha cigarro a mortalha mantel cama sudário morrão. Ildebrando em quarto de penas Ildebrando posto em quatro níveas peles aladas, enlevado, Hidra venérea, como vie10

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ram ao mundo, como veio ao mundo, resfolgando afagado afagando em torvelinho de alvas carnações envolto, orvalho corpóreo em sua mão saliva impelida a vivace mão pêlo impropério pancada cainhar Fiel. Havia de ir mirar a Gertrudes saia pelo tornozelo a descoberto, Gertrudes na ordenha na lida no dar de comer aos bichos segurando os proventos cortando couves para um que dois só aos dias de cinco em cinco. O Teófilo punha casas de pé para que outros se lá deitassem e volvia apenas quando a furgoneta carregava vidas que ia alijando ao longo do curso estrada e volvidas horas só chofer e Teófilo se despediam até ao alvorecer de segunda. E tal era pelas sextas-feiras noite dentro, mas hoje era terça, o calor de Teófilo já não pontuava o leito agora de um só, uma só, e Ildebrando ali se via sem nunca ali ter estado que a vizinhança de um homem não é nunca bem-vinda por homem outro quando este tem doce mulher suculenta presa. O caminho quer pão cabaça de vinho e onça de tabaco arma a tiracolo para raposa que há muito não enxergava, e o Fiel na dianteira. A jornada não sendo longa também não era curta, cinco vezes a distância de um disparo com cartucho bala guardado para outras caças e a casa já se vislumbrava ao longe. Riacho sede aplaca ao Fiel, Ildebrando sorve mais turvo, trilha a tanto percorrida que tiro Gertrudes poderá auscultar. Eco de intento explosão de desejo chega sussurrado a Gertrudes que aponta o olhar para os horizontes entendendo que bicho-homem por além deambula. Perora Ildebrando 11

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pelo mato rasteiro com o Fiel na lonjura atrás de presa que nenhum viu levando no entendimento a outra que cobiça.

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A guilda deixou lavadas as paredes e mãos cimento em bidão de água sem fundo esfregam frontes e alisam cabelos. Teófilo, arcediago de edificações, sugere bucha ao pé das putas, só se o Marcolino, paneleiro de tantas viagens que o ficar a sós com chofer dessa índole um dia haverá de ensaiar trocar a maçaneta das mudanças por coiso carnudo ficaria coto ali mesmo, se dispusesse a carregar tão devassos passageiros. A furgoneta leva carga suplementar que há-de verter à beira da estrada, desta vez não os largando em casa, que há-de sim verter-se em carnes gastas, aliviando-se nas estradeiras putas de céu aberto putas de pinhal e tojo dinheiro na mão cu no chão. Serviço feito e muezim Marcolino convoca da furgoneta de onde não arredou invocando receios de chatos, aliviou-se ali mesmo olhando os cus peludos que ascendiam ora devagar ora mais depressa, e que prefere em vez dos pelados. É amaldiçoado uma vez mais. Se é ele que os devolve às esposas é o mesmo quem regula de cima do trono de mariconço, aquele filho de uma grade puta sua mãe que de ser espetada por tanto homem gerou um que gostava do mesmo que ela. O Marcolino tem dias mais certos do que outros e nesses mal se consegue sentar, pelo menos é o que aos homens parece; 12

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nesses dias até é ele quem aventa uma taça no tasco antes da recolha ao barracão. Das vezes outras o sáfaro não descobre os dentes, o Marcolino, ameaça de mandriagem ao patrão carrega-os depois da hora que alega ser compensação para lentidões escusadas directos ao barracão de tábuas zinco serapilheiras de chão até alvorecer seguinte mais amistoso consoante haver sido no cu alagado ou não. E já é dia novo de encher placa de moradia rica e a guilda remelosa que não sabe de higienes do cinto pra dentro e por debaixo enxameia pela furgoneta de fedores passados e presentes na pestilência de cheiro que deixa adivinhar fossa de pessoa, o Marcolino, que pontua mal sentado e profere um “Viva” de euforias paneleiras de quem teve o cu mais cheio que a furgoneta de gente. Balde por balde puxada roldana catafalco cimento, cimento, cimento… enche morada vindoura e esburaca estômagos. Chega o Marcolino a verificar se a despega do almoço não terá sido cedo e como não tece comentário desditoso a colher no esmalte se faz mando.

Cremilde de levianas ancas e peito largo que nela só se põe homem afortunado por possuir fortuna ou assim se faça passar persigna-se uma última vez antes de se fazer ao pecado da consolação privada que haverá de ser menos venial do que quando com outro se aliviasse que Cremilde não conhece as 13

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Escrituras mas sabe de artes de ouvido como nenhuma outra e apura-o diariamente muito mais desde que enviuvou de homem podre velho de promessas palácios e arrumou-a na venda onde tantos compram. Sabe ela de juras de amor de homens que por longe arranjam sustento de hábitos de viúvo de heranças por adjudicar de ilícitos filhos fruto de pecados que ninguém mais que outros dois sabem das cornaduras de cada qual e daquelas que ela enfiou com ou três ou quatro que lhe asseguraram vida dali pra fora e que depois do serviço feito rápido ainda mais depressa desapareciam, como toupeiras que estiveram e nunca foram vistas no que minam. Era como se lembrava deles, mas a cegueira era dela que começava tudo de olhos tão abertos e depois os ia fechando de tal modo que a toupeira até parecia ela. Ildebrando vinha aviar-se de coisas que soubesse fazer para lhe aquietar fomes de viuvez que nunca ele pegara em panelas pretas de patas quando Piedade de neuma em neuma mexia e acrescentava e provava e chamava Ildebrando para repasto saboroso de carnes a boiar. Ildebrando intentara-o mas do que uma vez, o cânone de Piedade, mas nem a fome evitava a cuspidela e um repasto maior para o Fiel cão. Ficava-se, Ildebrando, então, por águas fervidas de couve batata e cebola que arrancava da terra à força de braço roendo depois um naco de carne seca quando ainda a havia. E também era ao que vinha. Cremilde podia ver nele toupeira mas não ignorava, nada ignorava, que as roupas que lhe assentavam mal no corpo eram suplentes doutras apenas e que em casa só mágoas por Piedade amor de cão e menos moedas do que as 14

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que ali deixaria. Pela cabeça de Ildebrando perpassavam também as formas imaginadas despidas de Cremilde e afiançava que o velho que tanto lhe fiara não poderia ter atributos que as atestassem como mulher assim merece. Ildebrando fá-lo-ia por piedade dos dois mas não por memória do velho, ademais jamais tomaria a dianteira e como Cremilde também a nunca tomara havia por ali um apreço de viúvos ambos sem de ensejos mútuos consolação. A codícia de Cremilde não estrebuchava dentro de Ildebrando a quem chegava o remedeio que sempre tivera com Piedade e que agora muito menor ainda assim se remediava. O Fiel irrompeu por ali adentro e Ildebrando chutou-o no focinho com força ligeira de assim se fazer entender e Cremilde não se opôs para não estragar os cálculos que aparentaram meio trocados talvez por juros antigos a Ildebrando que desembolsou manso o exigido indagando se a alguém fazia falta homem de trabalho. Que sim, que o Marcolino perguntara por tal. E esse não era o que diziam ser rabeta e carregava o Teófilo, homem da Gertrudes? Que era esse todo. Que lhe dissesse que mais não procurasse que já encontrara por que perguntara. Que assim diria. Que passasse no caminho onde a mata se adensava e o chão era mais batido que lá ele estaria antecedentemente de o sol se lobrigar. Pois que sim. 15

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Dali abalou Ildebrando confiado nas anuências de Cremilde e nos ganhos que daí adviriam. Só Fiel, ainda desconfiado de inusitado pontapé, lhe acossava o espírito, pois que dele fazer cinco dias era resposta que não detinha. Mas, qual gafanhoto veraneante a embater em testa suada, assim lhe acudiu à ideia melhor forma de dar volta ao imbróglio. Retomou à venda que Cremilde viu como protesto por contas mal ajustadas para logo se dar conta, aliviada, de ensejo outro. Era ganho que lhe chegava, moeda mais por hospedaria de cão, Fiel, de pouco comer e nada ladrar bom mando e de guarda fazer. Cremilde não regateou que inda há pouco o fizera sem lho fazer saber. Trá-lo-ia na furgoneta de Marcolino e largá-lo-ia ali na venda para cinco dias de pousada. Dali abalou agora de vez até segunda ao alvorecer que fosse primeira, quando chegasse à audiência de Marcolino que haveria de carregar homem extra e ter a furgoneta à justa. Ildebrando fazia contas de pouco saber ao que despenderia por hospedagem de cão, ele que só por duas luas ocupara com Piedade acomodações que não suas por força de verificação de médico de gravidezes, “obs… qualquer coisa” nos dizeres de Ildebrando quando transmitiu a Ti Cesarina que a filha não tinha préstimo para encher mas que lá por dentro andava coisa má. Dali até mirrar Piedade foi Outono e meio Inverno por entre poções e unguentos de bruxa arengas carpidos bois jungidos que acarretavam visitações sapos cosidos e atados à soleira da porta motoreta estacionada de doutor de mala preta embaulada e Piedade a ficar como veio ao mundo pequenina e enrugada de se lhe pegar com uma 16

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mão para a deitar à terra em campo-santo de ataúde modesto. Nesse tempo o Fiel desaparecera como sumido pelo demo só regressando na exacta hora em que Piedade expirava o último estertor. Arribou ali quase como Piedade se quedara, com os ossos a ver-se-lhe pêlo em queda apressada e olhos de encovado canino, tais como os de Piedade que pareceu a Ildebrando terem fixado o diabo do cão.

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Gertrudes antepusera-se à porta de casa avaliando pelo escurecer da noite a chegada iminente de Teófilo que quase podia sentir na pele arrepiada de calafrio e quase desejo cuidando de manter acesas as brasas para que não esfriasse o caldo. Este assim estando seria o primeiro protesto do regressado Teófilo que não se sabia nunca se vinha com aflições amorosas ou tenções de altercação, Gertrudes só tal saberia depois de provado o caldo estando quente era ponto a menos contra a contenda, mas nem assim era certo. Gertrudes desconhecia o porquê de ser por vezes quase desancada tanto como ignorava a razão do balido constante das cabras que papo cheio a rebentar de silvas baliam por tudo e por nada. Nas suas cogitações, Gertrudes aceitara entendimento de que o Teófilo era como as cabras, batia como elas baliam, nada havia que os detivesse. Ao longe pôde divisar os farolins da furgoneta que rompiam a escuridão da noite como se de um tiro se tratasse na 17

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sua perfeita sonoridade ecoada e volveu a dentro para espevitar as brasas, uma derradeira mexedela no caldo e acender a gambiarra como um farol sonolento que Teófilo descortinaria por certo. Alisou o avental e a saia com mãos gretadas de muito labor e pensou no amor. Teófilo arribou de sobranceria mansa, poucas ou nenhumas palavras, sorveu o caldo ao qual gabou a quentura e olhou a mulher como conduto. Hoje seria afecto. Acordou estremunhado por cama de palha não ser serapilheira de chão já Gertrudes carregara os baldes para bebedouro de bichos e higienes de homem que Teófilo replicou de vezes outras tantas retirando do frontispício resquícios de pó de cimento entranhado nas ranhuras das orelhas e nos fundos cavados abaixo dos olhos. Gertrudes depôs-lhe defronte o café escaldante e o pão fatia enquanto noticiava que por ali andara bicho raposa que lhe levara uma galinha, que Teófilo era excelso em memórias de bichos e aritméticas de tirar e por certo daria conta da vaga, e só não matara outras porque o alvoroço do galináceo a fizera correr à capoeira e espantar a ordinária de penas e patas na boca fugindo por este mundo fora esbaforida de medo e contento. Teófilo grunhiu um assinto, despiu as ceroulas que trocou por vestes de rua de ontem e fez-se à espingarda dependurada por sobre a sacra estatueta não sem antes se benzer duas vezes antes de carregar a escopeta. Saiu de pouca vontade e preguiça maior sabendo Gertrudes que até ao almoço ou pouco mais haveria de ter sossego, pois Teófilo aliviado de fomes amorosas haveria de procurar alívio para outras engendradas sofreguidões raivosas 18

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que quiçá fossem amenizadas atrás da trinca-galinhas e que fosse balir como as cabras para a puta que pariu do esconderijo da raposa que sem cão que o guiasse seria com maior obstáculo descoberto. E não havia sido. Teófilo regressou qual perdigueiro de língua dependurada mais ainda que nos amores da noite antecedente ou talvez por isso mesmo e assentou-se para porção de caldo sobrante e de calor igual mas que pior degustou. Gertrudes, toda presciência de momento e adivinhações de futuro foi bem a tempo de elevar os braços como broquel e Teófilo apenas resvalou pancada pouca por cansaço de fora trazido enquanto berrava, desta vez que nem ovelha, que não tivera vislumbre de rasto algum que não de cão; de raposa, sendo aproximada, tinha palma miúda e gadanhas mais estreitadas e que fosse o maior corno se aquilo não era de cão que nunca por ali vira e sozinho não vagueava, tinha dono com ele na caçada de puta que também por lá deixara assinatura de chispe. Que houvera de dizer fazer jurar Gertrudes para que o marido julgado enganado se desenganasse de falsas ideias que atazanariam vida sua de muito apego agora na bamba corda como combinação mal agarrada que vento manso levará para empestar de terra água lama senão baixar a guarda e esperar força dissolvida na busca de bicho que faça abater pujança de punho? Um fungar pio e duas juras de santinha na mão escorrida de sangue e lágrimas caídas de nariz que até santa fluiu qual hemorragia de lança de Jesus assim S. João o disse, e a usança teve lugar: Teófilo de raivas despejadas buscando leito 19

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de descanso e Gertrudes asseando o rosto as mãos e a efígie sacra no avental encardido de fúrias frescas e precedentes.

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Ildebrando despertara noite escura. Com açodamento esfregou a fronte tragou café frio de borra roeu pedaço de pão duro com sémis para Fiel ensacou frugais pertenças e rumou a paragem combinada onde a mata se adensava e o chão era mais batido debaixo de céu escuro debaixo de céu plúmbeo debaixo de céu rosado que deixou reconhecer ao longe duas luminescências feitas pirilampos com jeitos de ser furgoneta de Marcolino. Fez alto com braço bem levantado e a carrinha abrandou até parar de porta aberta para Ildebrando ingressar. Mas que fosse sem o cão porque Fiel upara de salto lesto atrás de dono e o chofer vai de enxotar bicho que aquela era carrinha de gente. Fez então entender, Ildebrando, que Cremilde acolhê-lo-ia de renda canina durante os dias que por casa não se achasse, ao que Marcolino aquiesceu meio enxofrado também por segundo apeadeiro. Acomodou-se sob tecto de chapa de Fiel no regaço perante o menosprezo dos homens e o olhar suspicaz de Teófilo. Iam deitar paredes ao alto a blocos e fio-de-prumo com cimento para alvenaria e tempo não havia a perder. Marcolino chofer ia carregar homens de acabamentos para obra diversa pelo que por ali chegaria sem saber a que horas e que quando então retornasse queria parede de empoleirar para só 20

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assim poder espreitar o que além dela se guardava, ainda que no actual minuto o descampado o permitisse. Não se livrou à chacota, “Marlino”, porque houvera de ter esquecido o cu de nome e fundo de costas que só com ele podia enxergar alguma coisa e parede mal feita que sobre ele se abatesse não era assunto de pôr de parte. Carro por carro de mão em mão massa mexer assentar parca bucha mata-ratos e cabaça esvaziada a metade. Marcolino chegado e agradado que homem novo mais trabalho adiantava, riso disfarçado na guilda por razão devassa, hora mais uma e as doze pedem reforço. Assobios de melodias más e rogo de argamassa parede prosperada hora de despega. Assembleia de alvenel traz putas de entrada e paneleiros à saída. E Teófilo dá o motejo indagando recém-chegado se acordava em jornada às meninas lá para quarta-feira, hoje e amanhã era dia adiantado que ainda trazia a chouriça esfolada e nas quartas era quando o Marcolino vinha prenhe do cu e dizia que sim a tudo quanto lhe rogavam; e se não fosse de vontades dessas podia ficar na furgoneta a espreitar o cu aos outros como fazia o Marcolino que de tanto tesão ainda lhe agarrava no badalo. Ildebrando não deu nunca parte de fraco e jamais se queixou Piedade a não ser de apetites desmedidos a toda a hora e instante e que de pernas sempre abertas não dava conta de bichos e caldos porque homem a quem devia encher a barriga só a queria encher a ela, e assim lá aprovou com náusea disfarçada e similarmente pela invectiva.

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